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Autodeterminação e irredentismo: a luta por independência de Nagorno-Karabakh

Danielle Amaral Makio: Mestranda nos programas Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Santas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies (Universidade de Glasgow) e bolsista Erasmus Mundus. E-mail: daniellemakio@gmail.com

O horizonte político do enclave de Nagorno-Karabakh (N-K), também conhecido como Artsakh, coloca-se como verdadeiro obstáculo à estabilidade regional no sul do Cáucaso. A assimetria causada pela existência de um território majoritariamente composto por armênios dentro do Estado azeri fomenta violentos atritos entre os dois grupos étnicos, atritos estes que permanecem latentes mesmo após a assinatura do cessar-fogo em 1994. As históricas demandas do enclave pela incorporação à jurisdição da Armênia foram substituídas, nos anos recentes, por demandas separatistas que ambicionam o reconhecimento de N-K como um Estado independente (POKALOVA, 2015).

Nos anos 1920, as nações transcaucasianas, nomeadamente armênios, geórgicos e azeris, buscaram se consolidar como Estados independentes, iniciando um turbulento processo de demarcação territorial. Neste contexto, os conflitos entre Armênia e Azerbaijão, que já haviam lutado pela posse do enclave de Nagorno-Karabakh, localizado na região fronteiriça entre ambos os países, antes de tornarem-se Repúblicas Soviéticas, escalariam substancialmente. Embora as raízes da disputa entre Armênia, cristã, e Azerbaijão, muçulmano de maioria xiita, pelo controle do território sejam seculares e tenham um nomeado embasamento étnico-religioso, é notável que o período soviético configura um verdadeiro ponto de viragem na postura dos dois Estado frente à região em virtude do redesenho das fronteiras do Cáucaso desempenhado pela URSS (GEUKJIAN, 2012).

Neste contexto, em 1923, o Politburo, comitê de comando da União Soviética, viria a declarar que, apesar da maioria étnica armênia em N-K, o enclave passaria a estar formalmente vinculado ao território do Azerbaijão. Como forma de amenizar as animosidades dos armênios de Karabakh, o Politburo concederia à região o status de província autônoma (Oblast) da União Soviética. A despeito da manobra constitucional adotada pelo Partido Comunista, torna-se evidente que os direitos de N-K constituíam um mero estatuto formal, uma vez que o governo azeri continuava a desempenhar um papel dominante em seus assuntos internos, constrangendo não apenas os anseios do vizinho rival, como os da própria população de N-K  (DE WAAL, 2003).

As políticas discriminatórias do Azerbaijão frente aos armênios de Karabakh constituiriam um elemento crítico nas reivindicações do enclave pela secessão. Sob a óptica da região fronteiriça, desde a década de 1920, suas características étnicas são constantemente ameaçadas pela nação titular azeri através de medidas como a supressão da história e dos símbolos armênios nas escolas e nos meios de comunicação. As posições mais elevadas na sociedade também tendem a ser delegadas aos nativos azeris, um tratamento preferencial que se explicita não apenas nas esferas da vida pública, mas também na constituição nacional, que fora gradualmente ajustada em favor da nacionalidade azerbaijana. A questão cultural seria agravada ainda pela forte política de migração promovida pelo Estado para compensar o predomínio da etnia armênia na região, enquanto que na esfera econômica o enclave enfrentaria privações no acesso a recursos e investimentos estruturais em decorrência de políticas econômicas formuladas pelo Azerbaijão. Gradualmente, estas intervenções se traduziriam em sistemáticas políticas discriminatória que visavam sufocar as potenciais demandas da região por autonomia e que, inevitavelmente, viriam a representar um elemento crítico das demandas de N-K por secessão (BERG; MÖLDER, 2012).

Em 1988, as preocupações frente ao comportamento hostil de Baku (capital azeri) se traduziriam em demandas substanciais do enclave para sua incorporação à Armênia, Estado com o qual tinha um forte sentimento de identificação em vista da compartilhada origem étnica de ambos. O Comitê Central da URSS, opondo-se a qualquer tentativa de alteração das fronteiras soviéticas e a qualquer mobilização que pudesse fornecer um precedente a demais movimentos separatistas, mostrou-se irredutível frente aos anseios dos armênios de Karabakh (DE WAAL, 2003). No entanto, a linguagem revolucionária da demanda pelo irredentismo enunciaria um novo período de confrontos violentos, cujo ápice se consolidaria em 1992 (SIMÃO, 2010).

Podemos notar, portanto, que o desmantelamento da URSS (datado de 1991) representou o fim do elemento de autoridade que assegurava a relativa estabilidade na região: durante a era soviética, as demandas do enclave eram verdadeiramente negligenciadas – e sufocadas – pelo Politburo, que temia que a concessão de maior autonomia a N-K pudesse fornecer o precedente para a revolta de outros grupos nacionais. No pós-1991, contexto da onda independentista das Repúblicas Soviéticas, os sucessivos confrontos entre armênios e azeris pela ocupação e controle de N-K escalaram ao nível do embate violento e do isolamento absoluto dos dois grupos étnicos. Em 1992, no episódio conhecido como  Desde então, o enclave se caracteriza pela população monoétnica, de origem exclusivamente armênia. Neste cenário, atesta-se que, a despeito do cessar-fogo acordado em 1994, a ausência de um confronto direto não se traduziu no estabelecimento da paz (DE WAAL, 2003; HILL, 1993).

Diante do cenário de “no war, no peace” estabelecido em Nagorno-Karabakh, tem início a intervenção da OSCE (Organization for Security and Cooperation in Europe) no conflito. As ações da organização, neste contexto, procuravam desmantelar o ambiente de demandas totalizantes e desconfiança com vistas a apontar uma alternativa consoante aos princípios, nem sempre conciliáveis, da organização: a integridade territorial dos Estados e o direito dos povos à autodeterminação. A criação do Grupo Minsk em 1992, uma comissão ad hoc composta por França, Rússia e Estados Unidos, marca o início da atuação da OSCE no contexto da Transcaucásia. No mesmo ano, entretanto, as reuniões iniciais falham e a ação militar predominou sobre a via diplomática. Após a assinatura do cessar-fogo, que se dá em 1994, por forte influência russa, são apresentados os princípios norteadores da atuação da organização no local, princípios estes que englobariam o direito de Nagorno-Karabakh à autoafirmação, a integridade territorial do Azerbaijão e a garantia de segurança à população do enclave (POKALOVA, 2015).

Uma nova tentativa de estabelecimento do pacote de resolução de conflito é feita pelo Grupo em 1997. A sugestão mantinha o reconhecimento do direito de autoafirmação dos armênios de Karabakh e previa, ainda, a criação de zonas-tampão patrulhadas por operações de peacekeeping da OSCE e a concessão da alcunha de unidade estatal do Azerbaijão a N-K. No mesmo ano foi adicionada à proposta uma cláusula de desmilitarização que previa a retirada das tropas das partes envolvidas no conflito. Todavia, a não definição clara do status formal concedido ao território litigioso acarreta uma nova rejeição, que é seguida por sucessivas tentativas também mal sucedidas de negociação (POKALOVA, 2015).

A lentidão e a falta de perspectiva das negociações levantam a necessidade de preenchimento das insuficiências existentes ao longo do processo, um problema cuja solução é então desenhada pelo Processo de Praga que, em 2004, sugere uma aproximação baseada em respeito e confiança mútuos entre ambos as partes negociadoras. Em 2006, entretanto, o frágil horizonte de possibilidades de resolução do conflito sofre uma forte alteração: após realizar uma série de referendos populares, N-K ascende à condição de busca por uma independência estrita, de modo que sua anexação à Armênia deixa de ser uma opção viável. A atitude dos armênios de Karabakh foi duramente criticada pela OSCE que, em 2007, cria os chamados Princípios de Madrid, prevendo a retirada das tropas dos Estados envolvidos e a realização de um novo referendo acerca do status de N-K. Já em 2011, durante as negociações de Kaza, ocorre mais um ponto de viragem da disputa: Armênia e Azerbaijão atacaram-se mutuamente alegando falta de comprometimento e sinceridade de ambas as partes (POKALOVA, 2015).

