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O Burundi e a persistência dos conflitos internos

João Vitor Tossini: Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: vitor.tossini@unesp.br

 

O Burundi foi por mais de quatro décadas um mandato colonial da Bélgica. Durante o período colonial, as rivalidades entre os dois principais grupos étnicos do Burundi, os Hutus e os Tutsi, foram fomentadas pela potência europeia, criando uma acentuada hostilidade. A mesma prática foi implementada em Ruanda, que até 1962 era administrada em conjunto com Burundi, sendo os dois países constituintes do protetorado belga de “Ruanda-Urundi”.  Nos anos de domínio belga, parcela do grupo étnico Tutsi foi privilegiada pela força imperial para a ocupação de posições administrativas na organização colonial. Apesar da Bélgica utilizar estruturas locais de governança, a prática colonial simplificou o complexo sistema local ao dar preferência aos Tutsis e marginalizar a maioria Hutu. Dessa forma, criou-se uma das principais divisões que gerariam inúmeros conflitos internos no Burundi e em Ruanda (LONGFORD, 2005).

Em 1962, o Burundi conquistou sua independência da Bélgica como uma monarquia constitucional. A primeira eleição parlamentar do recém-independente Reino do Burundi resultava na vitória dos partidos de origem Hutu. Contudo, o monarca Mwami Mwambutsa IV, de origem Tutsi e constitucionalmente responsável por escolher o Primeiro Ministro, ignorou as urnas e apontou um Tutsi para o cargo. Assim, foi iniciado um longo período de instabilidade política, primeiramente marcado por uma tentativa fracassada de golpe de Estado por parte das forças policiais, nas quais os Hutus eram predominantes, em 1965. O Exército, composto em sua maioria por Tutsis, respondeu com uma série de expurgos direcionados aos militares Hutus e ataques contra civis, causando a morte de 5 mil indivíduos (PERI, 2006).

No ano seguinte, em resposta à tentativa de tomada do poder por parte dos Hutus, um golpe de Estado liderado pelo então capitão, e recém-empossado Primeiro Ministro, Michel Micombero da etnia Tutsi obteve sucesso e instaurou uma república. Micombero aboliu os demais partidos políticos, estabelecendo o unipartidarismo na República do Burundi. Os dez anos de governo Micombero seriam marcados pelo autoritarismo governamental baseado principalmente no apoio da etnia Tutsi (CHRÉTIEN, 2008). Em 1972, eclodiu uma revolta Hutu no sul de Burundi que atingiu rapidamente outras regiões. Como resposta, o governo iniciou uma campanha de repressão que resultou em aproximadamente 150 mil Hutus mortos, forçando outros milhares a deixar o Burundi em direção aos países próximos. A ação de Micombero foi caracterizada internacionalmente como um genocídio contra os Hutus (USIP, 2004; PERI, 2006).

Nesse contexto, durante o genocídio de 1972, os Estados Unidos se limitaram a enviar ajuda humanitária e evitar ações que pudessem ser interpretadas como simpáticas aos Hutus. Parte dos oficiais norte-americanos não consideravam o Burundi como um ator relevante para a política externa do país e, temendo o avança da influência soviética, buscavam evitar atritos com o governo liderado pelos Tutsis. Assim, houve uma ausência de uma severa resposta internacional com medidas econômicas ou políticas contra o governo Micombero, especialmente por parte dos Estados Unidos, um dos principais parceiros comerciais do Burundi, o que também se repetiria em momentos similares no futuro.  (TAYLOR, 2012).

Quatro anos depois do início da política contra os Hutus, em 1976, Micombero, crescentemente impopular entre partes da base militar, sofreu um golpe de Estado liderado pelo Coronel Jean-Baptiste Bagaza, igualmente da etnia Tutsi. Bagaza manteve o sistema de partido-único, estabeleceu eleições em 1981 para legitimar o seu governo e limitou a liberdade religiosa da população (YOUNG, 2010). Ademais, Bagaza colocou fim à política repressiva contra os Hutus, amplamente adotada por Micombero (USIP, 2004). O governo de Bagaza seria derrubado em 1987 quando este, por sua vez, sofreu um golpe por parte do Major Pierre Buyoya, da etnia Tutsi, representando descontentamentos dentro do Exército em relação às políticas de Bagaza.

