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Um conto de dois mundos: a guerra entre Rússia e Ucrânia e a percepção da mídia sobre as crianças

Maria Eduarda Guerra*

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, no final de fevereiro, são veiculadas diariamente notícias acerca dos impactos da guerra sobre as crianças[1] do país. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) afirma que, em um mês de conflito, cerca de 4,3 milhões de crianças – ou seja, mais da metade da população infantil da Ucrânia, estimada em 7,5 milhões de crianças – foram forçadas a abandonar suas casas, sendo que, destas, 1,8 milhão atualmente são refugiadas em países vizinhos, como Polônia e Romênia, e 2,5 milhões se deslocaram internamente, caracterizando um dos maiores e mais rápidos deslocamentos infantis desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)[2]. Todavia, a mídia parece desconhecer – ou negligenciar – a situação de outras crianças: aquelas que continuam em território ucraniano, não como deslocadas internas, mas como soldados à disposição, especialmente, do batalhão de Azov.

Fundado em 2014 como um grupo paramilitar de extrema-direita que visava defender as regiões de Donetsk e Luhansk após os protestos conhecidos como EuroMaidan e a anexação da Crimeia pela Rússia naquele mesmo ano, o batalhão de Azov é conhecido pelos uniformes pretos, pelas tatuagens de cunho neonazista, por ostentarem suásticas em seus capacetes durante as batalhas, e também pelas acusações de violência contra a população LGBTQIA+ e contra a população Roma (cigana). O batalhão foi absorvido como um regimento do exército ucraniano após as vitórias militares nas cidades de Mariupol – hoje, sob extremo ataque russo – e Marinka, tendo saído das linhas de frente em 2015 a fim de se tornar um partido político, o qual acabou por não obter grande expressão nas urnas. Estima-se que o batalhão de Azov recrute crianças desde 2015 através de acampamentos de verão, nos quais em torno de 50 crianças, com idades entre 8 e 16 anos, treinam exaustivamente em florestas nos arredores de Kyiv para se tornarem “patriotas de verdade”, dispostos a se sacrificarem em prol de seu país.

É neste contexto que crianças são treinadas para montar, manejar e utilizar armas, sob o pretexto de estarem não apenas defendendo suas famílias e seu país, mas também  se tornando mais fortes e disciplinadas. Até agosto de 2017, pelo menos 850 crianças haviam passado pelo treinamento com o batalhão. Em fevereiro deste ano, crianças a partir dos 4 anos de idade participavam de intensivos treinamentos militares que antecipavam uma – até então – possível invasão russa à Ucrânia. Dentre as razões para tal, tanto as crianças quanto as mães – em sua grande maioria – demonstravam não somente um desejo de defender seu país do invasor, mas também vingar pais, avôs, tios e irmãos que morreram durante os conflitos de 2014.

Os separatistas pró-Rússia nas regiões de Luhansk e Donetsk também contam com as crianças. Apesar de, na época, o Unicef não ter  encontrado provas de que as crianças estavam lutando no leste da Ucrânia, relatos em 2015 apontavam que crianças auxiliavam os separatistas na retaguarda, chegando, inclusive, a treinar os voluntários mais novos.  Contudo, mesmo com toda esta mobilização militar de menores de 18 anos[3] – tanto pelo lado pró-Rússia quanto pelo lado pró-Ucrânia- , falta reflexão, análise e cobertura de grande parte da mídia sobre essa situação.

Em razão do receio dos países da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de entrar em guerra direta contra a Rússia, existe uma percepção entre parte dos ucranianos de que eles só podem contar consigo mesmos. Nessa conjuntura,  declarações de crianças e de parentes que integram o batalhão de Azov mostram que existe uma preocupação em saber se proteger por conta própria, sem depender de ajuda externa. Muitos integrantes do batalhão acreditam que sua atuação junto ao grupo parece algo momentâneo, dedicado à defesa da Ucrânia frente à Rússia somente enquanto o conflito durar, e que, no futuro, outras possibilidades surgirão em seus caminhos – embora alguns pais não descartem a possibilidade de seus filhos prosseguirem na carreira militar.