A análise da atuação da OSCE em N-K permite definir, basicamente, três momentos no conflito: (1) o desejo de independência da região que dá início ao litígio no início da década de 1990; (2) a aproximação da Armênia e a legitimação popular de uma possível anexação por esta que marca o início das negociações em 1994; e (3) a retomada da busca pela independência e pelo reconhecimento internacional formalizada em 2006 . A crescente solidificação das instituições de N-K leva a região a atingir um nível de maturidade suficientemente grande para que a autonomia volte a ser uma pauta definitiva. Junto do aumento do nível de militarização da segunda metade dos anos 2000, a desconfiança entre as partes e a posição de N-K enquanto estado de facto vem barrando as negociações, uma vez que levanta um impasse dentro do próprio escopo dos princípios da OSCE (MYCHAJLYSZYN, 2001).

O conflito em questão origina-se, na perspectiva de Karabakh, a partir do direito de autodeterminação dos povos, enquanto que, sob a óptica azeri, há uma clara infração do princípio de integridade territorial. Uma vez que a independência passa a ser a única solução aceita por uma das partes, há uma necessária infração dos fundamentos basilares da OSCE – seja da autodeterminação, seja da integridade territorial. Outro impasse que dificulta a resolução do conflito em questão, ademais, é a falta de poder econômico para financiar os projetos propostos pelo Grupo Minsk, fato que dificulta a implementação dos pacotes propostos pela organização e aumenta a influência de grupos interessados na manutenção do conflito (MYCHAJLYSZYN, 2001).

Após anos de congelamento do conflito em vista do insucesso nas negociações e da supressão de interações violentas entre as partes, o conflito voltou a apresentar sinais de retomada das hostilidades em 2016. Em fevereiro deste ano, a Armênia acusou o Azerbaijão de investidas militares que desrespeitariam o acordo, declaração que gerou movimentações armadas sobre Karabakh por ambas as partes: ao longo de ofensivas que se prolongaram de 2 a 11 de abril, cerca de 200 pessoas foram mortas em decorrência do evento. Graças à atuação da OSCE e, sobretudo em decorrência de negociações encabeçadas pela Rússia, a escalada foi contida.

A situação do litígio permaneceu estável até meados de 2020, quando o então presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, afirmou que a resolução militar do conflito seria possível. A declaração foi o estopim para uma nova escalada do conflito, que voltou a contar com investidas militares entre azeris e armênios e mobilizou Rússia, União Europeia as Nações Unidas.

A incongruência entre Estado e nação constitui a lógica fundamental que sustenta o início do conflito em N-K, região que ainda hoje permanece ocupada por Karabakhs de origem étnica armênia e subjugada à jurisdição dos azeris . Os desdobramentos que sucederam o estopim do conflito em 1991, contudo, apontam para uma indelével característica da disputa: o silenciamento dos armênios de Karabakh. Se a princípio temos uma luta por autodeterminação, atualmente temos um contexto em que Armênia e Azerbaijão lutam pelo futuro de um território cujo povo busca por uma independência não atrelada a nenhum dos Estados. O protagonismo de armênios, azeris e terceiros na arena de negociações a respeito do futuro de uma nação irredentista, assim, parece não necessariamente favorecer os desejos da população de N-K e levanta questionamentos acerca de quais interesses têm sido de fato defendidos ao longo do histórico do conflito.

Outra questão que merece menção especial é a estratégica localização do litígio. N-K está no caminho de duas grandes rotas energéticas: (1) a malha de gasoduto que liga Rússia e Armênia e (2) linhas de transporte estabelecidos entre Turquia e Geórgia. Em virtude desta disposição geográfica, a disputa em questão tem relevância aos assuntos internos de atores regionais, nomeadamente Rússia e Turquia. Tipicamente interessada na manutenção de sua influência no espaço pós-soviético, a primeira sempre se mostrou um ator atento aos desdobramentos do cenário aqui discutido e proativo no que diz respeito à liderança do processo negocial. Contudo, ao passo em que os russos tipicamente demonstram favorecer um alinhamento à Armênia, o Azerbaijão tem sido recorrentemente apoiado pela Turquia, cuja expansiva presença no cenário securitário da Transcaucásia vem se afirmando em tempos recentes. É este, pois, o panorama geral de um dos mais sangrentos conflitos do Cáucaso,

Imagem: Garoto brinca em cidade destruída pela guerra de Nagorno-Karabakh, Brendan Hoffman/Getty Images

REFERÊNCIAS

BERG, E.; MÖLDER, M. Who is entitled to ‘earn sovereignty? Legitimacy and regime support in Abkhazia and Nagorno-Karabakh. Nations and Nationalism. Estonia, v. 18, n. 3, p. 527-545, 2012

DE WAAL, Thomas. Black Garden: Armenia and Azerbaijan through Peace and War. Nova Iorque: New York University Press, 2003.

GEUKJIAN, Ohannes. Ethnicity, nationalism and conflict in the South Caucasus: Nagorno-Karabakh and the legacy of Soviet nationalities policy. England: Ashgate Publishing, 2012.

HILL, R. J. The Soviet Union: From “federation” to “Commonwealth”. Regional Politics and Policy. Londres, v.3, n.1, p.96-122, 1993.

MYCHAJLYSZYN, Natalie. The OSCE and Regional Conflicts in the Former Soviet Union”, Regional & Federal Studies: vol.11, ed.3, p.194-219, 2001.

POKALOVA, Elena. Conflict Resolution in Frozen Conflicts: Timing in Nagorno-Karabakh.  Journal of Balkan and Near Eastern Studies: vol.17, ed.1, p.68-85, 2015.

SIMÃO, Licínia. Engaging Civil Society in the Nagorno-Karabakh Conflict: What Role for the EU and its Neighbourhood Policy?. Brighton: MICROCON, 2010.

As divisões linguísticas no conflito em Camarões: o movimento separatista da República da Ambazônia

Getúlio Alves de Almeida Neto

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. Email: getulio.neto@unesp.br

 

Em outubro de 2016, deflagrou-se o conflito conhecido como “Crise Anglófona” entre o governo central de Camarões e o movimento separatista da República da Ambazônia, nas regiões Sudoeste e Noroeste do país. Segundo os separatistas, a minoria anglófona camaronesa sofre com políticas discriminatórias que favorecem política, cultural e economicamente a população falante da língua francesa. As diferenças linguísticas e políticas que levaram à eclosão das hostilidades têm suas raízes no passado colonial e no processo histórico de formação do Estado camaronês pós-independência.  

Camarões foi disputa do imperialismo colonizador europeu na África no século XIX e XX, período em que seu território passou pelo domínio de alemães, ingleses e franceses. Os alemães chegaram pela primeira vez ao país em 1868 e declararam-no colônia do Império Alemão em 1884, permanecendo assim até o fim da Primeira Guerra Mundial. Em 1922, o país foi dividido em dois mandatos: Camarões Franceses e Camarões Britânicos – este, por sua vez, subdividido em Camarões do Norte e Camarões do Sul – que representavam, respectivamente, 80% e 20% do território camaronês (DELANCEY, M.D; MBUH; DELANCEY, M.W, 2010). 

Em 1960, o Camarões Franceses se tornou independente e formou a República de Camarões, sob a presidência de Ahmadou Ahidjo. No ano seguinte, o Camarões Britânicos se dividiu por meio de um plebiscito realizado em 11 de fevereiro, cujo resultado foi a incorporação do Camarões do Norte, de maioria muçulmana, à Nigéria, ao passo que o Camarões do Sul se tornou uma federação da República de Camarões. Em 1 de outubro do mesmo ano, foi estabelecida uma nova constituição que resultou na unificação da República Federativa de Camarões. Em 1965, Ahidjo foi reeleito presidente e, no ano seguinte, foi criado o partido União Nacional de Camarões (UNC), se tornando o único partido do país, após a dissolução dos três principais partidos camaroneses à época [1]. Em 20 de maio de 1972, realizou-se um referendo em favor da formação República Unida de Camarões. Após a vitória, o país aboliu o sistema federativo e se tornou um Estado unitário em 21 de junho de 1972 (DELANCEY, M.D; MBUH; DELANCEY, M.W, 2010). 

