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Um conto de dois mundos: a guerra entre Rússia e Ucrânia e a percepção da mídia sobre as crianças

Maria Eduarda Guerra*

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, no final de fevereiro, são veiculadas diariamente notícias acerca dos impactos da guerra sobre as crianças[1] do país. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) afirma que, em um mês de conflito, cerca de 4,3 milhões de crianças – ou seja, mais da metade da população infantil da Ucrânia, estimada em 7,5 milhões de crianças – foram forçadas a abandonar suas casas, sendo que, destas, 1,8 milhão atualmente são refugiadas em países vizinhos, como Polônia e Romênia, e 2,5 milhões se deslocaram internamente, caracterizando um dos maiores e mais rápidos deslocamentos infantis desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)[2]. Todavia, a mídia parece desconhecer – ou negligenciar – a situação de outras crianças: aquelas que continuam em território ucraniano, não como deslocadas internas, mas como soldados à disposição, especialmente, do batalhão de Azov.

Fundado em 2014 como um grupo paramilitar de extrema-direita que visava defender as regiões de Donetsk e Luhansk após os protestos conhecidos como EuroMaidan e a anexação da Crimeia pela Rússia naquele mesmo ano, o batalhão de Azov é conhecido pelos uniformes pretos, pelas tatuagens de cunho neonazista, por ostentarem suásticas em seus capacetes durante as batalhas, e também pelas acusações de violência contra a população LGBTQIA+ e contra a população Roma (cigana). O batalhão foi absorvido como um regimento do exército ucraniano após as vitórias militares nas cidades de Mariupol – hoje, sob extremo ataque russo – e Marinka, tendo saído das linhas de frente em 2015 a fim de se tornar um partido político, o qual acabou por não obter grande expressão nas urnas. Estima-se que o batalhão de Azov recrute crianças desde 2015 através de acampamentos de verão, nos quais em torno de 50 crianças, com idades entre 8 e 16 anos, treinam exaustivamente em florestas nos arredores de Kyiv para se tornarem “patriotas de verdade”, dispostos a se sacrificarem em prol de seu país.

É neste contexto que crianças são treinadas para montar, manejar e utilizar armas, sob o pretexto de estarem não apenas defendendo suas famílias e seu país, mas também  se tornando mais fortes e disciplinadas. Até agosto de 2017, pelo menos 850 crianças haviam passado pelo treinamento com o batalhão. Em fevereiro deste ano, crianças a partir dos 4 anos de idade participavam de intensivos treinamentos militares que antecipavam uma – até então – possível invasão russa à Ucrânia. Dentre as razões para tal, tanto as crianças quanto as mães – em sua grande maioria – demonstravam não somente um desejo de defender seu país do invasor, mas também vingar pais, avôs, tios e irmãos que morreram durante os conflitos de 2014.

Os separatistas pró-Rússia nas regiões de Luhansk e Donetsk também contam com as crianças. Apesar de, na época, o Unicef não ter  encontrado provas de que as crianças estavam lutando no leste da Ucrânia, relatos em 2015 apontavam que crianças auxiliavam os separatistas na retaguarda, chegando, inclusive, a treinar os voluntários mais novos.  Contudo, mesmo com toda esta mobilização militar de menores de 18 anos[3] – tanto pelo lado pró-Rússia quanto pelo lado pró-Ucrânia- , falta reflexão, análise e cobertura de grande parte da mídia sobre essa situação.

Em razão do receio dos países da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de entrar em guerra direta contra a Rússia, existe uma percepção entre parte dos ucranianos de que eles só podem contar consigo mesmos. Nessa conjuntura,  declarações de crianças e de parentes que integram o batalhão de Azov mostram que existe uma preocupação em saber se proteger por conta própria, sem depender de ajuda externa. Muitos integrantes do batalhão acreditam que sua atuação junto ao grupo parece algo momentâneo, dedicado à defesa da Ucrânia frente à Rússia somente enquanto o conflito durar, e que, no futuro, outras possibilidades surgirão em seus caminhos – embora alguns pais não descartem a possibilidade de seus filhos prosseguirem na carreira militar.

O que as famílias ignoram ou minimizam  são os impactos que este início precoce na vida militar pode trazer para as crianças. Além de prejudicar seu acesso a serviços básicos, como educação e saúde, muitas acabam adquirindo deficiências físicas permanentes após serem feridas em combate. O fato de serem expostas cumulativamente a sequestros, separação das famílias, assassinatos, torturas, mutilações e estupros traz também impactos psicológicos severos, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que cria uma “rede de medo” composta pelas memórias interconectadas relacionadas aos traumas, na qual mesmo os menores estímulos podem desencadear flashbacks, fazendo do trauma um problema crônico de saúde.

