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Sem cessar-fogo, sem negociação: a atuação do Eixo da Resistência após o 07 de Outubro

*Karime Cheaito

Em 07 de Outubro de 2023, organizações palestinas, sob a liderança do Hamas, romperam as cercas da Faixa de Gaza, invadiram e atacaram o território sul de Israel, como uma reação que refletia o esgotamento das políticas coloniais de apartheid, violência e abusos de poder perpetrados pelos sucessivos governos israelenses. Imediatamente, o governo de Israel, sob o comando de Benjamin Netanyahu, declarou guerra. No momento em que este ensaio é escrito, 26.900 palestinos foram mortos na Faixa de Gaza, a maioria mulheres e crianças, e 1.139 israelenses foram mortos pelos ataques do Hamas (dados de 31/01/2024). Após uma denúncia realizada pela África do Sul, Israel está sendo julgado pela Corte Internacional de Justiça por crime de genocídio.

Analisa-se nesta investigação a atuação do Eixo da Resistência na conjuntura médio-oriental após a reação do Hamas contra Israel em 07/10. Para isso, buscou-se compreender como o bloco tem, historicamente, se estruturado e atuado, apesar das divergências entre seus membros.

O Eixo da Resistência é, atualmente, liderado pelo Irã, que possui o governo sírio como parceiro estratégico e político (Munareto; Silva, 2023). Além disso, inclui grupos armados não-estatais da Síria; o Hamas e a Jihad Islâmica, nos territórios palestinos; o Hezbollah, no Líbano; as Unidades de Mobilização Popular do Iraque; e os Houthis (ou Ansar Allah), no Iêmen, que foram os últimos a ingressarem no Eixo (em 2015) e, em comparação com os demais membros, possuem um auxílio limitado advindo do Irã (Juneau, 2016).

Embora o 07/10 tenha explicitado a sua capacidade de atuação no Oriente Médio, o bloco não surgiu nesta data. De acordo com El Husseini (2010), sua origem data de 2003, quando o Iraque foi invadido pelos EUA, no contexto da Guerra ao Terror, e teve como fundador o comandante iraniano Qassem Soleimani, da Força Quds, unidade de elite do grupo paramilitar Guarda Revolucionária. Soleimani visava construir uma rede com aliados regionais e, desde o início, defendeu que cada parte fosse autossuficiente.

Apesar das divergências entre seus membros – como se evidenciou na guerra da Síria – o Eixo se consolidou e tem mantido sua unidade, primordialmente, por conta do alinhamento de seus objetivos e bases ideológicas. Todos os membros, apesar de suas pautas locais, possuem uma agenda antissionista e anti-EUA. A ideia de um aliado comum – o Irã – e, principalmente, um inimigo comum – Israel e os EUA – tem garantido sua coesão e existência.

Nesse sentido, embora o Irã seja responsável por fornecer a maior parte dos armamentos e treinamentos aos membros do bloco, cada ator domina suas próprias técnicas, estratégias e táticas e atua a partir de seus próprios objetivos. Por esse motivo, a pesquisadora Amal Saad afirma: o Eixo da Resistência é mais do que um conjunto de milícias apoiadas pelo Irã. Nessa mesma linha, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano afirmou: “Não temos nenhum papel na tomada de decisões em nome de qualquer partido na região”. Essa percepção também foi partilhada por Brian Katz, ex-funcionário do governo dos EUA: os aliados não-estatais do Irã “não são simplesmente representantes iranianos. Pelo contrário, tornaram-se um conjunto de atores político-militares maduros, ideologicamente alinhados, militarmente interdependentes, comprometidos com a defesa mútua”.

Essa perspectiva confronta as análises que identificam esses atores como proxies iranianos (Levitt, 2015; 2022; Khan; Zhaoying, 2020). Para El Husseini (2002) e Saad-Ghorayeb (2002), as relações entre o Irã e os demais membros do Eixo não são tão unificadas e interdependentes. Cada organização está, em primeira estância, conectada aos seus objetivos políticos, majoritariamente nacionalistas e pragmáticos. Após Soleimani ter sido assassinado pelos EUA em 2020, seu sucessor, Esmail Qaani, buscou descentralizar ainda mais o bloco, delegando cada vez mais autonomia às unidades locais e aos seus comandantes no que se refere às decisões táticas e operacionais.