O que as famílias ignoram ou minimizam  são os impactos que este início precoce na vida militar pode trazer para as crianças. Além de prejudicar seu acesso a serviços básicos, como educação e saúde, muitas acabam adquirindo deficiências físicas permanentes após serem feridas em combate. O fato de serem expostas cumulativamente a sequestros, separação das famílias, assassinatos, torturas, mutilações e estupros traz também impactos psicológicos severos, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que cria uma “rede de medo” composta pelas memórias interconectadas relacionadas aos traumas, na qual mesmo os menores estímulos podem desencadear flashbacks, fazendo do trauma um problema crônico de saúde.

No campo  militar, a presença das crianças – mesmo quando é considerada uma presença “voluntária”, como no caso das crianças ucranianas – é, na maioria das vezes, vista como negativa por parte da mídia e dos organismos internacionais, principalmente aqueles dedicados à proteção dos direitos humanos.  Sob a perspectiva desses atores, o contato entre o mundo infantil e o mundo bélico não somente  representa uma transgressão à proteção das crianças, mas também indica que as crianças estariam sendo intensamente manipuladas a participarem da guerra ou não teriam nenhuma alternativa melhor a não ser tomar parte nas hostilidades.

Entretanto, existe uma discrepância entre a percepção midiática das crianças associadas a grupos ou forças armadas no Norte Global e no Sul Global. A percepção que predomina é a de que, no Norte, a militarização das crianças pode ser um dos caminhos para um futuro promissor, baseado na disciplina e no patriotismo; enquanto que, no Sul, o recrutamento de crianças representa mais o fracasso das comunidades e Estados em promover oportunidades de uma infância saudável, colocando as crianças numa posição de vítimas. Evidências  disso são as campanhas promovidas por ONGs internacionais de proteção à infância e pelos Estados. Em 2009, a ONG Save The Children lançou a exposição “Make a Thing of the Past” (“Tornar algo passado”, em tradução literal), na qual, dentre outras fotografias, uma apresenta um menino segurando uma arma dentro de uma redoma de vidro, como se a criança em questão fosse um objeto em um museu, com a legenda Child Soldier – Democratic Republic of Congo, 2009” (“Criança soldado – República Democrática do Congo, 2009), e, novamente, repetindo o lema da campanha: “Devemos tornar isso algo do passado”.  Outra campanha,  desta vez, promovida pelo Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Crianças e Conflitos Armados, “Children, Not Soldiers” (“Crianças, Não Soldados”), abrangeu, no momento de seu lançamento em 2014, países como Afeganistão, Chade, República Democrática do Congo, Mianmar, Somália, Sudão do Sul e Iêmen. Em outras palavras: até mesmo os organismos internacionais reforçam a percepção de que o recrutamento infantil é um problema do Sul Global.

Assim, a militarização das crianças no Norte parece representar a passagem da fase infantil  para a fase adulta, adquirindo um aspecto de normalidade. Na Austrália, por exemplo, jovens que estão saindo do ensino médio são incentivados a passar um ano em qualquer uma das Forças de Defesa (Marinha, Exército ou Aeronáutica) do país, sendo remunerados para tal. Os britânicos menores de 18 anos que lutaram e morreram em combate durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram e continuam sendo lembrados como “jovens corajosos” que atenderam ao seu “chamado histórico”. No Sul, entretanto, esta militarização parece representar a perda da inocência infantil, algo que vitimiza ainda mais estas crianças, sendo, portanto, um mal a ser combatido. No caso ucraniano, embora o país faça parte do continente europeu, sua localização ao Leste –  região menos privilegiada e mais negligenciada, possivelmente pelo passado que remete à União Soviética e ao Pacto de Varsóvia – também contribui para que as crianças ucranianas envolvidas com grupos armados passem quase despercebidas pelos meios de comunicação internacionais.

O envolvimento de crianças em atividades e treinamentos militares, embora seja uma circunstância que entre em conflito com o padrão ideal de proteção da infância, é uma realidade recorrente no cenário internacional. Justamente por isso, é necessário tornar público, difundir e analisar o que ocorre com as crianças em uma situação extrema e indefinida como o conflito na Ucrânia. Deste modo, a mídia deveria, por mais difícil que possa ser, prestar mais atenção a esta questão. Assim, poderemos ter mais elementos para entender como as crianças agem ou são levadas a agir em contextos de violência que fogem de seu controle.

