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As violências contra crianças e adolescentes no Brasil

Nos últimos tempos, brasileiros e brasileiras que possuem importantes cargos políticos – como o próprio presidente, Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves e o ministro da Educação, Ricardo Vélez  – têm se manifestado sobre formas de proteger as crianças e os adolescentes no Brasil. Apesar da ênfase em se autoproclamarem defensores da infância e da adolescência, não se discute o que significa, de fato, protegê-las, e a quais formas de violência elas estão submetidas. Frases de efeito como “Nunca a infância foi tão atingida como nos dias de hoje” são repetidas à exaustão, fazendo com que levantar a bandeira da defesa das crianças e dos adolescentes torne-se um senso comum, com baixos esforços de reflexão e que diz pouco sobre as formas de violência na nossa sociedade brasileira. Refletir sobre as consequências e as manifestações da violência é um primeiro passo para elucidar essa situação.

Johan Galtung (1969; 1990), analista da violência e da paz cujo trabalho ganhou destaque na década de 1960, já pensava a conceituação da violência de forma ampla. O autor propôs que violência é o desequilíbrio entre a realização potencial e real das capacidades humanas. Em outras palavras, Galtung considera que há violência quando os indivíduos não conseguem desenvolver suas plenas potencialidades humanas – seja por um impedimento direto de um indivíduo sobre o outro ou por um obstáculo estrutural da sociedade que nega aos seres humanos condições de justiça social. Segundo esse raciocínio, a violência – física e psicológica – pode se expressar nas formas direta, estrutural e cultural.

A violência direta manifesta-se em ocasiões em que o sujeito e o objeto da violência são identificáveis como indivíduos concretos. Essa forma de violência expressa de forma mais explícita, por exemplo, em atos de violência de um indivíduo sobre outro, como em um assassinato, ataque com armas ou mesmo por meio de armas de destruição em massa. A violência direta impressiona e choca, pois é visível, preocupante, gera medo e insegurança pessoal. Pode ser percebida, identificada, denunciada e seus agentes punidos (GALTUNG 1969).

Não menos preocupante é a violência estrutural (ou indireta). Na concepção de Galtung, a estrutura da sociedade em que os indivíduos nascem os impede de desenvolver todo o seu potencial como humanos porque não lhes são dadas as mesmas oportunidades (FERREIRA, 2016; GALTUNG, 1969; 1990). Isso abarca as desigualdades sociais; as relações desiguais de poder; o acesso desigual a serviços básicos de educação e saúde; discriminação racial; discriminação de gênero; exploração econômica de uma classe social sobre as outras. A violência estrutural manifesta-se independentemente da existência de um indivíduo praticando atos diretos de violência sobre outro. Ela existe na estrutura das sociedades e está ancorada na injustiça social.

 Por sua vez, a violência cultural ocorre por meio de símbolos, imagens, religião, ideologia, discursos inflamados, “onipresença do retrato do líder”, hinos e paradas militares, linguagem e arte, padrões de comportamento e consumo (GALTUNG, 1990, p. 291). Ou seja, são valores produzidos de cima para baixo, aquilo que possui valor simbólico capaz de justificar a dominação das estruturas de violência e naturalizar a violência estrutural.  A combinação da violência estrutural com a violência cultural pode resultar na violência direta, no sentido em que as pessoas encontram formas de se rebelar contra esse sistema desigual, que as forçam a buscar soluções pela violência direta (GALTUNG, 1969; 1990).

Justamente por serem profundas e enraizadas na sociedade e não tão explícitas como atos de violência direta, as formas estrutural e cultural acabam por ficar menos visíveis nas análises sobre violência, permanecendo quase intocáveis em uma sociedade que pensa mais em formas paliativas de frear a violência direta, e menos em formas de realmente tratar a violência estrutural. Mais do que isso, frequentemente as violências estrutural e cultural não são sequer consideradas formas de violência, mas sim consequências naturais do mérito de uns e demérito de outros: os indivíduos em melhores condições socioeconômicas são merecedores de desfrutar tais benefícios de vida, enquanto os indivíduos que não possuem essas condições são culpabilizados por não atingirem esse mesmo patamar social.

Envolvidas por esses três tipos de violência estão as crianças e adolescentes. De fato, eles estão sujeitos à violência direta quando são vítimas de sequestros, assassinatos, tráfico de crianças, pedofilia, entre outros. Porém, mesmo as formas de violência direta os atingem de maneira discriminatória. As crianças e os adolescentes negros e de baixa renda são mais vulneráveis a esse tipo de violência. São vítimas da violência extrema do próprio aparelho de segurança estatal que, em tese, foi feito para defendê-los. Por meio de atos de repressão policial desproporcionais – como espancamentos e mortes – em periferias de centros urbanos, presencia-se a banalização da violência contra jovens negros e pobres.

As crianças e os adolescentes brasileiros já partem de níveis socioeconômicos muito distintos. A violência estrutural é expressa quando lhes é dada diferentes chances de acesso à educação, quando lhes é negada acesso a lazer e saúde (direitos que estão garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente). Ocorre também quando esse mesmo Estatuto não é visto como garantidor de direitos, mas como um malefício que deve ser descartado, pois incentivaria a “malandragem e a vagabundagem infantil”. Violência é utilizar crianças e adolescentes como instrumentos morais para espalhar notícias deturpadas que aprofundam ainda mais a naturalização da violência estrutural. Violência também é manipular e inventar (des)informações sobre a educação sexual e ao cercear o acesso dos jovens à educação sexual nas escolas (afetando principalmente as meninas, que são culpabilizadas pela gravidez indesejada).  A violência contra a criança e o adolescente manifesta-se ao naturalizar a morte de crianças e adolescente em favelas e tratá-los como bandidos. Por meio de símbolos culturais como discursos, imagens e cenas de ódio, além de incentivar crianças e adolescentes a utilizarem armas, a violência se faz presente ao naturalizar uma cultura de ódio e hostilidade.

Portanto, a violência consiste em negar o acesso às mesmas oportunidades de desenvolvimento, além de não promover o acesso a uma cultura que incentive a paz. Ademais, é subestimar a capacidade de agência dos jovens ao moldá-los sob a rigidez do ensino militarizado como melhor forma de educação sem, entretanto, discutir junto à sociedade que tipo de educação está sendo oferecida e como ela contribui para formar cidadãos críticos e pensantes e não apenas obedientes às formas de dominação cultural e estrutural.

  A proteção de crianças e adolescentes está relacionada a todas as políticas que incidem – direta ou indiretamente – sobre a infância e a adolescência, tais como o acesso a creches, direito a licença maternidade e paternidade, direitos trabalhistas para que os pais possam também ter condições de cuidar de seus filhos e filhas da melhor maneira. Logo, proteger crianças e adolescentes abarca também protegê-los desse tipo de violência estrutural, ou seja, fornecer condições para que toda a sociedade possa cuidar de nossas crianças e adolescentes e para que eles tenham plenas capacidades críticas para serem agentes de transformação mundial.

É preciso levar em consideração esse ambiente de constante violência direta, estrutural e cultural para entender que, mesmo quando crianças e adolescentes são agentes da violência direta – isto é, quando praticam atividades criminosas como furto, roubo, tráfico de drogas – muitos não o fazem por “vagabundagem e malandragem infantil”.  Fazem-no porque estão inseridos em uma estrutura social em que cometer atos criminosos apresenta-se como uma possível forma de sobrevivência e de driblar algumas manifestações da violência estrutural, visto que fornecem certo ganho econômico e um vislumbre de ascensão social.

 Ao enxergarmos o quanto as violências são complexas, variadas e profundas, concluímos que respostas simples para proteger crianças e adolescentes são ineficazes e insuficientes. Além disso, soluções simplistas propostas por autoridades brasileiras acabam sendo formas de perpetuar as violências, no sentido em que não proporcionam discussões construtivas que evidenciem a dimensão estrutural que a temática possui. Nesse cenário, crianças e adolescentes não conseguem atingir seus plenos potenciais para se tornarem, elas próprias, agentes de transformação no mundo.