Apesar da autonomia, a identificação de Israel como um inimigo próximo e o apoio militar entre os seus membros têm garantido a sua unidade. Em seu interior, enquanto o Irã fornece assistência militar e financeira ao Hezbollah, Hamas, Houthis e demais grupos iraquianos, a Síria tem oferecido seu território como rota de transporte ao Hezbollah, que tem auxiliado na formação técnica e militar dos demais membros.

O Eixo da Resistência se originou com uma perspectiva a longo prazo e tem se desenvolvido numa coligação em tempos de guerra, como se evidenciou em 2013, durante a guerra da Síria (com exceção do Hamas, que se posicionou contrário ao governo de Bashar al-Assad)  e no Iraque em 2014, na luta contra o ISIS ou DAESH. Nessas ocasiões, esses grupos puderam aprofundar suas capacidades militares, principalmente no que concerne aos combates urbanos, e aperfeiçoaram a lógica estratégica de sua aliança.

O 07/10 representou um importante marco ao simbolizar a primeira vez que uma coligação composta majoritariamente por atores não-estatais se envolveu diretamente em um conflito em apoio a outro ator não-estatal: o Hamas. Nos últimos 4 meses, o Hezbollah, os Houthis e grupos iraquianos e sírios lançaram ataques contra alvos israelenses e estadunidenses em apoio aos palestinos com um objetivo comum: forçar Israel a um cessar-fogo em Gaza.

Como manifestado publicamente pelo Hezbollah e pelos Houthis, tanto na fronteira com Israel como no Mar Vermelho, nenhuma negociação ocorrerá enquanto não houver cessar-fogo nos territórios palestinos. Desde o dia 08/10, três frentes de batalhas foram travadas: 1) entre Hezbollah e Israel; 2) os ataques dos grupos iraquianos contra bases estadunidenses no Iraque e na Síria; 3) os ataques dos Houthis contra navios de carga no Mar Vermelho.

Com o assassinato de Saleh al-Arouri – funcionário do alto escalão do Hamas – em Beirute no dia 02/01/24, nota-se uma escalada em toda região. O atentado representou o ataque israelense mais significativo no Líbano desde a guerra de 2006. Em resposta, o Hezbollah atacou uma das principais bases israelenses de vigilância aérea. Nos dias seguintes, a Resistência Islâmica do Iraque enviou drones para atacar bases dos EUA na Síria e no Iraque e atacou a cidade de Haifa. No Mar Vermelho, os Houthis intensificaram suas ações contra navios suspeitos de terem ligações com Israel e o Irã capturou um navio comercial no Golfo de Omã.

A atuação dos Houthis fez com que os EUA e o Reino Unido conduzissem uma série de ataques militares no Iêmen desde 11/01, fato este que tem aumentado as preocupações de escalada do conflito para uma guerra regional, pois é pouco provável que os ataques contra membros do bloco gerem um recuo, visto a identidade, os objetivos e princípios dos atores envolvidos.

Cabe destacar que o combate não tem ocorrido apenas no terreno físico. O campo de batalha tem se estendido para as redes sociais e impactado a opinião pública mundial, que tem debatido de forma inédita – em relação à dimensão da repercussão – os crimes de guerra cometidos por Israel.

Como enunciado por Nasrallah em 11/11/2023: “O mais importante neste momento é a mudança na opinião mundial em relação a Israel (…). Este desenvolvimento é do interesse da Resistência, do seu projeto e da população de Gaza (…) Com o tempo, a pressão aumenta sobre o inimigo” Desse modo, a maneira como a causa palestina reascendeu internacionalmente a partir do 07/10 pode ser identificada como uma vitória para os objetivos do Eixo da Resistência, principalmente por causa das críticas e acusações que têm sido desenvolvidas contra Israel.

Embora ainda não possamos dimensionar o impacto da opinião pública nos desdobramentos de uma solução para o conflito, o Eixo tem se evidenciado com elevado nível de coordenação e tem feito com que os EUA e seus aliados enfrentem desafios na dinâmica desses combates. Sua evolução para uma aliança, apesar da autonomia de atuação dos seus membros, está coordenada e centrada nas concepções de segurança coletiva e dissuasão alargada. A sua evolução e atual popularidade regional – manifestada publicamente – exige uma mudança fundamental na maneira como o Ocidente tem analisado as dinâmicas médio-orientais e, principalmente, suas possíveis alterações de poderes.

