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O Presente é tal qual como era Antigamente: Colonização, Violência e Expansão no Território Yanomami

Carolina Antunes Condé de Lima*

 

Ao pensarmos em Relações Internacionais (RI), como o próprio nome diz, o internacional se coloca como principal ambiente de análise da disciplina. Há, contudo, uma tentativa de mudar isso – cada vez mais se voltar para dentro tem se tornado tema das RI. Parte deste movimento se preocupa em olhar para os processos de colonização, epistemicídios e genocídios dos povos tradicionais em busca de entender como essas violências, que datam do século XV, se perpetuam e são determinantes para as formações dos Estados nacionais.

A luta por território no Brasil é uma das principais características formadoras do nosso país. A história oficial nos conta que desde a chegada dos colonizadores portugueses até a expansão do território e a anexação do Acre, no início do século XX, a extensão do país foi conquistada por desbravadores e aventureiros que contribuíram para a construção da grandeza nacional. A história não oficial, entretanto, nos conta um outro lado: a expansão territorial brasileira foi construída com muito derramamento de sangue e não por homens que se aventuraram de forma heroica pelo território desconhecido, tampouco por tratados assépticos assinados entre portugueses e espanhóis ou representantes do governo brasileiro e dos Estados vizinhos.

Outra questão mal contada é a história sobre as disputas territoriais terem findado no início do século XX. Podemos dizer que as disputas de demarcação de fronteiras acabaram com a anexação do Acre em 1903 após a assinatura do Tratado de Petrópolis, mas conflitos por territórios são constantes no Brasil até hoje. Uma das regiões que segue sendo foco de disputas é o território amazônico. O norte do país foi a última região a passar pelo processo de colonização e desde o período regencial têm sido pauta de preocupação nacional. Desde pressões internacionais pelo direito à navegação do Rio Amazonas, passando pela  invasão francesa e britânica dos territórios brasileiros (1832 e 1835, respectivamente) e até o interesse das grandes potências internacionais pela região, exposta ao longo do século XX, o Norte do Brasil preocupa constantemente os elaboradores da Defesa Nacional.

No final da década de 1980 e início da década de 1990, quando se iniciaram as discussões sobre securitização e o acréscimo da questão do meio ambiente às pautas de segurança internacional, vários nomes da política mundial seguiram a fala de Henry Kissinger, ainda na década de 1970, sobre a necessidade de a Amazônia deixar de ser território brasileiro. O histórico de intervenções militares dos EUA em países da América Latina ao longo de sua história permitiu que o temor fosse visto como uma possibilidade real pelos militares brasileiros. Além disso, tal fala fez reviver o medo gerado pelo histórico plano de Mathew Fontaine Maury, tenente reformado da Marinha norte-americana, que pretendia enviar escravizados para a Amazônia para que fosse cultivado algodão – à época, criou-se o medo de o território amazônico ser transformado em um “novo Texas” (VIDIGAL, 2014). Dado o histórico, é possível dizer que a ideia de que a Amazônia é área de interesse internacional não é um delírio das Forças Armadas e isso é determinante na definição de políticas e ações realizadas pelas forças de segurança na região.

A necessidade da defesa do território a qualquer custo criou no paradigma militar a ideia de que a soberania brasileira sobre a região só poderia ser garantida por meio da colonização em oposição ao seu “vazio demográfico”. Conforme apontado por Adriana Marques (2007, p. 49), o vazio demográfico da região amazônica não se refere ao despovoamento, em seu sentido literal, mas sim ao “vazio de uma população comprometida com a preservação da soberania brasileira sobre a região”. Dessa forma, como parte da Política de Segurança Nacional adotada pelos militares durante a ditadura (1964-1985), foi estabelecida uma política de transferência populacional – “homens sem terra” que sofriam no sertão nordestino, foram incentivados a ocupar as “terras sem homem” do norte do Brasil.