 

Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC/SP) e pesquisadora no Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Referências bibliográficas:

GALTUNG, Johan. Violence, Peace and Peace Research. Journal of Peace Reasearch, v.6, n.3, 1969.

_____. Cultural Violence. Journal of Peace Reasearch , v. 27, n.3, 1990.

FERREIRA, Marcos Alan. Contemporaneidade dos Conceitos de Paz e Violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul. In: Winand, E.; Rodrigues, T. and Aguilar, S. Defesa e Segurança no Atlântico Sul. Aracaju: UFS Press, 2016.

Imagem: CC/ Gustavo Minas.

A retomada das negociações entre Brasil e EUA para utilização da base de Alcântara: elementos da conjuntura recente para um possível desfecho

O debate sobre o acordo de salvaguardas tecnológicas (AST) entre Brasil e Estados Unidos é realizado, muitas vezes, de forma tão imediatista e com tanta animosidade que nem sempre ajuda a entender os interesses e objetivos envolvidos na negociação. O assunto, que por alguns anos ficou adormecido na mídia e entre os atores políticos, foi retomado recentemente e pode estar prestes a ter um desfecho. Por isso, é válido partir de uma visão do quadro mais amplo em que as negociações estão acontecendo para se ter uma ideia do que está – e do que não está – envolvido no acordo.

Primeiramente, deve-se ter em conta que o conceito de acordo de salvaguardas tecnológicas não é algo definitivo, nem do ponto de vista jurídico, nem do político. O que serve de base comum para se definir o que é um AST é seu objetivo principal: a proteção da propriedade tecnológica de uma das partes. No entanto, como isso vai ser articulado depende de cada caso. Assim, é possível que o documento final seja composto por cláusulas além da principal – cláusulas estas muitas vezes políticas, especialmente quando o objeto da negociação é relacionado com atividades militares. No primeiro AST assinado por Brasil e EUA, foram principalmente as denominadas cláusulas políticas que geraram os maiores entraves e a paralisação das negociações.

No entanto, o período de interrupção dos diálogos sobre o assunto de quase 20 anos não é decorrente apenas das discordâncias sobre o teor do documento. Houve uma mudança de prioridades, por parte do Brasil e dos EUA, que diminuiu a importância do tema de Alcântara na agenda das relações bilaterais. No lado brasileiro, assumiu maior destaque a parceria com a Ucrânia, com a qual o país também assinou um acordo de salvaguardas – que também teve controvérsias. Com essa parceria, retornava à agenda política o objetivo de promover atividades comerciais na base de Alcântara. Os EUA, por sua vez, estavam concentrados em atualizar as prioridades e as atividades da sua política espacial e, no que tange às questões internacionais, o foco era a competição política e comercial com Rússia e China.

Embora as notícias sobre um novo acordo sejam bastante recentes, os primeiros passos foram de fato realizados em governos anteriores. Nesse sentido, uma das primeiras medidas foi tomada no governo de Dilma Rousseff, em 2011, com a assinatura de um novo Acordo Quadro com os EUA em política espacial. Essa iniciativa visava atualizar as garantias jurídicas e os compromissos na matéria, uma vez que o primeiro acordo dessa natureza data do ano de 1996. Contudo, a principal medida para a retomada das negociações ocorreu logo após o impeachment de Rousseff, em agosto de 2016, quando o novo presidente, Michel Temer, encaminhou uma mensagem ao Congresso demandando a retirada da tramitação do primeiro AST, sendo que a aprovação da mesma ocorreu em dezembro do mesmo ano. A importância dessa ação é decorrente de que, desde 2001, o acordo não havia sido cancelado, mas apenas se encontrava paralisado no Congresso. Sem seu cancelamento efetivo, uma nova negociação não poderia ser feita. Desse modo, foi o governo Temer o responsável por recolocar, na agenda do programa espacial brasileiro, as discussões sobre a utilização da base de Alcântara pelos EUA.

Ainda no governo Temer, dois outros acontecimentos constituem antecedentes fundamentais para a tônica da velocidade das negociações sobre um novo AST. Primeiramente, no final de 2017, a base recebeu a visita de representantes de empresas estadunidenses do ramo, como a Boeing Co e a Lockheed Martin Corp, que se destacam no campo de lançamento de foguetes de grande porte, como a Vector, uma das principais na área de lançamento de microssatélites. Em segundo, a assinatura do acordo de cooperação em segurança de voos espaciais e fornecimento de serviços e informação, também conhecido como Space Situation Awareness (SSA – Consciência Situacional Espacial, em português), em 2018. Trata-se de um compromisso com o objetivo de divulgar a situação do domínio espacial de cada país e aumentar a segurança dos lançamentos espaciais, para evitar colisões, por exemplo. Esses dois eventos demonstram como, em dois anos, o interesse mútuo por um novo acordo ficou tão acentuado que gerou rápidas negociações em questões tangenciais.

De fato, para que o objetivo de promover atividades comerciais na base de Alcântara seja concretizado, é importante firmar um AST com os EUA, que se mantém um dos principais países no comércio internacional de tecnologia e serviços espaciais. Contudo, a assinatura do acordo não será a solução dos problemas da base – e do programa espacial brasileiro – por duas questões principais: em primeiro lugar, é fundamental que o acordo firmado supere os dilemas políticos que sobressaíram no acordo passado, especialmente nos entraves à aplicação dos recursos ao programa espacial e às restrições à cooperação com outros países – cabe ressaltar, por exemplo, a China, que embora ainda não tenha conquistado a predominância que os EUA tem no setor, desponta em áreas que esse país apresenta algumas deficiências, além de ser um parceiro histórico do setor espacial brasileiro; em segundo lugar, tão ou mais importante que o AST é a melhora da infraestrutura da base. As poucas atividades realizadas nos últimos anos e a necessidade de melhorias e adequações das instalações da base para lançamentos de grande porte são questões que, no fim, podem oferecer restrições maiores – e que levariam mais tempo para serem solucionadas – às atividades comerciais do que a ausência de um AST com os EUA.

Adriane Almeida é mestre pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.

Imagem: CLA -Centro de Lançamento de Alcântara. Por: Força Aérea Brasileira.

As imaginadas ameaças à Amazônia: a perspectiva militar sobre a preservação ambiental e os povos amazônicos

O início do mandato presidencial de Jair Bolsonaro foi submetido a um minucioso escrutínio pelos grandes veículos de mídia brasileiros e pela oposição. Para além das investigações em torno do núcleo familiar, resultou da atenção conferida aos primeiros passos do novo governo uma série de ruídos em torno dos ministros de Estado. Distando das expectativas de discrição e sigilo que se avolumam em torno das ações estatais de inteligência, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tornou-se epicentro das reportagens ao incluir a realização do Sínodo Amazônico, um encontro sobre a região amazônica realizado pela Igreja Católica em Roma, como uma preocupação à soberania nacional.

Assinala-se, no entanto, que o pensamento militar sobre a região amazônica foi reiteradamente marcado por inquietudes em relação à presença de atores favoráveis à preservação ambiental e à promoção dos direitos fundamentais dos povos amazônicos. Em entrevista, o ministro do GSI, general Augusto Heleno, reforçou que os “palpites” de atores internacionais sobre as questões amazônicas constituempreocupação na pauta de segurança internacional. Uma nota de imprensa do ministério contribuiu para fomentar o ruído em torno da questão ao afirmar que, apesar de não investigar os membros do clero, a pauta amazônica permaneceria em voga nas ações do órgão. Em agravo, o GSI considerou o envolvimento do Itamaraty, para acompanhar debates no exterior, e do Ministério do Meio Ambiente, para identificar participações ocasionais de organizações não-governamentais e ambientalistas no Sínodo Amazônico.