O regime de Buyoya não divergiu dos seus predecessores, mantendo um governo autoritário e unipartidário por meio de um Comitê de Salvação Nacional. Nesse cenário, em 1988, uma revolta Hutu resultou em violenta resposta governamental, levando ao massacre aproximadamente 20 mil indivíduos majoritariamente dessa etnia. Nos anos seguintes, devido às pressões internacionais, Buyoya adotou uma política moderada, com a admissão de Hutus nos cargos governamentais, incluindo no posto cerimonial de Primeiro Ministro. Contudo, Buyoya negou a representação proporcional aos Hutus, o que significaria um governo de minoria Tutsi.

O tom relativamente moderado de Buyoya, após os massacres de 1988, gerou descontentamento de parte dos Tutsis no governo e no Exército. Apesar disso, o presidente se manteve no poder e prosseguiu com políticas conciliadoras. Em fevereiro de 1991, uma Carta de União Nacional foi aprovada pela população em referendo, prevendo o fim do regime ditatorial, instauração de nova constituição e medidas para melhoria das relações entre os Hutus e Tutsis, incluindo direitos iguais e a condenação da violência étnica. No ano seguinte, em 1992, ministros e militares Tutsi participaram de uma tentativa fracassada de golpe de Estado visando evitar novas reformas. Nesse mesmo ano, com o apoio de diversos países da comunidade internacional, incluindo os membros do Conselho de Segurança da ONU, (USIP, 2004) foi decretado o fim do sistema unipartidário e a adoção de uma constituição com o poder investido em um presidente com mandato de cinco anos, com eleições agendadas para junho de 1993 (UNHCR, 2004).

As eleições gerais de junho de 1993 resultaram na vitória do candidato Melchior Ndadaye da etnia Hutu, colocando fim a três décadas do domínio político dos Tutsis. Em julho, uma tentativa fracassada de golpe ocorreu por parte do Exército, dominado por Tutsis e apoiadores do antigo presidente Buyoya. Em outubro de 1993, o presidente Ndadaye foi assassinado por soldados Tutsi durante um golpe de Estado, dando início a um período de guerra civil que seria marcada pelo genocídio de uma etnia contra a outra. Entre outubro de 1993 e a redução da violência armada nos anos 2004 e 2005, o saldo foi de no mínimo 150 mil indivíduos mortos e quase um milhão de refugiados (UNHCR, 2004). Após a violência inicial, entre os anos de 1994 e 1996 ocorreram tentativas da criação de governos com a participação de ambos os grupos étnicos (HUMAN RIGHTS WATCH, 2001). O fracasso dessas empreitadas levou ao enfraquecimento da autoridade estatal e ao aumento da radicalização de grupos Hutus e Tutsis.

Em 1996, o ex-presidente Buyoya, responsável pela transição democrática de 1993, liderou um golpe de Estado visando restabelecer a legitimidade do governo e buscar uma solução pacífica para a guerra civil. Todavia, Buyoya rapidamente foi visto como ilegítimo pela maioria dos Hutus, levando à escalada do conflito. Dois anos depois, Buyoya iniciou negociações de paz que resultaram nos Acordos de Arusha de agosto de 2000 que previam, dentre outras questões, o estabelecimento de governo com participação Tutsi e Hutu. Apesar do Governo de Burundi, partidos políticos e grupos paramilitares Hutus e Tutsis assinarem os acordos, certos grupos radicais de ambos os lados se recusaram a fazê-lo. Em 2001, um governo de transição foi estabelecido e um novo acordo entre o governo e o maior grupo de rebeldes Hutus, o “Conselho Nacional para a Defesa das Forças Democráticas” (CNDD-FDD), foi firmado em 2003. Neste mesmo ano, ocorreram eleições gerais e Domitien Ndayizeye, da maioria étnica Hutu, tornou-se presidente (BURUNDI, 2018). Em 2003, visando garantir a continuidade do processo de paz e o fim dos conflitos no país, a União Africana (UA) enviou uma força de paz ao Burundi intitulada “Missão da União Africana no Burundi” (AMIB). Adicionalmente, no ano seguinte, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu a “Operação das Nações Unidas no Burundi” (ONUB), estando ativa entre maio de 2004 e dezembro de 2006 (PERI, 2006). Mesmo com o fim da guerra civil, que custou a vida de cerca de 300 mil pessoas, casos de violência esporádica ocorreram nos anos de 2007 e 2008.