A partir da tríade colonização – segurança nacional – soberania, a ocupação da região amazônica tem sido feita sem qualquer respeito pelas populações que ali sempre estiveram. Pelo contrário, graças ao incentivo do Estado, que nos últimos quatro anos retomou de forma acentuada a política de ocupação da região, estabelecida ainda no período colonial e revivida durante o período ditatorial brasileiro, o norte do país segue sendo saqueado por garimpeiros e madeireiros ilegais, enquanto as populações indígenas da região lutam para manter seu território. De acordo com o Observatório da Mineração, entre 1985 e 2020, a área minerada no Brasil cresceu mais de seis vezes, 72% dessa área minerada encontra-se na Amazônia e 495% desse crescimento se deu em territórios indígenas nos últimos dez anos. Esses dados demonstram que a luta das populações originárias pela manutenção de suas terras não é algo recente, muito pelo contrário, ela data da colonização e permanece até hoje. Nos últimos anos, no entanto, as questões sobre as disputas pela terra, na região, têm ganhado maior atenção em vista da política do atual governo e pelo avanço das discussões sobre mudanças climáticas e a urgência que se criou em salvar o que ainda resta da floresta.

Logo após a eleição do presidente Bolsonaro, em 2018, a revista Nature publicou um editorial no qual afirmava que “o novo presidente brasileiro era uma adição às ameaças globais à ciência”. Além disso, quase em tom preditivo, o editorial alertou para a questão da expansão da fronteira agrícola ao apontar que “sua eleição envia[va] os sinais errados para proprietários de terras e empresas que detêm considerável influência sobre o futuro da maior floresta tropical do planeta”. Nos últimos quatro anos, assistimos a retirada de proteções legais do território amazônico e quebras anuais de recordes de desmatamento da região. De acordo com o último levantamento do INPE, o desmatamento entre 2019-2022 foi 60% maior do que no quadriênio anterior – a área total desmatada equivale a um território maior do que o estado do Rio de Janeiro. Dessa área, mais da metade do desmatamento ocorreu em terras públicas, sendo que 83% aconteceram em área federal, segundo o IPAM.

O desmatamento nos territórios indígenas teve, em média, um aumento de 153% quando comparado com o período de medição anterior, enquanto nas unidades de conservação a área desmatada teve um aumento de 63%. Em termos federativos, os estados mais afetados são Amazonas (AM), Acre (AC) e Rondônia (RO), áreas que sofrem com a expansão agrícola. A preservação das terras indígenas é assegurada pela Constituição de 1988. O Artigo 231 reconhece “a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, além de creditar à União a obrigação de “demarcar, proteger e respeitar todos os seus bens”. Os parágrafos 1º e 2º do Artigo ainda determinam que o uso da terra é de exclusividade da população indígena, e o parágrafo 3º impõe que qualquer aproveitamento dos “recursos” das terras deve ser aprovado pelo Congresso Nacional. Por fim, o parágrafo 6º estabelece que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Apesar da Constituição, os povos indígenas e suas terras têm sido constantemente desrespeitados, invadidos e explorados. Atualmente no Brasil 728 Terras Indígenas são reconhecidas – 124 estão em identificação, são Terras em estudo por grupos de trabalho nomeados pela FUNAI; 43 são Terras identificadas, com relatório de estudo aprovado pela presidência da FUNAI; 74 são Terras declaradas pelo Ministério da Justiça; e 487 Terras homologadas e reservadas, ou seja, reconhecidas pela Presidência da República, adquiridas pela União ou doadas por terceiros. De acordo com o IBGE, essas Terras correspondem a 11,6% do território nacional e sua maior concentração está na chamada Amazônia Legal[1], território que corresponde a 58,93% do território nacional.

Dentre as 487 Terras demarcadas, está a Terra Indígena Yanomami (TIY), a maior reserva indígena do país. A sua homologação e demarcação aconteceu via Decreto Presidencial no dia 25 de maio de 1992, reconhecendo 9.664.975,48 hectares e um perímetro de 3.370km como território deste grupo. Localizada nos estados do Amazonas e Roraima, faz fronteira com a Venezuela e é lar para 26.780 indígenas, divididos em oito povos diferentes (a representação cartográfica pode ser visualizada no site Terras Indígenas no Brasil).

As primeiras informações sobre os povos Yanomamis datam de 1787; o aumento das invasões que começaram a descaracterizar seu território e sua demografia, no entanto, são da segunda metade do século XX. Desde então diversas invasões de garimpeiros, do Exército, de construtoras e mineradoras têm alterado a dinâmica do território e do seu povo. Durante a ditadura militar brasileira, várias aldeias foram dizimadas por doenças transmissíveis e desnutrição, o que levou à denúncia do Estado brasileiro por tais crimes pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). O fim da ditadura, entretanto, não significou o fim das mortes. Em 1993, os Yanomamis foram massacrados naquele que ficou conhecido como o primeiro caso de genocídio do país, o caso de Haximu, quando homens, mulheres e crianças foram executados por garimpeiros.