O evento envolve um cronograma de reuniões de bispos católicos, convocados pelo Papa Francisco I para discutir a atuação da Igreja Católica diante dos obstáculos à ação eclesial por todo o globo. O documento preparatório para o evento de 2019 exortou as comunidades eclesiais a discutir questões como a preservação da diversidade ambiental e cultural da região e a vulnerabilidade dos povos amazônicos, temas vilipendiados no discurso e nas políticas concretas dos novos mandatários no Brasil. Recorda-se que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, descreveu pejorativamente indígenas, quilombolas e ambientalistas em diversas ocasiões.

As políticas adotadas ao início de seu mandato presidencial corroboram o discurso negativo. A disposição em incluir a reunião eclesial como potencial ameaça à integridade territorial brasileira ocorre simultaneamente aos esforços econômicos liberalizantes traçados pelo governo, e especialmente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O recurso ao argumento da soberania não ecoa na política irrefreável de privatizações e abertura ao capital internacional. Observa-se a emergência concreta de contradições entre diferentes grupos que compõem e sustentam o governo de Jair Bolsonaro.

É prudente indicar que as presidências de órgãos vinculados às questões agrárias, diretamente relacionados aos temas ambientais, foram distribuídas a oficiais das Forças Armadas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), hoje subordinado ao Ministério da Agricultura, é presidido pelo general do Exército Jesus Corrêa; a Fundação Nacional do Índio (Funai) é atualmente presidida pelo general do Exército Framklimberg Ribeiro de Freitas. Esse último é suspeito de conflito de interesses por ter ocupado cargo em conselho consultivo de uma mineradora que atua no Pará após ter presidido a Funai entre maio de 2017 e abril de 2018.

A interpretação contravertida em relação às ações de movimentos sociais pela preservação ambiental e pelos direitos das populações locais, expressa na ação recente do GSI, não é recente e tampouco inovadora. A percepção militar em relação aos movimentos ambientais e indigenistas foi recorrentemente traçada através da designação de potenciais ameaças à integridade territorial brasileira nos movimentos favoráveis a medidas de proteção ambiental ou que clamassem por direitos dos povos amazônicos. A ideia da cobiça internacional pelo território amazônico está presente no pensamento militar sobre a região, atribuindo a esses atores o potencial de “desnacionalização” da Amazônia (MARQUES, 2007). A estratégia para evitar tais potenciais ameaças somou a vigilância das fronteiras e a ocupação populacional do território amazônico. Ressalta-se, no entanto, que essa estratégia de ocupação demográfica frequentemente ignorou a presença de comunidades indígenas, de ribeirinhos e outras populações amazônicas, demandando fluxos migratórios extraordinários para a sua conclusão.

A designação do Sínodo da Amazônia de 2019 como uma potencial ameaça para os interesses brasileiros no território amazônico divergiu a atenção a problemas latentes na região. Segundo o Atlas da Violência elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a região Norte teve o maior crescimento no número de homicídios no período entre 2006 e 2016. Em consonância com as estatísticas sobre homicídios na região, outro dado alarmante é o do aumento da violência no campo, ocasionado pelos conflitos por terras. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, no ano de 2017, Rondônia e Pará concentravam 54% dos 70 assassinatos no campo em todo o país. Ademais, é amplamente reconhecida a necessidade de desenvolver políticas púbicas de combate ao tráfico de drogas e à biopirataria.

Os dados referentes à depredação ambiental são igualmente alarmantes. Estatísticas recentes indicam o crescimento na taxa de desmatamento da região de floresta amazônica. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),  59% do desmatamento aconteceu em terras privadas ou de grilagem de áreas públicas, e, somente 15% do total são de terras indígenas. Em 2017, 46% das emissões de carbono no Brasil vieram da destruição de florestas, o que causa um agravamento do aquecimento do planeta.

Um conjunto variado de questões constitui preocupação mais urgente na agenda de preservação da Amazônia e de conservação dos interesses nacionais na região quando comparado à reunião eclesial a ser realizada em outubro de 2019. Em agravo, as soluções para essa miríade de problemas que incide sobre o território amazônico distam da proliferação da presença militar ou da promoção da ocupação demográfica. Nesse sentido, faz-se necessário promover ativamente políticas públicas que conciliem a preservação ambiental e os direitos das populações amazônicas diante do quadro de exploração irrefreável e insegurança cotidiana que se instala na região.

 

 

Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes; Débora Reis é graduanda em Relações Internacionais pela Unesp-Franca.

 

Referência Bibliográfica:

MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. Orientada por: Rafael A. Duarte Villa. 2007. 232 f. Tese (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

Imagem: Vista Aérea da Floresta Amazônica. Por: Neil Palmer/CIAT.

A crise política israelense e a agenda internacional

Karina Stange Calandrin*

Desde o final de 2018 o governo israelense entrou em crise. Esta instabilidade estava anunciada há algum tempo, visto as investigações de corrupção dirigidas ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu desde 2016. Os chamados casos 1000, 2000, 3000 e 4000 pela procuradoria geral israelense, envolvem desde favores e presentes dirigidos a Netanyahu e sua família trocados com empresários estrangeiros por benefícios fiscais, suborno em troca de cobertura favorável do governo pela mídia, até superfaturamento na compra de submarinos e outros itens militares. No dia 19 de dezembro de 2018, o procurador geral Shai Nitzan recomendou oficialmente o indiciamento de Benjamin Netanyahu por corrupção.

A partir disso uma crise política se instaurou em Israel. Desde novembro de 2018 o governo de Netanyahu e seu partido, Likud, já vinham sofrendo com as alianças com os partidos da direita, pois estavam perdendo apoio desses partidos. Primeiro, o ministro da defesa, Avigdor Lieberman, renunciou ao cargo e seu partido, Israel Beiteinu, se retirou oficialmente da coalizão, deixando o Likud com apenas 61 (de um total de 120) cadeiras no parlamento (Knesset), o mínimo necessário para governar. Importante lembrar que Israel é uma república parlamentar multipartidária e nunca na história do país um partido sozinho conseguiu maioria no parlamento, sendo necessárias coalizões para a formação do governo. Mas a crise apenas se instaurou definitivamente no dia 24 de dezembro de 2018, quando o partido Habait Hayehudi também se retirou da coalizão, impulsionado por questões internas, mas também pelo processo judicial contra Netanyahu. Sem maioria, o governo foi dissolvido e as eleições, que já estavam previstas para novembro de 2019, foram antecipadas para 09 de abril do mesmo ano.

Netanyahu, que estava com viagem marcada para o Brasil para a posse do presidente Jair Bolsonaro no dia 01 de janeiro de 2019, passou a sofrer muita pressão política e cogitou cancelar a visita ao Brasil, voltando atrás logo em seguida.

Muitos críticos de Netanyahu o acusam de usar as eleições como forma de postergar seu processo judicial, isso porque ele pode alegar que as investigações prejudicariam uma campanha eleitoral neutra e justa.

A sensação que permanece é que o governo de Netanyahu está utilizando a agenda internacional para distrair da crise política e pessoal que está enfrentando. Primeiramente com a própria ida ao Brasil. Sua estadia no Rio de Janeiro foi altamente noticiada em Israel, com muitos detalhes de sua agenda no país, lembrando que foi na mesma semana da dissolução do governo e do seu indiciamento.

Na mesma toada, Israel, juntamente dos Estados Unidos, oficialmente saíram da UNESCO no dia 02 de janeiro de 2019. O processo de saída remete à outubro de 2017, quando os países alegaram  que a organização seria anti-Israel. A decisão  advém de uma  votação da UNESCO de maio do mesmo ano, relacionada à natureza cultural, histórica e legal da cidade de Jerusalém. A resolução votada em 2017 negava a existência de ligações históricas entre o povo judeu e a cidade igualmente sagrada para as três maiores religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo).

Para além dessa decisão, a UNESCO tem sido muito crítica a Israel, como todas as agências internacionais. Mas, na maioria dos casos, suas críticas eram relevantes e adequadas, como em relação à ocupação na Cisjordânia. Jerusalém oriental é de fato um território ocupado, como é a Cisjordânia, não importa o quanto Israel tente negar. Entretanto, no caso mencionado, a UNESCO falhou seriamente quando ignorou a conexão judaica com o Muro das Lamentações, localizado em Jerusalém. A organização deveria ter sido repreendida por isso. Por outro lado, em outras ocasiões, a UNESCO agiu de forma favorável à Israel. Ao longo dos anos reconheceu seis locais israelenses como Patrimônios da Humanidade: Massada, Cidade Branca de Tel Aviv, Acre, Cidades no Deserto do Negev, Centro Mundial Baha’i em Haifa e as cavernas de Maressa. O título atribuído pelo organismo da ONU trouxe honra e turistas.

Apesar de parecer que a atitude dos Estados Unidos de se retirar da UNESCO é positiva para Israel – e até mesmo interpretada como tal pelo governo israelense – na verdade, está prejudicando o país e o isolando no Sistema Internacional, já que não possui muitos aliados além dos Estados Unidos, não obstante a esperança de conseguir apoio de outros países como o Brasil. Ademais, Israel é cada dia mais criticado nos organismos internacionais por suas políticas em relação aos palestinos.

A percepção de que o Primeiro-ministro israelense estaria usando a agenda de política externa para distrair de seu processo judicial é fortalecida com o depoimento dado por Netanyahu em rede nacional no dia 07 de janeiro de 2019, que muitos acharam que seria uma declaração de guerra ao Líbano (por conta dos túneis do Hezbollah descobertos em dezembro na fronteira entre os dois países e que tem recebido muita atenção na campanha eleitoral por representar uma “ameaça iminente” ao Estado de Israel) ou mais uma incursão em Gaza devido à dramaticidade com que o discurso foi anunciado na mídia. Porém, na prática, o discurso foi  um monólogo sobre sua inocência nos processos de corrupção em que é réu.

Ainda faltam três meses para as eleições, e o partido de Netanyahu, Likud, já se encontra em primeiro nas pesquisas. Para a manutenção de sua posição privilegiada no poder e o adiamento de seu julgamento, provavelmente veremos muito mais de Israel nos noticiários internacionais, uma vez que muitos eleitores dedicam a segurança do país ao partido Likud e mais especificamente a Netanyahu.

Nas últimas eleições, em 2015, as pesquisas indicavam que uma junção de partidos de esquerda, chamada União Sionista, composta pelos partidos trabalhista e Hatnuah, estava em primeiro lugar, mas em poucos dias Netanyahu conseguiu reverter e colocar o Likud em primeiro utilizando aspectos de segurança na campanha. O principal foco foi “impedir que o Irã obtenha uma capacidade nuclear, tornando a opinião pública mundial a favor da manutenção e expansão das sanções econômicas e diplomáticas contra Teerã”. Netanyahu reiterou suas posições sobre o Irã para uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. No processo de paz no Oriente Médio, Netanyahu se pronunciou contra novas retiradas de terra, novas libertações de terroristas das prisões ou a divisão de Jerusalém de qualquer forma. Provavelmente não será diferente em 2019.

 

* Doutoranda em Relações Internacionais – PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), pesquisadora visitante na Universidade de Haifa – Israel e colaboradora do Instituto Brasil-Israel.

Imagem por: Amos Meron

Armas para apagar as luzes

Matheus de Oliveira Pereira*

Um conhecido adágio diz que “para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e errada”. Registrada a ausência de elegância, é impossível não recordar a máxima ao lermos as notícias de que, na tarde do dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto que altera os dispositivos que ficaram conhecidos como “Estatuto do Desarmamento”, regulamentando a  Lei nº 10.826/2003 e modificando o decreto nº 5.123/2004.

A finalidade da mudança promovida por Bolsonaro é flexibilizar as regras para aquisição de armas de fogo e marca o cumprimento de uma das promessas mais emblemáticas de sua campanha presidencial; não por acaso, a assinatura se deu na primeira cerimônia pública deste tipo desde o início do governo.

Durante o ato, o presidente afirmou que o decreto visava restituir ao cidadão o direito à legítima defesa, declarando que este era uma desejo que havia sido soberanamente expresso nas urnas, além de atacar de maneira mais incisiva o gravíssimo problema de segurança pública enfrentado pelo Brasil nos últimos anos. O verniz democrático da justificativa oculta algumas sutilezas que, como tudo que cerca este governo, não parecem nada alvissareiras.

Do ponto de vista da segurança pública, a medida é, no mínimo, temerária e causa divergência inclusive no interior da base de apoio do governo. A literatura acadêmica aponta que mais armas, em geral, significam mais mortes, de maneira que não há razão crível para supor que facilitar o acesso às armas de fogo terá algum efeito positivo sobre a trágica taxa de homicídios no país. Os dados do Ministério da Saúde mostram que, desde o Estatuto do Desarmamento, a taxa de homicídios evoluiu em ritmo mais lento no país. A flexibilização parece fadada a aumentar o número de mortes, constituindo-se em uma preocupação adicional sobretudo às populações marginalizadas e alvo de violência constante como mulheres, homo e transsexuais e moradores das periferias (não custa lembrar: a maioria dos mortos por arma de fogo no Brasil não corresponde mais ao perfil do morador da Maré ou do Capão que da rua Dias Ferreira ou da Av. Faria Lima). Outra lembrança oportuna é que, num passado não muito distante, um certo deputado Jair Bolsonaro defendia, no plenário da câmara, a legalização de grupos paramilitares.

Há algo mais a ser considerado. É provável que Bolsonaro não estivesse pensando nestes termos ao assinar o decreto, mas o que sua medida faz, na prática, é refutar um princípio básico da forma estatal de organização política. A fundação do Estado moderno é indissociável do imperativo de segurança e está atrelada à premissa de que a melhor maneira de assegurar a todos a segurança necessária à vida e à realização das potências humanas era centralizar o uso da força na autoridade estatal. Filósofos como Thomas Hobbes e John Locke, talvez a caminho de integrar o index do ministro da educação, argumentam nessa toada, e Locke – pai do liberalismo que supostamente lastreia o governo do liberal-novo Bolsonaro – é enfático defensor da tese de que as liberdades individuais estarão mais bem protegidas pela concentração do poder coercitivo no Estado. A mediação dos conflitos sociais não poderia ser feita diretamente pelos indivíduos porque, deste modo, os critérios de justiça seriam variáveis e isso tenderia a produzir desordem e insegurança.  A centralização da violência organizada nas mãos do Estado tem, assim, o fito de proteger os cidadãos da violência resultante dos conflitos sociais, e é uma das ideias mestres da modernidade.

A mais notável exceção está nos Estados Unidos da América, inspiração evidente de Bolsonaro, que possui uma das mais permissivas políticas de acesso a armas de fogo do mundo. As peculiaridades do caso estadunidense demandam mais espaço que o disponível para serem adequadamente tratadas, mas algumas indicações devem ser feitas. A questão central é em que medida vale a pena buscar aproximar-se de modelo estadunidense. O país só perde para o Brasil em número de mortes por armas de fogo e possui uma cultura enraizada de atiradores que abrem fogo em escolas, ruas e casas noturnas. A história brasileira já não tem sangue o bastante – vide Vigário Geral, Candelária, Realengo e Osasco – para emular outras Columbines?

Por detrás de um ato previsto como de restituição à cidadania de um poder que lhe seria legítimo, está na verdade um atestado de falência e incompetência do Estado em prover aquilo que é sua função primária de ser. Facilitar o armamento ao cidadão é dizer-lhe cabe a ele sua autoproteção, revelando descrédito na capacidade da política e e suas instituições na mediação e acomodação dos conflitos e tensões presentes na sociedade, e em cujo seio repousa a origem da violência e criminalidade arrasadoras do Brasil.