 

* Karime Cheaito é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre em Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e membra do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUCSP) e do Laboratório Nexus (INEST/UFF).

Imagem: cartazes retratando o fundador do Hamas, Sheikh Ahmed Yassin, o ex-comandante da Força Quds do Irã, Qassem Suleimani, e o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Sana’a, Iêmen, 4 de janeiro de 2024. Por: Mohammed Hamoud/Getty Images

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKBARZADEH, Shahram. Why does Iran need Hizbullah?: Iran and Hizbullah. The Muslim World, v. 106, n. 1, p. 127–140, 2016.

EL HUSSEINI, Rola. Hezbollah and the Axis of Refusal: Hamas, Iran and Syria. Third World Quarterly, v.31, n. 5, p. 803-815, 2010

JUNEAU, Thomas. Iran’s policy towards the Houthis in Yemen: a limited return on a modest investment. International Affairs, v. 92, n. 3, p. 647–663, 2016.

KHAN, Akbar; ZHAOYING, Han. Iran-Hezbollah Alliance Reconsidered: What Contributes to the Survival of State-Proxy Alliance? Journal of Asian Security and International Affairs, v. 7, n. 1, p. 101–123, 2020.

LEVITT, Matthew. Hezbollah: Party of Fraud – How Hezbollah Uses Crime to Finance Its Operations. Foreign Affairs, July 27, 2022.

LEVITT, Matthew. Iranian and Hezbollah Operations in South America: Then and Now. Prism: A Journal of the Center for Complex Operations, p. 119-133, 2015.

MUNARETO, Camila Hirt; SILVA, Gabriela Santos da. Casamento por convergência: identidades estatais e a aliança entre Síria e Irã. Malala, Revista Internacional de Estudos sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, v. 14, pág. 78–98, 2023.

SAAD-GHORAYEB, Amal. Hizbul̉lah: politics and religion. London: Pluto Press, 2002.

 

 

Israel-Palestina: permanecem as velhas perguntas sem novas respostas

Maitê Pereira Lamesa, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). E-mail: maitelamesa@gmail.com 

O Conflito Israel-Palestina foi deflagrado a partir da aprovação pela Assembleia Geral da ONU, em 29 de novembro de 1947, do Plano de Partilha da Palestina em dois estados (Resolução 181), elaborado pela Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP). Logo após a declaração de independência do Estado de Israel pela Agência Judaica, teve início a guerra de 1948. 

Entretanto, suas raízes históricas e contextos geopolíticos, remontam ao fim do século XIX, a partir do atraso tecnológico do Império Otomano, o surgimento do Movimento Sionista [1], e os arranjos hegemônicos que se consolidam com o término da Primeira Guerra Mundial. Como reflexo, foram firmados uma série de compromissos contraditórios em relação às aspirações dos povos árabes e judeus (Declaração de Balfour e a Correspondência Hussayn-McMahon), bem como ajustes velados entre França e Inglaterra em relação aos territórios do Império Otomano (Acordo de Sykes-Picot), extinto a partir da assinatura do Tratado de Sèvres (1920). Tais ações seguiram o pano de fundo do contexto neocolonialista da época. 

No pós-Segunda Guerra, o ambiente político tornou-se favorável à questão judaica, em virtude do reconhecimento do holocausto e de resultados consistentes das negociações sionistas junto às grandes potências. Como consequência, houve a autorização formal para a divisão das terras palestinas – que até então estavam sob o julgo da Inglaterra (mandato britânico) desde 1917 – e a conseguinte instituição do estado judeu.  

Na guerra em 1948, as forças árabes compostas por milícias palestinas, o Exército de Liberação Árabe (Jaysh Al Inqadh) da Liga Árabe, e contingentes de exércitos do Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita, concentraram esforços para responder à declaração de independência de Israel, e engajaram em conflito com as forças judaicas, integradas pelas forças militares da Hagana, às quais se somaram as forças paramilitares da Irgun (Etzel) e Stern Gang (Lehi), com auxílio decisivo da Palmach (PAPPE, 2007, p. 45). A disparidade das forças era evidente e acabou levando não apenas à vitória da guerra por Israel, com ampliação do território para além do plano original (chegando a 78% do território do mandato britânico), mas também à “Al-Nakba”, ou “A Catástrofe” palestina. Esse acontecimento  indica tanto o período de êxodo e expulsão da população palestina dos territórios onde foi estabelecido o Estado de Israel, quanto todos os eventos que afetaram os palestinos entre dezembro de 1947 a janeiro de 1949.  