No campo  militar, a presença das crianças – mesmo quando é considerada uma presença “voluntária”, como no caso das crianças ucranianas – é, na maioria das vezes, vista como negativa por parte da mídia e dos organismos internacionais, principalmente aqueles dedicados à proteção dos direitos humanos.  Sob a perspectiva desses atores, o contato entre o mundo infantil e o mundo bélico não somente  representa uma transgressão à proteção das crianças, mas também indica que as crianças estariam sendo intensamente manipuladas a participarem da guerra ou não teriam nenhuma alternativa melhor a não ser tomar parte nas hostilidades.

Entretanto, existe uma discrepância entre a percepção midiática das crianças associadas a grupos ou forças armadas no Norte Global e no Sul Global. A percepção que predomina é a de que, no Norte, a militarização das crianças pode ser um dos caminhos para um futuro promissor, baseado na disciplina e no patriotismo; enquanto que, no Sul, o recrutamento de crianças representa mais o fracasso das comunidades e Estados em promover oportunidades de uma infância saudável, colocando as crianças numa posição de vítimas. Evidências  disso são as campanhas promovidas por ONGs internacionais de proteção à infância e pelos Estados. Em 2009, a ONG Save The Children lançou a exposição “Make a Thing of the Past” (“Tornar algo passado”, em tradução literal), na qual, dentre outras fotografias, uma apresenta um menino segurando uma arma dentro de uma redoma de vidro, como se a criança em questão fosse um objeto em um museu, com a legenda Child Soldier – Democratic Republic of Congo, 2009” (“Criança soldado – República Democrática do Congo, 2009), e, novamente, repetindo o lema da campanha: “Devemos tornar isso algo do passado”.  Outra campanha,  desta vez, promovida pelo Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Crianças e Conflitos Armados, “Children, Not Soldiers” (“Crianças, Não Soldados”), abrangeu, no momento de seu lançamento em 2014, países como Afeganistão, Chade, República Democrática do Congo, Mianmar, Somália, Sudão do Sul e Iêmen. Em outras palavras: até mesmo os organismos internacionais reforçam a percepção de que o recrutamento infantil é um problema do Sul Global.

Assim, a militarização das crianças no Norte parece representar a passagem da fase infantil  para a fase adulta, adquirindo um aspecto de normalidade. Na Austrália, por exemplo, jovens que estão saindo do ensino médio são incentivados a passar um ano em qualquer uma das Forças de Defesa (Marinha, Exército ou Aeronáutica) do país, sendo remunerados para tal. Os britânicos menores de 18 anos que lutaram e morreram em combate durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram e continuam sendo lembrados como “jovens corajosos” que atenderam ao seu “chamado histórico”. No Sul, entretanto, esta militarização parece representar a perda da inocência infantil, algo que vitimiza ainda mais estas crianças, sendo, portanto, um mal a ser combatido. No caso ucraniano, embora o país faça parte do continente europeu, sua localização ao Leste –  região menos privilegiada e mais negligenciada, possivelmente pelo passado que remete à União Soviética e ao Pacto de Varsóvia – também contribui para que as crianças ucranianas envolvidas com grupos armados passem quase despercebidas pelos meios de comunicação internacionais.

O envolvimento de crianças em atividades e treinamentos militares, embora seja uma circunstância que entre em conflito com o padrão ideal de proteção da infância, é uma realidade recorrente no cenário internacional. Justamente por isso, é necessário tornar público, difundir e analisar o que ocorre com as crianças em uma situação extrema e indefinida como o conflito na Ucrânia. Deste modo, a mídia deveria, por mais difícil que possa ser, prestar mais atenção a esta questão. Assim, poderemos ter mais elementos para entender como as crianças agem ou são levadas a agir em contextos de violência que fogem de seu controle.

[1] A definição de “criança” utilizada neste texto é a mesma presente na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, de 1989, e em diversos outros documentos internacionais – como, por exemplo, os Princípios de Paris, ou Princípios e Diretrizes sobre Crianças Associadas às Forças Armadas ou Grupos Armados, de 2007 –  e que engloba “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

[2] Dados de 24 de março de 2022.

[3] A Convenção sobre os Direitos da Criança e seu Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados de 2002, assim como a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil, desaconselham o recrutamento de pessoas menores de 18 anos pelos grupos armados e pelas forças armadas.