O fato de a medida ser tomada na contramão de todas as evidências cientificas disponíveis só reforça o caráter hostil do governo à ciência, expresso, entre outras coisas, nos posicionamentos em relação às mudanças climáticas. Mostra ainda como a vocação do bolsonarismo parece ser uma emulação do quixotismo, elegendo como adversários os moinhos de vento da “doutrinação marxista”, do “globalismo” e da “ideologia de gênero”. Tudo isto seguindo uma prédica religiosa, que busca atacar as contradições próprias do nosso tempo sem se aproximar do cerne de sua causa: a brutal desigualdade socioeconômica e precarização das condições de vida produzidas pelas políticas econômicas que o atual delfim do governo pretende realizar ao paroxismo.

Embalado em armas, anti-cientificismo e retórica religiosa, o governo Bolsonaro parece querer resolver os dilemas da pós-modernidade apagando as luzes da modernidade, devolvendo-nos ao medievalismo que parece ser o ânimo intelectual de seu projeto.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professor da Universidade de Ribeirão Preto e pesquisador do Gedes.

Imagem por: Palácio do Planalto.

Os militares na Política e os riscos à República

Jorge M. Oliveira Rodrigues*

 

No dia 13 de Outubro 2018, em reportagem do jornal O Globo, lia-se: “Uruguai manda prender comandante do Exército por dar opinião sobre lei”. Em comunicado à impressa o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, se limitou a afirmar: “o comandante em chefe do Exército atua em boa fé e com a lealdade institucional que devem ter as Forças Armadas, porém se equivocou e, em função disso, está sancionado”. Tabaré Vázquez reforçava os preceitos constitucionais afirmando que não seria da alçada militar comentar sobre política. Reafirmava, assim, a República uruguaia.

Dos lados de cá, em Terra Brasilis, a República ainda é objetivo distante: desejada por todos, ferida por muitos. Nessa corrida em que fôlego e virulência concorrem para definir o ganhador, nosso país se encontra sem ar e sem forças. Desde o processo ilegítimo que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do cargo, em 2016, que deparamo-nos com recorrentes manifestações por parte de setores das forças armadas que, no mínimo, fazem questionar se há de fato República no Brasil. Por certo, não se trata de problema datado. Mesmo com a criação do Ministério da Defesa em 1999 nunca chegamos nem perto de consolidar a autoridade civil sobre os militares.

Se por um lado, o duro processo de construção da Democracia supõe que todos tenham garantidos os seus direitos de voz, é fundamental que sejam respeitados os preceitos constitucionais e os regulamentos que pautam a atividade militar no Brasil. Pelo caráter específico de suas funções constitucionais, aos militares da ativa não é facultada a atuação política. Por outro lado, aos civis exige-se assumir a responsabilidade pela construção do controle civil no Brasil, introduzindo, assim, um dos pilares para a constituição de tradições republicanas no país. Ao fim, enquanto o Uruguai se agiganta atestando o primado da Política, no Brasil os poderes se acovardam. À medida que as autoridades civis se recusam a ocupar o espaço que lhes cabe, o vácuo de poder remanescente é ocupado por aqueles cuja função é, essencialmente, instrumental.

No Executivo, é preocupante a ascensão de um general da ativa ao cargo de ministro da Defesa. Na primeira metade de 2018, no marco da transferência de Raul Jungmann ao Ministério da Segurança Pública, assumia a pasta o general Silva e Luna. Sua ascensão ao cargo não representa, em si, quebra do ordenamento constitucional. Possui, entretanto, efeito simbólico considerável, que enfraquece as iniciativas de instituir-se o controle civil das forças armadas. Desde a criação do Ministério da Defesa em 1999, foram civis aqueles que encabeçaram o comando da pasta – afirmação que deve ser acompanhada de uma reflexão profunda quanto à presença massiva de militares na pasta. Fato é que depois de quase 20 anos, num quadro de instabilidade política, a pasta se encontra sob o comando militar.

No Judiciário, a nomeação de um general de quatro estrelas para sua assessoria pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, chama atenção pelo seu ineditismo e simbolismo. Trata-se do militar da reserva, Fernando de Azevedo e Silva. A justificativa apresentada é que o militar assessoria o agora presidente do STF em assuntos relativos à segurança – o que, por si só, é problemático uma vez que a função militar é a guerra, não a segurança pública.

Ademais, a corrida eleitoral está marcada por um aumento considerável de candidatos ligados às Forças Armadas – movimento que já em Abril deste ano dava sinais de fortalecimento. Em comparação com as eleições de 2014 o número de candidatos militares cresceu em 41%. Os dados dizem respeito à candidaturas no âmbito do Executivo e do Legislativo e contabilizam também a participação de militares da ativa que, não sendo eleitos, retornam às suas respectivas forças. O aumento destas candidaturas é associado, dentre outros fatores, a uma insatisfação da população com a “política tradicional”. Tomados pelo discurso de que “todo político é corrupto”, a sociedade migra àquele que julga ser o último reduto da moral: os militares.

Terminado o primeiro turno, confirma-se o movimento de “politização” dos militares. Na Câmara Federal 6 militares foram eleitos em 2018, todos do PSL. Os futuros deputados são: general Sebastião Roberto Peternelli, por São Paulo; general Elieser Girão Monteiro, pelo Rio Grande do Norte; coronel João Chrisóstomo de Moura, por Roraima; coronel Luiz Armando Schroeder Reis por Santa Catarina; o major Vitor Hugo de Araújo Almeida, por Roraima; e o subtenente Hélio Fernando Barbosa Lopes, pelo Rio de Janeiro. No Senado, o Espírito Santo elegeu o ex-militar e atual instrutor de defesa pessoal, Marcos do Val (PPS). Movimento similar, porém não necessariamente inédito, também é percebido em relação aos agentes de segurança pública. O estado de São Paulo, por exemplo, elegeu para o Senado o major da Política Militar, Sergio Olímpio Gomes, o Major Olímpio (PSL). Na mesma linha, o Rio Grande do Norte elegeu ao cargo o capitão da Polícia Militar, Eann Styvenson (REDE).

Não bastassem os fatos elencados, os últimos anos têm sido marcados pela verborragia das Forças Armadas. No dia 09 de Setembro, em entrevista à Folha de S. Paulo e falando com uma autoridade que não lhe compete, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirmava que com o acirramento dos ânimos na sociedade até a legitimidade de um novo governo poderia ser questionada. Chamado a opinar sobre o posicionamento da ONU acerca da participação de Lula nas eleições, Villas Boas taxa o manifesto de “tentativa de invasão da soberania nacional”. Anteriormente, em Abril deste ano, o general suscitou uma onda cibernética de ataques à democracia ao manifestar-se publicamente quanto a julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiria sobre habeas corpus ao ex-presidente Lula da Silva, condenado em segunda instância por corrupção. Ao posicionar-se, o Comandante do Exército vestiu de legitimidade outros generais da ativa que se sentiram no direito de manifestar, na Ágora virtual, quanto aos rumos políticos do país. Com ares conspiratórios, esse foi, senão o primeiro, o mais volumoso gole de cicuta dado à nossa Democracia.

Finalizando a série de ingerências políticas, temos episódio simbólico do escrutínio. Entre Maio e Junho deste ano, o general Villas Bôas manteve uma série de reuniões com os candidatos à Presidência da República. Segundo o general, as reuniões serviram apenas para a apresentação de questões relativas à Defesa Nacional. Mas a imagem que fica é outra. O episódio é símbolo da insistência de setores das Forças Armadas em se colocar como uma espécie de quarto poder, de cuja tutela dependeria, conforme supõem, a própria existência do Estado brasileiro.

E assim, entre entrevistas e pronunciamentos no Twitter, construiu-se o caminho das pedras que resultou no aumento das desconfianças quanto a uma possível intervenção militar e, por fim, no enfraquecimento da República. Em todos os casos, o problema é a insistência de setores militares em agir enquanto atores políticos. Ao contrário do que faz parecer o questionamento cínico de determinados setores da sociedade, não se trata de advogar por uma suposta “sub-cidadania” aos militares, como se fossem menos brasileiros ou menos humanos. É discussão que extrapola, necessariamente, aspectos jurídicos e constitucionais. É uma discussão sobre modelo de Estado. É uma discussão sobre República.

Sabiamente anuncia Elio Gaspari: “por maior que seja a confusão existente, quando se chamam os militares para botar ordem no circo, cria-se outra confusão, que nem eles são capazes de prever”. É sintomático do momento político em que vivemos no Brasil que os espaços políticos estejam sendo ocupados por setores militares ou por grupos vinculados.

De Gaspari, passamos à Estratégia: se a racionalidade da Guerra é dada pela Política, o inverso não pode ser verdadeiro. A gramática da Guerra, já dizia o general Von Clausewitz, não se sobrepõe à Política simplesmente porque nela não encontra encaixe. Assim, aos militares que se aventuram na política resta uma opção: deixar de ser militar. Nesse processo as Forças Armadas brasileiras se afundam numa dinâmica de desprofissionalização, perdendo aptidão às funções que lhes são previstas constitucionalmente. Ao fazê-lo, o militar perde sua essência e faz desaparecer a essência da Política.

Sufoca-se a Política, distancia-se a República e militariza-se a sociedade. Ao fim, com a proximidade do segundo turno, resta-nos o drama de Elio Gaspari: “quando não se sabe o nome do ministro da Educação, mas conhece-se o de generais, coisa ruim pode acontecer”.

 

 

Imagem: Soldados do Exército Brasileiro durante o desfile militar do Dia da Independência de 2003 em Brasília, Brasil. Por: Victor Soares/Agência Brasil.

 

*Jorge Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Grupo de Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).

Crise nicaraguense e o aprofundamento das incertezas na Defesa e Segurança

Desde meados de abril, a Nicarágua vive uma delicada e complexa situação, confluindo protestos, repressão e um número considerável de mortos e feridos. A intensidade das ações, bem como o rápido desenvolvimento dos fatos, transformou o cenário da nação centro-americana, de modo que manifestações contra determinadas medidas governamentais passaram a um levante nacional demandando a democratização do país e justiça aos afetados pela onda de violência. As mobilizações tiveram início como uma forma de resistência às pretendidas reformas governamentais no sistema de seguridade social e foram recebidas com duras repressões, o que pareceu servir como estopim a uma acumulação de fatores, de negação de direitos e liberdades a descontentamentos socioeconômicos. Nesse quadro, uma geração de jovens se impulsionou a demandas e lutas, mas até o momento sem uma liderança política específica, o que pode representar uma desaprovação a políticos e partidos tradicionais. Para além do fim da violência e do estabelecimento de diálogo entre as várias partes envolvidas, o principal desafio dessa geração é tentar garantir um novo estilo de fazer política, que supere uma histórica cultura política de uso da força como amparo a governos e práticas.
Em meio a tal quadro, sobressai uma questão crucial: a participação de forças policiais e paramilitares como principais agentes da violência desencadeada na Nicarágua, com reflexos em possíveis posicionamentos do Exército enquanto instituição. De acordo com informes de organizações locais e internacionais (essencialmente realizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e pelo Centro Nicaraguense de Direitos Humanos), unidades policiais e grupos paramilitares estariam envolvidos em mais de 300 mortes e pelos menos 400 detenções, além de deixar cerca de 2000 feridos. A conjuntura vem sendo condenada extrarregionalmente, com denúncias de graves violações aos direitos humanos e pedidos de contenção às ações das forças de segurança do Estado e dissolução dos agrupamentos armados que atuam a favor do mesmo, tal como apelado pela Anistia Internacional.
Para a reflexão em torno do caso, alguns subsídios e marcos legais podem servir como amparo. A Constituição do país certifica o Presidente da República como comandante superior das Forças Armadas e de Segurança (também presente nas leis específicas da Polícia e do Exército: Lei 872 e Lei 181 respectivamente), o que, em última instância, conduziria à indicação de Daniel Ortega como responsável pela atuação de tais instituições. Aprofundando a questão especificamente ao redor da Polícia, e levando em consideração protocolos internacionais de atuação, podemos considerar que as unidades policiais nicaraguenses não demonstram estarem aptas a situações de manifestações, utilizando a força de maneira desproporcional e com medidas notadamente lesivas, opostas a um padrão de prevenção e controle da ordem quando esta é alterada. Ademais, a existência de grupos parapoliciais (paramilitares se ponderarmos seus equipamentos e modos de agir) configura mais um atenuante na fragilidade institucional do atual governo da Nicarágua, contrariando o texto constitucional que não permite a existência de outros corpos armados além do Exército e Polícia (artigo 95).
Por mais que não tenha atuado no presente âmbito, o Exército está em um plano complexo, porém, deveria se posicionar e reprovar o uso da violência e da repressão nas manifestações. A Constituição nicaraguense prevê o uso em âmbito de segurança interna somente em casos excepcionais, sob ordem do Presidente da República. Se os corpos policiais e paramilitares são o alicerce de contenção do regime Ortega, é improvável que o mesmo convoque o desarmamento de seu braço armado. Ao participarem do conflito, se converteriam em uma força política que não corresponde à sua natureza constitucional (caráter profissional, apartidário, apolítico, obediente e não deliberante). Por outro lado, tem-se o desafio de sobreviver institucionalmente nesse cenário polarizado, sem sofrer influências externas. Estariam em jogo interesses corporativos e a legitimidade perante a sociedade.
Ao não se posicionar, o Exército manteria certa cumplicidade com o cenário, zelando por benefícios com o governo, como aqueles vinculados à previdência social e aposentadorias. Ao contrário, caso desaprove publicamente a repressão governista, provavelmente receberia apoio local e da comunidade internacional; todavia, tal desaprovação não significaria uma intervenção direta no contexto de crise.
A complexidade da situação se acentua progressivamente com o igualmente gradual isolamento do governo de Ortega. A aprovação por parte da OEA da criação de uma comissão especial para integrar as tentativas de diálogo e buscar soluções pacíficas coloca mais um dilema a Ortega. A recusa à ajuda (que parece ser a tendência, uma vez que representantes do governo seguem acusando medidas internacionais como “ingerência” e “intervencionismo”) arriscaria a ampliação do distanciamento nicaraguense, além de fomentar inúmeras sanções de caráter bilateral e de organismos multilaterais (econômicas, diplomáticas e de assistência militar, por exemplo).
Por fim, uma última questão deve ser ponderada: os possíveis “legados” de tal período de crise. Um hipotético fim dos conflitos faria com que o país defrontasse uma instituição policial desprestigiada (e também o Exército, a depender de suas posturas) e a incerteza quanto ao destino dos grupos armados atuantes, que podem direcionar suas ações à delinquência e crimes comuns. Como julgar os crimes cometidos durante as manifestações e como realizar as reconversões necessárias na condução da agenda de Segurança serão desafios inevitáveis à Nicarágua.
O início do recente mandato de Daniel Ortega em 2017, em seus mais de dez anos consecutivos no poder, já trazia objeções pendentes aos setores de Defesa e Segurança, especialmente com o crescente processo de militarização regional. Hoje, os obstáculos são ainda maiores, com o temor e insegurança por parte da população, imagináveis questões migratórias (com fluxos existentes principalmente para a Costa Rica e majoritariamente de maneira ilegal, acentuando problemas nas fronteiras) e complicadas decisões a serem tomadas nos âmbitos policial e castrense. A mencionada histórica cultura política de uso da força e violência como amparo às demandas governamentais e como mediação é instrumento recorrente para a compreensão da realidade nicaraguense, porém, cada vez mais, a superação de tal traço e o desenvolvimento de um novo modo de ação política revela-se uma necessidade premente.
Fred Maciel é doutor em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS – UNESP/campus Franca). Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento, Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR/campus Campo Mourão).
Imagem: Militar dos EUA observa o vulcão San Cristobal, na Nicarágua. Por: Joint Task Force Bravo.