Em abril de 2015, o presidente Pierre Nkurunziza, da etnia Hutu e ligado ao CNDD-FDD, declarou intenção de concorrer a um terceiro mandato presidencial, após as vitórias nas eleições de 2005 e 2010. Opositores alegaram que a decisão de Nkurunziza e de seu partido era inconstitucional. Apesar de a Suprema Corte do país emitir decisão favorável ao presidente, seus membros alegaram terem sido pressionados pelo governo durante os dias anteriores à votação e alguns optaram por fugir do país. Nos dias seguintes, em 13 de maio, ocorreu uma tentativa fracassada de depor Nkurunziza, o que gerou forte resposta do governo. Perseguições políticas e restrição da liberdade de expressão retornaram ao centro da prática governamental. Com o crescimento de protestos contra o presidente, houve confrontos entre a população civil e militares. No fim de maio, era estimado que aproximadamente 100 mil pessoas haviam deixado o Burundi na condição de refugiados (KARIMI; KRIEL, 2015).

Apesar da pressão de órgãos internacionais, incluindo a UA e a Organização das Nações Unidas (ONU), o governo realizou eleições gerais no fim de junho, boicotadas pela oposição. Nkurunziza foi reeleito para o seu terceiro mandato. Nesse contexto, a UA declarou a intenção de enviar tropas para o Burundi visando proteger os civis da violência entre o governo e grupos opositores. O presidente eleito declarou que as forças da UA não eram bem-vindas no país (BURUNDI, 2018).

A vitória do presidente Nkurunziza nas eleições de julho de 2015 influenciou diretamente no agravamento da situação interna do Burundi. A crise constitucional transformou-se em conflito de baixa intensidade entre o governo e grupos rebeldes, levando 400 mil pessoas a deixarem o Burundi como refugiados entre 2015 e 2017. Concomitantemente, o cenário político e étnico voltou a polarizar o Exército que, desde o fim da Guerra Civil, implementou um programa de diversificação de seu efetivo e distanciamento de questões políticas, ao passo que participou de operações de manutenção da paz em outros países, ganhando reputação interna e externa. Desde 2015, o governo Nkurunziza iniciou uma política de perseguição e punição aos seus oponentes dentro das fileiras do Exército (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2017). Destarte, uma década de programas que objetivavam profissionalizar e despolitizar essa força militar foi lentamente corroída, gerando fissuras entre os seus diversos setores e colocando as Forças Armadas do Burundi de volta ao centro da política nacional.

Visando legitimar a sua continuidade no governo, Nkurunziza estabeleceu a realização de um referendo em maio de 2018, que previa a possibilidade de sua continuidade no cargo até 2034 (BURUNDI, 2018). A vitória de Nkurunziza no referendo constitucional de 2018 foi marcada pela suspeita de coação, repressão e assassinato de ao menos 15 opositores.  Diante desse quadro volátil no âmbito civil e militar, aproximadamente 1,200 pessoas morreram entre 2015 e 2018 em embates (BURUNDI, 2018). Nesse período, após a ONU pedir para que a Corte Penal Internacional investigasse as violações aos Direitos Humanos no país, Nkurunziza retirou o país da jurisdição da Corte (DAHIR, 2020).