A primeira grande onda de invasão do garimpo na TIY foi no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Apesar da diminuição da corrida pelo ouro no território, muitos núcleos de garimpagem se mantiveram ali, de onde permaneceram perpetuando violência e problemas sanitários para a população. Desde a eleição de  Bolsonaro, houve uma piora notável na questão. Bolsonaro, que sempre se manifestou contra a implementação das demarcações de Terras Indígenas, também tem um histórico de incentivos à liberação da mineração em territórios demarcados e do seu uso para expansão da monocultura. Desde 2019, ano em que assumiu o governo, o número de garimpeiros na TIY só cresce, confirmando a hipótese apontada pela Nature após sua eleição. Em 2019, de 6 a 7 mil homens exploraram ouro ilegalmente na região demarcada.  Em 2020, o Projeto de Lei 191/20 foi apresentado no intuito de regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em terras indígenas – apenas neste ano, 2.234 hectares foram destruídos no TIY, um aumento de 30% em relação ao ano anterior. O ano de 2021 foi ainda mais devastador para os Yanomamis – foram 3.272 hectares de destruição, um aumento de 46% em um ano, a maior taxa anual desde 1992. Desde 2016, o garimpo em Terra Yanomami cresceu 3.350%.

A invasão do garimpo representa também o aumento da violência contra os povos que habitam a região.  O avanço da violência tem como consequência o aumento de mortes – apenas em 2021, 101 yanomamis foram mortos por garimpeiros. Além das mortes diretas por conflitos, houve aumento da desnutrição infantil, de casos de malária, diversos casos de intoxicação por mercúrio (consequência direta da mineração fluvial), casos de abusos sexuais contra mulheres e crianças, inclusive o estupro seguido de morte de uma menina de 12 anos em abril deste ano, e denúncias de casos de exploração sexual de crianças e mulheres yanomamis em troca de comida.

Olhar para a questão Yanomami e todas as outras lutas por terra no território brasileiro desde o período da colonização ajuda a pôr fim na retórica da formação estatal pacífica do nosso Estado. Nossa formação foi, e ainda é, realizada de forma violenta contra as populações originárias. A formação de fronteiras, assim como seu processo de independência, não foi consequência de conflitos internacionais, mas sim resultados de diversas lutas internas, o que impacta diretamente na dinâmica das nossas Forças Armadas: a sua história foi forjada a partir de um olhar para dentro, para seu próprio território e para os povos que aqui habitam; a lógica é a de combate ao inimigo interno que ameaça a soberania nacional. O retorno da doutrina militar para o governo fez com que o processo de ocupação e destruição das “terras vazias” do norte do país fosse acentuado; para os Yanomamis, além da ocupação de suas terras e do conflito sempre iminente, os últimos anos contribuíram para a construção de uma tragédia humanitária. “Em 2021, a região registrou quase 50% dos casos de malária do País e hoje existem cerca de 3 mil crianças com déficit nutricional” (Agência Câmara de Notícias, 2022).

A questão dos Territórios Indígenas pode até não ser vista como causa de conflitos internacionais ou como um tema das Relações Internacionais pelo mainstream, que ainda teima em excluir o interno de suas dinâmicas, mas sua existência é uma consequência direta do modelo de colonização e do Estado nacional que aqui foi construído. Este ator tão determinante das RI, no Brasil, teve uma construção discursiva diferente: o inimigo é interno e precisa ser tutelado a todo custo para que nossa sobrevivência, autonomia econômica e soberania sejam garantidos.

[1] A Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM delimitada em consonância ao Art. 2o da Lei Complementar n. 124, de 03.01.2007. A Amazônia Legal foi instituída com o objetivo de definir a delimitação geográfica da região política de atuação da SUDAM como finalidade promover o desenvolvimento includente e sustentável de sua área de atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na economia nacional e internacional. A região é composta por 772 municípios. (IBGE, Amazonia Legal, s.d. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-mapas/mapas-regionais/15819-amazonia-legal.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 30/10/2022).