Ahidjo abdicou do cargo em 1982, supostamente por motivos de saúde. Seu sucessor, Paul Biya, assumiu como presidente em 6 de novembro de 1983. Após sete reeleições seguidas, Biya está há 38 anos no cargo [2]. Tanto Ahidjo quanto Biya são camaroneses francófonos e, nesse sentido, a história camaronesa pós-independência é constituída de apenas dois presidentes que contribuíram para a centralização do poder político nas mãos da população falante de francês. À vista disso, a região anglófona, antigo Camarões do Sul, tornou-se palco do nascimento de um movimento que reivindicava maior autonomia frente ao governo de Yaoundé, capital camaronesa. O movimento passou a ganhar mais força política a partir de 1990, quando houve a volta do sistema multipartidário no país. Ao longo dessa década, começaram a surgir focos de tensão. Em 30 de dezembro de 1999, o Conselho Nacional do Camarões do Sul (CNCS) [3] proclamou a independência de Camarões do Sul (DELANCEY, M.D; MBUH; DELANCEY, M.W, 2010), sem, no entanto, qualquer reconhecimento internacional. Em 2001, uma coalizão de movimentos separatistas foi formada em Washington, Estados Unidos, sob o nome de Administração Provisória do Camarões do Sul Britânico, reivindicando a autoridade sobre o território.  

 O conflito permaneceu latente até outubro de 2016, quando se iniciou a chamada “Crise Anglófona”O estopim para a crise foi a indicação de juízes francófonos para as regiões anglófonas feita pelo governo camaronês, gesto visto por juristas como uma ameaça ao sistema de common law [4] da região. Professores também se opuseram à contratação de colegas que falavam apenas o francês. O Consórcio da Sociedade Civil Anglófona Camaronesa (CACSC, na sigla em inglês), uma organização entre advogados e professores da região, iniciou uma greve e uma série de protestos alegando a histórica marginalização dos falantes de inglês frente ao governo central. Este reagiu de forma repressiva aos protestos e ao menos 100 pessoas foram presas na cidade de BamendaApós negociações entre a CACSC e o governo falharem, líderes do movimento iniciaram novas greves gerais e a estratégia de “Cidades Fantasma”, realizadas todas as segundas-feiras desde então, segundo a qual a população da região da Ambazônia deveria boicotar escolas e comércio. Em resposta a esse movimento, o governo camaronês interrompeu o acesso à Internet por 94 dias, entre 17 de janeiro e 20 abril de 2017. 

As hostilidades agravaram-se com a declaração de guerra feita por Benedict Kuah, líder do grupo Forças de Defesa da Ambazônia (ADF, na sigla em inglês), com o objetivo de assegurar o comando da região, considerando o governo central camaronês como ilegítimo e perpetrador de abusos de direitos humanos. Uma nova declaração de independência da Ambazônia foi feita em 01 de outubro de 2017 pela Frente Unida do Consórcio Ambazônia dos Camarões do Sul (SCACUF, na sigla em inglês), data simbólica em referência à independência do Camarões do Sul, em 1961. O SCACUF se estabeleceu como uma organização guarda-chuva, reunindo vários movimentos separatistas.  

No entanto, vale ressaltar que o movimento político da Ambazônia é difuso e, muitas vezes, marcado pelos posicionamentos opostos entre diferentes grupos, a destacar: separatistas, federalistas e apoiadores de uma maior descentralização política. Segundo o International Crisis Group existiam, em 2019, sete grupos armados no contexto da crise desde o seu estopim em 2017. No entanto, o relatório ressalta que o apoio a estes grupos tem diminuído ao longo do tempo devido aos abusos da força empregada por seus membros e da violência gerada pela escalada do conflito com as forças armadas. Conforme o relatório do Centro para Direitos Humanos e Democracia na África (CHRDA, na sigla em inglês), publicado em junho de 2019, os grupos armados realizaram ataques em 216 vilas, com queimadas e violações de direitos humanos. Além disso, o mesmo relatório alerta para o fato de que a violência de gênero é uma das principais questões nos desdobramentos do conflito. Ao menos 75% das mulheres entrevistadas afirmam ter sofrido violência física e sexual por forças do Estado. O governo, no entanto, nega quaisquer acusações  

Em geral, o movimento separatista da Ambazônia é dividido em dois grupos políticos principais: o Governo Interino da República Federal da Ambazônia (IG, na sigla em inglês), criado por Julius Ayuk Tabe, e o Conselho de Governo da Ambazônia (AGC, na sigla em inglês), comandado por Ayaba Cho Lucas, residente na Noruega.  Cada um destes reivindica ser o governo legítimo da região, sendo que o IG é o grupo com maior apoio entre os separatistas. Além disso, a discordância entre os dois grupos se dá pela forma de organização, estratégias e objetivos. Em linhas gerais, a maior parte dos membros da AGC têm um posicionamento mais linha dura do que os da IG, e vislumbram o separatismo como única possibilidade de resolução do conflito [5]. Por sua vez, o IG é, de forma geral, contrário às ações de ataques em áreas francófonas, como feito pela AGC. Como resultado da discordância, em 2018 houveram disputas entre os dois grupos políticos que resultaram na morte de 12 pessoas em 2018 (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2019).  

A participação de outros atores, seja dentro do próprio país, ou externa, também vem exercendo papel em tentativas de resolução do conflito. Destacam-se entidades religiosas como a Conferência Nacional Episcopal de Camarões, representante da Igreja Católica, e o Vaticano, que buscaram estabelecer um canal de diálogo entre as partes, no entanto frustradoA oposição francófona ao governo de Biya critica-o na forma como este lida com a crise, mas também se mostrou incapaz de promover uma solução. Outros países buscam incentivar o diálogo entre as partes, mas divergem quanto à forma e a profundidade com as quais estão relacionados com o conflito. Os Estados Unidos advogam pela consideração do governo central sobre a autonomia da região anglófona e pressionam Biya com acusações de violações de direitos humanos, ameaçando diminuir a ajuda militar estadunidense às forças camaronesas. Já os governos do Canadá, Alemanha e Reino Unido condenam ambas as partes do conflito pela escalada da violência, mas tendem a ser mais críticos em relação ao governo central.  Em especial, a França tem atuado de forma mais diplomática a partir da relação entre o presidente francês Emmanuel Macron e Paul BiyaNesse sentido, Macron busca posicionar a França como um ponto de equilíbrio, menos incisivo que as pressões da União Europeia e dos Estados Unidos, e o único líder capaz de conseguir um diálogo entre Biya e os movimentos anglófonos (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2019). 

 No contexto africano, a Nigéria, país vizinho de Camarões que recebeu até 2019 35 mil refugiados camaronesestambém é um ator com grande capacidade de influenciar no diálogo entre as partes e no fim do conflito. Os nigerianos, principalmente do leste do país, tendem a ser simpáticos às reivindicações dos camaroneses anglófonos. No entanto, um posicionamento muito assertivo da Nigéria em favor dos separatistas da Ambazônia é improvável. O presidente nigeriano, Muhamadu Buhari, é aliado de Biya na luta contra o grupo extremista Boko Haram, que atua em ambos os países. Além disso, a Nigéria também lida com um movimento secessionista em seu território, na região de Biafra. Em 2018, o governo nigeriano prendeu separatistas em sua capital, Abuja, e os enviou de volta para as forças de segurança camaronesas (INTERNATIONAL GRISIS GROUP, 2019).   

Entre os presos estava Julius Tabe, líder do IG. Tabe foi substituído por Samuel Ikome Sako, que não conta com o mesmo apoio do grupo que seu antecessor. Durante seu período como líder, Sako conseguiu formar uma frente única dos movimentos da Ambazônia, chamado de Conselho de Liberação do Camarões do Sul (SCLC, na sigla em inglês), que reunia sete movimentos. O SCLC foi formado em uma reunião em Washington, em abril de 2019, mas não contou com a participação de AGC, já que seu líder, Cho Lucas,  recusou o convite. Em maio de 2019, Tabe, ainda na prisão, divulgou uma carta na qual dissolvia o gabinete de Sako e buscava novamente se estabelecer como presidente legítimo da AmbazôniaSako se recusou a entregar o cargo e, em meio à crise interna no IGC, Cho Lucas declarou apoio a Tabe, em um movimento inédito de aproximação entre os dois principais líderes dos movimentos separatistas. 

