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Conflito no norte do Paraguai: Entre a Força-Tarefa Conjunta e o Exército do Povo Paraguaio

Vitória Totti Salgado: Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: vitoria.totti@unesp.br

 

Na região norte do Paraguai, nos departamentos de Concepción, San Pedro e Amambay, o grupo intitulado Ejército del Pueblo Paraguayo (EPP, Exército do Povo Paraguaio) atua sob essa alcunha desde março de 2008. Apesar do grupo ter adotado o nome EPP somente no início do século, as suas raízes remontam ao período de transição para o regime democrático no Paraguai, após a queda do ditador Alfredo Stroessner, em 1989. Trata-se de um grupo armado organizado, composto por homens e mulheres da zona rural, com formação teórica e política de esquerda, cujos líderes possuem antecedentes de militância cristã (MARTENS, 2017). O EPP postula o uso da violência revolucionária como estratégica de mudança política e social, como expresso em seus comunicados e proclamações, e reivindica a redistribuição de terras por meio da reforma agrária e a proibição do uso de agrotóxicos na região, dentre outras pautas que colocam em evidência as necessidades do povo campesino (MARTENS, 2017).

Ao iniciar uma análise sobre o corrente conflito entre as forças estatais do Paraguai e o Exército do Povo Paraguaio, propõe-se uma reflexão sobre: (i) o histórico, a estrutura e o funcionamento do EPP enquanto grupo armado organizado; (ii) as características da região onde o grupo atua e a presença de grupos brasileiros ligados ao tráfico internacional como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) nesta mesma região; e (iii) as respostas estatais de combate ao crime organizado e ao EPP na região norte do país.

Existem interpretações díspares e contraditórias, tanto na esfera pública como privada, assim como nos meios de comunicação locais, em relação à natureza do EPP, os seus objetivos, e quem se beneficia com a sua existência (MARTENS, 2017). A produção acadêmica-científica sobre as ações do grupo e o conflito ainda é escassa, e não há consenso sobre sua identidade e principais características, sendo nomeado de diferentes maneiras nos últimos anos: grupo guerrilheiro, terroristas, insurgentes, ou simplesmente criminosos[1]. A determinação da natureza do grupo transcende o interesse acadêmico, pois é capaz de fornecer informações factíveis aos tomadores de decisão, às organizações e movimentos sociais, aos partidos e movimentos políticos, entre outras instituições de interesse que realizam ações na mesma área de influência do EPP, a fim de facilitar a compreensão sobre as implicações e consequências de sua abordagem frente as ações do grupo (MARTENS, 2017).

Nesse sentido, de modo a compreender o atual conflito entre as forças estatais do Paraguai e o EPP, é necessário perscrutar as origens que levaram a criação do grupo. Durante a ditadura de Stroessner (1954-1989), os departamentos de Concepción e San Pedro vivenciaram um considerável fluxo de migrantes rurais como parte do eje norte (eixo norte) do programa de colonização, que foi executado pela agência estatal de reforma agrária, o Instituto de Bienestar Rural (IBR). De 1963 a 1988, cerca de 24 mil famílias receberam terras fiscais (terras estatais) em colônias rudimentares nos dois departamentos. No entanto, a Comisión de Verdad y Justicia reportou, em 2008, que 36 porcento do total de terras fiscais atribuídas aos dois departamentos eram ilegais e foram vendidas pelo regime Stroessner para os seus apoiadores civis e militares (NICKSON, 2018). Assim sendo, a maioria das pessoas assentadas não possuía definitivamente os títulos da terra, apesar de pagarem prestações mensais aos funcionários do IBR.

O fracasso do criminoso programa de colonização do eje norte contribuiu para a emergência de um movimento cooperativo campesino, no início da década de 1960, denominado Ligas Agrarias Cristianas (LAC), promovido por setores radicais da Igreja Católica. O grupo foi violentamente reprimido em meados dos anos 70 e, somente após a queda de Stroessner, em 1989, voltaria a surgir um movimento campesino, nomeado Organización Campesina del Norte (OCN) e liderado pelos sobreviventes da LAC (NICKSON, 2018).