* Maria Eduarda Guerra é Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUC-SP) e do Grupo de Estudos sobre Infância e Relações Internacionais (GeiRI Brasil). 

 

Imagem: Material para hospital na Ucrânia. Por Unicef/Flickr.

A escalada da violência contra crianças no Afeganistão

Leonardo Taquece*

Texto publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil

 

O mundo inteiro ficou em alerta quando o Talibã voltou à capital do Afeganistão, Cabul, no dia 15 de agosto. Contudo, as movimentações do grupo estavam acontecendo desde maio, quando reuniram 85 mil combatentes, de acordo com as estimativas da Otan — um número significativamente maior do que 20 anos atrás.

No mês de julho, o grupo já havia tomado metade do território nacional e, de acordo com relatório publicado em conjunto pelo escritório de direitos humanos da ONU (OHCHR) e a Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (Unama), mais mulheres e crianças foram mortas e feridas na primeira metade de 2021 do que nos primeiros seis meses de qualquer ano desde que os registros começaram em 2009.

O Unicef soltou um comunicado de imprensa alertando para a rápida escalada de violações graves contra crianças, apontando que pelo menos 27 haviam sido mortas enquanto 136 ficaram feridas em apenas três dias. Esses números foram registrados em três províncias: Kandahar, Khost e Paktia; e o chefe de operações de campo, Mustapha Ben Messaoud, observou que é notável que há um “aumento muito significativo” das mortes infantis no Afeganistão nessas últimas quatro semanas.

Hoje, a estimativa do Unicef é de que uma em cada duas crianças menores de cinco anos no país sofre de desnutrição aguda grave — e com a falta de acesso a água potável e higiene nos acampamentos humanitários, o risco de cólera e outras doenças segue aumentando de forma exponencial. Além disso, a mais recente onda de infecção de Covid-19 já estava “matando 100 pessoas por dia […] e esses são apenas os casos que são contados”, o que aumentou ainda mais os riscos à vida dessas crianças.

Tendo em vista a situação humanitária e ecoando os temores internacionais sobre o impacto dos combates recentes sobre os civis, o porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Tomson Phiri, afirma que o conflito “acelerou muito mais rápido do que todos prevíamos e a situação tem todas as marcas de uma catástrofe humanitária”. É difícil enxergar quais raízes estão diretamente ligadas aos movimentos recentes de expansão do Talibã e quais violações já estavam estabelecidas nos últimos anos, mas é inegável o aumento da violência nos últimos meses trouxe consequências devastadoras.

Crianças foram deliberadamente alvejadas em pelo menos uma ocasião: um ataque no dia 8 de maio, em frente à escola Sayed ul-Shuhuda, na cidade de Cabul com mais de 300 vítimas civis, sendo a maioria delas meninas com menos de 18 anos. Totalizando 85 mortes, nenhum grupo assumiu a responsabilidade do ataque, mas tanto a Unama quanto a missão da ONU registraram o ressurgimento de ataques, assassinatos, maus-tratos, perseguição e discriminação nas comunidades afetadas pelos combates da expansão do Talibã desde sua reorganização.

À medida que os combates se intensificam, a Unama demonstrou estar particularmente preocupada com o aumento agudo no número de vítimas civis após 1º de maio, com quase o mesmo número de mortes dos quatro meses anteriores sendo registrado apenas no período de maio a junho. De acordo com o relatório, mulheres e crianças representaram quase metade de todas vítimas civis: 32% eram crianças (468 mortos e 1.214 feridos) enquanto 14% foram mulheres (219 mortas e 508 feridas). A trajetória assustadora desses números aponta para o impacto devastador do conflito sobre os civis.

Dessa forma, a escalada de violência no Afeganistão e suas consequências para as crianças ligam o alerta para um possível número sem precedentes de mortes este ano se a situação não se estabilizar. Por isso, é imprescindível acompanhar a resposta da comunidade internacional em relação à crise de deslocamento forçado que irá se intensificar nos próximos dias, da qual 80% dos quase 250.000 afegãos forçados a fugir desde o final de maio são mulheres e crianças. Com inúmeras vidas em risco, falar sobre a abertura de fronteiras é essencial.

Imagem: Crianças afegãs. Por: isafmedia, Kabul, Afghanistan/ Wikimedia Commons.

Leonardo Rodrigues Taquece é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Estudos sobre a Infância nas Relações Internacionais (GeiRI), e do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH).