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Entre a cruz e a espada: quais as armas corretas para defender a Amazônia?

Lisa Barbosa*

Ana Penido**

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.

 

“Cada qual que tenha a sua, qualquer arma, nem que seja
algo assim leve e inocente como este poema em que canta voz de povo — um simples canto de amor. Mas de amor armado”. Thiago de Mello

A passagem do poeta do coração do mundo, Thiago de Mello, nos provoca a revisitar o Sínodo da Amazônia, realizado pelo Vaticano em 2019, consequente com a proposta ecológica de Francisco presente da encíclica Laudato Si, de 2015.

Em muitos momentos da história brasileira, a Cruz e a Espada atuaram em conjunto na Amazônia, buscando a domesticação da natureza (humana, animal e vegetal) selvagem. A justificativa? Integrar a região, objeto da “cobiça internacional”, ao restante do Brasil.

De fato, é inegável a importância da Amazônia para o meio ambiental global, sendo não apenas a maior floresta tropical do mundo, mas também a maior bacia hidrográfica do planeta. O bioma ocupa cerca de 60% do território brasileiro e também se expande pelos territórios de outros oito países: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Suriname, Peru e Venezuela. Os povos que ali habitam são diversos, não apenas indígenas, mas também quilombolas, ribeirinhos, e tantos outros.

O Sínodo da Amazônia repensa a presença da igreja na região, onde estão interligados e em harmonia “água, território e natureza, vida comunitária e cultura, Deus e as várias forças espirituais”. Identifica também a crise socioambiental existente no local, e seus reflexos em outras regiões, dedicando  particular atenção à pobreza do amazônida como consequência da riqueza da terra, amplamente explorada (1). A ecologia proposta pelo Papa vê de forma integrada o clamor da terra e dos pobres.

Se a Cruz revê seu pensamento, o mesmo não ocorre com a Espada. A Amazônia, vista como um “vazio demográfico” e como uma fronteira de recursos naturais, ocupou um papel importante nas políticas desenvolvidas durante a ditadura militar, voltadas para a atração de novos ocupantes dedicados à exploração ambiental destinada ao mercado internacional.

Os povos indígenas foram tratados como “inimigos internos” do Estado, sentindo a “a mão amiga” do Exército, que levava assistência básica, mas também o “braço forte” repressor. O caso mais notável desse período, o garimpo na Serra Pelada coordenado pelo Major Curió, está eternizado pela lente fotográfica de Sebastião Salgado.

Com o final da Guerra Fria, e a crescente preocupação internacional com as mudanças climáticas, o interesse pela região se renovou. Os governos civis que sucederam os governos militares buscaram construir políticas mais sustentáveis, tanto do ponto de vista da floresta (controle das queimadas e desmatamento, criação de unidades de conservação ambiental), quanto dos povos tradicionais (homologação de Terras Indígenas).

Servir na fronteira Amazônica se tornou algo importante dentro da caserna, pois o ambiente “inóspito” era visto como depurador, de onde só saiam os melhores e mais resistentes. A onça, animal que representa a agilidade e a força para se movimentar na mata na cultura de diferentes povos indígenas, precisava ser acorrentada e domesticada, e se tornou símbolo dos quartéis.

A Amazônia como objeto de cobiça internacional voltou a ser propaganda ainda na campanha de Jair Bolsonaro. O discurso patriótico em defesa da soberania encobria propostas de retrocessos nas políticas de fiscalização e proteção do meio ambiente e das comunidades indígenas.

Depois de eleito, fica nítido em ações, não na retórica, que os mecanismos de regulação ambiental são vistos como um entrave para o desenvolvimento econômico do país. O resultado são os recordes históricos no número de queimadas e desmatamento, além de invasão de terras indígenas pelo garimpo (2).

Esse processo é coordenado pelo vice-presidente e general Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia legal, e operacionalizado através de diversas operações de Garantia da Lei e da Ordem que ocorrem no local desde 2020, quando os militares ganharam a autorização para agir em áreas de fronteiras, terras indígenas e unidades de conservação a fim de combater os incêndios florestais e coibir crimes ambientais.

A operação que foi denominada Verde Brasil, assim como sua sucessora, a Verde Brasil II, viu os índices de desmatamento subirem durante sua vigência, junto com índices de contaminação pela covid-19 em diferentes comunidades (a região recebeu atenção internacional em razão da falta de oxigênio para pacientes e da ampla distribuição de cloroquina, medicamento ineficiente para o enfrentamento da doença fabricado nos laboratórios do Exército). Dessa maneira, as duas grandes crises na região – ambiental e de saúde – foram enfrentadas de forma militarizada, e perdidas por um comando eminentemente militar.

Recentemente, a Agência Pública revelou que o banco canadense Forbes & Manhattan (F&M) recorreu ao general-lobista Cláudio Barroso Magno Filho para “destravar” seus negócios de mineração na maior floresta do mundo.

Mais um filho da Minustah (Haiti), o general Magno Filho entrou no ramo de consultorias e venda de equipamentos para as forças armadas e empreiteiras ainda nos anos 2000, quando foi para a reserva. Desde 2019, o militar atua em prol do F&M no Brasil, que disputa licenciamentos ambientais para as mineradoras Belo Sun e Potássio do Brasil.

O plano é construir a maior mina de ouro a céu aberto do mundo na Volta Grande do Xingu, a mais de 800 km de Belém (PA). Caso consiga, a companhia canadense instalará em Senador Porfírio (PA) uma barragem de rejeitos maior que a da Vale, rompida em Mariana (MG).

Os projetos impactam assentados, indígenas e ribeirinhos no Amazonas e no Pará. O general parece forte candidato a novo Major Curió, e nisso será auxiliado pela carência de fertilizantes no mercado provocada pelo conflito entre a OTAN e a Rússia, que se desdobra no terreno da Ucrânia.

Daí ser necessário retomar o Sínodo, pensando sobre as reais ameaças presentes no território, e quais as armas adequadas para proteger o coração da terra. No Sínodo, a ameaça identificada é a exploração da “casa comum”, conectada à opressão dos amazônidas.

A atividade extrativa predatória é vista em conjunto com a criminalização (quando não assassinato) dos defensores da floresta, especialmente dos povos indígenas. A arma para enfrentar esse tipo de ameaça identificada é a própria população local, que deve ser apoiada com medidas nacionais e internacionais de transição na matriz produtiva global, particularmente na área energética.

A ameaça é sempre o Outro no imaginário militar. Externo às fronteiras brasileiras, toma a forma de ONGs internacionais, imigrantes venezuelanos, e até do Papa, que já declarou ser contra a internacionalização da Amazônia. Sim, o Sínodo foi visto pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ex-comandante do Comando Maior da Amazônia, general Augusto Heleno, como uma ameaça à soberania nacional.

[O Sínodo] quer falar de terra indígena, quer falar de exploração, de plantação, quer falar de distribuição de terra. Isso são assuntos do Brasil”. O Outro madeireiras, o Outro mineradoras, o Outro agronegócio, também externos (mas em forte aliança com a burguesia interna brasileira), e também presentes na região, não é visto como Outro, e sim como Nós.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. (Thiago de Mello)

A Cruz se repensou. Há de chegar o tempo em que a Espada também será repensada.

 

(1) – Dossiê 14: Amazônia Brasileira, A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra (thetricontinental.org)

(2) – De acordo com dados do Programa Queimadas divulgados pelo INPE, em 2019 foram registrados 89.176 focos de incêndio florestal na Amazônia Legal, um índice histórico e que registrou alta no ano seguinte (em 2020 foram registrados 103.161 focos de calor na Amazônia). Sobre as taxas de desmatamento, de acordo com os registros do Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real (DETER), observa-se o crescimento de 85% no índice entre 2018 e 2019. Já de acordo com dados do Imazon, o desmatamento na Amazônia entre os anos de 2020 e 2021 foi o mais alto dos últimos dez anos.

* Lisa Barbosa é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.

** Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e integrante do Gedes.

 

Imagem: Vista aérea de queimada na Amazônia.Por: Amazônia Real.

As imaginadas ameaças à Amazônia: a perspectiva militar sobre a preservação ambiental e os povos amazônicos

O início do mandato presidencial de Jair Bolsonaro foi submetido a um minucioso escrutínio pelos grandes veículos de mídia brasileiros e pela oposição. Para além das investigações em torno do núcleo familiar, resultou da atenção conferida aos primeiros passos do novo governo uma série de ruídos em torno dos ministros de Estado. Distando das expectativas de discrição e sigilo que se avolumam em torno das ações estatais de inteligência, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tornou-se epicentro das reportagens ao incluir a realização do Sínodo Amazônico, um encontro sobre a região amazônica realizado pela Igreja Católica em Roma, como uma preocupação à soberania nacional.

Assinala-se, no entanto, que o pensamento militar sobre a região amazônica foi reiteradamente marcado por inquietudes em relação à presença de atores favoráveis à preservação ambiental e à promoção dos direitos fundamentais dos povos amazônicos. Em entrevista, o ministro do GSI, general Augusto Heleno, reforçou que os “palpites” de atores internacionais sobre as questões amazônicas constituempreocupação na pauta de segurança internacional. Uma nota de imprensa do ministério contribuiu para fomentar o ruído em torno da questão ao afirmar que, apesar de não investigar os membros do clero, a pauta amazônica permaneceria em voga nas ações do órgão. Em agravo, o GSI considerou o envolvimento do Itamaraty, para acompanhar debates no exterior, e do Ministério do Meio Ambiente, para identificar participações ocasionais de organizações não-governamentais e ambientalistas no Sínodo Amazônico.