O conflito mais recente, iniciado pelo desejo do presidente de continuar no cargo, se prolonga com o surgimento de pequenos grupos rebeldes com organização similar aos grupos rebeldes existentes nos anos de guerra civil (UPPSALA, 2020). Com um crescente desgaste político, em junho de 2018, Nkurunziza anunciou que não concorreria nas eleições gerais de 2020 (NIMUBONA, 2018).

O Major-General Evariste Ndayishimiye, da mesma etnia Hutu e partido de Nkurunziza, foi oficialmente declarado como o vencedor da eleição presidencial em maio de 2020 (TAARIFA, 2020). Contudo, a campanha eleitoral foi marcada pela violência, prisões arbitrárias e intimidação de opositores por parte do governo Nkurunziza, apoiador de Evariste. Assim, entre janeiro e março, ocorreram 81 mortes ou execuções extrajudiciais, mais de 20 casos de tortura, 204 prisões arbitrárias, dentre outras violações grandemente associadas aos apoiadores de Evariste. Além disso, no dia de votação, foram relatadas pela Iniciativa de Direitos Humanos do Burundi (Burundi Human Rights Initiative) práticas irregulares como: a ocorrência de coerção, prisão de membros da oposição, e membros do partido de Nkurunziza votando múltiplas vezes (BHRI, 2020). Por fim, utilizando-se das políticas de isolamento derivadas da pandemia da COVID-19, o governo do Burundi promoveu uma eleição geral sem observadores internacionais – indivíduos imparciais que, representando outros Estados ou organizações, fiscalizam a condução do processo eleitoral -, aprofundando dúvidas sobre sua legitimidade e contestações dos partidos de oposição, predominantemente Tutsis (DAHIR, 2020).

Com o exposto acima, desde sua independência, o Burundi possui um histórico marcado por conflitos internos entre as suas duas principais etnias, os Hutus e os Tutsis. Depois de mais de quatro décadas, essas partes gradativamente buscaram acordos que reestabeleceram uma política de convivência étnica e relativa estabilidade política. Assim, entre meados dos anos 2000 até 2014, o Burundi passou por um período de relativa estabilidade, redução da violência étnica e profissionalização de suas Forças Armadas. Contudo, em 2015, contrariando a constituição, o Presidente Nkurunziza anunciou a sua participação nas eleições gerais visando um terceiro mandato. A vitória de Nkurunziza em uma votação questionada interna e externamente resultou em protestos civis e na retomada de conflitos esporádicos e de baixa intensidade ao redor do país, assim como na polarização das forças militares. Da mesma forma, as eleições presidenciais de 2020 foram caracterizadas pela violência e perseguição política que favoreceram o vencedor, Evariste Ndayishimiye, protegido de Nkurunziza.

Com a morte de Nkurunziza em junho de 2020, após um ataque cardíaco, seu sucessor não poderá contar com a apoio de uma figura que dominou a política de Burundi por 15 anos e elevou-se ao posto de “Guia Supremo do Patriotismo” durante seus turbulentos anos no governo (PIERRE, 2020). Logo, o novo Presidente eleito assumirá o cargo com sua legitimidade questionada devido às eleições duvidosas e sem o apoio de uma personalidade tradicional da política nacional. Concomitantemente, Evariste possivelmente terá maior autonomia com a ausência de seu aliado político, podendo abrir caminho para um novo período na política nacional do Burundi.

 

 

REFERÊNCIAS

AS BURUNDIANS WAIT for referendum results HRW says 15 killed in campaigns. The East African. 18 maio, 2018. Disponível em: https://www.theeastafrican.co.ke/news/ea/Burundi-referendum-results-human-rights-watch/4552908-4568226-v07738/index.html. Acesso em: 23 maio. 2020.

BHRI. Burundi Election Statement: International inertia as election tensions flare in Burundi. Burundi Human Rights Initiative. 30 May 2020.