Em 20 de agosto de 2019, Tabe e outros participantes do movimento foram condenados à prisão perpétua e ao pagamento de uma multa milionária pelo tribunal militar do país. No entanto, a defesa de Tabe não reconheceu a sentença e criticou a ação do tribunal que, por meio da decisão, impedia o desenvolvimento de um diálogo entre as partes, justamente em um momento em que conversas eram mediadas pela Suíça.   

Ao longo de 2020, as hostilidades continuaram a acontecer, como visto no episódio do Massacre de Ngarbuh, no qual 22 pessoas foram assassinadas, das quais mais da metade eram crianças. Supostamente, os assassinatos foram executados por seis soldados das forças armadas camaronesas. Paralelamente, segundo um artigo publicado no jornal The African Report , o governo de Yaoundé havia enviado uma delegação, em 02 de julho, para negociar com Tabe um acordo de cessar-fogo na região da AmbazôniaNa reunião, Tabe teria estabelecido quatro condições para um acordo: 1) o acordo teria de ser anunciado publicamente pelo presidente Paul Biya; 2) a retirada das forças militares das regiões sudoeste e noroeste; 3) anistia geral para todos os prisioneiros da Ambazônia, que deveriam ser soltos de imediato; 4) as negociações deveriam ser feitas fora de Camarões.  

Os diálogos entre o governo e Tabe foram o primeiro passo nesse sentido para a solução da crise camaronesa desde 2017Não obstante, a tensão no território da Ambazôniaainda controlado pelos separatistas, persiste. De acordo com o relatório do International Group Crisis de maio de 2019, ao menos 1,850 pessoas, entre soldados, separatistas e civis, perderam suas vidas, 530 mil se deslocaram internamente e outras dezenas de milhares fugiram para países vizinhos. De forma análoga às origens do conflito, baseado sobretudo em questões linguísticas, a incapacidade de diálogo entre os atores torna improvável que qualquer acordo seja alcançado. O governo de Paul Biya tem se mostrado irredutível ao negociar com os separatistas. grande diversidade de grupos políticos armados, refletidos na clivagem entre o IG e AGC, torna ainda mais complexa a definição de um possível acordo e comprometimento com as medidas que forem estabelecidas. Nesse sentido, a atual situação de Camarões se apresenta como mais um exemplo de reflexo do período colonial e da falta de uma história política de fato democrática.  

NOTAS 

[1] os três partidos dissolvidos eram do oeste camaronês: Partido Nacional Democrático de Camarões (KDNP); Convenção Nacional dos Povos Camaroneses (CPNC) e Congresso Unido de Camarões (CUC). Ver em DeLancey, M.D; Mbuh e DeLancey, M.W, 2010. 

[2] Paul Biya é o segundo chefe de Estado na África há mais tempo no poder, apenas atrás do líder da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang, segundo reportagem da Deutsche Welle 

[3] o CNCS é uma organização política não-armada, formada em 1995, que reivindica a independência do Camarões do Sul. Em 2001, foi considerada uma organização ilegal pelo presidente Paul Biya. 

[4] o common law é um tipo sistema de jurídico praticado no Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e comum em outros países que foram colônia do Império Britânico. Diferentemente do direito romano-germânico, como é o caso do Brasil, no qual as decisões são guiadas por uma legislação específica, o common law desenvolve-se com base em decisões anteriores dos tribunais que estabelecem uma jurisprudência e, portanto, um costume que deve balizar a conduta da decisão do juíz. 

[5] Contudo, alguns membros da AGC são favoráveis a um possível processo de federalização ou uma confederação entre as regiões anglófonas e francófonas (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2019) 

 

REFERÊNCIAS 

BAMENDA protests: Mass arrests in Cameroon. BBC NEWS. 23 nov. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-38078238.> Acesso em: 29 jul. 2020. 

 

BREAKING NEWS: ADC Lands Ground Troops in Southern Cameroons, Declares War on LRC. Daily News Cameroon. 10 set. 2017. Disponível em: https://www.dailynewscameroon.com/breaking-news-adc-lands-ground-troops-in-southern-cameroons-declares-war-on-lrc/Acesso em: 29 jul. 2020. 

 

CAMARÕES: prisões e vetos à sociedade civil correm o risco de aumentar a tensão nas regiões falantes de inglês. Anistia Internacional. 25 jan. 2017. Disponível em: <https://anistia.org.br/noticias/camaroes-prisoes-e-vetos-sociedade-civil-correm-o-risco-de-aumentar-tensao-nas-regioes-falantes-de-ingles/> Acesso em: 29 jul. 2020 

 

CAMARÕES: Separatistas anglófonos condenados à prisão perpétua. Deutsche Welle. 21 ago. 2018. Disponível:< https://www.dw.com/pt-002/camar%C3%B5es-separatistas-angl%C3%B3fonos-condenados-a-pris%C3%A3o-perp%C3%A9tua/a-50111431>. Acesso em: 29 jul. 2020.  

 

CAMEROON: Government is secretly negotiating with the AmbazoniansThe Africa Report. 06 jul. 2020. Disponível: <https://www.theafricareport.com/32444/cameroon-government-is-secretly-negotiating-with-the-ambazonians/>. Acesso em: 29 jul. 2020 

 

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SUSPECTED Ambazonia Fighters Kill Truck Driver In Mile 29, Relatives Denounce Gendarme Extortion. Cameron News AgencyDisponível em: <https://cameroonnewsagency.com/suspected-ambazonia-fighters-kill-truck-driver-in-mile-29-relatives-denounce-gendarme-extortion/>. Acesso em: 29 jul. 2020. 

 

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VICTORY in Cameroon: after 94 days, the internet is back on. Access Now. 20 abr. 2017. Disponível em: https://www.accessnow.org/victory-cameroon-94-days-internet-back/. Acesso em: 29 jul. 2020.  

 

Os Conflitos no Sudão do Sul e as tentativas de alcançar a paz

Ligia Maria Caldeira Leite de Campos 

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES  Emailligia.campos4@hotmail.com 

O Sudão do Sul se originou em 2011, como resultado de um Amplo Acordo de Paz (Comprehensive Peace Agreement, CPA), assinado com o intuito de encerrar anos de conflito. Nele, estava previsto um referendo que possibilitou a independência da região Sul do Sudão, o que levou à criação de um novo país com a cidade de Juba como sua capital (GUIMARÃES, 2013; VARMA, 2011). 

Nesse contexto, o partido Movimento de Libertação do Povo do Sudão (SPLM, em inglês), que havia liderado a oposição ao Sudão na luta pela independência, assumiu o governo. Salva Kiir passou a ocupar a presidência e Riek Machar a vice-presidência. Desde o seu surgimento, o país conta com a presença da Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS), que na época objetivava consolidar a segurança e a paz, além de auxiliar em seu desenvolvimento e preparar o governo que assumia o seu posto (JOHNSON, 2014; UNITED NATIONS, 2011). 

No entanto, em 2013, uma nova disputa eclodiu, agora entre Kiir e Machar. Dentre as possíveis motivações, destacam-se atitudes arbitrárias do Presidente, como a retirada de Machar de seu cargo e o isolamento dos antigos participantes do movimento de libertação. O quadro que se apresentava no país era complexo, composto por baixo desenvolvimento, corrupção e falta de segurança. É relevante salientar que, desde o princípio, o Sudão do Sul já tinha que lidar com falta de infraestrutura, extrema pobreza, baixa qualidade de vida, disputas por petróleo e dificuldades na configuração do governo. A soma de todos esses fatores pode ter sido a razão para que Machar reunisse o Movimento de Libertação do Povo do Sudão em Oposição (SPLM-IO), contrário ao Presidente e seu governo (ROACH, 2016; JOHNSON, 2014; RADON; LOGAN, 2014; OLIVEIRA, 2011).  