*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora do GEDES e do Observatório de Conflitos desde 2021.

Imagem em destaque: Ouro do sangue Yanomami. Vista aérea da região do rio Mucujaí na Terra Indígena Yanomami. Por: Bruno Kelly/Amazônia Real.

Referências

MARQUES, Adriana. Amazônia: pensamento e presença militar. 2007. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

VIDIGAL, Carlos Eduardo. História das relações internacionais do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

A violência de gênero contra as populações indígenas: a outra face do desenvolvimento neoextrativista

Helena Salim de Castro*

 

Nos últimos dias, ganhou destaque nas redes sociais as denúncias de líderes indígenas Yanomami sobre o abuso e a violência sexual contra meninas e adolescentes cometidos por homens envolvidos na atividade do garimpo ilegal. O presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana, Júnior Hekurari Yanomami, denunciou em sua conta no Twitter que uma menina, de 12 anos, foi violentada até a morte e outra, de quatro anos, está desaparecida após uma invasão de garimpeiros na comunidade Aracaçá, em Roraima.

A denúncia se soma a tantos outros abusos perpetrados contra a população há anos. No começo do mês de abril, foi divulgado um relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami sobre violações sexuais cometidas por garimpeiros contra adolescentes no ano de 2020. Além da destruição ambiental, eles deixaram um rastro de proliferação de doenças sexualmente transmissíveis. Esse cenário de violência não acomete apenas o povo Yanomami, mas muitas outras populações tradicionais e comunidades rurais pelo país. 

Os conflitos por terra não são uma novidade no Brasil. No entanto, como retrata o projeto Mapa dos Conflitos, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), na última década houve uma acentuação das ocorrências de conflitos no campo, particularmente na Amazônia Legal. Eles ocorrem em um contexto em que são perpetradas atividades depredadoras da natureza como queimadas, desmatamentos, mineração, entre outros. Não só naquela área, mas por toda a América Latina, a concentração de terras, herança da colonização, e a adoção de um modelo de desenvolvimento neoextrativista estão por trás de muitos dos conflitos, que são, por sua vez, atravessados por elementos de gênero. 

Segundo Maristella Svampa (2019, o. 33), o neoextrativismo “pode ser caracterizado como um modelo de desenvolvimento baseado na superexploração de bens naturais […], assim como na expansão das fronteiras de exploração para territórios antes considerados improdutivos do ponto de vista do capital”. A diferença com o “extrativismo clássico” estaria no fato de que, naquele, os fundos arrecadados com a atividade extrativista e a exportação dos bens primários seriam “invertidos em políticas sociais redistributivas para combater a pobreza” (MUNOZ C., 2013, p. 120, tradução própria). Para a socióloga argentina, esse modelo foi aplicado na América Latina no início do século XXI. Os países da região, muitos governados por lideranças progressistas, aprofundaram e incentivaram uma política de desenvolvimento sustentada na exportação de bens primários – o que a autora chamou de “Consenso das Commodities” (SVAMPA, 2019). 

Após anos colhendo os lucros econômicos dessa política, a região estaria vivendo, atualmente, a terceira fase do modelo[1], denominada por Svampa (2019) como a da “exacerbação do neoextrativismo”. Essa fase, que teria se iniciado a partir de 2013-2015, é marcada pela queda dos preços das commodities. Para fazer frente a essa instabilidade econômica, os governos latino-americanos têm impulsionado ainda mais os projetos extrativistas e aprofundado a reprimarização das economias nacionais. Somam-se a esse cenário o declínio da hegemonia progressista e uma reconfiguração política na região, com a ascensão de governos conservadores e alinhados à direita. No Brasil, essa mudança política resultou, dentre outras perdas de direitos, no desmantelamento das instituições responsáveis pela fiscalização das áreas ambientais e na diminuição dos recursos e esforços para o enfrentamento da violência no campo

Tais processos se refletem no aumento dos conflitos socioterritoriais e no crescimento da violência estatal e paraestatal, a qual é dirigida, muitas vezes, contra os corpos das mulheres e outros sujeitos feminizados. Além de agressões físicas e lesões corporais, as mulheres, nesses contextos de conflitos no campo, são vítimas de assédio moral e violação sexual, principalmente quilombolas e dos povos originários. O histórico de colonização e exploração dos territórios, corpos e subjetividades de indígenas e afrodescendentes estrutura a violência contra as mulheres latino-americanas. Elas são duplamente subjugadas – por preconceitos de gênero e raça/etnia – e, com isso, consideradas menos humanas, inferiores diante da imagem do homem branco e ocidental, apresentado como o ser racional e superior. A violência sobre essas mulheres, principalmente a de cunho sexual, é, portanto, invisibilizada em um contexto de masculinização do território e justificada como prática estruturante de um modelo de desenvolvimento patriarcal e liberal. 