Durante a Nakba, calcula-se que entre 750.000 e 800.000 palestinos deixaram suas terras e vilas ou foram delas expulsos, representando cerca de 50% de toda a população palestina (árabe) da época (FLÜCHTLINGSKINDER; ZOCHROT, 2013). Muitos daqueles que deixaram suas terras agiam em resposta a massacres planejados e levados a cabo pelas milícias israelenses. O ataque israelense mais expressivo desse período foi o massacre de Deir Yassin, executado em abril de 1948 pela Irgun e Lehi e, posteriormente, com auxílio da Palmach,  resultou na morte de 254 palestinos [2]. Em 1949, foi criada a “United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees” (UNRWA), agência da ONU cuja responsabilidade era atuar junto aos refugiados palestinos, que se espalharam para Gaza, Cisjordânia e países vizinhos, primordialmente Líbano, Síria, Jordânia. 

Na década subsequente, Israel envolveu-se nos embates contra o Egito, em torno de tensões na região do Sinai, que se desenrolam até culminar na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. As consequências foram ainda mais desastrosas para a Palestina: perda expressiva de território, que passaram então a ter controle militar israelense, sendo elas: (a) Colinas do Golã (Síria); (b) Cisjordânia; (c) Jerusalém Oriental (Jordânia); (d) Gaza (Egito) e a Península do Sinai (Egito) [3]. 

Com exceção do Sinai, os demais territórios palestinos conquistados foram ocupados por Israel, com a imediata intensificação de construção de assentamentos – questão que representa atualmente um dos imbróglios centrais para a resolução do conflito –, maior controle da vida quotidiana dos palestinos, com a consequente precarização das condições dessa população, e crescimento da população refugiada. 

Nesse período, também se estruturou a resistência palestina, basicamente a partir da criação da OLP em 1964 pela Liga Árabe, cuja liderança de Yasser Arafat, a partir de 1968, é a mais emblemática, com melhor organização da luta armada palestina, bem como criação de estruturas de assistência em campos de refugiados, reforçando e até substituindo a atuação da UNRWA, que era insuficiente para prover as condições mínimas necessárias de sobrevivência. Ao prover serviços sociais à população refugiada, que era numerosa e sofria com sérias restrições de trabalho, vedações à aquisição de terras e outros direitos nos países de refúgio, essa aproximação atraía combatentes (os “fida´iyyun”) à sua esfera de gravitação (PAPPE, 2007, p 229).  

A elaboração de estratégias para a libertação palestina, sobretudo após a nomeação de Arafat para a liderança da OLP levou a dissidências internas, distanciando a organização da visão inicial pan-arabista e aproximando-a das ideologias de guerras de libertação popular, com inspiração socialista. Foram ainda formadas outras organizações: a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) por George Habash e Naif Hawatmeh, e a Frente Democrática Popular de Libertação da Palestina (FDPLP), por iniciativa de Hawatmeh. 

Foi a partir desse período que a luta palestina adquiriu o caráter de resistência e necessidade de libertação popular, sendo que a atuação da OLP se estruturou inicialmente a partir da Jordânia, tendo sido transferida ao Líbano na década de 1970, após crise deflagrada com o líder jordaniano, rei Hussein, conhecida como “Setembro Negro”.  

Em 1977, uma série de fatores determinaram a eleição do líder israelense Menachem Begin, representante do Likud, partido que ele próprio fundara. Nesta época, evoluiu-se a construção de assentamentos, sendo que em 1987 existiam já 110 assentamentos na Cisjordânia, e 15 assentamentos em Gaza (HUBERMAN, 2014, p. 96), além das estradas para interconectá-los. A lógica de construção seguiu a ótica militarizada que refletia a experiência de Ariel Sharon na guerra do Yom Kippur (1973). Com Begin, a OLP passou a ser mais perseguida, tendo sido classificada como um elemento subversivo. O combate à organização levaria à primeira invasão no Líbano por Israel em 1982, a fim de conter os ataques lançados a partir da base da OLP junto a campos de refugiados palestinos na região sul do país. 