A gênese do EPP, dado o histórico apresentado previamente, pode ser associada à Igreja Católica e aos primeiros movimentos campesinos da região norte do Paraguai. Em abril de 1990, Juan Arrom e Alcides Oviedo se conheceram na Universidade Católica de Assunção, e ambos viriam a se tornar os líderes-fundadores do EPP. Em 1992, Oviedo e outros estudantes fundaram o Movimiento Monseñor Oscar Romero (MMOR), um movimento radical católico que rapidamente se converteria no Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), uma ala militar nominalmente independente, porém sob o controle do embrionário Partido Patria Libre (PPL). Em 1997, o ERP se mudou para o departamento de San Pedro onde estabeleceria contato com os membros restantes da LAC.

O ERP e as suas reivindicações viriam a ganhar espaço na mídia após o sequestro de Maria Edith Bordon de Debernardi, filha do diretor paraguaio da Itaipú Binacional, em 2001. Bordon foi libertada 64 dias depois de seu sequestro sob o pagamento de aproximadamente 1 milhão de dólares. Em 2004, a filha do ex-presidente Raúl Cubas Grau, Cecilia Cubas, foi também sequestrada. O grupo recebeu o pagamento de 300 mil dólares e, mais de dois meses após o pagamento, o corpo de Cubas foi encontrado em uma casa em Ñemby. Depois desse episódio, o Partido Patria Libre rompeu laços com o então ERP. Em março de 2008, o ERP seria renomeado Ejército del Pueblo Paraguayo e realizaria o seu primeiro ataque sob a autoria do novo grupo: um incêndio de maquinários agrícolas pertencentes a um latifundiário brasiguayo produtor de soja (McDERMOTT, 2015).

A zona geográfica de atuação do EPP – os departamentos de Concepción, San Pedro e Amambay – possuem algumas características específicas que desvelam aspectos importantes da perenidade do grupo na região. Concepción, San Pedro e Amambay juntos somam cerca de 32% de todo o território Oriental do Paraguai, com uma população de quase 700 mil pessoas. Concepción e San Pedro são departamentos onde há grande presença da pecuária bovina e, segundo dados oficias do Ministério da Agricultura do Paraguai (2012), em ambos departamentos, 22.020 pessoas possuem entre 1 a 20 cabeças de gado, enquanto menos de 500 pessoas possuem o poder econômico para ter mais de 1.000 cabeças de gado bovino (IRALA; CARDOZO, 2016). Ademais, nas últimas décadas, o cultivo de soja e grãos têm crescido exponencialmente na região, o que se soma ao processo de “estrangeirização” e concentração da posse da terra no Paraguai, processo no qual o Brasil possui um papel determinante (PEREIRA, 2016). Tais dados revelam consequências da desigual distribuição de terras e das perniciosas consequências da Era Stroessner para o campesinato.

Além disso, os departamentos da fronteira nordeste do Paraguai coincidem com a área de atuação de grupos brasileiros ligados ao narcotráfico internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Os territórios de Concepción e Amambay, principalmente, são usados como portos de entrada para a cocaína boliviana, peruana ou colombiana que entram no Paraguai para seguir, via terrestre, para o mercado brasileiro (MARTENS, 2019).

Apesar de haver especulações sobre a vinculação do EPP ao narcotráfico, especialmente às grandes plantações de cannabis na região, fontes do Ministério do Interior, da Procuradoria Geral e da Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai declararam que não há casos abertos que vincule diretamente o EPP ao narcotráfico e nem evidências que comprovem tal relação. (McDERMOTT, 2015; MARTENS, 2017).

Desde a sua criação, o EPP realizou mais de cem ações armadas, a grande maioria nos departamentos de Concepción e San Pedro. Essas ações consistem em sequestros, ataques a propriedades, atentados contra postos policiais ou militares isolados, bombas colocadas em meios de comunicação e em uma sucursal da Procuradoria Geral, dois ataques a torres de eletricidade e diversas emboscadas. Nestes atentados, morreram mais de sessenta pessoas, tanto civis como de forças policiais ou militares (McDERMOTT, 2015; MARTENS, 2017).

