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Armas para apagar as luzes

Matheus de Oliveira Pereira*

Um conhecido adágio diz que “para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e errada”. Registrada a ausência de elegância, é impossível não recordar a máxima ao lermos as notícias de que, na tarde do dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto que altera os dispositivos que ficaram conhecidos como “Estatuto do Desarmamento”, regulamentando a  Lei nº 10.826/2003 e modificando o decreto nº 5.123/2004.

A finalidade da mudança promovida por Bolsonaro é flexibilizar as regras para aquisição de armas de fogo e marca o cumprimento de uma das promessas mais emblemáticas de sua campanha presidencial; não por acaso, a assinatura se deu na primeira cerimônia pública deste tipo desde o início do governo.

Durante o ato, o presidente afirmou que o decreto visava restituir ao cidadão o direito à legítima defesa, declarando que este era uma desejo que havia sido soberanamente expresso nas urnas, além de atacar de maneira mais incisiva o gravíssimo problema de segurança pública enfrentado pelo Brasil nos últimos anos. O verniz democrático da justificativa oculta algumas sutilezas que, como tudo que cerca este governo, não parecem nada alvissareiras.

Do ponto de vista da segurança pública, a medida é, no mínimo, temerária e causa divergência inclusive no interior da base de apoio do governo. A literatura acadêmica aponta que mais armas, em geral, significam mais mortes, de maneira que não há razão crível para supor que facilitar o acesso às armas de fogo terá algum efeito positivo sobre a trágica taxa de homicídios no país. Os dados do Ministério da Saúde mostram que, desde o Estatuto do Desarmamento, a taxa de homicídios evoluiu em ritmo mais lento no país. A flexibilização parece fadada a aumentar o número de mortes, constituindo-se em uma preocupação adicional sobretudo às populações marginalizadas e alvo de violência constante como mulheres, homo e transsexuais e moradores das periferias (não custa lembrar: a maioria dos mortos por arma de fogo no Brasil não corresponde mais ao perfil do morador da Maré ou do Capão que da rua Dias Ferreira ou da Av. Faria Lima). Outra lembrança oportuna é que, num passado não muito distante, um certo deputado Jair Bolsonaro defendia, no plenário da câmara, a legalização de grupos paramilitares.

Há algo mais a ser considerado. É provável que Bolsonaro não estivesse pensando nestes termos ao assinar o decreto, mas o que sua medida faz, na prática, é refutar um princípio básico da forma estatal de organização política. A fundação do Estado moderno é indissociável do imperativo de segurança e está atrelada à premissa de que a melhor maneira de assegurar a todos a segurança necessária à vida e à realização das potências humanas era centralizar o uso da força na autoridade estatal. Filósofos como Thomas Hobbes e John Locke, talvez a caminho de integrar o index do ministro da educação, argumentam nessa toada, e Locke – pai do liberalismo que supostamente lastreia o governo do liberal-novo Bolsonaro – é enfático defensor da tese de que as liberdades individuais estarão mais bem protegidas pela concentração do poder coercitivo no Estado. A mediação dos conflitos sociais não poderia ser feita diretamente pelos indivíduos porque, deste modo, os critérios de justiça seriam variáveis e isso tenderia a produzir desordem e insegurança.  A centralização da violência organizada nas mãos do Estado tem, assim, o fito de proteger os cidadãos da violência resultante dos conflitos sociais, e é uma das ideias mestres da modernidade.

A mais notável exceção está nos Estados Unidos da América, inspiração evidente de Bolsonaro, que possui uma das mais permissivas políticas de acesso a armas de fogo do mundo. As peculiaridades do caso estadunidense demandam mais espaço que o disponível para serem adequadamente tratadas, mas algumas indicações devem ser feitas. A questão central é em que medida vale a pena buscar aproximar-se de modelo estadunidense. O país só perde para o Brasil em número de mortes por armas de fogo e possui uma cultura enraizada de atiradores que abrem fogo em escolas, ruas e casas noturnas. A história brasileira já não tem sangue o bastante – vide Vigário Geral, Candelária, Realengo e Osasco – para emular outras Columbines?

Por detrás de um ato previsto como de restituição à cidadania de um poder que lhe seria legítimo, está na verdade um atestado de falência e incompetência do Estado em prover aquilo que é sua função primária de ser. Facilitar o armamento ao cidadão é dizer-lhe cabe a ele sua autoproteção, revelando descrédito na capacidade da política e e suas instituições na mediação e acomodação dos conflitos e tensões presentes na sociedade, e em cujo seio repousa a origem da violência e criminalidade arrasadoras do Brasil.

