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O AUKUS e o pivô do Reino Unido para o Indo-Pacífico

João Vitor Tossini*

Em 15 de setembro de 2021, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou em conjunto com os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Austrália, Scott Morrison, o estabelecimento de uma parceria de segurança envolvendo os três países. Intitulado de AUKUS (acrônimo do nome dos três membros em inglês), a parceria simboliza a crescente disposição de seus governos em estabelecer iniciativas que permitam o fortalecimento de suas posições estratégicas no Indo-Pacífico (AUSTRALIA, 2021). No caso britânico, o AUKUS pode ser compreendido por meio da política da “Grã-Bretanha Global” (Global Britain), lançada em 2016, que busca consolidar o Reino Unido como a principal potência militar na Europa, fortalecer laços diplomáticos e econômicos com antigos parceiros para além da União Europeia e, desde março de 2021, restabelecer o país como a principal potência europeia no Indo-Pacífico (UNITED KINGDOM, 2021).

Ademais, de forma similar ao que se entende como uma escolha estratégica da Austrália pelos Estados Unidos no lugar de outra posição na competição com a China (MAO, 2021), os termos e as consequências do AUKUS indicaram a preferência da Austrália pela parceria estratégica com o Reino Unido ao invés da União Europeia, mais especificamente, a França. Logo, indica-se que a posição britânica na iniciativa representa o avanço da agenda da Grã-Bretanha Global no Indo-Pacífico, região em que, desde meados dos anos 1990, a França ocupou por meio de seus territórios e departamentos ultramarinos uma posição relativa mais robusta do que Londres no âmbito geoestratégico. Assim, no caso do Reino Unido, o AUKUS está inserido em uma política de retorno do enfoque britânico a regiões fora do eixo euro-atlântico, simbolizando modificações em relação à política estratégica desse país que esteve marcada pela ênfase na Europa durante parte significativa da Guerra Fria.

Grã-Bretanha Global e o AUKUS

A política da Grã-Bretanha Global, lançada pelo Governo Theresa May (2016-2019) após a decisão pela saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), nomeou uma tendência britânica iniciada no pós-Guerra Fria de crescente engajamento internacional com maior ênfase na projeção de poder militar e político do país fora do cenário europeu (HYDE-PRICE, 2007; UNITED KINGDOM, 1998; 2015; 2021). Nos governos John Major (1990-1997) e, especialmente, Tony Blair (1997-2007), o Reino Unido retomou um posicionamento internacional intervencionista que levou a participação britânica em uma série de conflitos militares nos Balcãs, em Serra Leoa, Afeganistão e Iraque (LUNN; MILLER; SMITH, 2008).

Os sucessores de Blair mantiveram parte das operações iniciadas em seu governo, além de participarem de outras na Líbia e na Síria. Gradativamente, o governo em Londres retomava um enfoque em capacidades expedicionárias e reduziam a prioridade de compromissos militares no continente europeu, alterando a prática vigente na Guerra Fria que era centrada na defesa terrestre convencional da Alemanha Ocidental e outros aliados continentais contra uma ofensiva soviética (HYDE-PRICE, 2007). Em 2020, a conclusão de um plano de 2010 de retirada da maioria das forças militares do Reino Unido da Alemanha apresenta-se como outro evento simbólico dessa reorientação estratégica britânica.

Dessa forma, o voto da maioria dos britânicos pelo Brexit em 2016 ocorreu em meio ao crescente enfoque estratégico de Londres em regiões ultramarinas. No início de 2021, o governo britânico passou a incluir formalmente o Indo-Pacífico como uma de suas áreas prioritárias de atuação (UNITED KINGDOM, 2021), além da tradicional presença e intervenções dos anos anteriores no Oriente Médio e na África. Denominada de “tilt” ou pivô para o Indo-Pacífico, a “nova” prioridade estratégica do Reino Unido pode ser considerada como uma pontuação dos objetivos presentes na política da “Grã-Bretanha Global”. Ademais, a crescente expansão da atuação diplomática e militar do Reino Unido pode ser relacionada à percepção da ascensão da China no Indo-Pacífico e ao crescente peso econômico da região no sistema internacional, especialmente no quesito de busca de novos mercados que substituem parcialmente a União Europeia no comércio britânico (HARPER, 2020). Em suma, o Reino Unido deseja restabelecer sua posição como a principal potência europeia nessa região, que foi eclipsada pela França desde o fim de sua presença militar e controle de Hong Kong em 1997, ao passo que busca equilibrar a oposição ao crescimento chinês e desfrutar do crescimento econômico regional (UNITED KINGDOM, 2021).