[1] A definição de “criança” utilizada neste texto é a mesma presente na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, de 1989, e em diversos outros documentos internacionais – como, por exemplo, os Princípios de Paris, ou Princípios e Diretrizes sobre Crianças Associadas às Forças Armadas ou Grupos Armados, de 2007 –  e que engloba “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

[2] Dados de 24 de março de 2022.

[3] A Convenção sobre os Direitos da Criança e seu Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados de 2002, assim como a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil, desaconselham o recrutamento de pessoas menores de 18 anos pelos grupos armados e pelas forças armadas.

* Maria Eduarda Guerra é Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUC-SP) e do Grupo de Estudos sobre Infância e Relações Internacionais (GeiRI Brasil). 

 

Imagem: Material para hospital na Ucrânia. Por Unicef/Flickr.

A condenação de Bolsonaro na ONU pela exposição de crianças

Giovanna Ayres Arantes de Paiva*
Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

 

No dia 5 de outubro, o Comitê dos Direitos da Criança – órgão das Nações Unidas que monitora o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança –condenou o uso de crianças fardadas em eventos políticos promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Em comunicado enviado à imprensa brasileira, o Comitê alertou que a exposição de crianças a essas situações viola os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e deve ser criminalizada. O posicionamento da ONU ocorreu depois que oitenta entidades de direitos humanos denunciaram Bolsonaro ao Comitê, após imagens do presidente segurando uma criança fardada circularem na mídia. As fotos foram registradas em evento da Polícia Militar, no dia 30 de setembro, em Belo Horizonte. Na ocasião, Bolsonaro colocou ao seu lado uma criança de 6 anos que usava uma farda policial e portava uma arma de brinquedo. O presidente chegou a erguer a criança acima de seus ombros, posar para fotos e parabenizar os pais do menino pelo exemplo de patriotismo e civilidade.

Dois fatores centrais nesse episódio chamam atenção: o uso político de crianças no governo Bolsonaro e os argumentos que a ONU utilizou ao formular sua resposta.

No que concerne ao primeiro fator, pode-se afirmar que o presidente vem, repetidamente, associando crianças a atividades militares e policiais como parte da promoção de sua agenda política. Em abril deste ano, Bolsonaro realizou atitude semelhante ao pegar no colo uma criança fardada e com um fuzil de brinquedo, durante evento em Manaus. Em outubro de 2019, em cerimônia da Polícia Militar em São Paulo, o presidente exaltou, posou para fotos e mostrou aprovação diante de uma criança fardada, segurando uma réplica de uma arma. Em 2018, durante campanha presidencial, Bolsonaro já demonstrava apologia à associação entre crianças, armas e violência: ao pegar uma criança no colo, o presidente a fez imitar uma arma com as mãos. Também em 2018, o político criticou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirmando que este deveria ser “jogado na latrina”, pois incentivaria a “vagabundagem infantil”, em referência aos direitos que o documento garante como liberdade, educação, lazer, respeito e dignidade.

Em todas essas situações, as crianças são colocadas como símbolos da propaganda de uma agenda política voltada para o discurso de ódio e de incentivo à violência. As crianças também simbolizam as futuras gerações e o futuro de um país. De certa forma, a imagem da criança nesses contextos representa a imagem de um futuro violento e militarizado. Esses episódios recorrentes no governo Bolsonaro expõem as crianças a situações constrangedoras em ambientes adultos e relacionados à glorificação da vida militar e policial. Durante o acontecimento do dia 30 de setembro, por exemplo, Bolsonaro procurou naturalizar a associação entre crianças e armamentos, declarando na ocasião: “Quando eu era moleque, eu brincava com isso: arma, flecha, estilingue. Assim foi criada a minha geração e crescemos homens, fortes, sadios e trabalhadores”. Nessa passagem fica explícita a conexão feita entre um padrão de comportamento infantil voltado para a disciplina, masculinidade e violência e a produção de uma geração de homens que se encaixa no ideal de patriotismo deste governo.