Em 2010 e 2011, o presidente Fernando Lugo declarou Estado de Exceção (lei 3994/10 e lei 4473/1), por 30 e 60 dias respectivamente, e ambas as declarações abarcavam os departamentos de Concepción e San Pedro. Nas duas ocasiões, os motivos para as declarações referiam-se ao combate ao EPP devido aos ataques cometidos pelo grupo (IRALA; CARDOZO, 2016). Em 2013, logo após assumir a presidência do Paraguai, Horacio Cartes enviou ao Congresso uma reforma para permitir a atuação do exército contra o EPP. A lei 5036/13 modificou a lei 1337 “De Defensa Nacional y de Seguridad Interna” com a finalidade de permitir a participação dos militares na segurança doméstica do país. Em 24 de agosto de 2013, o presidente Cartes estabeleceu a Fuerza de Tarea Conjunta (FTC, Força-Tarefa Conjunta) através do Decreto n° 103, uma força armada integrada por efetivos militares, policiais e da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), cujo objetivo é combater o crime organizado e grupos criminais que operam na zona norte do país (McDERMOTT, 2015; MARTENS, 2017). Desde então, os departamentos de Concepción, San Pedro e Amambay, têm presença militar extraordinária permanente, apesar de terem sido alvo de intervenções pelas Forças Armadas desde 2010 sob a forma de estados de exceção ou operações militares (MARTENS, 2017).

Apesar do EPP atuar em uma zona geográfica restrita, as ações tanto da polícia como da FTC foram insuficientes para a dissolução ou contenção do grupo. A grande mídia insinua que não há vontade política em combater o grupo efetivamente, e que as redes de corrupção tanto na polícia como no exército são muito desenvolvidas e profundas. Um estudo acadêmico realizado pelo Instituto de Estudos Comparados em Ciências Penais e Sociais (Inecip-Py, acrônimo em espanhol), com apoio da organização Serviço de Paz e Justiça (Serpaj-Py) e o financiamento da agência sueca Diakonia, revelou padrões violentos e abusos por parte da FTC nas comunidades de Concepción e San Pedro. De acordo com o estudo, baseado em cerca de 72 entrevistas com moradores destes departamentos, os abusos da FTC vão desde execuções extrajudiciais à tortura, buscas ilegais e detenções arbitrárias.

Devido às denúncias de violações de direitos humanos cometidas pelos militares da Força-Tarefa Conjunta, o Serjap apresentou em junho de 2019 um documento ao Congresso representando várias organizações civis e camponesas que pedem a revogação da lei 5036/13, que proporcionou a criação da FTC. Ademais, o orçamento da FTC para o ano de 2019 é de mais de 14 milhões de dólares, dinheiro que, de acordo com estas organizações, poderia ser utilizado para melhorar as condições de vida dos moradores de Concepción e San Pedro. Percebe-se que as medidas estatais adotadas para o combate ao EPP se converteram em uma indústria que gera milhões de dólares, administrada pelos mesmos chefes policias e militares responsáveis por este enfrentamento, e que são provenientes de uma cultura institucional com altos índices de corrupção (MARTENS, 2017, 2019).

Em junho deste ano, a Asociación Rural del Paraguay (ARP, Associação Rural do Paraguai) celebrou o trabalho realizado pela Força-Tarefa Conjunta no combate ao EPP, cujos ataques têm impacto direto no trabalho dos latifundiários produtores de soja e gado bovino da região. Não obstante, a opinião pública revela enorme insatisfação com os esforços do governo vigente, de Mario Abdo Benítez, contra o grupo, devido às várias denúncias de violações de direitos humanos pela FTC, aos altos orçamentos e gastos públicos destinados à Força-Tarefa, e aos altos índices de corrupção dentre os policiais e militares envolvidos no combate ao grupo guerrilheiro. O confronto entre a FTC e o EPP na região norte do Paraguai acaba por agravar os problemas que a região enfrenta há décadas, quais sejam, a desigualdade social, a pobreza, a violência, a ausência do Estado, e a presença patente do crime organizado e do tráfico internacional de drogas.