Entretanto, o real estopim do conflito de dezembro de 2013 ainda é discutido. O Presidente alegou a ocorrência de uma tentativa falha de golpe de Estado, a qual não foi comprovada. Em resposta, ele enviou tropas para diversos bairros, tendo como alvo políticos opositores e a população da etnia Nuer, sendo que Machar é Nuer e Kiir é da etnia Dinka [1]. Por conseguinte, Machar instou que o Exército derrubasse Kiir e grupos de civis Nuers armados se juntaram a ele (JOHNSON, 2014). 

Em 2014, começaram a ser relatadas violações de direitos humanos perpetradas por ambas as partes. Em setembro de 2015, foi ratificado um acordo de paz, que resultaria em um período de transição até as eleições de 2018. O documento se propunha a consertar as falhas do Estado e do CPA (particularmente no que se refere à inclusão política e à falta de transparência na gestão do petróleo), assim como renovar a confiança da população em seus líderes e no sistema político. Todavia, os relatos de violações do acordo foram recorrentes. Ambos os lados mantiveram a disputa pela liderança, gerando dúvidas a respeito do seu comprometimento com a paz (OCI, 2015; ROACH, 2016). 

Em fevereiro de 2016, Kiir, sob pressão, chamou Machar novamente para o posto de vice-presidente, o que não implicou que as partes fossem reintegradas. Em julho, houve um surto de violência de quatro dias em Juba, causando aproximadamente 300 mortes. A partir desse momento, ocorreram intensos embates entre tropas fiéis aos dois lados e o governo passou a agir de maneira ainda mais hostil contra seus opositores, levando Machar a se exilar na República Democrática do Congo (RDC). Grupos armados anteriormente existentes e outros que foram surgindo junto a essas hostilidades também participaram ativamente do conflito [2]. Desse modo, a União Africana (UA) autorizou o envio de tropas regionais para se juntarem à missão de paz da ONU e essas novas tropas teriam um mandato mais robusto para impor a paz (ROACH, 2016; OCI, 2016a; OCI, 2016b). 

Novamente, foram realizadas inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, particularmente violência sexual, detenção forçada, tortura, assassinatos e destruição de propriedades, configurando um quadro que se aproximava a um genocídio (OCI, 2016c; OCI, 2016d; OCI, 2017) 

No espaço de tempo entre o acordo de 2015 e 2018, foram várias as tentativas falhas de fazer as partes retomarem a negociação. Finalmente, em setembro de 2018, foi assinado o Acordo Revitalizado sobre a Resolução do Conflito na República do Sudão do Sul (R-ARCSS, em inglês), prevendo um sistema de power sharing (compartilhamento de poder) [3] e a instituição de um Governo de Transição Revitalizado de Unidade Nacional, além de tratar de questões como segurança, economia, justiça e reconciliação, assistência humanitária, reconstrução e desmilitarização de determinados locais. Está também previsto que as eleições devam ser realizadas em um período de transição de três anos. Entretanto, diversos grupos armados não o assinaram e outros assinaram-no com ressalvas. Mais ainda, houve dificuldades em estabelecer o governo de transição, problema que só foi solucionado em fevereiro de 2020 (AFRIYIE; JISONG; APPIAH, 2020; CAMPOS, 2019; ONAPA, 2019; UNMISS, 2020). 

Ademais, ainda há um outro contratempo: desde a assinatura do R-ARCSS, a violência intercomunitária está em ascensão mais uma vez. Em maio de 2020, uma nova onda de conflitos intercomunitários assolou o país e autoridades locais demonstraram preocupação com essa nova empreitada. Esses confrontos não-estatais envolvem grupos bem organizados que estão vinculados a determinada identidade, seja ela religiosa, étnica, linguística ou cultural. Eles podem atuar de forma paralela ou se relacionar ao conflito central, em que tomam partido de um dos lados. Os embates que realizam variam em grau, podendo causar a morte de dezenas, centenas ou até milhares de pessoas, sendo capazes de ultrapassar o índice de mortes de uma guerra civil, visto que as milícias também atacam os civis. Costumeiramente, essas ações acontecem em áreas rurais e remotas, mas podem se dar em zonas urbanas. As motivações para que ocorram podem ser: a polarização em relação à guerra civil, baixa representação política, desconfiança em relação ao governo, proteção à comunidade, vinganças e tensões sobre recursos locais (particularmente gado e terra). Além disso, muitos grupos podem ser instrumentalizados e cooptados pelas partes em guerra ou mesmo recebem armas e financiamento da elite política, que busca por meio deles os seus próprios interesses. Dessa maneira, eles estão cada vez mais militarizados, havendo uma ampla disponibilidade de armas leves. Perante esse quadro, é possível observar que um tipo de conflito interfere no outro e que, para atingir uma paz sustentável, a violência comunitária deve ser abordada nos processos de paz, interligando o âmbito local e nacional (KRAUSE, 2019; OCI 2020b; OCHA, 2019). 

Deve-se ressaltar que os países vizinhos acabam interferindo no conflito. Por um lado, Uganda possui um histórico de apoio a Kiir, porém, com o tempo, foi deixando de auxiliá-lo e passou a atuar mais em busca do acordo entre as partes em disputa. Por outro, o Sudão, quando governado por Omar al-Bashir, era entendido como apoiador de Machar. A respeito da razão para o envolvimento desses países nas hostilidades, muito se fala no interesse relacionado ao petróleo. Etiópia e Quênia, por sua vez, atuam nos processos de mediação, assim como a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) [4], a qual patrocina as tentativas de paz. O grupo armado ugandês Lord’s Resistance Army (LRA), realiza ataques na região, inclusive no Sudão do Sul. Portanto, é relevante considerar o escopo regional quando se interpreta o cenário sul sudanês. Ainda outros países dispensam atenção especial a esse contexto e ao processo de paz, como a China, os Estados Unidos (EUA), a Europa e a Troika (grupo composto por EUA, Noruega e Reino Unido que visa estabelecer a paz no Sudão do Sul) [5]. Há também uma importante participação da UNMISS, cujas funções são auxiliar o processo de paz e a implementação do R-ARCSS, proteger civis, investigar violações de direitos humanos e apoiar a entrega de ajuda humanitária (CAMPOS, 2017; AFRIYIE; JISONG; APPIAH, 2020; UNMISS, 2020). 

Segundo dados do Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, 2019), a situação humanitária do país é muito delicada, uma vez que 7,5 milhões de pessoas necessitam de assistência em um país de quase de 12 milhões de habitantes. No total, contabilizam-se 2,3 milhões de refugiados sul sudaneses ao longo de país como Sudão, Uganda, Etiópia, Quênia, RDC e República Centro-Africana, e 1,5 milhão de deslocados internos. Estima-se que, entre 2013 e 2018, 400 mil pessoas morreram devido ao conflito, sendo metade das mortes causadas por violência. É importante frisar que há uma significativa discrepância entre os dados obtidos sobre essas mortes, devido ao difícil acesso a informações. Ademais, nesta contabilização, não é possível distinguir entre os mortos em razão da guerra civil e as vítimas dos conflitos entre comunidades (KRAUSE, 2019). 

Atualmente, após a assinatura do acordo R-ARCSS, houve alguns avanços, como o cessar-fogo em grande parte do território, alguns retornos voluntários de refugiados, progressos na relação entre Kiir e Machar e o estabelecimento de um governo de transição. Contudo, ainda há alguns entraves, tais quais: incidentes violentos, ligados diretamente ou não ao conflito em termos amplos; violações ao acordo; impunidade; diversos casos de violência sexual; violações da liberdade de imprensa; ataques a trabalhadores humanitários; alegações de uso indevido das verbas; postergações dos prazos; e, especialmente, um receio perante o histórico de tentativas falhas de alcançar a paz. Ademais, existem minas remanescentes e um quadro de criminalidade, o que torna a situação mais desafiadora aos civis que, de maneira geral, não se sentem seguros. Observando o contexto como um todo, o conflito foi reduzido, porém a adesão ao acordo de paz é insuficiente. O próprio Conselho de Segurança da ONU compreende que a violência diminuiu desde a assinatura do acordo, mas permanece preocupado com questões políticas e de segurança (OCI, 2019a; OCI, 2019b; CAMPOS, 2019; OCHA, 2019; OCI, 2019c; OCI, 2019d; OCI, 2020c). 

