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Crises sul-americanas e a ausência brasileira

Tamires Aparecida Ferreira Souza*

 

O início da década de 2000, conhecida como a “era da mudança” e de desenvolvimento nacional e regional, marcou-se pela eleição, por vias democráticas, de governos progressistas na América do Sul, bem como pelo crescimento econômico, através do boom das commodities e dos recursos naturais. Neste cenário, apresentou-se a terceira onda regionalista, também denominada como regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico. Houve um movimento de priorização da agenda política, associada, nas políticas externas dos países, à busca de autonomia regional frente aos Estados Unidos e atores externos, e à adoção de políticas de desenvolvimento, além de uma inserção da região no cenário internacional. Observou-se, ainda, a concretização de consensos regionais e o desenvolvimento de instituições marcadas por abordagens multifacetadas (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012). Assim, iremos percorrer, brevemente, o período do regionalismo pós-hegemônico, destacando-se a criação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), a fim de compreendermos o período atual de crises e mudanças na América do Sul, em especial com a concretização do governo de Jair Bolsonaro no Brasil.

A UNASUL se caracterizou como a principal organização criada nesta configuração da região. Em 2004, por iniciativa brasileira, desenvolveu-se a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), marcada pela associação, única, de doze países sul-americanos. Sua proposta baseava-se em cooperação política, com a coordenação de políticas exteriores e a convergência entre outras organizações, como a Comunidade Andina (CAN) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e países como Chile, Guiana e Suriname, para uma área de livre comércio e uma integração física, energética e de comunicações, inserindo em seu escopo a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana. (SANAHUJA, 2009). Em 2008, essa Comunidade passou por uma transformação, com a assinatura do Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas, objetivando promover na região uma personalidade jurídica internacional para dialogar com outros blocos, com o status de organização internacional. A UNASUL foi projetada como via alternativa às propostas da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), para a resolução de conflitos regionais. Ademais, a União é uma instituição de caráter cooperativo regional, pautada nos vieses político, econômico, de infraestrutura, social e de defesa, sendo as decisões tomadas por consenso e implementadas de forma gradual.

Contudo, tal conjuntura passou a ser modificada a partir da ascensão de governos de centro-direita na região sul-americana e do término do ciclo das commodities. As mudanças políticas na Argentina, com a eleição de Mauricio Macri em 2015, e no Brasil, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, levaram ao poder governos de centro-direita, conservadores, liberais e ideologizados nos dois países líderes dos processos cooperativos regionais. Nota-se, assim, o “início do fim do ciclo pós-hegemônico” (BRICEÑO-RUIZ, 2020). Distintamente ao movimento anterior, ocorre uma aproximação dos países aos Estados Unidos de Donald Trump, sendo o caso mais expressivo o do Brasil de Jair Bolsonaro, que abandonou o discurso autonomista, e adotou uma visão baseada em “narrativas religiosas e/ou mitológicas” (SANAHUJA; BURIAN, 2020).

Representativamente a esta situação sul-americana, em 20 de abril de 2018, houve a solicitação de suspensão temporária de participação nas atividades da UNASUL por parte de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. A justificativa se baseou na ausência de consensos e resultados concretos na organização. Em 2019, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru anunciaram suas saídas oficiais da União. No mesmo ano, houve a criação do Foro para o Progresso e Integração da América do Sul (PROSUL), como uma resposta da direita sul-americana frente a uma UNASUL enquadrada como ideológica e bolivariana.

Assim, observa-se a presença mais evidente dos Estados Unidos atrelada a uma influência nas políticas nacionais dos países sul-americanos. Argentina e Brasil passaram a intensificar seus laços com a superpotência, promovendo acordos na área de defesa, demonstrando uma maior adoção das perspectivas estadunidenses, especialmente quanto ao emprego das Forças Armadas em assuntos de segurança pública, o reconhecimento da ameaça do narcoterror nas fronteiras, bem como um alinhamento político-econômico. O âmbito regional projeta esse novo posicionamento dos governos e da diplomacia presidencial. Há uma transformação da abordagem de autonomia regional e estímulo quanto à cooperação sul-americana, a qual entrou em um processo de estagnação, com perda acentuada da vontade política das lideranças dos países.

Vale ressaltar que o governo Bolsonaro, iniciado em 2019, marca-se por uma associação estreita aos militares brasileiros, autodeclarando-se  como “um governo todo militarizado”, nas palavras do próprio presidente. Observa-se o dobro de pessoal militar presente em Ministérios e altos cargos públicos, dentre eles o Ministério da Defesa, em comparação a governos anteriores. Tais níveis são inéditos no período democrático brasileiro. (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021).

A pandemia de COVID-19 insere-se como um agravamento da já existente crise do regionalismo. A utilização de discursos classificando a pandemia como um risco ou ameaça à segurança nacional converte-se em políticas e estratégias de segurança na maioria dos países. Observa-se um expressivo esquecimento da cooperação regional e internacional, associado à debilidade das instituições regionais, e à priorização da soberania e autonomia nacional. (BOSCHIERO, 2020).

No Brasil, o presidente Bolsonaro apresentou ceticismo quanto à pandemia, discordando de consensos científicos, minimizando seus impactos e mortes e fazendo referência à COVID-19 como uma “gripezinha” (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021). O governo brasileiro ainda se destacou por sua ausência de iniciativa e liderança regional. Em reunião do PROSUL sobre a temática da pandemia, em 2020, Bolsonaro foi o único governante dos países membros a não participar do encontro (JUNQUEIRA; NEVES; SOUZA, 2020). Ademais, o Brasil bolsonarista consolidou seu “abandono” a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e estimulou discordâncias quanto à relevância do MERCOSUL, utilizando-se de “ameaças” de saída da organização e confrontos com o atual presidente argentino, Alberto Fernández, no referente à gestão da pandemia. Paralelamente, seguindo seu alinhamento estadunidense, promoveu que a OEA retornasse como uma instituição ativa na região latina. (FRENKEL, 2021).

Desta forma, na América do Sul do período de 2015 a 2022 houve o agravamento da crise do regionalismo, da cooperação e da busca por uma região autônoma e independente frente à     s potências mundiais. Os governos de centro-direita, com destaque ao Brasil de Bolsonaro, visaram o alinhamento aos Estados Unidos e a desintegração sul-americana. O Brasil, conhecido amplamente como o líder e mediador regional, se converteu em um país ausente e indiferente aos seus vizinhos e às suas iniciativas cooperativas institucionalizadas.

 

* Tamires Aparecida Ferreira Souza é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: América do Sul. Por: delfi de la Rua/ Unsplash.

 

Referências Bibliográficas

BRICEÑO-RUIZ2, J. Da Crise da Pós-Hegemonia ao Impacto Da Covid-19. O Impasse do Regionalismo Latino-Americano. Rev. Cadernos de Campo, n. 29, p. 21-39, jul./dez. 2020.

BOSCHIERO, E. Riesgos globales y derechos humanos: hacia sociedades más resilientes, igualitarias y sostenibles In: Mesa, M. (coord.) Riesgos globales y multilateralismo: el impacto de la COVID-19 – Anuario 2019-2020. Madrid: CEIPAZ, 2020.

FRENKEL, D. Jair Bolsonaro e a desintegração da América do Sul: um parêntese? NUSO,  nº 2021, ago.-set. 2021.

JUNQUEIRA, C.; NEVES, B.; SOUZA, L. Regionalismo Sul-Americano nos anos 2020: O que esperar em meio às Instabilidades Políticas? Revista tempo do mundo, n. 23, ago. 2020.

RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-Hegemonic Regionalism In Latin America. In: RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-hegemonic Regionalism: The Case of Latin America. New York: Springer, 2012.

SANAHUJA, J. Del “regionalismo abierto” al “regionalismo post-liberal”. Crisis y cambio en la integración regional en América Latina. In: ALFONSO, L.; PEÑA, L; VAZQUEZ, M. (org) Anuario de la Integración Regional de América Latina y el Gran Caribe. Buenos Aires: CRIES, 2009. p.11-54.

SANAHUJA, J.; BURIAN, C. Las derechas neopatriotas en América Latina: contestación al orden liberal internacional. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 126, p. 41-63, 2020.

VERDES-MONTENEGRO, F.; SOUZA, T. ¿Misión cumplida? La militarización de la gestión sanitaria frente a la COVID-19 en Brasil. Análisis Carolina, v.30/2021, p.01 – 22, 2021.

A retomada das negociações entre Brasil e EUA para utilização da base de Alcântara: elementos da conjuntura recente para um possível desfecho

O debate sobre o acordo de salvaguardas tecnológicas (AST) entre Brasil e Estados Unidos é realizado, muitas vezes, de forma tão imediatista e com tanta animosidade que nem sempre ajuda a entender os interesses e objetivos envolvidos na negociação. O assunto, que por alguns anos ficou adormecido na mídia e entre os atores políticos, foi retomado recentemente e pode estar prestes a ter um desfecho. Por isso, é válido partir de uma visão do quadro mais amplo em que as negociações estão acontecendo para se ter uma ideia do que está – e do que não está – envolvido no acordo.