 

 

Fonte Imagética: Gentileza (2020). Disponível em: https://www.ultimahora.com/fuerza-tarea-conjunta-indaga-quema-tractores-concepcion-n2884279.html

 

NOTAS

[1] Para obter mais informações sobre o EPP, ver: MARTENS, Juan A. Aproximaciones a la naturaleza del EPP desde la perspectiva de la insurgencia, onde são abordadas suas características e formas de ação, áreas de atuação e número de membros, meios propaganda, ações de confronto realizadas, relacionamento com o narcotráfico, fontes de financiamento, relações internacionais, entre outros aspectos. Disponível em: http://novapolis.pyglobal.com/pdf/novapolis_ns_12.pdf

 

REFERÊNCIAS

DIAZ, Fernanda D. Paraguay y el estado de excepción frente al EPP como nuevo actor armado. Boletín Informativo del CENSUD, n. 21, abr. 2010. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/37538. Acesso em: 10 jun. 2020.

IRALA, Abel Enrique; CARDOZO, Hugo J. P. Violencia armada y avance de la soja en el norte del Paraguay. Revista Conflicto Social, v. 9, n. 15, p. 180-208, 2016.

MARTENS, Juan A. Entre grupos armados, crimen organizado e ilegalismos: actores e impactos políticos y sociales de la violência en la frontera noreste de Paraguay con Brasil. Revista sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas, Brasília, v. 3, n. 3, p. 65-87, ago./dez. 2019.

MARTENS, Juan A. Aproximaciones a la naturaleza del EPP desde la perspectiva de la insurgencia. Revista Novapolis, Asunción: Arandurã, n. 12, p. 43-68, diciembre 2017. Disponível em: http://novapolis.pyglobal.com/pdf/novapolis_ns_12.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020.

McDERMOTT, Jeremy. Ejército del Pueblo Paraguayo, ¿un nuevo grupo insurgente o simples bandidos? Programa de Cooperación en Seguridad Regional. Friedrich-Ebert-Stiftung (FES), Bogotá, 2015.

NICKSON, Andrew. Revolutionary Movements in Latin America after the Cold War: The Case of the Ejército del Pueblo Paraguayo. Bulletin of Latin American Research, Society of Latin American Studies. United Kingdom: Oxford: John Wiley & Sons Ltd, 2018.

PEREIRA, Lorena I. Estrangeirização da terra no Paraguai: Migração de camponeses e latifundiários brasileiros para o Paraguai. Boletim DATALUTA, n. 97, jan. 2016.

O conflito armado na Colômbia

Leonardo Rodrigues Taquece: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: taquece@gmail.com

Maria Aparecida Felix Mercadante: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. E-mail: mariaamercadante@hotmail.com

 

O conflito na Colômbia é um dos mais antigos da América Latina. Os episódios de violência se sustentam em um quadro duradouro de enfrentamentos entre diferentes grupos armados – guerrilhas insurgentes, grupos narcotraficantes, grupos paramilitares e grupos de delincuencia organizada (GAO) – entre si e, também, contra as forças do governo. Assim, cabe destacar que em cada região, cada departamento e em cada cidade, a interação entre os atores envolvidos e a intensidade dos conflitos combinaram-se e se desenvolveram muitas vezes com dinâmicas distintas e temporalidades diferentes. Um dos confrontos mais conhecidos é o que ocorre entre o governo colombiano e as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pluebo (FARC-EP) e quem tem início na década de 1960.

O surgimento das FARC-EP e o desenvolvimento da violência política na disputa pelo poder estão historicamente enraizados na cultura bipartidarista, oriunda do processo de independência da Colômbia, e nos confrontos ligados às disputas eleitorais do período. O progresso da violência entre o Partido Liberal e o Partido Conservador se desdobra no período La Violencia entre, aproximadamente, os anos de 1948 e 1958. Ainda que todas as regiões do país tenham sofrido de algum modo as consequências do imaginário político polarizado, as áreas rurais foram as mais afetadas pela violência armada, contribuindo para o desenvolvimento de movimentos de resistência campesina ou autodefensas – embriões dos futuros movimentos guerrilheiros (BUSHNELL, 2007; GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013).

De acordo com a narrativa oficial das FARC-EP, seu surgimento deve-se à exclusão política e aos ataques do Exército Nacional contra o que ficou conhecido como “Repúblicas Independientes”, zonas criadas por camponeses deslocados de suas antigas terras e que por via armada se colocavam à parte do controle estatal. Formadas por Charro Negro, Manuel Marulanda e Ciro Trujillo, as zonas de colonização campesina armada reforçavam os conceitos de ameaça à segurança interna no contexto de Guerra Fria. O ataque à Marquetalia e às demais colônias agrícolas, em 1964, se torna-se o marco de criação do grupo guerrilheiro, o porquê de a origem ter se dado nessa região estaria ligado a dois litígios históricos: a luta de indígenas pela posse da terra e a luta de reconhecimento dos direitos políticos por parte dos campesinos (MOLANO, 2016).