Svampa (2019) chama atenção para a histórica relação entre atividades extrativistas, masculinização dos territórios e reforço do patriarcado. Em um cenário em que há uma concentração da população masculina, atividades como a prostituição e o tráfico de mulheres são concebidas como naturais, invés de inseridas em um contexto de problemas sociais e econômicos. Ademais, há reforço de um ambiente de desigualdade de gênero, marcado pela não valorização do trabalho doméstico, assimetrias salariais e o fortalecimento do que seria considerado a atribuição das mulheres, vistas como cuidadoras do lar (SVAMPA, 2019). 

No intuito de expandir as fronteiras do extrativismo, a violação sobre os corpos das mulheres também adquire uma função instrumental. Além das mortes diretas e a transmissão de doenças, os abusos e as violações podem gerar rupturas no tecido comunitário, com o enfraquecimento do papel ancestral das mulheres, e o abandono das terras. A comunidade Aracaçá, por exemplo, foi queimada após as denúncias do estupro e da morte da menina de 12 anos. De acordo com lideranças indígenas, é uma tradição dessa população abandonar o território após a morte de alguém. No entanto, até o momento não se tem confirmação sobre as causas do incêndio e para onde foram e se estão seguras as mais de 20 pessoas que viviam na comunidade. 

O terror propagado pela presença e as ações dos garimpeiros nesses territórios gera o deslocamento forçado dos povos. O abandono das terras abre espaço, por sua vez, para a exploração realizada pelo capital nacional e transnacional em nome do ideal de desenvolvimento moderno-liberal – no qual o desenvolvimento é concebido como um processo linear em busca do crescimento econômico. A violência sobre os corpos das mulheres adquire, portanto, amplos significados no contexto dos conflitos socioterritoriais. Não é uma mera consequência de um cenário de disputas. Sob uma lógica patriarcal e colonial a respeito dos corpos e das subjetividades de alguns atores, as violações se constituem como práticas estruturantes do modelo de desenvolvimento neoextrativista e de uma ordem social patriarcal. Como resume Hernández Castillo (2017, p. 36, tradução própria), a violação dos territórios dos povos indígenas e campesinos produz “deslocamentos que deixam suas terras ‘livres’ para o capital. Nessa investida de violência e desapropriação, os corpos das mulheres têm se convertido também em territórios para ser invadidos e violados”. 

* Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES-UNESP); e do Núcleo de Estudos Transnacional de Segurança (NETS – PUC-SP).

Imagem: Garimpo ilegal no Pará. Por: Ibama.

[1] A primeira fase compreende o período entre 2003 e 2008-2010, denominada como “fase da positividade”. A segunda seria a da “multiplicação dos megraprojetos”, compreendendo o início da segunda década dos anos 2000. Para maior aprofundamento, consultar Svampa (2019).

 

Referências bibliográficas:

HERNÁNDEZ CASTILLO, R. A. Confrontando la Utopía Desarrollista: El Buen Vivir y la Comunalidad en las luchas de las Mujeres Indígenas. In: VAREA, Soledad; ZARAGOCIN, Sofía (Comp.). Feminismo y Buen Vivir: Utopías Decoloniales. PYDLOS Ediciones, Cuenca: Ecuador. 2017, p. 26 – 43. ISBN: 978-9978-14-355-1

MUNOZ C., María José. El conflicto en torno al Territorio Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure: Un conflicto multidimensional. Cultura representaciones soc, v. 7, n. 14, p. 67-141, 2013. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2007-81102013000100004&lng=es&nrm=iso. 

SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Tradução de Lígia Azevedo. São Paulo: Elefante, 2019. 192 p.  ISBN: 978-85-93115-45-5