Com o advento da Primeira Intifada, em dezembro de 1987, concretizou-se a resposta da população dos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs), frustrada ante a insuficiência das estratégias da OLP, as tentativas de acordos malfadadas e à falta de resposta da comunidade internacional, enquanto Israel ignorava diversas resoluções aprovadas pela ONU. Além disso, os efeitos da expansão do livre-mercado, seguindo a lógica neoliberal da época, acentuava a precarização da mão-de-obra palestina, cada vez mais dependente dos empregadores israelenses. 

A insurgência palestina teve início junto aos campos de refugiados de Gaza, ganhando adesão generalizada da população sob ocupação, bem como dos palestinos em Israel. A desigualdade de armas era patente e resultou em 1551 mortes do lado palestino, e 421 do lado israelense, dentre eles 271 civis (B´TSELEM, [2020]). Tal processo conduziu às tratativas dos Acordos de Oslo [4], na década seguinte, período de grande otimismo em torno da resolução do conflito. 

Os resultados obtidos dos acordos não conduziram à criação do Estado palestino, nem conseguiram pôr fim à ocupação israelense, sendo que a onda otimista rapidamente dissolveu-se no início do século XXI. A subdivisão territorial da Cisjordânia nas áreas A, B e C (KAPELIOUK, 2004, p. 369-370), por exemplo, foi uma das graves consequências de Oslo, permitindo o alargamento da presença israelense no território palestino para além dos assentamentos construído ao longo das décadas anteriores, fazendo da Cisjordânia um território fragmentado em pequenas ilhas desconexas.  

Com efeito, no alvorecer do novo milênio, a ocupação tornou-se sistemática, ganhando aspecto legítimo e os projetos de assentamento e de anexação de terras palestinas avançaram. O controle de Israel da “área C” deu vazão às demolições de casas, fosse por falta de permissão para construir, fosse para “fins militares”. Desde 2006 até 30 de junho de 2020, Israel demoliu 1.584 casas palestinas na Cisjordânia por falta de permissão para construir, deixando 6.880 pessoas desabrigadas (B´TSELEM, [2020]). Já entre 2004 até 2011, Israel demoliu 5.494 casas palestinas para “fins militares” incluindo Cisjordânia e Gaza. Em Gaza, durante a Operação Margem Protetora (2014), foram destruídas 18.000 casas palestinas, resultando em 100.000 palestinos desabrigados (B´TSELEM, [2020]).  

Além disso, após a Segunda Intifada, o governo israelense deu início à construção de muros que cercam Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, sendo que a barreira isolou vilas, cidades, áreas rurais, e segregaram a população e suas economias locais, além de anexar mais terras palestinas. Os postos de comando (“checkpoints”) estabelecidos para controlar o fluxo de pessoas autorizadas a transitarem geraram ainda mais violações ao direito de locomoção e de acesso a serviços básicos como a saúde, e permanecem como uma grave violação de direitos fundamentais. 

Assim, medidas que trariam maior segurança à população israelense contra atentados palestinos produzem, na realidade, maior violência, incertezas e impedimentos a iniciativas para a construção da paz de forma consistente. A militarização crescente da sociedade israelense também não oferece a resposta adequada ao conflito, e perpetua o ciclo de revoltas, além de minar possibilidades de desenvolvimento da sociedade civil palestina. 

Desde 2005, Israel retirou suas tropas da Faixa de Gaza, que passou então a ser administrada pelo grupo Hamas em 2007. Em contrapartida, Israel impôs um bloqueio das fronteiras, com exceção da entrada de Rafah, administrada pelo Egito, controlando também o espaço aéreo e a saída para o mar. Dessa forma, a locomoção de pessoas, mercadorias, incluindo assistência humanitária, depende de prévia autorização israelense, a qual é extremamente limitada, sendo quase impossível a saída dos residentes. 

Desde a ascensão do Hamas ao poder em Gaza, a região passou a ser vista como um território inimigo, o que levou a diversas incursões militares, com a finalidade de desestruturar as redes dessa liderança ou em resposta a ataques de mísseis do grupo. Contudo, as incursões resultaram em altas perdas civis, inclusive de mulheres e de crianças. Desde a saída de Israel, foram feitas 3 incursões: (a) Operação Chumbo Fundido (2008); (b) Operação Pilar Defensivo (2012); e (c) Operação Margem Protetora (2014).  