A Conferência Guerrilheira, em 1965, forma o Bloque Sur. O nome Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) é resultado da segunda conferência guerrilheira no ano de 1966; e, o acréscimo de “Ejército del Pueblo” (-1983. Em seu estatuto, as FARC-EP se definem como um “um movimento político-militar que desenvolve sua ação ideológica, política, organizativa, propagandística e armada de guerrilha, conforme a tática de combinação de todas as formas de luta de massas pelo poder para o povo” (FARC-EP, 1993). Quase concomitante ao desenvolvimento das FARC-EP, ocorre o desenvolvimento de outros grupos guerrilheiros, sendo os mais conhecidos, o Ejército de Liberación Nacional (ELN), Ejército Popular de Liberación (EPL), Movimiento 19 de Abril (M-19) e o movimento indigenista Quintín Lame.

A resposta à ascensão da mobilização social realizada pelas guerrilhas foi evidentemente militar, com a multiplicação das zonas de atuação e a consolidação territorial de grupos paramilitares como força contrainsurgente, especialmente, a partir dos anos 80. A expansão do paramilitarismo combinou com políticas governamentais que possibilitaram esse processo, os grupos paramilitares pertenciam a uma fronteira ambígua entre legalidade e ilegalidade, muitas vezes servindo como força de apoio para as unidades militares do Estado (PÉCAULT, 2008). No grupo paramilitar Muerte a Secuestradores (MAS), por exemplo, uma investigação, em 1983, encontrou que 69 dos 163 membros eram integrantes das Forças Armadas (GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013, p. 137). A aliança dos grupos paramilitares resultou na formação da Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), em 1995, com o objetivo de coordenar as ações contrainsurgentes.

Dada a conjuntura de Guerra Fria em que vivia o sistema internacional, o sucesso da Revolução Cubana, somado ao surgimento de organizações guerrilheiras com ideologias comunistas em território colombiano, contribuiu para que o conflito colombiano se inserisse na lógica internacional – e regional – de combate e contenção ao comunismo. As estratégias de atuação anticomunista dos Estados Unidos no continente americano são bem conhecidas, na Colômbia, a incorporação da doutrina de segurança nacional e a tese do inimigo interno encontraram reforço na exclusão de forças políticas distintas dos partidos tradicionais, justificando as ações repressivas em favor da manutenção da ordem social (GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013).

Para além das disputas envolvendo as questões militares e ideológicas, a consolidação da economia da droga nas regiões de atuação dos grupos armados e o desenvolvimento dos grandes cartéis – Cartel de Cali e Cartel de Medellín – promoveram o agravamento do conflito colombiano nos anos 80 e 90 (CAMACHO, 2011). Uma das primeiras expressões da vinculação do narcotráfico com as organizações foi o desenvolvimento do narcoparamilitarismo, de modo que os efeitos dessa aliança na luta contrainsurgente tornaram mais complexa a relação entre os atores. Embora as organizações de paramilitares tivessem um caráter antissubverssivo, aliado aos interesses do Estado colombiano, se colocavam, ao mesmo tempo, como inimigas na luta nacional e internacional contra o narcotráfico. Ademais, a economia da droga, progressivamente, somava-se ao sequestro extorsivo como principais fontes de renda para financiar a expansão territorial e militar das guerrilhas, especialmente, das FARC-EP. Os narcotraficantes têm um papel central no conflito colombiano, uma vez que forneciam os recursos econômicos para os demais atores envolvidos (GRUPO DE MEMORIA HISTÓRICA, 2013; TICKNER, GARCÍA e ARREAZA, 2011; PÉCAULT, 2008).