Com relação ao segundo fator – a resposta da ONU – é interessante notar que o Comitê repudiou “o uso de crianças em quaisquer atividades relacionadas a conflitos e a produção e disseminação de imagens de crianças envolvidas em hostilidades reais ou simuladas”, visto que tais ações contrariam tratados internacionais que resguardam os direitos das crianças, das quais o Brasil é signatário. Mais especificamente, as Nações Unidas fazem referência ao “Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados”, de 2002. Tal documento, assinado e ratificado pelo Brasil, conclama os Estados a tomarem todas as medidas possíveis para que menores de 18 anos não participem de hostilidades (art. 1) e para que não sejam recrutados compulsoriamente nas forças armadas (art. 2).

O documento foca essencialmente em contextos de hostilidades e conflitos armados e não faz menção explícita à utilização de imagens de crianças fardadas ou portando armas. Ao ressaltar que a divulgação dessas imagens pode ser um incentivo à participação de crianças em hostilidades, as Nações Unidas fazem uma leitura mais ampla do Protocolo e mostram uma abordagem mais aprofundada sobre o tema. Isto é, a ONU passa a mensagem de que a violência contra a criança pode se expressar de diferentes formas e a preocupação internacional não se refere apenas a crianças utilizadas em conflitos armados, mas a atitudes que fazem apologia a esse treinamento e recrutamento de crianças e que, consequentemente, vão contra todo o esforço internacional de proteção das crianças.

Logo, o problema extrapola a questão do envolvimento direto de crianças em atividades bélicas (na linha de batalha), portando armas reais, que configuram a típica imagem da chamada criança-soldado – geralmente associadas a Estados mais pobres que passam por conflitos armados violentos, principalmente no continente africano e em alguns países do Oriente Médio. Isso significa que o incentivo ao envolvimento de crianças em atividades bélicas não é algo distante da nossa realidade. Pelo contrário, está presente em ações cotidianas que naturalizam e exaltam a participação das crianças em ambientes que glorificam um ideal de força armada que garantiria uma suposta segurança. Está presente também na ideia de que a inserção de crianças em contextos violentos seria necessária para torná-las mais fortes e preparadas para a vida.

O posicionamento da ONU sobre o caso brasileiro abre precedentes para que a organização se manifeste de forma mais explícita em outras situações que envolvam discursos voltados para a violência contra as crianças, naturalização de crianças com armas e disseminação de imagens de crianças em atividades bélicas que ocorram em quaisquer países, sejam nações em desenvolvimento ou desenvolvidas.

As Nações Unidas ainda acrescentaram que “aqueles que envolvem crianças nas hostilidades devem ser investigados, processados e sancionados”. No entanto, não cabe ao Comitê aplicar punições. O que o órgão faz é avaliar o cumprimento dos tratados de proteção à infância assinados pelos países. O membro do Comitê dos Direitos da Criança, Luis Ernesto Pedernera, ressaltou que na última avaliação, em 2015, o Brasil mostrava avanços na adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, a exemplo de sua política pelo desarmamento. Nessa mesma avaliação, também havia sido recomendado que o país criasse um órgão independente para acompanhar a aplicação da Convenção. No entanto, tal iniciativa não avançou.

Na conjuntura atual, a postura da ONU é relevante e chama atenção para a necessidade de um entendimento mais profundo acerca dos documentos internacionais relativos à infância. Ainda que uma agenda de proteção da criança já esteja estabelecida em âmbito internacional, é necessário acompanhar sua adoção nos diferentes países signatários e até mesmo sugerir revisões, com base nos desafios contemporâneos. A menção que o Comitê fez ao uso de imagens de crianças fardadas e envolvimento de crianças em hostilidades simuladas são exemplos de desafios atuais que precisam ser melhor especificados e contemplados pelas Nações Unidas e Estados. Paralelamente, houve uma relativa demora para a ONU assumir um posicionamento mais rígido, haja vista que o governo Bolsonaro já vinha mostrando desprezo pelos direitos das crianças desde sua campanha presidencial e a organização só se posicionou após pressão da sociedade civil brasileira.

Pensando no próximo ano, é provável que imagens de crianças fardadas e com armas sejam usadas no contexto de campanha presidencial do atual governo para se comunicar com uma parte do eleitorado. Não somente imagens, mas falas, ações e discursos de ódio que expõem crianças a situações degradantes e desafiam a integridade infantil também podem ser ferramentas utilizadas com o objetivo de se manter no poder. É preciso atentar para que essas violações – que já se tornaram cotidianas – não sejam ainda mais naturalizadas, pois desafiam décadas de trabalho para consolidar a criança como cidadã e sujeito de direitos.