Em 2020, perante a pandemia de COVID-19, autoridades afirmam que as restrições por ela geradas são empecilhos para lidar com a segurança (OCI, 2020b). O Enviado Especial da ONU para a região dos Grandes Lagos, onde está localizado o Sudão do Sul, estima que as medidas preventivas juntas à realocação de recursos para gerenciar a crise sanitária irão, a longo prazo, debilitar as economias já frágeis, impactando os processos de paz e o desenvolvimento nessa área (OCI, 2020a). 

À guisa de uma conclusão, diante dessa multiplicidade de atores e esse cenário complexo, são entendidos como os principais desafios para o país alcançar a paz: a frustração com a política e a governança, reduzida participação da população, baixa qualidade de vida, corrupção, ambição pessoal de seus líderes, rivalidades étnicas, dependência econômica em relação ao petróleo, disputa por recursos (petróleo, gado, terras), problemas de segurança e fragilidade das instituições. Para que se consiga finalmente conquistar uma paz sustentável, é necessário abordar todas essas raízes que geram não só o conflito mais amplo, mas todos os conflitos presentes no país. 

 

NOTAS 

[1] Essas são as duas maiores etnias do país (GUIMARÃES, 2013). 

[2] Mais informações sobre esses outros grupos estão disponíveis em International Crisis Group, 2016. 

[3] Power Sharing se refere à participação de todos os representantes dos grupos relevantes para a tomada de decisão política. Esse “compartilhamento de poder” é empregado especialmente em governos democráticos em sociedades divididas (LIJPHART, 2004). 

[4] A IGAD é uma organização regional constituída por oito Estados do leste africano e tem como objetivo trazer e preservar a paz, segurança e estabilidade na região, atuando por meio da gestão, prevenção e solução de conflitos dentro e entre os países (MAWADZA; CARCIOTTO, 2017). 

[5] Dados adicionais sobre a participação externa no conflito podem ser encontradas em CAMPOS, 2017. 

 

REFERÊNCIAS 

AFRIYIE, Frederick Appiah; JISONG, Jian; APPIAH, Kenneth YawComprehensive analysis of South Sudan Conflictdeterminants and repercussionsJournal Of Liberty And International Affairs, Bitola, v. 6, n. 1, p. 33-47, maio 2020. 

CAMPOS, Ligia Maria Caldeira Leite de. O Atual Conflito no Sudão do Sul. Série Conflitos Internacionais, Marília, v. 4, n. 2, p. 1-9, abr. 2017. 

CAMPOS, Ligia Maria Caldeira Leite de. O Conflito no Sudão do Sul e o Papel da Missão de Paz da ONU no País. 2019. Texto publicado no site da Rede Brasileira de Pesquisa sobre Operações de Paz. Disponível em: https://rebrapazblog.files.wordpress.com/2019/10/campos-conflito-no-sudc3a3o-do-sul-e-unmiss.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020. 

GUIMARÃES, Samara Dantas Palmeira. O Papel do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) na Construção do Governo da República do Sudão do Sul: A Atuação do PNUD do Período Pré-Secessão ao Pós-Eleição (2009-2012). 2013. 125 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. 

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JOHNSON, Douglas H.. The Political Crisis in South SudanAfrican Studies Review, Cambridge, v. 57, n. 3, p.167-174, dez. 2014. 

KRAUSE, Jana. Stabilization and Local Conflictscommunal and civil war in South SudanEthnopolitics, Amsterdã, v. 18, n. 5, p. 478-493, jul. 2019. 

MAWADZA, Aquilina; CARCIOTTO, Sergio. South Sudan: A young country divided by civil warScalabrini Institute For Human Mobility In AfricaSihma, Cidade do Cabo, v. 56, n. 7, p.1-17, fev. 2017. 

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VARMA, Anjana. The Creation of South Sudan: Prospects and ChallengesObserver Research Foundation, Nova Deli, v. 27, n. 1, p.1-25, nov. 2011. 

Israel-Palestina: permanecem as velhas perguntas sem novas respostas

Maitê Pereira Lamesa, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). E-mail: maitelamesa@gmail.com 

O Conflito Israel-Palestina foi deflagrado a partir da aprovação pela Assembleia Geral da ONU, em 29 de novembro de 1947, do Plano de Partilha da Palestina em dois estados (Resolução 181), elaborado pela Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP). Logo após a declaração de independência do Estado de Israel pela Agência Judaica, teve início a guerra de 1948. 

Entretanto, suas raízes históricas e contextos geopolíticos, remontam ao fim do século XIX, a partir do atraso tecnológico do Império Otomano, o surgimento do Movimento Sionista [1], e os arranjos hegemônicos que se consolidam com o término da Primeira Guerra Mundial. Como reflexo, foram firmados uma série de compromissos contraditórios em relação às aspirações dos povos árabes e judeus (Declaração de Balfour e a Correspondência Hussayn-McMahon), bem como ajustes velados entre França e Inglaterra em relação aos territórios do Império Otomano (Acordo de Sykes-Picot), extinto a partir da assinatura do Tratado de Sèvres (1920). Tais ações seguiram o pano de fundo do contexto neocolonialista da época. 

No pós-Segunda Guerra, o ambiente político tornou-se favorável à questão judaica, em virtude do reconhecimento do holocausto e de resultados consistentes das negociações sionistas junto às grandes potências. Como consequência, houve a autorização formal para a divisão das terras palestinas – que até então estavam sob o julgo da Inglaterra (mandato britânico) desde 1917 – e a conseguinte instituição do estado judeu.  

Na guerra em 1948, as forças árabes compostas por milícias palestinas, o Exército de Liberação Árabe (Jaysh Al Inqadh) da Liga Árabe, e contingentes de exércitos do Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita, concentraram esforços para responder à declaração de independência de Israel, e engajaram em conflito com as forças judaicas, integradas pelas forças militares da Hagana, às quais se somaram as forças paramilitares da Irgun (Etzel) e Stern Gang (Lehi), com auxílio decisivo da Palmach (PAPPE, 2007, p. 45). A disparidade das forças era evidente e acabou levando não apenas à vitória da guerra por Israel, com ampliação do território para além do plano original (chegando a 78% do território do mandato britânico), mas também à “Al-Nakba”, ou “A Catástrofe” palestina. Esse acontecimento  indica tanto o período de êxodo e expulsão da população palestina dos territórios onde foi estabelecido o Estado de Israel, quanto todos os eventos que afetaram os palestinos entre dezembro de 1947 a janeiro de 1949.  

Durante a Nakba, calcula-se que entre 750.000 e 800.000 palestinos deixaram suas terras e vilas ou foram delas expulsos, representando cerca de 50% de toda a população palestina (árabe) da época (FLÜCHTLINGSKINDER; ZOCHROT, 2013). Muitos daqueles que deixaram suas terras agiam em resposta a massacres planejados e levados a cabo pelas milícias israelenses. O ataque israelense mais expressivo desse período foi o massacre de Deir Yassin, executado em abril de 1948 pela Irgun e Lehi e, posteriormente, com auxílio da Palmach,  resultou na morte de 254 palestinos [2]. Em 1949, foi criada a “United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees” (UNRWA), agência da ONU cuja responsabilidade era atuar junto aos refugiados palestinos, que se espalharam para Gaza, Cisjordânia e países vizinhos, primordialmente Líbano, Síria, Jordânia. 

Na década subsequente, Israel envolveu-se nos embates contra o Egito, em torno de tensões na região do Sinai, que se desenrolam até culminar na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. As consequências foram ainda mais desastrosas para a Palestina: perda expressiva de território, que passaram então a ter controle militar israelense, sendo elas: (a) Colinas do Golã (Síria); (b) Cisjordânia; (c) Jerusalém Oriental (Jordânia); (d) Gaza (Egito) e a Península do Sinai (Egito) [3]. 