Chile y Ecuador

Históricamente Chile y Ecuador han tenido excelentes relaciones. Desde las económicas, hasta las culturales y educacionales. Fuimos de los primeros países que establecimos mutuamente el reconocimiento de títulos y durante décadas jóvenes chilenos estudiaron en universidades ecuatorianas y ocurría lo mismo con estudiantes ecuatorianos en nuestra universidades. Por cierto, a nivel de Estados, desplegamos una amplia cooperación entre nuestras principales instituciones desde nuestros primeros años de vida independiente.
En todos esos intercambios, como es de comprender, florecieron las relaciones humanas que dieron forma a familias binacionales que estrecharon mas aun los vínculos. En la base de esta histórica amistad estaba la mas amplia coincidencia de nuestras respectivas diplomacias y del rol que ambas naciones podíamos desempeñar en la región. Desde sus primeras operaciones, la Armada de Chile encontró en Guayaquil aguas amistosas. En nuestras escuelas matrices siempre estuvimos acompañados de cadetes ecuatorianos.
Esta historia fecunda de amistad sin embargo padeció de momentos de frialdad. Coincidieron varias circunstancias para ello. Los países de la región vivieron hace poco momentos de ideologización de su proyección internacional. Pese a que históricamente siempre hemos tenido una amplia diversidad de regímenes políticos y de estrategias de desarrollo, se estableció hace algunos años una fuerte diferenciación entre los países del ALBA y su contrapartida, la Alianza del Pacifico, en su versión original. La dirigencia del Ecuador en esos años optó por adherir al ALBA, mientras que Alan García convocaba con éxito al entonces presidente Álvaro Uribe y al Presidente Piñera en su primera administración, a formar una alianza que se presentaba como alternativa no solo al ALBA sino también a los países del Mercosur. Mas allá de las diferencias, predominaron visiones de exclusión y de diferenciación.
Esos momentos además coincidieron con el episodio de las llamadas “cuerdas paralelas”, durante el juicio por el limite marítimo entre Chile y Perú. Los Tratados de 1952 y 1954 involucraban además a Ecuador. En una hábil maniobra la diplomacia peruana le ofreció todo al Ecuador, reconocimiento del paralelo como limite, respeto a la delimitación existente, con tal de que Ecuador no se hiciera parte del juicio.
Este episodio coincidió con difíciles momentos para la diplomacia quiteña: en marzo del 2008 tropas colombianas invadieron su territorio tras un campamento de las FARC allí instalado, dieron de baja a todos los guerrilleros, incluyendo un alto comandante del Secretariado, y además a un ciudadanos ecuatoriano, cuyos restos fueron trasladados a Bogotá.
Ha sido el incidente bilateral mas difícil en Sudamérica en los últimos años, hace exactamente una década. Los países involucrados rompieron relaciones, la región se tensó pero al final se impuso la diplomacia. En esos momentos, el Ecuador también enfrentaba una difícil relación con los EEUU por el cierre de la base aérea de Manta que usaban las FFAA norteamericanas. El episodio de “las cuerdas paralelas” consistió en que pese al desconocimiento de los Tratados vigentes y la demanda entablada por la diplomacia peruana, en un cuestionable giro a partir de marzo de 2010, las autoridades chilenas de entonces desplegaron un acercamiento a Lima. En la hipótesis explicatoria, se trató de privilegiar los aspectos económicos de la relación por sobre las consideraciones de soberanía y estrategia.
En la actualidad, la situación es diferente. El ALBA no vive sus mejores momentos y Ecuador toma distancia de su alineamiento. Y en Chile, si bien aún no hemos hecho un balance autocritico del fracaso de las “cuerdas paralelas” (entre otras cosas, perdimos mas de 22.000 km de presencia oceánica), se impone día a día una visión diferente. La demanda que Bolivia nos presentara bajo el reclamo de “obligación de negociar” desnuda la fragilidad de colocar la defensa de nuestra integridad territorial en manos ajenas. Hoy sería impensable que en Chile se hablase de “encapsular” el tema de la demanda, y que además, Chile condecorase al mandatario paceño y que nuestras autoridades subiesen al altiplano a brindar como si no hubiera pasado nada. Todo eso lo hizo Chile con Alan García en equívocos gestos en aquellos años.
Que Quito se despoje de algunos elementos ideológicos de su proyección internacional, y el que Chile mire la realidad en su total complejidad y no sólo con los ojos de los intereses económicos, restablecen las condiciones para que ambos países retomemos nuestros históricos lazos de amistad.
Ambos países podemos aportar estabilidad al Pacifico Sur, en actitud amistosa a todos, que permita conformar un espacio en esta ribera de la Cuenca del Pacifico de estabilidad y seguridad. Como bien lo entendieron los libertadores hace mas de doscientos años cuando confluyeron en un común esfuerzo por erradicar centros hegemónicos como el colonialismo trataba de preservar.
Gabriel Gaspar fue viceministro de defensa de Chile, embajador en Colombia y embajador plenipotenciario para America Latina.
Imagem: Cordilheira dos Andes Por: Romanceor.

Bombardeios na Síria e a implosão da governança internacional

Em 2011, a repercussão da “Primavera Árabe” rompeu um delicado equilíbrio na Síria. As tensões políticas, até então administradas pelo clã Assad com certa facilidade (já que a hegemonia familiar não se via ameaçada concretamente), explodiram em uma conflagração civil com milhares de grupos envolvidos, segundo os dados de base sobre conflitos da Universidade de Uppsala.
No embalo de revoltas populares, atores externos se voltaram ao conflito em moldes que remetiam à Guerra Fria: financiamento obscuro e treinamento oficioso a vários dos lados envolvidos. No debate público, os dirigentes dos destinos da comunidade internacional foram chamados a responder ativamente à calamidade que se alastrou na região – em especial no tocante à violência impelida pelos combates à população civil (principal questão a sensibilizar governos, organizações internacionais e setores da sociedade civil desde o início dos confrontos).
A proteção de civis em situações de conflito é um tema tradicional do Direito Internacional, mas é graças ao princípio da Responsabilidade de Proteger (popularizado pela sigla em inglês R2P) – inaugurado em 2001, e reformulado em 2005 – que o tópico ganhou sua forma mais sofisticada, a reboque de massacres ocorridos nos anos 1990. Mais do que proibir forças combatentes de dirigir violência à população geral, algo já consolidado no escopo clássico do Direito Humanitário, a R2P almeja vincular a atuação da comunidade internacional para a proteção ativa das populações em situações de violência em larga escala – impedindo a apatia generalizada como verificável no genocídio de Ruanda em 1994.
Assim, a R2P expressa um processo crescente de abalo do principal fundamento do Sistema Internacional contemporâneo (e cristalizado, por exemplo, nas Nações Unidas): o primado da soberania estatal. Contudo, a subversão proposta neste arcabouço não está alijada do atual protagonismo e autoridade do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Segundo a própria doutrina, as intervenções cunhadas na R2P devem ser conduzidas com autorização expressa do órgão e preferencialmente com apoio de organizações regionais pertinentes. Caso contrário, quaisquer ações de uso da força permanecem como atuação ilegal e ilegítima.
No caso sírio, a possibilidade de anuência do CSNU nestes termos parece quase impossível. Uma das razões é que a intervenção na Líbia (2011), que seguiu a justificativa argumentativa e jurídica da R2P, serviu de expediente para que os agentes ocidentais promovessem a derrubada do governo de Muammar Gaddafi – algo além do mandato formal do Conselho, que permitia estritamente o uso da força para a proteção de civis. Tal caso provocou a utilização sistêmica do poder de veto por Rússia e China, paralisando a partir de então qualquer deliberação arrojada sobre a matéria.
Neste sentido, os ataques militares patrocinados por EUA, Reino Unido e França na Síria, em abril de 2018, são fundamentalmente contrários à legalidade internacional e atingem as bases centrais da governança global. Sem a legitimidade multilateral, tais ações não apenas permitem a especulação acerca de interesses escusos das potências ocidentais na região, mas sobretudo enfraquecem as garantias institucionais acerca do uso da força, desestabilizando ainda mais a ordem global. Este caso é emblemático da encruzilhada em que se encontram várias das instituições ancoradas no Direito Internacional, uma vez que expõe as debilidades das atuais estruturas em constranger os interesses autocentrados dos principais Estados, gerando o descrédito por parte dos demais membros do Sistema Internacional.
Operar no terreno da ilegalidade internacional prejudica as décadas de avanços conquistados sobre o uso da força e coloca em risco a já frágil estabilidade política no mundo. Consequentemente, a manutenção da própria ONU, que tem como razão de ser a garantia da paz e que se mantém relevante por mais de 70 anos, é colocada em xeque. A percepção de que uma segunda versão da “coalizão da boa-vontade” (responsável pelos ataques ao Iraque no começo do milênio) seria capaz de superar a inércia da comunidade internacional para Síria é falaciosa. Assim, como no caso iraquiano, a atuação ocidental alheia aos acordos e à legitimação de toda comunidade internacional há de comprometer quaisquer esforços de pacificação e reconstrução de curto e médio prazo, reverberando para a perpetuação da volatilidade política na região.
Duas são as claras alternativas possíveis para que cenários como este não se repitam: a aguardada reforma no Conselho de Segurança ou a reestruturação da permissão unilateral do uso da força. A primeira, se bem executada, tem maiores chances de restaurar o grau de legitimidade da Organização sem que haja o desmonte dos fundamentos da proteção humanitária. Já a segunda apresenta riscos maiores para a relativa estabilidade que o mundo viveu nas últimas sete décadas e pode culminar na completa implosão da governança global, prejudicando os Estados mais frágeis politicamente em prol de interesses que beneficiem apenas as grandes potências e gerem cada vez mais violência para populações vulneráveis.
Daniel Campos de Carvalho é professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Letícia Rizzotti Lima é mestranda pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.