Os desdobramentos do conflito têm, portanto, agravado um conflito já bastante longevo, tornando a paz uma “miragem” (FLINT, 2009). Os prejuízos de tantas hostilidades reverberam na sociedade israelense, e na sociedade palestina eles são sentidos de forma ainda mais severa, criando-se um sistema de precarização generalizada, dependência econômica acentuada, detenções injustificadas (inclusive de crianças e adolescentes), mortes, falta de acesso à infraestrutura adequada, restrições no acesso à água, ordens de demolição ou despejo, campos de refugiados, desemprego e restrições severas ao direito de locomoção (OCHA-OPt, [2020]). As mortes aproximadas desde o advento da Segunda Intifada até junho de 2020 eram de 10.564 palestinos e de 1.271 israelenses (B´TSELEM, [2020]).  

De modo geral, é possível concluir que o conflito Israel-Palestina tem características multidimensionais, diversas fases, e uma multiplicidade de atores envolvidos, tanto estatais quanto não-estatais. De qualquer forma, conforme dados da Uppsala Conflict Data Program  (UCDP), cerca de 80% das mortes registradas decorrem de ações de atores estatais.  

Mais recentemente, a maior aproximação ideológica entre Estados Unidos (sob a liderança de Donald Trump) e Israel (comandado por Netanyahu), bem como as eleições de 2019 e a estrutura do sistema político permitiram a reeleição de Netanyahu e a perpetuação do Likud no poder. A permanência de conservadores sionistas tem permitido a evolução e desenvolvimento de projetos de anexação de terras palestinas, o que dificulta ainda mais as possibilidades de diálogo e mina a solução de dois Estados, princípio norteador em Oslo e em negociações posteriores. O decurso do tempo pesa contra a população palestina, que vê diuturnamente suas condições de vida reduzidas, sem alternativas ante a ocupação israelense. É preciso destacar que os prejuízos também são sentidos pela população israelense, posto que a inviabilidade do diálogo adia as perspectivas de uma vida menos militarizada, belicosa e violenta.  

As inúmeras tentativas falhas de resolução do conflito trazem à tona as debilidades da solução de dois Estados, que pode estar com seu prazo vencido. Porém, de outro lado, resta incerta a viabilidade de implantação de um único Estado que garanta, na prática, direitos iguais tanto aos israelenses quanto aos palestinos, uma vez que essa medida põe em xeque questões essenciais para Israel, como a manutenção da prevalência da demografia judia do estado israelense.  

Uma passagem do livro de Miko Peled (The General´s Son), reflete essas incertezas, ao relatar seus diálogos acerca da solução de um estado (PELED, 2016, p. 247): “Meu cunhado estava perdendo a paciência a cada minuto. ‘Você não entende nada! Você não vê que isso levará à guerra civil? Será outro Kosovo ou Líbano e o derramamento de sangue será irrefreável.’ Mas eu não podia deixar passar. ‘Ou Suíça ou Bélgica. Se você nos comparar com outros estados multinacionais, a nossa não é uma questão muito complicada’.” [5]  

Até o momento, o conflito se prolonga sem que tais respostas possam ser dadas com exatidão. Sem a perspectiva de uma via para a solução, perpetuam-se medidas questionáveis e contrárias às normas de Direito Internacional, como é o caso da possível anexação de terras palestinas por Israel, prevista no acordo anunciado pelo governo Trump no início deste ano (Acordo do Século).  

Esse acordo, formulado sem a consulta de qualquer representação palestina, tem sido muito criticado, já que previu a anexação de terras no Vale do Jordão, onde situam-se assentamentos israelenses, área que é essencial ao abastecimento de água e alimentos à Cisjordânia. Em 1º de julho estavam previstas as discussões sobre esse acordo no parlamento israelense (Knesset), contudo, foram adiadas face às pressões internas e internacionais. 

 

Fonte imagética: Mohamed Asad | Monitor do Oriente Médio. Disponível em:  https://www.monitordooriente.com/20191202-358022/. Acesso em 20.07.2020. 

NOTAS 

[1] O Movimento Sionista tem origem a partir das ideias de Theodor Herzl, defendidas no Primeiro Congresso Sionista Mundial, realizado em 1897 na Basileia (Suíça). O Sionismo, em sua origem, apresentou-se como movimento umbilicalmente atrelado a ideais nacionalistas, como necessidade de compor um Estado-nação para um povo composto por minorias distribuídas ao redor de todo o mundo, vivendo na “diáspora”, e compor tal Estado-nação significava uma população unida em um território pelo sentimento natural e, portanto, espontâneo de povo, o que se costuma denominar identidade. 

[2] O massacre de Deir Yassin, uma vila palestina nas proximidades de Jerusalém, estava inserido no escopo do Plano Dalet (Plano D), desenvolvido pela liderança sionista e colocado em prática antes mesmo da declaração de independência de Israel. De acordo com Ilan Pappe: “Em março de 1948, o Plano Dalet foi adotado. Os primeiros alvos eram os centros urbanos da Palestina, os quais haviam sido ocupados até o final de abril. Cerca de 250.000 palestinos foram expulsos nesta fase, além de diversos massacres postos em prática, o mais notável deles foi o massacre de Deir Yassin.“ (PAPPE, 2006, p. 40). [Tradução Livre] 

[3] Vale destacar que a Península do Sinai foi posteriormente devolvida ao Egitoincluída na negociação dos Acordos de Camp David, firmados entre Menachen Begin na Casa Branca, durante o governo Carter. O ato foi visto pela Organização pela Liberação da Palestina (OLP) como traição políticaposto que tornava a Palestina ainda mais vulnerávelalém de enfraquecer os demais países árabescomo Líbano e Síria (FISK, 2007, p. 208). 

[4] Os Acordos de Oslo foram firmados em 1993 e 1995 entre o Primeiro-Ministro israelense na época, Ytzhak Rabin e o líder da OLP, Yasser Arafat, mediados pelo governo de Clinton. A celebração desses acordos era vista pela comunidade internacional com tamanho otimismo, o que se reflete na edição pela Assembleia Geral da ONU da Resolução 49/88 aprovada em 16 de dezembro de 1994, a qual clamava a necessidade de se chegar à paz compreensível, justa e duradoura no Oriente Médio e expressava o apoio à rápida concretização do processo de paz em curso até aquele momento (ONU, 1994). 

[5] Na versão original em inglês: “My brother-in-law was losing his patience by the minute. ‘You don´t understand a thing! Can´t you see it will lead to civil war? It will be another Kosovo or Lebanon and the bloodshed will be unstoppable.’ But I couldn´t let it go. ‘Or Switzerland or Belgium. If you compare us to other multinational states, ours is not a very complicated issue.” 

 

REFERÊNCIAS 

ARIJ. Daily Report19.07.2020. Disponível em: https://www.arij.org/eye-on-palestine-arij/daily-report.html. Acesso em 20.07.2020. 

B´TSELEM. Fatalities in the First Intifada. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/first_intifada_tables. Acesso em 18.07.2020. 

________. Fatalities during the Operation Cast Lead. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/fatalities/during-cast-lead/by-date-of-event. Acesso em 18.07.2020. 

________. Fatalities since Operation Cast Lead. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/fatalities/after-cast-lead/by-date-of-event. Acesso em 18.07.2020. 

________. Statistics on Demolition for Alleged Military Purposes. Disponível em: https://www.btselem.org/razing/statistics. Acesso em 20.07.2020. 

________. Statistics on demolition of houses built without permits in the West Bank. Acesso em: https://www.btselem.org/planning_and_building/statistics. Acesso em: 20.07.2020. 

FISK, Robert. Pobre Nação: as guerras no Líbano no século XX. Tradução de Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro: Record, 2007. 

FLINT, GuilaMiragem de Paz: Israel e Palestina: processos e retrocessos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 

FLÜCHTLINGSKINDER. The Nakba Exhibition Catalogue: Fight and Expulsion of the Palestinians in 1948. Disponível em: https://zochrot.org/en/article/56365. Acesso em 16.07.2020. 

MADRAZO, Mariano de. Palestina Medio Siglo: Acordes Historicos 1913-1958. Madrid: Editora Nacional, 1964. 

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