 

* Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais (PPGRI “San Tiago Dantas” – Unesp/Unicamp/Puc-Sp) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). É autora do livro Crianças e (in)segurança: a construção de narrativas sobre crianças-soldado na agenda internacional.

Imagem: Imagem comemorativa dos 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança. UN Photo/Mark Garten.

 

República Democrática do Congo em foco

Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama: Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: laurindoprt@gmail.com.

Jéssica Tauane dos Santos: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: jess.tne@gmail.com.

 

Um dos conflitos civis que mais assola o continente africano é o da República Democrática do Congo (RDC). Os primeiros resquícios de instabilidade política datam da sua independência da Bélgica, em 1960. Assim sendo, o país mergulhou em confrontos internos quando a província de Katanga declarou secessão do governo central com o apoio de belgas (MUNANGA, 2009). Nesse contexto, o país solicitou ajuda à Organização das Nações Unidas (ONU) que respondeu com a missão da Operações das Nações Unidas no Congo (ONUC) com objetivo de expulsar os belgas e manter a lei, a ordem e a integridade territorial. Dessa forma, o país começou a enfrentar uma série de instabilidades internas, políticas e econômicas. A separação de Katanga abriu caminho para demais províncias agirem da mesma maneira e, com isso, emergiu uma desordem política total, tornando o apoio da ONU cada vez mais relevante.

Nesse ínterim, em 1965 um golpe militar derrubou o primeiro presidente da RDC, Joseph Kasavubu, e levou ao poder Joseph Mobutu Sese Seko, que aproveitou o contexto conturbado do país para impor medida de reordenamento e ordem. Com apoio de potências como Estados Unidos (EUA), ele instaurou um regime autoritário de partido único chamado Movimento Popular da Revolução (MPR) e alterou o nome do país para Zaire a partir de 1971. Seu regime vigorou até o início dos anos 1990 e foi marcado pelo benefício de uma tribo em detrimento das outras (tribalismo), crises econômicas, e violações de Direitos Humanos. Com o fim da Guerra Fria e a vitória do modelo capitalista, os governos autoritários começaram a perder força e, assim, a decadência de Mobutu se consolidou devido ao rompimento de apoios externos.

Com isso, definhava-se a ditadura de mais de 30 anos. Fracassado e sem apoio, Mobutu sofreu o golpe do grupo Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL), liderada por Laurent Désiré Kabila, que teve suporte de Angola, Ruanda, Uganda e Burundi. O golpe levou à derrubada de Mobutu em 1997 e Kabila se autoproclamou presidente da república, mudando o nome do país para a República Democrática do Congo (MUNANGA, 2009). A insatisfação com o governo de Mobutu, sobretudo pelo tribalismo, adicionado à xenofobia diante da imigração de ruandeses no leste do país, fugidos do genocídio de 1994, foram fatores preponderantes para a escalada dos conflitos. Por outro lado, originou a formação de grupos rebeldes a favor e contra o Estado, resultando na primeira Guerra do Congo durante o governo de Mobutu e levou a queda do seu regime e causou cerca de 200 mil mortos (1996 -1997) (DA SILVA, 2011).

Logo após o fim dos embates, surgiu um movimento de aliança entre Ruanda e Uganda contra o regime de Laurent Kabila, pois estes se sentiram traídos pela decisão de Kabila de fazê-los retirar suas tropas do país. A união desses países originou o movimento Restabelecimento Congolês para Democracia (RCD) e estendeu seu apoio a grupos menores locais que estavam insatisfeitos com o governo, dentre eles: o Movimento 23 de março (M23), Mai-Mai, Forças Democráticas de Libertação do Ruanda (FDRL), Movimento Revolucionário Congolês (MRC), Movimento de Libertação Congolês (MLC), entre outros. Esses grupos atuaram em grande parte nas regiões do Kivu do Sul, Ituri, Bukavu, Kivu do Norte (Beni e Goma), Katanga, Kasai e Maniema, principalmente em regiões detentoras de grandes quantidades de recursos minerais. Dessa forma, estava instaurada a instabilidade política e de segurança no país.