A atuação violenta do Cartel de Medellín merece destaque, uma vez que o cartel foi responsável, em 1989, por alguns dos atentados que marcaram a história da Colômbia: a explosão de um Boeing 727 da Avianca, que deixou 107 mortos, e a  explosão do carro-bomba em frente ao Departamento Administrativo de Seguridad, que deixou ao menos 63 mortos e mais de 600 pessoas feridas. A expansão dos cultivos ilícitos qualificaria a Colômbia como a maior produtora mundial de cocaína e a política nacional de combate ao narcotráfico passaria a ser apoiada na estratégia internacional do governo norte-americano, uma estratégia militarizada de combate à oferta que nasce na “Guerra às Drogas” e se mantém com os programas de ajuda militar do governo norte-americano aos países andinos.

O envolvimento do narcotráfico com a política colombiana e a denúncia do Cartel de Cali ter financiado a campanha presidencial de Ernesto Samper, em 1994, levou à mobilização do conceito de narcodemocracia para referir-se ao país. Fato este que contribuiu para que, mesmo com a posterior desmobilização dos grandes cartéis, a cooperação no campo militar com os Estados Unidos permanecesse sob a justificativa de falta de capacidade do governo colombiano lidar com o problema das drogas e pelo progressivo envolvimento das FARC-EP com o narcotráfico. A campanha contrainsurgente e a campanha antinarcóticos se transformaria em uma só e direcionaria a assistência técnica-militar norte-americana. O Plano Colômbia, em 1999, e a campanha militar do Plano Patriota, em 2003, são exemplos da ofensiva contra as FARC-EP, que sofreria os impactos da modernização das Forças Armadas com perdas significativas de combatentes e territórios (PÉCAULT, 2008). A respeito da estratégia militarizada do período, cabe destacar as execuções extrajudiciais realizadas pelo Exército Nacional, os militares promoviam o assassinato de civis e estes eram apresentados como guerrilheiros. O escândalo que ficou conhecido como ‘falsos positivos‘ tinha como objetivo manipular as estatísticas e mostrar resultados no combate às guerrilhas.

O enfraquecimento militar das FARC-EP, a diminuição dos aportes financeiros norte-americanos após a crise de 2008, a eleição do presidente colombiano Juan Manuel Santos em 2010 e algumas mudanças na política de Defesa e Segurança, orientadas para democracia e desenvolvimento social, são alguns dos fatores que propiciaram o desenvolvimento de uma nova tentativa de resolução do conflito colombiano por meio de processos de paz. Em 2012 são iniciadas mesas de diálogo com as FARC-EP e, em 2014, reuniões exploratórias para o início do diálogo com o ELN. Os diálogos com as FARC-EP resultariam, em 2016, no Acordo Final para a Terminação do Conflito e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura firmado entre o governo e a guerrilha em Cuba. As FARC-EP foram convertidas no Partido Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC) e passa então a atuar nos processos eleitorais desde 2017.

A entrega das armas pela guerrilha das FARC, entretanto, não garantiu o fim do problema das drogas nem o fim da violência armada em território colombiano. A Colômbia continua sendo o maior produtor de cocaína do mundo, com cerca de 169.000ha de cultivo de coca no ano de 2018. Os diálogos com o ELN foram encerrados sem Acordo em fevereiro de 2019.  A manutenção dos cultivos permite que as unidades dissidentes das FARC-EP, que não aderiram ao Acordo Final, continuem atuando e que novos grupos armados organizados continuem surgindo e ocupando as zonas estratégicas para operar o narcotráfico, como as Bandas Criminales (Bacrim) ou Grupos de Delincuencia Organizada (GDO) (FUNDACIÓN IDEAS PARA LA PAZ, 2017). Outra questão importante foi o anúncio, em agosto de 2019, da “refundação” da guerrilha FARC-EP e do abandono do processo de reincorporação por parte de alguns de alguns ex-combatentes, incluindo Iván Márquez , ex-chefe negociador do processo de paz de Havana.

De acordo com as estatísticas do Centro Nacional de Memória História da Colômbia, 218,094 pessoas foram mortas entre os anos de 1958 e 2012 sendo 177,307 civis e apenas 40,787 combatentes. Outro dado capaz de mostrar a dimensão da violência gerada pelo conflito colombiano é o registro de vítimas realizado pelo governo, neste registro, 8.944.137 pessoas haviam sido vítimas direta ou indiretamente pelo conflito armado até janeiro de 2020. De acordo com o relatório da Agência da ONU para Refugiados, a Colômbia ocupa desde 2015 a primeira colocação no ranking de países com maiores vítimas de deslocamentos internos, chegando a mais de 7 milhões de pessoas internamente deslocadas (UNHCR, 2019, p. 35).