O fato de a medida ser tomada na contramão de todas as evidências cientificas disponíveis só reforça o caráter hostil do governo à ciência, expresso, entre outras coisas, nos posicionamentos em relação às mudanças climáticas. Mostra ainda como a vocação do bolsonarismo parece ser uma emulação do quixotismo, elegendo como adversários os moinhos de vento da “doutrinação marxista”, do “globalismo” e da “ideologia de gênero”. Tudo isto seguindo uma prédica religiosa, que busca atacar as contradições próprias do nosso tempo sem se aproximar do cerne de sua causa: a brutal desigualdade socioeconômica e precarização das condições de vida produzidas pelas políticas econômicas que o atual delfim do governo pretende realizar ao paroxismo.

Embalado em armas, anti-cientificismo e retórica religiosa, o governo Bolsonaro parece querer resolver os dilemas da pós-modernidade apagando as luzes da modernidade, devolvendo-nos ao medievalismo que parece ser o ânimo intelectual de seu projeto.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professor da Universidade de Ribeirão Preto e pesquisador do Gedes.

Imagem por: Palácio do Planalto.

Os militares na Política e os riscos à República

Jorge M. Oliveira Rodrigues*

 

No dia 13 de Outubro 2018, em reportagem do jornal O Globo, lia-se: “Uruguai manda prender comandante do Exército por dar opinião sobre lei”. Em comunicado à impressa o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, se limitou a afirmar: “o comandante em chefe do Exército atua em boa fé e com a lealdade institucional que devem ter as Forças Armadas, porém se equivocou e, em função disso, está sancionado”. Tabaré Vázquez reforçava os preceitos constitucionais afirmando que não seria da alçada militar comentar sobre política. Reafirmava, assim, a República uruguaia.

Dos lados de cá, em Terra Brasilis, a República ainda é objetivo distante: desejada por todos, ferida por muitos. Nessa corrida em que fôlego e virulência concorrem para definir o ganhador, nosso país se encontra sem ar e sem forças. Desde o processo ilegítimo que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do cargo, em 2016, que deparamo-nos com recorrentes manifestações por parte de setores das forças armadas que, no mínimo, fazem questionar se há de fato República no Brasil. Por certo, não se trata de problema datado. Mesmo com a criação do Ministério da Defesa em 1999 nunca chegamos nem perto de consolidar a autoridade civil sobre os militares.

Se por um lado, o duro processo de construção da Democracia supõe que todos tenham garantidos os seus direitos de voz, é fundamental que sejam respeitados os preceitos constitucionais e os regulamentos que pautam a atividade militar no Brasil. Pelo caráter específico de suas funções constitucionais, aos militares da ativa não é facultada a atuação política. Por outro lado, aos civis exige-se assumir a responsabilidade pela construção do controle civil no Brasil, introduzindo, assim, um dos pilares para a constituição de tradições republicanas no país. Ao fim, enquanto o Uruguai se agiganta atestando o primado da Política, no Brasil os poderes se acovardam. À medida que as autoridades civis se recusam a ocupar o espaço que lhes cabe, o vácuo de poder remanescente é ocupado por aqueles cuja função é, essencialmente, instrumental.

No Executivo, é preocupante a ascensão de um general da ativa ao cargo de ministro da Defesa. Na primeira metade de 2018, no marco da transferência de Raul Jungmann ao Ministério da Segurança Pública, assumia a pasta o general Silva e Luna. Sua ascensão ao cargo não representa, em si, quebra do ordenamento constitucional. Possui, entretanto, efeito simbólico considerável, que enfraquece as iniciativas de instituir-se o controle civil das forças armadas. Desde a criação do Ministério da Defesa em 1999, foram civis aqueles que encabeçaram o comando da pasta – afirmação que deve ser acompanhada de uma reflexão profunda quanto à presença massiva de militares na pasta. Fato é que depois de quase 20 anos, num quadro de instabilidade política, a pasta se encontra sob o comando militar.

No Judiciário, a nomeação de um general de quatro estrelas para sua assessoria pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, chama atenção pelo seu ineditismo e simbolismo. Trata-se do militar da reserva, Fernando de Azevedo e Silva. A justificativa apresentada é que o militar assessoria o agora presidente do STF em assuntos relativos à segurança – o que, por si só, é problemático uma vez que a função militar é a guerra, não a segurança pública.

Ademais, a corrida eleitoral está marcada por um aumento considerável de candidatos ligados às Forças Armadas – movimento que já em Abril deste ano dava sinais de fortalecimento. Em comparação com as eleições de 2014 o número de candidatos militares cresceu em 41%. Os dados dizem respeito à candidaturas no âmbito do Executivo e do Legislativo e contabilizam também a participação de militares da ativa que, não sendo eleitos, retornam às suas respectivas forças. O aumento destas candidaturas é associado, dentre outros fatores, a uma insatisfação da população com a “política tradicional”. Tomados pelo discurso de que “todo político é corrupto”, a sociedade migra àquele que julga ser o último reduto da moral: os militares.