BOTTE, Roger. Rwanda and Burundi, 1889-1930: Chronology of a Slow Assassination. The International Journal of African Historical Studies. 18 (2): 289–314, 1985.

BURUNDI COURT BACKS President Nkurunziza on third-term. BBC. 5 maio, 2015. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-32588658> Acesso em 26 maio. 2020.

BURUNDI profile – Timeline. BBC. 3 dezembro, 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-13087604> Acesso em: 27 maio. 2020.

CHRÉTIEN, Jean-Pierre. “Micombero, Michel”. In GATES, Louis, Jr.; AKYEAMPONG, Emmanuel K. (eds.). Dictionary of African Biography. Oxford: Oxford University Press. 2008.

DAHIR, Abdi Latif. Burundi Turns Out to Replace President of 15 Years, Pandemic or No. May 20, 2020. The New York Times. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/05/20/world/africa/burundi-election.html> Acesso em 1 jun. 2020.

HEAVY shelling in Burundi capital. BBC. 18 abril, 2008. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/7354005.stm> Acesso em: 27 maio. 2020.

HUMAN RIGHTS WATCH.  To Protect the People: the Government-sponsored “self-defense” program in Burundi. December 2001, Vol. 13,No. 7(A).

INTERNATIONAL CRISIS GROUP.  Burundi: The Army in Crisis. Report nº247/Africa. 5 April 2017. Disponível em: <https://www.crisisgroup.org/africa/central-africa/burundi/247-burundi-army-crisis> Acesso em: 26 maio. 2020.

LONGFORD, Peter. “The Rwandan Path to Genocide: The Genesis of the Capacity of the Rwandan Post-colonial State to Organise and Unleash a project of Extermination“. Civil Wars Vol. 7 n.3, 2005.

NIMUBONA, Desire. Burundi President Pierre Nkurunziza Pledges to Step Down in 2020. 7 de Junho de 2018.  Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-06-07/burundi-president-pierre-nkurunziza-pledges-to-step-down-in-2020> Acesso em 1 jun. 2020.

KARIMI, Faith; KRIEL, Robyn. Burundi: Leaders of attempted coup arrested after President’s return. CNN. 20 maio, 2015. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2015/05/15/africa/burundi-coup-leaders-arrested/index.html> Acesso em: 29 maio. 2020.

PERI. Burundi (1993-2006). Modern Conflicts: Conflict Profile. Political Economy Research Institute. University of Massachusetts Amherst, 2006. Disponível em: <http://www.peri.umass.edu/fileadmin/pdf/dpe/modern_conflicts/burundi.pdf> Acesso em 19 maio 2020.

PIERRE Nkurunziza, presidente do Burundi, morre de ataque cardíaco. G1, 09 de junho de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/09/pierre-nkurunziza-presidente-do-burundi-morre-de-ataque-cardiaco.ghtml> Acesso em 10 jun. 2020.

TAARIFA. Gen. Evariste Ndayishimiye Is New President Of Burundi. 25 May 2020. Disponível em: <https://taarifa.rw/gen-evariste-ndayishimiye-is-new-president-of-burundi/> Acesso em 02 jun. 2020.

TAYLOR, Jordan D., The U.S. response to the Burundi Genocide of 1972. Masters Theses. JMU Scholarly Commons/James Madison University, Spring 2012.

UNHCR. Chronology for Hutus in Burundi. Minorities at Risk Project, 2004. Disponível em: <https://www.refworld.org/docid/469f38731e.html> Acesso em: 20 maio. 2020.

UNITED NATIONS. Resolution 1719 (2006). 25 October 2006. Disponível em: <https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1719(2006)> Acesso em: 26 maio. 2020.

USIP. International Commission of Inquiry for Burundi: Final Report. United States Institute of Peace, USIP Library. January 13, 2004.

UPPSALA. Country: Burundi. Uppsala Conflict Data Programme (UCDP).  Disponível em: <https://ucdp.uu.se/#country/516> Acesso em 21 maio. 2020.