A escala desses conflitos levou à segunda guerra do Congo que começou em 1998, também conhecida por guerra mundial africana, que tinha como objetivo derrubar o regime de Laurent Kabila. A primeira tentativa de terminar com o conflito foi a assinatura do acordo de Lusaka em 1999, na Zâmbia, no qual as partes se comprometiam com o cessar-fogo. Na sequência, foi estabelecida a Missão da Organização das Nações no Congo (MONUC) cujo objetivo era de prestar assistência às negociações entre governo e rebeldes e observar o cumprimento do cessar-fogo (CRAVINO, 2007). O assassinato de Laurent Kabila em 2001 não colocou fim aos conflitos civis, mas alimentou o clima de instabilidade no país devido à subida automática do Joseph Kabila, filho de Laurent, ao poder. Estima-se que a segunda guerra do Congo causou cerca de 3,8 milhões de mortes (DA SILVA, 2011), e raptos de crianças pelos grupos armados (crianças-soldados), violência sexual, crimes contra humanidade e outros.

Dentre as causas dos conflitos, além das questões políticas, estão as disputas pelo controle de regiões ricas em minerais, a instabilidade da região dos grandes lagos africana, principalmente na década de 1990, o genocídio de Ruanda em 1994 que gerou a imigração de hutus para o leste do Congo, as relações bilaterais rompidas por Laurent Kabila com Ruanda, Uganda e Burundi depois do golpe de Estado ao Mobutu e, acima de tudo, as rivalidades tribais que impulsionaram o surgimento de pequenos grupos armados (AUTESSERRE, 2010).

Com o fracasso do acordo de Lusaka e a retomada dos conflitos, em 2003 foi assinado o acordo de paz de Sun City na África do Sul que decretou o término oficial da guerra. Assim, a MONUC foi estendida e foram adicionadas novas tarefas, de modo que o novo acordo fosse cumprido, levando estabilidade ao país e consolidando a paz. Em seguida, foi criado um governo de transição (2003-2005) no qual Joseph Kabila assumiu a presidência com mais quatro vice-presidentes (4+1) de outros partidos de maneira conjunta. O governo de transição se responsabilizaria pelas reformas institucionais, pela criação de uma nova Constituição e, posteriormente, pela realização de novas eleições.

Houve a tentativa de reorganização das forças armadas que passaram a ser compostas pelas Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC), pelo Restabelecimento Congolês para Democracia (RCD) e pelo Movimento para a Libertação do Congo (MLC). No entanto, essa junção foi marcada por desavenças em termos de hierarquia, incompatibilidade salarial, falta de recursos financeiros e desobediências (CRAVINO, 2007). A principal falha do governo de transição foi, sobretudo, na criação de um exército nacional coeso que garantisse a estabilidade interna, faltando programas de reintegração de ex-combatentes no exército nacional e de desarmamento eficientes.

A realização das eleições se concretizou em 2006 com a vitória de Joseph Kabila (TCHINHAMA, 2017). Os resultados das eleições foram contestados e o governo de Joseph Kabila foi incapaz de manter integridade e a ordem no país. Iniciou-se uma onda intensa de agressão contra os civis e o estado de violência foi instaurado. A MONUC foi então substituída pela Missão de Estabilização Da Organização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO) em 2010. A Missão tinha como objetivo garantir a proteção dos civis e da equipe humanitária no terreno e defender os Direitos Humanos no país. Foi uma missão atípica da ONU por determinar o uso de todos os meios necessários para o seu cumprimento (INFORMATION, 2019; DPKO, 2020; MONUSCO, 2020). Os desafios da missão no terreno para proteger os civis diante dos ataques dos grupos levaram à implementação de uma Brigada de Intervenção especializada com o intuito de neutralizar os grupos armados e reduzir as potencias ameaças, pautando-se na técnica da resolução de conflitos de imposição da paz (peace-enforcement).

A RDC tem como missão desmantelar os grupos rebeldes que ainda atuam causando instabilidade política, tarefa que passa pelo estabelecimento de um exército nacional coeso e consistente, mediante a criação de programas de reforma do setor de segurança. Para tal, conta a comunidade internacional que continua mantendo seu apoio, de modo a tornar a paz estável e duradoura, por meio de mandato de especialistas que ajudam no treinamento do exército congolês. Como, por exemplo, o envio em 2019 de especialistas brasileiros em guerra na selva para treinar o exército local para fazer frentes aos grupos armados que se refugiam nas florestas.