Terminado o primeiro turno, confirma-se o movimento de “politização” dos militares. Na Câmara Federal 6 militares foram eleitos em 2018, todos do PSL. Os futuros deputados são: general Sebastião Roberto Peternelli, por São Paulo; general Elieser Girão Monteiro, pelo Rio Grande do Norte; coronel João Chrisóstomo de Moura, por Roraima; coronel Luiz Armando Schroeder Reis por Santa Catarina; o major Vitor Hugo de Araújo Almeida, por Roraima; e o subtenente Hélio Fernando Barbosa Lopes, pelo Rio de Janeiro. No Senado, o Espírito Santo elegeu o ex-militar e atual instrutor de defesa pessoal, Marcos do Val (PPS). Movimento similar, porém não necessariamente inédito, também é percebido em relação aos agentes de segurança pública. O estado de São Paulo, por exemplo, elegeu para o Senado o major da Política Militar, Sergio Olímpio Gomes, o Major Olímpio (PSL). Na mesma linha, o Rio Grande do Norte elegeu ao cargo o capitão da Polícia Militar, Eann Styvenson (REDE).

Não bastassem os fatos elencados, os últimos anos têm sido marcados pela verborragia das Forças Armadas. No dia 09 de Setembro, em entrevista à Folha de S. Paulo e falando com uma autoridade que não lhe compete, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirmava que com o acirramento dos ânimos na sociedade até a legitimidade de um novo governo poderia ser questionada. Chamado a opinar sobre o posicionamento da ONU acerca da participação de Lula nas eleições, Villas Boas taxa o manifesto de “tentativa de invasão da soberania nacional”. Anteriormente, em Abril deste ano, o general suscitou uma onda cibernética de ataques à democracia ao manifestar-se publicamente quanto a julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiria sobre habeas corpus ao ex-presidente Lula da Silva, condenado em segunda instância por corrupção. Ao posicionar-se, o Comandante do Exército vestiu de legitimidade outros generais da ativa que se sentiram no direito de manifestar, na Ágora virtual, quanto aos rumos políticos do país. Com ares conspiratórios, esse foi, senão o primeiro, o mais volumoso gole de cicuta dado à nossa Democracia.

Finalizando a série de ingerências políticas, temos episódio simbólico do escrutínio. Entre Maio e Junho deste ano, o general Villas Bôas manteve uma série de reuniões com os candidatos à Presidência da República. Segundo o general, as reuniões serviram apenas para a apresentação de questões relativas à Defesa Nacional. Mas a imagem que fica é outra. O episódio é símbolo da insistência de setores das Forças Armadas em se colocar como uma espécie de quarto poder, de cuja tutela dependeria, conforme supõem, a própria existência do Estado brasileiro.

E assim, entre entrevistas e pronunciamentos no Twitter, construiu-se o caminho das pedras que resultou no aumento das desconfianças quanto a uma possível intervenção militar e, por fim, no enfraquecimento da República. Em todos os casos, o problema é a insistência de setores militares em agir enquanto atores políticos. Ao contrário do que faz parecer o questionamento cínico de determinados setores da sociedade, não se trata de advogar por uma suposta “sub-cidadania” aos militares, como se fossem menos brasileiros ou menos humanos. É discussão que extrapola, necessariamente, aspectos jurídicos e constitucionais. É uma discussão sobre modelo de Estado. É uma discussão sobre República.

Sabiamente anuncia Elio Gaspari: “por maior que seja a confusão existente, quando se chamam os militares para botar ordem no circo, cria-se outra confusão, que nem eles são capazes de prever”. É sintomático do momento político em que vivemos no Brasil que os espaços políticos estejam sendo ocupados por setores militares ou por grupos vinculados.

De Gaspari, passamos à Estratégia: se a racionalidade da Guerra é dada pela Política, o inverso não pode ser verdadeiro. A gramática da Guerra, já dizia o general Von Clausewitz, não se sobrepõe à Política simplesmente porque nela não encontra encaixe. Assim, aos militares que se aventuram na política resta uma opção: deixar de ser militar. Nesse processo as Forças Armadas brasileiras se afundam numa dinâmica de desprofissionalização, perdendo aptidão às funções que lhes são previstas constitucionalmente. Ao fazê-lo, o militar perde sua essência e faz desaparecer a essência da Política.

Sufoca-se a Política, distancia-se a República e militariza-se a sociedade. Ao fim, com a proximidade do segundo turno, resta-nos o drama de Elio Gaspari: “quando não se sabe o nome do ministro da Educação, mas conhece-se o de generais, coisa ruim pode acontecer”.

 

 

Imagem: Soldados do Exército Brasileiro durante o desfile militar do Dia da Independência de 2003 em Brasília, Brasil. Por: Victor Soares/Agência Brasil.

 

*Jorge Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Grupo de Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).