YOUNG, Eric. “Jean-Baptiste Bagaza”. In APPIAH, Kwame Anthony; GATES, Henry Louis (eds.). Encyclopedia of Africa. i. Oxford: Oxford University Press. 2010. p. 146.

 

Imagem: Soldados do Exército do Burundi na periferia de Bujumbura em 2019. Fonte: AFP Photo/PHIL MOORE

Guerra Civil no Leste da Ucrânia

Getúlio Alves de Almeida Neto: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.

E-mail: g.alvesneto3@gmail.com

Danielle Amaral Makio: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: daniellemakio@gmail.com

 

 

Desde março de 2014, o Leste Ucraniano é palco de um conflito armado entre movimentos separatistas pró-Rússia que reivindicam a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, e o governo de Kiev. Também conhecido como Guerra em Donbass, região da bacia do rio Donets, o conflito deu-se na esteira das manifestações do Euromaidan em fins de 2013 e concomitante à anexação da Crimeia pela Federação Russa. Em razão de evidências que apontam para o apoio indireto russo aos separatistas, através de suporte logístico e armamentista e do envio de tropas paramilitares à região (SCIUTTO, 2019), Kiev receia que haja uma nova anexação de parte do território ucraniano à Federação Russa, como ocorrera na Crimeia. Fruto desse contexto, o conflito reverbera na imagem russa perante a União Europeia, os Estados Unidos e a outros países do chamado espaço pós-soviético. Sobretudo, a Guerra em Donbass reflete a tensão gerada pela oposição russa ao alargamento do bloco europeu em direção às regiões reivindicas por Moscou como sua zona de influência.

O conflito na Ucrânia é fortemente marcado por questões de cunho étnico, linguístico e cultural que dividem a Ucrânia em dois grandes grupos identitários: enquanto o centro-oeste do país defende a aproximação com Europa, as populações do sul e do leste ucraniano defendem maior influência de Moscou na região, ou até mesmo a futura incorporação à Federação Russa.  O caráter identitário e cultural do conflito tem suas raízes no processo de formação das identidades de russos e ucranianos, que remontam ao século IX. A origem comum dos atuais Estados Russo e Ucraniano é tema de controvérsia entre ambos os povos sobre o real nascimento de suas nações. A lacuna criada por esta ausência de consenso, por sua vez, reflete tanto na forma como a Ucrânia é vista pela Rússia quanto na percepção dos nacionais ucranianos sobre a Rússia (ADAM, 2018).

Somente após a dissolução da União Soviética em 1991 houve o surgimento do Estado Ucraniano soberano e independente (a despeito de um breve período após a Revolução de 1917). Como consequência do grande número de russos que permaneceram fora da Rússia após a extinção do bloco soviético, a Ucrânia conta com significativa parcela de russos étnicos na composição de sua população: 17,3% segundo o censo de 2001 (UCRÂNIA, 2001). No entanto, as características demográficas da Ucrânia sofrem de alto grau de regionalização. Nas regiões de Donetsk e Lugansk, a porcentagem de russos étnicos se eleva para 38,2% e 39%, respectivamente. Quanto ao número de russófonos, cerca de 75% da população da região do Donbass são falantes de russo o que contribui para a percepção de pertencimento cultural à Rússia (GIELOW, 2019). À medida em que se observa a demografia ucraniana do Leste em direção a Oeste, menor é a porcentagem da população étnica russa e/ou falante da língua russa (UCRÂNIA, 2001).

Dentro desse contexto de divisão identitária no país, ocorrem as primeiras manifestações políticas em 2004, na chamada Revolução Laranja. Os protestos tiveram início após as alegações de fraude nas eleições a favor de Viktor Yanukovytch, de tendência pró-Rússia. Com o êxito das manifestações, realizaram-se novas eleições sob observação de órgãos nacionais e internacionais, culminando na eleição do governo pró-Ocidente liderado por Viktor Yushchenko (MIELNICZUK, 2014). Yushchenko, no entanto, não conseguiu se reeleger nas eleições de 2010, cujo vencedor foi Yanukovytch.