Com exceção do Sinai, os demais territórios palestinos conquistados foram ocupados por Israel, com a imediata intensificação de construção de assentamentos – questão que representa atualmente um dos imbróglios centrais para a resolução do conflito –, maior controle da vida quotidiana dos palestinos, com a consequente precarização das condições dessa população, e crescimento da população refugiada. 

Nesse período, também se estruturou a resistência palestina, basicamente a partir da criação da OLP em 1964 pela Liga Árabe, cuja liderança de Yasser Arafat, a partir de 1968, é a mais emblemática, com melhor organização da luta armada palestina, bem como criação de estruturas de assistência em campos de refugiados, reforçando e até substituindo a atuação da UNRWA, que era insuficiente para prover as condições mínimas necessárias de sobrevivência. Ao prover serviços sociais à população refugiada, que era numerosa e sofria com sérias restrições de trabalho, vedações à aquisição de terras e outros direitos nos países de refúgio, essa aproximação atraía combatentes (os “fida´iyyun”) à sua esfera de gravitação (PAPPE, 2007, p 229).  

A elaboração de estratégias para a libertação palestina, sobretudo após a nomeação de Arafat para a liderança da OLP levou a dissidências internas, distanciando a organização da visão inicial pan-arabista e aproximando-a das ideologias de guerras de libertação popular, com inspiração socialista. Foram ainda formadas outras organizações: a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) por George Habash e Naif Hawatmeh, e a Frente Democrática Popular de Libertação da Palestina (FDPLP), por iniciativa de Hawatmeh. 

Foi a partir desse período que a luta palestina adquiriu o caráter de resistência e necessidade de libertação popular, sendo que a atuação da OLP se estruturou inicialmente a partir da Jordânia, tendo sido transferida ao Líbano na década de 1970, após crise deflagrada com o líder jordaniano, rei Hussein, conhecida como “Setembro Negro”.  

Em 1977, uma série de fatores determinaram a eleição do líder israelense Menachem Begin, representante do Likud, partido que ele próprio fundara. Nesta época, evoluiu-se a construção de assentamentos, sendo que em 1987 existiam já 110 assentamentos na Cisjordânia, e 15 assentamentos em Gaza (HUBERMAN, 2014, p. 96), além das estradas para interconectá-los. A lógica de construção seguiu a ótica militarizada que refletia a experiência de Ariel Sharon na guerra do Yom Kippur (1973). Com Begin, a OLP passou a ser mais perseguida, tendo sido classificada como um elemento subversivo. O combate à organização levaria à primeira invasão no Líbano por Israel em 1982, a fim de conter os ataques lançados a partir da base da OLP junto a campos de refugiados palestinos na região sul do país. 

Com o advento da Primeira Intifada, em dezembro de 1987, concretizou-se a resposta da população dos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs), frustrada ante a insuficiência das estratégias da OLP, as tentativas de acordos malfadadas e à falta de resposta da comunidade internacional, enquanto Israel ignorava diversas resoluções aprovadas pela ONU. Além disso, os efeitos da expansão do livre-mercado, seguindo a lógica neoliberal da época, acentuava a precarização da mão-de-obra palestina, cada vez mais dependente dos empregadores israelenses. 

A insurgência palestina teve início junto aos campos de refugiados de Gaza, ganhando adesão generalizada da população sob ocupação, bem como dos palestinos em Israel. A desigualdade de armas era patente e resultou em 1551 mortes do lado palestino, e 421 do lado israelense, dentre eles 271 civis (B´TSELEM, [2020]). Tal processo conduziu às tratativas dos Acordos de Oslo [4], na década seguinte, período de grande otimismo em torno da resolução do conflito. 

Os resultados obtidos dos acordos não conduziram à criação do Estado palestino, nem conseguiram pôr fim à ocupação israelense, sendo que a onda otimista rapidamente dissolveu-se no início do século XXI. A subdivisão territorial da Cisjordânia nas áreas A, B e C (KAPELIOUK, 2004, p. 369-370), por exemplo, foi uma das graves consequências de Oslo, permitindo o alargamento da presença israelense no território palestino para além dos assentamentos construído ao longo das décadas anteriores, fazendo da Cisjordânia um território fragmentado em pequenas ilhas desconexas.  

Com efeito, no alvorecer do novo milênio, a ocupação tornou-se sistemática, ganhando aspecto legítimo e os projetos de assentamento e de anexação de terras palestinas avançaram. O controle de Israel da “área C” deu vazão às demolições de casas, fosse por falta de permissão para construir, fosse para “fins militares”. Desde 2006 até 30 de junho de 2020, Israel demoliu 1.584 casas palestinas na Cisjordânia por falta de permissão para construir, deixando 6.880 pessoas desabrigadas (B´TSELEM, [2020]). Já entre 2004 até 2011, Israel demoliu 5.494 casas palestinas para “fins militares” incluindo Cisjordânia e Gaza. Em Gaza, durante a Operação Margem Protetora (2014), foram destruídas 18.000 casas palestinas, resultando em 100.000 palestinos desabrigados (B´TSELEM, [2020]).  

Além disso, após a Segunda Intifada, o governo israelense deu início à construção de muros que cercam Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, sendo que a barreira isolou vilas, cidades, áreas rurais, e segregaram a população e suas economias locais, além de anexar mais terras palestinas. Os postos de comando (“checkpoints”) estabelecidos para controlar o fluxo de pessoas autorizadas a transitarem geraram ainda mais violações ao direito de locomoção e de acesso a serviços básicos como a saúde, e permanecem como uma grave violação de direitos fundamentais. 

Assim, medidas que trariam maior segurança à população israelense contra atentados palestinos produzem, na realidade, maior violência, incertezas e impedimentos a iniciativas para a construção da paz de forma consistente. A militarização crescente da sociedade israelense também não oferece a resposta adequada ao conflito, e perpetua o ciclo de revoltas, além de minar possibilidades de desenvolvimento da sociedade civil palestina. 

Desde 2005, Israel retirou suas tropas da Faixa de Gaza, que passou então a ser administrada pelo grupo Hamas em 2007. Em contrapartida, Israel impôs um bloqueio das fronteiras, com exceção da entrada de Rafah, administrada pelo Egito, controlando também o espaço aéreo e a saída para o mar. Dessa forma, a locomoção de pessoas, mercadorias, incluindo assistência humanitária, depende de prévia autorização israelense, a qual é extremamente limitada, sendo quase impossível a saída dos residentes. 

Desde a ascensão do Hamas ao poder em Gaza, a região passou a ser vista como um território inimigo, o que levou a diversas incursões militares, com a finalidade de desestruturar as redes dessa liderança ou em resposta a ataques de mísseis do grupo. Contudo, as incursões resultaram em altas perdas civis, inclusive de mulheres e de crianças. Desde a saída de Israel, foram feitas 3 incursões: (a) Operação Chumbo Fundido (2008); (b) Operação Pilar Defensivo (2012); e (c) Operação Margem Protetora (2014).  

Os desdobramentos do conflito têm, portanto, agravado um conflito já bastante longevo, tornando a paz uma “miragem” (FLINT, 2009). Os prejuízos de tantas hostilidades reverberam na sociedade israelense, e na sociedade palestina eles são sentidos de forma ainda mais severa, criando-se um sistema de precarização generalizada, dependência econômica acentuada, detenções injustificadas (inclusive de crianças e adolescentes), mortes, falta de acesso à infraestrutura adequada, restrições no acesso à água, ordens de demolição ou despejo, campos de refugiados, desemprego e restrições severas ao direito de locomoção (OCHA-OPt, [2020]). As mortes aproximadas desde o advento da Segunda Intifada até junho de 2020 eram de 10.564 palestinos e de 1.271 israelenses (B´TSELEM, [2020]).  

De modo geral, é possível concluir que o conflito Israel-Palestina tem características multidimensionais, diversas fases, e uma multiplicidade de atores envolvidos, tanto estatais quanto não-estatais. De qualquer forma, conforme dados da Uppsala Conflict Data Program  (UCDP), cerca de 80% das mortes registradas decorrem de ações de atores estatais.  