Primeiramente, deve-se ter em conta que o conceito de acordo de salvaguardas tecnológicas não é algo definitivo, nem do ponto de vista jurídico, nem do político. O que serve de base comum para se definir o que é um AST é seu objetivo principal: a proteção da propriedade tecnológica de uma das partes. No entanto, como isso vai ser articulado depende de cada caso. Assim, é possível que o documento final seja composto por cláusulas além da principal – cláusulas estas muitas vezes políticas, especialmente quando o objeto da negociação é relacionado com atividades militares. No primeiro AST assinado por Brasil e EUA, foram principalmente as denominadas cláusulas políticas que geraram os maiores entraves e a paralisação das negociações.

No entanto, o período de interrupção dos diálogos sobre o assunto de quase 20 anos não é decorrente apenas das discordâncias sobre o teor do documento. Houve uma mudança de prioridades, por parte do Brasil e dos EUA, que diminuiu a importância do tema de Alcântara na agenda das relações bilaterais. No lado brasileiro, assumiu maior destaque a parceria com a Ucrânia, com a qual o país também assinou um acordo de salvaguardas – que também teve controvérsias. Com essa parceria, retornava à agenda política o objetivo de promover atividades comerciais na base de Alcântara. Os EUA, por sua vez, estavam concentrados em atualizar as prioridades e as atividades da sua política espacial e, no que tange às questões internacionais, o foco era a competição política e comercial com Rússia e China.

Embora as notícias sobre um novo acordo sejam bastante recentes, os primeiros passos foram de fato realizados em governos anteriores. Nesse sentido, uma das primeiras medidas foi tomada no governo de Dilma Rousseff, em 2011, com a assinatura de um novo Acordo Quadro com os EUA em política espacial. Essa iniciativa visava atualizar as garantias jurídicas e os compromissos na matéria, uma vez que o primeiro acordo dessa natureza data do ano de 1996. Contudo, a principal medida para a retomada das negociações ocorreu logo após o impeachment de Rousseff, em agosto de 2016, quando o novo presidente, Michel Temer, encaminhou uma mensagem ao Congresso demandando a retirada da tramitação do primeiro AST, sendo que a aprovação da mesma ocorreu em dezembro do mesmo ano. A importância dessa ação é decorrente de que, desde 2001, o acordo não havia sido cancelado, mas apenas se encontrava paralisado no Congresso. Sem seu cancelamento efetivo, uma nova negociação não poderia ser feita. Desse modo, foi o governo Temer o responsável por recolocar, na agenda do programa espacial brasileiro, as discussões sobre a utilização da base de Alcântara pelos EUA.

Ainda no governo Temer, dois outros acontecimentos constituem antecedentes fundamentais para a tônica da velocidade das negociações sobre um novo AST. Primeiramente, no final de 2017, a base recebeu a visita de representantes de empresas estadunidenses do ramo, como a Boeing Co e a Lockheed Martin Corp, que se destacam no campo de lançamento de foguetes de grande porte, como a Vector, uma das principais na área de lançamento de microssatélites. Em segundo, a assinatura do acordo de cooperação em segurança de voos espaciais e fornecimento de serviços e informação, também conhecido como Space Situation Awareness (SSA – Consciência Situacional Espacial, em português), em 2018. Trata-se de um compromisso com o objetivo de divulgar a situação do domínio espacial de cada país e aumentar a segurança dos lançamentos espaciais, para evitar colisões, por exemplo. Esses dois eventos demonstram como, em dois anos, o interesse mútuo por um novo acordo ficou tão acentuado que gerou rápidas negociações em questões tangenciais.

De fato, para que o objetivo de promover atividades comerciais na base de Alcântara seja concretizado, é importante firmar um AST com os EUA, que se mantém um dos principais países no comércio internacional de tecnologia e serviços espaciais. Contudo, a assinatura do acordo não será a solução dos problemas da base – e do programa espacial brasileiro – por duas questões principais: em primeiro lugar, é fundamental que o acordo firmado supere os dilemas políticos que sobressaíram no acordo passado, especialmente nos entraves à aplicação dos recursos ao programa espacial e às restrições à cooperação com outros países – cabe ressaltar, por exemplo, a China, que embora ainda não tenha conquistado a predominância que os EUA tem no setor, desponta em áreas que esse país apresenta algumas deficiências, além de ser um parceiro histórico do setor espacial brasileiro; em segundo lugar, tão ou mais importante que o AST é a melhora da infraestrutura da base. As poucas atividades realizadas nos últimos anos e a necessidade de melhorias e adequações das instalações da base para lançamentos de grande porte são questões que, no fim, podem oferecer restrições maiores – e que levariam mais tempo para serem solucionadas – às atividades comerciais do que a ausência de um AST com os EUA.

Adriane Almeida é mestre pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.

Imagem: CLA -Centro de Lançamento de Alcântara. Por: Força Aérea Brasileira.