O evento envolve um cronograma de reuniões de bispos católicos, convocados pelo Papa Francisco I para discutir a atuação da Igreja Católica diante dos obstáculos à ação eclesial por todo o globo. O documento preparatório para o evento de 2019 exortou as comunidades eclesiais a discutir questões como a preservação da diversidade ambiental e cultural da região e a vulnerabilidade dos povos amazônicos, temas vilipendiados no discurso e nas políticas concretas dos novos mandatários no Brasil. Recorda-se que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, descreveu pejorativamente indígenas, quilombolas e ambientalistas em diversas ocasiões.

As políticas adotadas ao início de seu mandato presidencial corroboram o discurso negativo. A disposição em incluir a reunião eclesial como potencial ameaça à integridade territorial brasileira ocorre simultaneamente aos esforços econômicos liberalizantes traçados pelo governo, e especialmente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O recurso ao argumento da soberania não ecoa na política irrefreável de privatizações e abertura ao capital internacional. Observa-se a emergência concreta de contradições entre diferentes grupos que compõem e sustentam o governo de Jair Bolsonaro.

É prudente indicar que as presidências de órgãos vinculados às questões agrárias, diretamente relacionados aos temas ambientais, foram distribuídas a oficiais das Forças Armadas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), hoje subordinado ao Ministério da Agricultura, é presidido pelo general do Exército Jesus Corrêa; a Fundação Nacional do Índio (Funai) é atualmente presidida pelo general do Exército Framklimberg Ribeiro de Freitas. Esse último é suspeito de conflito de interesses por ter ocupado cargo em conselho consultivo de uma mineradora que atua no Pará após ter presidido a Funai entre maio de 2017 e abril de 2018.

A interpretação contravertida em relação às ações de movimentos sociais pela preservação ambiental e pelos direitos das populações locais, expressa na ação recente do GSI, não é recente e tampouco inovadora. A percepção militar em relação aos movimentos ambientais e indigenistas foi recorrentemente traçada através da designação de potenciais ameaças à integridade territorial brasileira nos movimentos favoráveis a medidas de proteção ambiental ou que clamassem por direitos dos povos amazônicos. A ideia da cobiça internacional pelo território amazônico está presente no pensamento militar sobre a região, atribuindo a esses atores o potencial de “desnacionalização” da Amazônia (MARQUES, 2007). A estratégia para evitar tais potenciais ameaças somou a vigilância das fronteiras e a ocupação populacional do território amazônico. Ressalta-se, no entanto, que essa estratégia de ocupação demográfica frequentemente ignorou a presença de comunidades indígenas, de ribeirinhos e outras populações amazônicas, demandando fluxos migratórios extraordinários para a sua conclusão.

A designação do Sínodo da Amazônia de 2019 como uma potencial ameaça para os interesses brasileiros no território amazônico divergiu a atenção a problemas latentes na região. Segundo o Atlas da Violência elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a região Norte teve o maior crescimento no número de homicídios no período entre 2006 e 2016. Em consonância com as estatísticas sobre homicídios na região, outro dado alarmante é o do aumento da violência no campo, ocasionado pelos conflitos por terras. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, no ano de 2017, Rondônia e Pará concentravam 54% dos 70 assassinatos no campo em todo o país. Ademais, é amplamente reconhecida a necessidade de desenvolver políticas púbicas de combate ao tráfico de drogas e à biopirataria.

Os dados referentes à depredação ambiental são igualmente alarmantes. Estatísticas recentes indicam o crescimento na taxa de desmatamento da região de floresta amazônica. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),  59% do desmatamento aconteceu em terras privadas ou de grilagem de áreas públicas, e, somente 15% do total são de terras indígenas. Em 2017, 46% das emissões de carbono no Brasil vieram da destruição de florestas, o que causa um agravamento do aquecimento do planeta.

Um conjunto variado de questões constitui preocupação mais urgente na agenda de preservação da Amazônia e de conservação dos interesses nacionais na região quando comparado à reunião eclesial a ser realizada em outubro de 2019. Em agravo, as soluções para essa miríade de problemas que incide sobre o território amazônico distam da proliferação da presença militar ou da promoção da ocupação demográfica. Nesse sentido, faz-se necessário promover ativamente políticas públicas que conciliem a preservação ambiental e os direitos das populações amazônicas diante do quadro de exploração irrefreável e insegurança cotidiana que se instala na região.

 

 

Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes; Débora Reis é graduanda em Relações Internacionais pela Unesp-Franca.

 

Referência Bibliográfica:

MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. Orientada por: Rafael A. Duarte Villa. 2007. 232 f. Tese (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

Imagem: Vista Aérea da Floresta Amazônica. Por: Neil Palmer/CIAT.