Apesar de não ser contrário à aproximação com a União Europeia, Yanukovytch era marcadamente mais favorável ao estreitamento das relações com Moscou do que seu antecessor. Nesse contexto, o presidente ucraniano suspendeu, em novembro de 2013, as negociações econômicas com a União Europeia, as quais possibilitariam a possível adesão do país ao bloco europeu no futuro Em resposta à decisão do governo, tiveram início protestos da Praça Maidan, em Kiev, exigindo a renúncia do Presidente Yanukovytch. Os protestos receberam o nome de Euromaidan, em alusão à reivindicação da população local da volta das negociações com Bruxelas, e duraram até fevereiro de 2014, marcados pela repressão policial e escalada da violência, culminando na fuga de Yanukovytch para a Rússia (HENDLER, 2014; SCIUTTO, 2019).

Após a fuga do então governante, instaurou-se um parlamento interino em Kiev. Dentro das medidas apresentadas pelo governo de transição, havia uma proposta de rebaixar o status oficial da língua russa no país. Em resposta a esta perspectiva, uma série de protestos pró-Rússia começaram em cidades do Leste e do Sul da Ucrânia e também na península da Crimeia. No caso da Crimeia, em um referendo realizado em 16 de março de 2014, 90% dos votos expressaram a vontade da população de incorporarem-se à Rússia, processo concluído pelo tratado de adesão da Crimeia à Federação Russa assinado em 18 de março de 2014. Da mesma forma, os protestos nas regiões de Donetsk e Lugansk passaram a ter um caráter separatista e a buscar por maior aproximação e integração com a Rússia.

Ao contrário da Crimeia, no entanto, esses movimentos separatistas evoluíram para um conflito armado com a tomada de prédios públicos em Donetsk e Lugansk e o envio do exército ucraniano e da Guarda Nacional – organização paramilitar que havia sido criada durante os protestos de Maidan para controlar as revoltas no leste do país. A República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk autodeclararam-se independentes de Kiev em 7 e 14 de abril de 2014, respectivamente. Em 22 de maio do mesmo ano, foi anunciada a criação de uma confederação envolvendo as duas repúblicas, chamada de Nova Rússia (Novorossyia). Um ano depois, os líderes regionais anunciaram o congelamento deste projeto (KOLESNIKOV, 2015).

Apesar de o governo russo negar, constantemente, o envolvimento no conflito, e de não apoiar oficialmente um processo de adesão das repúblicas separatistas à Federação Russa, como foi o caso da Crimeia, há evidência de envolvimento de forças russas na região. Chamados informalmente de “pequenos homens de verde”, soldados que não carregam a insígnia do exército russo, mas que são russófonos e estão armados com arsenal russo ocupam a região do leste da Ucrânia, assim como na Crimeia. Ainda, de acordo com dados da OTAN, do Pentágono e do governo ucraniano à época, estimava-se a presença entre 20 mil e 45 mil soldados russos posicionados na fronteira entre Rússia e Ucrânia. Ademais, a derrubada do voo MH17 da Malaysia Airlines, com origem de Amsterdam e destino a Kuala Lampur, em 17 de julho de 2014, enquanto sobrevoava o território controlado pelos separatistas, é motivo de forte desconfiança quanto à origem do míssil lançado. Segundo relatos, as 283 mortes de passageiros e tripulantes ocasionadas pelo ataque foram causadas pela utilização do sistema de míssil russo BUK-TELAR, corroborando as suspeitas de envolvimento da Rússia na região (SCIUTTO, 2019).