Quinze anos do acidente de Alcântara: a busca pelo veículo lançador de satélite em perspectiva histórica

No dia 22 de agosto de 2018, o acidente que ocorreu durante os testes da terceira tentativa de lançamento de um protótipo do Veículo Lançador de Satélite (VLS), na base de lançamento de Alcântara, no Maranhão, completa 15 anos. A tragédia resultou na morte de 21 profissionais envolvidos com o projeto, na perda de investimentos financeiros, tecnológicos e de recursos humanos e no atraso no desenvolvimento do projeto. O marco dos 15 anos da tragédia é um momento oportuno para se refletir sobre as motivações e o significado da busca pela construção de um VLS nacional.
O objetivo de se produzir meios nacionais de acesso ao espaço se faz presente desde as origens da atividade aeroespacial brasileira, em 1945, com a criação do então Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA). Porém, a institucionalização das atividades e as iniciativas de elaborar um programa aeroespacial ocorreram apenas em 1961, com a criação do Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais. Embora esse período seja caracterizado pelo envolvimento de civis e militares na condução das atividades, foi o Ministério da Aeronáutica que assumiu a liderança no desenvolvimento de foguetes de sondagem, que são considerados fases iniciais para a produção do VLS.
A partir de meados da década de 1960, já no regime autoritário, os maiores esforços do país no setor aeroespacial foram direcionados para o desenvolvimento de capacidade de lançamento de mísseis. Nesse período, destaca-se a inauguração do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, e o lançamento da série de foguetes Sonda, que correspondeu a quatro foguetes de sondagem, entre 1969 e 1984. Foi também um momento de estabelecimento de parcerias internacionais voltadas para a cooperação em ciência e tecnologia, especialmente com as grandes potências. Cabe destacar que, nesse momento, as restrições para as transferências tecnológicas e venda de armamentos ainda não eram tão rígidas. As décadas de 1970 e 1980 corresponderam à ascensão da indústria bélica brasileira, que contou com o mercado externo tanto para as exportações de armamentos quanto para a importação de tecnologia e para o financiamento de investimentos no setor. Nesse sentido, vale contextualizar o fortalecimento do âmbito aeroespacial com o auge da indústria militar nacional.
O fim da década de 1970 e início dos anos 1980 também foi palco de importantes iniciativas que influenciaram direta e indiretamente o objetivo da construção do VLS. Em 1979, foi lançada a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), primeiro programa aeroespacial completo que buscava desenvolver os três elementos básicos da atividade aeroespacial: uma base de lançamento, um veículo lançador e quatro satélites. Como desdobramento da MECB, em 1983 foi construído o Centro de Lançamento de Alcântara, porém os avanços nos demais objetivos do programa foram prejudicados devido, por um lado, à crise econômica pela qual passou o país na década de 1980 e, por outro, pelo fortalecimento das restrições internacionais à transferência tecnológica, seja por ações unilaterais, principalmente pelos EUA, seja por ações multilaterais, por meio de regimes de não-proliferação, como o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR, em inglês) criado em 1987. Esses fatores afetaram diretamente o objetivo de desenvolvimento do VLS, tanto pelo progressivo corte orçamentário quanto pelas dificuldades de obtenção das tecnologias necessárias para sua construção.
Nesse cenário de restrições políticas e orçamentárias, a alternativa adotada para dar continuidade aos projetos da MECB foi o estabelecimento de projetos de cooperação internacionais, dos quais se destaca a parceria com a China, assinada em 1988, para a produção de satélites. O plano inicial era que os satélites fossem lançados pelo VLS brasileiro, porém o atraso do projeto levou à decisão de lançar os equipamentos a partir de um veículo chinês, o que, embora contrariasse as expectativas da Força Aérea Brasileira, foi aceito, desde que a contratação do serviço chinês não prejudicasse o envio de recursos aos projetos brasileiros.
Contudo, o incipiente repasse de recursos orçamentários foi um dos elementos que mais dificultou os avanços no VLS, especialmente ao longo da década de 1990, quando os projetos do setor militar perderam lugar na agenda política do país, agravando a continuidade dos projetos, a aquisição de tecnologia e a formação de recursos humanos. Apesar desse cenário, a partir de 1993, as iniciativas na área receberam maior impulso. Nesse ano, ocorreu o primeiro voo de qualificação do foguete de sondagem VS-40, cujo propósito era testar o que poderia se tornar o quarto estágio do veículo lançador. Em 1997 e 1999, ocorreram testes de dois protótipos do VLS que, apesar de não terem obtido sucesso no lançamento, foram importantes para testar a tecnologia já desenvolvida.
A missão de se produzir um VLS nacional se insere na busca brasileira de obter autonomia tecnológica no setor. O domínio de todas as etapas da atividade aeroespacial e seus benefícios político-econômicos depende, em grande medida, da capacidade do país de não depender de serviços estrangeiros para levar satélites ao espaço e gerir as informações produzidas. No caso brasileiro, a construção do VLS enfrenta, além das dificuldades na transferência de tecnologia, constantes interrupções nos projetos desenvolvidos e as dificuldades de articular a importância do setor aeroespacial com os projetos políticos implementados por cada governo, o que envolve o aspecto orçamentário, político e social do âmbito da C&T para o país. No que tange ao VLS, o descaso com o histórico do projeto, – que tem mais de 40 anos de investimentos financeiros, políticos e de recursos humanos – foi crucial no resultado catastrófico do teste do terceiro protótipo do VLS, há 15 anos.
Adriane Gomes Fernandes de Almeida é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Alcântara VLS accident. Por: Rose Brasil / Agência Brasil.