Vale ressaltar também a missão da União Europeia que, por meio da European Union Police Mission for the Democratic Republic of Congo (EUPOL) (2005-2007), contribuiu na tentativa de reformar e reestruturar os setores de polícias e de justiça; a European Union Militar Operations in Democratic Republic of Congo (EUFOR) ajudou a MONUC no reforço do processo eleitoral pós-transição.

No entanto, desde as primeiras as eleições históricas em 2006, o país ainda não tem capacidade política e institucional para estabelecer a paz. Kabila deveria ter saído do poder em 2016 após o cumprimento de seus dois mandatos, conforme a Constituição, porém as eleições foram realizadas somente em 2018, após várias manifestações de repúdio da população e dos partidos da oposição.

Assim, só depois de 18 anos como presidente da RDC, Joseph Kabila deu lugar ao candidato da oposição, Felix Tshisekedi, anunciado como vencedor das eleições em janeiro de 2019. Entretanto, o resultado oficial gerou controvérsias. Segundo opositores, um acordo secreto firmado entre Tshisekedi e Kabila garantiria que este mantivesse em grande medida seu poder sobre o país, ainda que não oficialmente. Martin Fayulu, segundo colocado e também candidato da oposição, afirmou que as eleições foram fraudadas e milhares de seus eleitores foram às ruas da capital Kinshasa protestar. Além disso, França, Bélgica e União Africana (UA) também questionaram o resultado das eleições. Todavia, o resultado acabou sendo aceito pela Comunidade Internacional.

Meses depois, o primeiro-ministro, Illunga Illunkamba, fez suas indicações para os ministérios, chamando atenção para o número de ministros pertencentes à coalizão Frente Comum para o Congo (FCC) de Kabila: 42 dos 65 ministros eram dessa coalizão e apenas 23 eram provenientes da coalizão de Tshisekedi. Vale destacar também que as eleições deram 70% dos assentos da câmara baixa do parlamento e uma esmagadora maioria dos assentos da assembleia provincial à FCC.

Assim sendo, fica evidente o despreparo das instituições administrativas do Estado quanto à sua capacidade de ação, imparcialidade, transparência e confiança. Por outro lado, a segurança ainda é o principal problema da RDC, pois o governo não detém o uso da força para manter a ordem e a lei e garantir a segurança do povo contra os grupos armados ainda atuantes nas áreas mais vulneráveis do país, especialmente no Leste, na região dos Kivus, palcos da maioria dos conflitos.

Em meio a conflitos políticos, o Ebola é outra grande complicação. Desde agosto de 2018 o país passava por uma epidemia da doença, contabilizando 3.340 casos e 2.210 mortes. Em abril desse ano, o governo da RDC anunciou o fim da epidemia, entretanto, no mesmo mês foram registrados novos casos. A doença é extremamente infecciosa e a atuação de grupos armados dificulta ainda mais o seu combate.

Enquanto isso, o país permanece em um estado alarmante no que se refere à violência e os desafios persistem mesmo com toda ajuda internacional disponível. A MONUSCO vem sendo renovada a cada ano que passa, devido ao grau de complexidade da Missão, e foi prorrogada até o dia 20 de dezembro de 2020 com um conjunto de 2324 pessoas civis e 15.249 pessoas uniformizadas.

 

REFERÊNCIAS

AUTESSERRE, S. The Trouble with the Congo Local Violence and the Failure of International Peacebuilding. First. New York: Cambridge University Press, 2010.

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CRAVINO, J. S. O processo eleitoral na República Democrática do Congo: Restrospectiva e prospectiva. Instituto Português de Relações Internacionais. Universidade de Lisboa- Working Paper 25, , p. 25–26, 2007.

DA SILVA, I. C. Guerra e Construção Do Estado Na Rep . Democrática Do Congo : Guerra E Construção Do Estado Na Rep . Democrática Do Congo.Disser , p. 178, 2011.

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Fotografia:

Eleições presidenciais e legislativas em Walikale, na RDC, em 28 de novembro de 2011. Fonte: MONUSCO/Sylvain Liechti