Para além da ingerência militar, um novo decreto assinado por Putin em abril de 2019, que facilita a concessão de cidadania russa a cidadãos das regiões separatistas (GIELOW, 2019), contribui para o receio das autoridades ucranianas de que haja uma nova anexação promovida por Moscou. Tal medida se relaciona, sobretudo, com a nova abordagem de Putin sobre a questão étnico-nacional a partir de seu terceiro mandato em 2012, que inaugura um período conhecido por dar maior ênfase ao estreitamento de laços linguísticos e culturais entre a Rússia e demais países da região. Ao liderar este processo, a Rússia passa, então, a facilitar que populações que vivem fora de seu território possam também ser consideradas russas (BLAKKISRUD, 2016). A medida também pode ser entendida como uma forma de frear os avanços do exército ucraniano contra os separatistas, que poderiam ser reconhecidos pela Rússia como uma agressão aos seus nacionais.

A primeira tentativa de acordo entre as partes foi realizada através do Protocolo de Minsk, concebido na capital da Bielorrússia em setembro de 2014. O acordo, assinado por Ucrânia, Rússia e representantes das repúblicas separatistas da Ucrânia, consistia em doze pontos e previa: 1) um cessar-fogo imediato; 2) a anistia aos rebeldes que se desarmassem; e 3) um corredor para ajuda humanitária e refugiados. No entanto, o acordo fracassou e as hostilidades entre as partes combatentes continuam. Após inúmeras tentativas frustradas de cessar-fogo e de uma série de negociações, em outubro de 2019 estabeleceu-se, sob o âmbito do Fórmula Steinmeier, em alusão ao Presidente Alemão Frank-Walter Steinmeier, uma negociação entre os governos da Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk, República Popular de Lugansk e da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). O acordo prevê as eleições livres nos territórios separatistas, observadas pela OSCE, e reincorporação destes ao território ucraniano com status especial. Após o acordo, tropas separatistas começaram a se retirar de algumas cidades ocupadas. Em dezembro do mesmo ano, se reuniram na Normandia, França, o atual presidente ucraniano Volodymyr Zelensk, Vladimir Putin, Emmanuel Macron e Angela Merkel, para que fosse negociada a troca de prisioneiros entre as partes e para que fosse reiterada a necessidade da realização de eleições e negociações futuras.

O conflito no Leste Ucraniano afeta cerca de 5,2 milhões de pessoas. Desse total, estima-se que 3,5 milhões necessitarão de algum tipo de ajuda humanitária para sobreviver (OCHA, 2020a). Em 2015, apenas um ano após o início do conflito em Donbass, 925.500 pessoas haviam fugido para países vizinhos (OCHA, 2015). Já em relação ao número dos deslocados internos, os registros oficiais em 2020 indicam ao menos 1,4 milhão de pessoas. Segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgado em 12 de março de 2020, o conflito já causou a morte de 13 mil a 13,2 mil pessoas. Estima-se que este total seja composto pela morte de ao menos 3,350 mil civis, 4,1 mil soldados ucranianos, e 5,650 mil de outros grupos armados. No entanto, o mesmo relatório aponta para uma forte tendência de queda no número de vítimas. Em 2019, registrou-se a morte de 27 civis, 40,6% a menos que no ano de 2018, sendo então o ano com menor número de baixas desde o início das hostilidades (ACNUDH, 2020b).

Apesar do arrefecimento recente das hostilidades entre separatistas e forças governamentais, o conflito estende-se há seis anos. Como desdobramento dos protestos iniciados em 2013, na Praça Maidan, em Kiev, e da anexação da Crimeia pela Federação Russa, a Guerra em Donbass evidencia a disputa interna entre narrativas pró-União Europeia e pró-Rússia. Nesse sentido, o entendimento das razões que desencadearam o movimento separatista passa pela necessidade de um olhar histórico da construção da identidade ucraniana após a dissolução da União Soviética, bem como do posicionamento russo em relação aos países do chamado espaço pós-soviético. Como demonstrado pelo cessar-fogo negociado em 2019, na Normandia, um acordo de paz entre as partes necessitará da participação em conjunta entre o Kremlin e líderes europeus.

 

 

REFERÊNCIAS

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Imagem: Guerra no leste da Ucrânia: Getty images