Mais recentemente, a maior aproximação ideológica entre Estados Unidos (sob a liderança de Donald Trump) e Israel (comandado por Netanyahu), bem como as eleições de 2019 e a estrutura do sistema político permitiram a reeleição de Netanyahu e a perpetuação do Likud no poder. A permanência de conservadores sionistas tem permitido a evolução e desenvolvimento de projetos de anexação de terras palestinas, o que dificulta ainda mais as possibilidades de diálogo e mina a solução de dois Estados, princípio norteador em Oslo e em negociações posteriores. O decurso do tempo pesa contra a população palestina, que vê diuturnamente suas condições de vida reduzidas, sem alternativas ante a ocupação israelense. É preciso destacar que os prejuízos também são sentidos pela população israelense, posto que a inviabilidade do diálogo adia as perspectivas de uma vida menos militarizada, belicosa e violenta.  

As inúmeras tentativas falhas de resolução do conflito trazem à tona as debilidades da solução de dois Estados, que pode estar com seu prazo vencido. Porém, de outro lado, resta incerta a viabilidade de implantação de um único Estado que garanta, na prática, direitos iguais tanto aos israelenses quanto aos palestinos, uma vez que essa medida põe em xeque questões essenciais para Israel, como a manutenção da prevalência da demografia judia do estado israelense.  

Uma passagem do livro de Miko Peled (The General´s Son), reflete essas incertezas, ao relatar seus diálogos acerca da solução de um estado (PELED, 2016, p. 247): “Meu cunhado estava perdendo a paciência a cada minuto. ‘Você não entende nada! Você não vê que isso levará à guerra civil? Será outro Kosovo ou Líbano e o derramamento de sangue será irrefreável.’ Mas eu não podia deixar passar. ‘Ou Suíça ou Bélgica. Se você nos comparar com outros estados multinacionais, a nossa não é uma questão muito complicada’.” [5]  

Até o momento, o conflito se prolonga sem que tais respostas possam ser dadas com exatidão. Sem a perspectiva de uma via para a solução, perpetuam-se medidas questionáveis e contrárias às normas de Direito Internacional, como é o caso da possível anexação de terras palestinas por Israel, prevista no acordo anunciado pelo governo Trump no início deste ano (Acordo do Século).  

Esse acordo, formulado sem a consulta de qualquer representação palestina, tem sido muito criticado, já que previu a anexação de terras no Vale do Jordão, onde situam-se assentamentos israelenses, área que é essencial ao abastecimento de água e alimentos à Cisjordânia. Em 1º de julho estavam previstas as discussões sobre esse acordo no parlamento israelense (Knesset), contudo, foram adiadas face às pressões internas e internacionais. 

 

Fonte imagética: Mohamed Asad | Monitor do Oriente Médio. Disponível em:  https://www.monitordooriente.com/20191202-358022/. Acesso em 20.07.2020. 

NOTAS 

[1] O Movimento Sionista tem origem a partir das ideias de Theodor Herzl, defendidas no Primeiro Congresso Sionista Mundial, realizado em 1897 na Basileia (Suíça). O Sionismo, em sua origem, apresentou-se como movimento umbilicalmente atrelado a ideais nacionalistas, como necessidade de compor um Estado-nação para um povo composto por minorias distribuídas ao redor de todo o mundo, vivendo na “diáspora”, e compor tal Estado-nação significava uma população unida em um território pelo sentimento natural e, portanto, espontâneo de povo, o que se costuma denominar identidade. 

[2] O massacre de Deir Yassin, uma vila palestina nas proximidades de Jerusalém, estava inserido no escopo do Plano Dalet (Plano D), desenvolvido pela liderança sionista e colocado em prática antes mesmo da declaração de independência de Israel. De acordo com Ilan Pappe: “Em março de 1948, o Plano Dalet foi adotado. Os primeiros alvos eram os centros urbanos da Palestina, os quais haviam sido ocupados até o final de abril. Cerca de 250.000 palestinos foram expulsos nesta fase, além de diversos massacres postos em prática, o mais notável deles foi o massacre de Deir Yassin.“ (PAPPE, 2006, p. 40). [Tradução Livre] 

[3] Vale destacar que a Península do Sinai foi posteriormente devolvida ao Egitoincluída na negociação dos Acordos de Camp David, firmados entre Menachen Begin na Casa Branca, durante o governo Carter. O ato foi visto pela Organização pela Liberação da Palestina (OLP) como traição políticaposto que tornava a Palestina ainda mais vulnerávelalém de enfraquecer os demais países árabescomo Líbano e Síria (FISK, 2007, p. 208). 

[4] Os Acordos de Oslo foram firmados em 1993 e 1995 entre o Primeiro-Ministro israelense na época, Ytzhak Rabin e o líder da OLP, Yasser Arafat, mediados pelo governo de Clinton. A celebração desses acordos era vista pela comunidade internacional com tamanho otimismo, o que se reflete na edição pela Assembleia Geral da ONU da Resolução 49/88 aprovada em 16 de dezembro de 1994, a qual clamava a necessidade de se chegar à paz compreensível, justa e duradoura no Oriente Médio e expressava o apoio à rápida concretização do processo de paz em curso até aquele momento (ONU, 1994). 

[5] Na versão original em inglês: “My brother-in-law was losing his patience by the minute. ‘You don´t understand a thing! Can´t you see it will lead to civil war? It will be another Kosovo or Lebanon and the bloodshed will be unstoppable.’ But I couldn´t let it go. ‘Or Switzerland or Belgium. If you compare us to other multinational states, ours is not a very complicated issue.” 

 

REFERÊNCIAS 

ARIJ. Daily Report19.07.2020. Disponível em: https://www.arij.org/eye-on-palestine-arij/daily-report.html. Acesso em 20.07.2020. 

B´TSELEM. Fatalities in the First Intifada. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/first_intifada_tables. Acesso em 18.07.2020. 

________. Fatalities during the Operation Cast Lead. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/fatalities/during-cast-lead/by-date-of-event. Acesso em 18.07.2020. 

________. Fatalities since Operation Cast Lead. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/fatalities/after-cast-lead/by-date-of-event. Acesso em 18.07.2020. 

________. Statistics on Demolition for Alleged Military Purposes. Disponível em: https://www.btselem.org/razing/statistics. Acesso em 20.07.2020. 

________. Statistics on demolition of houses built without permits in the West Bank. Acesso em: https://www.btselem.org/planning_and_building/statistics. Acesso em: 20.07.2020. 

FISK, Robert. Pobre Nação: as guerras no Líbano no século XX. Tradução de Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro: Record, 2007. 

FLINT, GuilaMiragem de Paz: Israel e Palestina: processos e retrocessos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 

FLÜCHTLINGSKINDER. The Nakba Exhibition Catalogue: Fight and Expulsion of the Palestinians in 1948. Disponível em: https://zochrot.org/en/article/56365. Acesso em 16.07.2020. 

MADRAZO, Mariano de. Palestina Medio Siglo: Acordes Historicos 1913-1958. Madrid: Editora Nacional, 1964. 

PAPPE, IlanThe Ethnic Cleansing of PalestineOxford: Oneworld Publications, 2007. 

_____História da Palestina Moderna: Uma Terra, Dois Povos. Tradução: Ana Saldanha. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. 

PELED, MikoThe General´s Son: Journey of an Israeli in Palestine. Second Edition. Chalottesville: Just World Books, 2016. 

SHEHADEH, Raja. Occupier’s Law: Israel and the West Bank. Washington D.C.: Institute for Palestine Studies, 1985. 

OCHAOPt. Protected People Reports. Disponível em: https://www.ochaopt.org/reports/protection-of-civilians. Acesso em 19.07.2020. 

ONU. Resolução 49/88. Disponível em: http://mfa.gov.il/MFA/ForeignPolicy/MFADocuments/Yearbook9/Pages/TABLE%20OF%20CONTENTS.aspx. Acesso em 21.07.2020. 

UPSALA (Suécia). Uppsala Conflict Data Program. Disponível em: https://ucdp.uu.se/country/666. Acesso em 19.07.2020.