Com respeito à  manutenção da violência em tempos de “paz”, desde a firma do Acordo Final, tem-se registrado o assassinato sistemático de líderes sociais e de defensores dos direitos humanos em território colombiano, ainda que não haja consenso, uma vez que os métodos empregados para definição de “líderes” são distintos nas organizações, o Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz aponta que o número de vítimas pode chegar em até 760 pessoas entre 2016 e 2019. Os ex-combatentes das FARC também tem sido vítimas dessa violência, a Misión de Verificación das Naciones Unidas en Colombia (2020) divulgou no último dia 26 de março, que 194 ex-combatentes firmantes dos acordos foram mortos e 13 ex-combatentes estão desaparecidos. O caminho atual parece levar a Colômbia a reviver a história de outra tentativa de participação partidária por parte dos ex-combatentes das FARC-EP: o genocídio contra a União Patriótica nos anos 80.

 

REFERÊNCIAS

 BUSHNELL, David. Colombia: Una nación a pesar de sí misma. Bogotá: Planeta. 2007

CAMACHO, Adriana; MEJÍA, Daniel. Consecuencias de la aspersión aérea en la salud: evidencia desde el caso colombiano. In: ARIAS, Maria; CAMACHO, Adriana; IBÁÑEZ, Ana María; MEJÍA, Daniel; RODRIGUEZ, Catherine. (comp.). Costos Económicos y Sociales del Conflicto en Colombia: ¿Cómo construir un posconflicto sostenible? Bogotá: Universidad de los Andes. 2014.

FARC-EP. Estatuto de las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC-EP). 1993. Disponível em: https://www.farc-ep.co/octava-conferencia/estatuto-farc-ep.html. Acesso em: 20 maio 2020.

FUNDACIÓN IDEAS PARA LA PAZ. Crimen organizado y saboteadores armados en tiempos de transición. Bogotá, jul, 2017. Disponível em: ﷟ttp://ideaspaz.org/media/website/FIP_crimenorganizado.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.

GRUPO DE MEMÓRIA HISTÓRICA – GMH. ¡BASTA YA! Colombia: Memorias de guerra y dignidad. Bogotá: Imprensa Nacional, 2013. Disponível em: http://centrodememoriahistorica.gov.co/descargas/informes2013/bastaYa/basta-ya-colombia-memorias-de-guerra-y-dignidad-2016.pdf. Acesso em: 20 maio 2020

MISIÓN DE VERIFICACIÓN DAS NACIONES UNIDAS EN COLOMBIA.  Informe trimestral del Secretario General. 26 de março de 2020. Disponível em: https://colombia.unmissions.org/sites/default/files/informe_sg_unvmc_marzo_2020_act._8_abr.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.

MOLANO, Alfredo. A lomo de mula: viajes al corazón de las Farc. Bogotá: Aguilar. 2016.

PÉCAUT, Daniel. Las FARC: fuentes de su longevidad y de la conservación de su cohesión. Análisis político [Bogotá], n.63, pp. 22-50, maio./agost. 2008.

ROJAS, Diana. Estados Unidos y la guerra en Colombia. In: INSTITUTO DE ESTUDIOS POLÍTICOS Y RELACIONES INTERNACIONALES. Nuestra guerra sin nombre. Las transformaciones del conflicto en Colombia. Bogotá: Editorial Norma, 2005.

TICKNER, Arlene; GARCÍA, Diego; ARREAZA, Catalina. Actores violentos no estatales y narcotráfico en Colombia. In: GAVÍRIA, Alejandro; MEJÍA, Daniel (comp.). Políticas antidroga en Colombia: éxitos, fracasos y extravíos. Bogotá: Universidad de los Andes. 2011.

UNHCR. The UN Refugee Agency. Global Trends: Forced displacement in 2018. 2019. Disponível em: https://www.unhcr.org/5d08d7ee7.pdf#_ga=2.214246807.1642386792.1589554806-1068563153.1589554806 Acesso em: 20 maio 2020.

 

Imagem: Manifestantes em Bogotá. Fonte: depositphotos