O AUKUS envolve três Estados com relativa proximidade no campo de defesa e segurança. Os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia constituem o Tratado ANZUS, aliança de defesa e cooperação militar formada em 1951. Apesar de a Nova Zelândia não aderir totalmente ao ANZUS devido a sua política de proibição de armas nucleares em seu território, o Tratado apresenta-se como uma das bases da cooperação bilateral em defesa dos Estados Unidos com a Austrália (MCCLURE, 2021). Desde 1971, o Reino Unido possui um acordo similar com Austrália, Nova Zelândia, Singapura e Malásia, intitulado “Cinco Acordos de Força de Defesa” (Five Power Defence Arrangements). Além disso, o Reino Unido, a Austrália e os Estados Unidos – em conjunto com o Canadá e a Nova Zelândia –, constituem os “Cinco Olhos” (Five Eyes), um sistema de cooperação em questões de inteligência e comunicações estabelecido entre Londres e Washington durante a Segunda Guerra Mundial.

Com isso torna-se possível compreender a relevância dos termos do AUKUS. A iniciativa possui como aspecto central a criação de uma “parceria trilateral de segurança”, em conjunto com a cooperação no quesito de inteligência e comunicações dos Cinco Olhos, que envolva os três países, possibilitando um novo meio de diálogo estratégico. Adicionalmente, o AUKUS possui como objetivo maximizar a cooperação e a interoperabilidade entre as forças armadas de seus membros, além de incrementar a “integração” de suas capacidades tecnológicas e industriais de defesa. Consequentemente, o AUKUS pode reafirmar a preponderância de artigos da indústria bélica do Reino Unido e, especialmente, dos Estados Unidos na composição das capacidades militares da Austrália, consolidando esse crescente mercado como compradores do complexo industrial norte-americano e britânico (GILL, 2021).

Assim, o primeiro projeto significativo do AUKUS incluiu a venda de artigos militares para os australianos. A parceria estabeleceu um acordo que visa à venda de submarinos de propulsão nuclear aos australianos, sendo a tecnologia de propulsão nuclear fornecida por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido (AUSTRALIA, 2021). Além dos questionamentos sobre o aspecto da proliferação nuclear, ainda que a iniciativa não envolva a transferência de armamentos nucleares, o AUKUS resultou no cancelamento da compra australiana de 12 submarinos convencionais franceses, que totalizaria aproximadamente 66 bilhões de dólares (JONES, 2021). Em contraste, além dos submarinos nucleares, em 2018, o Reino Unido assegurou a venda da próxima geração de fragatas da Marinha Real Australiana, vencendo competidores europeus, enquanto que as aquisições australianas de outros artigos militares dos Estados Unidos contribuíram para elevar o país para a segunda posição entre os importadores de produtos militares (GILL, 2021).

Concernente à decisão australiana de cancelar a compra dos submarinos franceses, ainda que os dois países mantenham cooperação em assuntos de defesa e segurança na região do Pacífico, o AUKUS exclui a França dos projetos de aquisição da Marinha Real Australiana para os anos 2020. A decisão posterior da União Europeia em postergar as negociações de um Acordo de Livre-Comércio com a Austrália, apresenta-se como uma resposta conjunta do bloco em apoio ao governo francês. Contudo, o impacto dessa decisão foi previamente amenizado pela Austrália com o avanço das negociações de livre-comércio com o Reino Unido em julho de 2021. Tendo que, em 2019, o comércio total australiano com o Reino Unido (30 bilhões de dólares) representava quase 40% das trocas com a União Europeia (78 bilhões de dólares), o avanço das negociações com os britânicos apresenta-se como significativa, compensando parcialmente os atritos comerciais com o bloco europeu. Nesse sentido, a aproximação estratégica australiana com o Reino Unido possui reverberações adversas para o papel da França e de outros membros da União Europeia em aspectos militares e comerciais no Indo-Pacífico.

Dessa forma, a iniciativa trilateral envolvendo o Reino Unido, os Estados Unidos e a Austrália encontra-se em um contexto de convergência da ampliação da zona de atuação estratégica de Londres (UNITED KINGDOM, 2021) com os anseios da Austrália por capacidades militares robustas (AUSTRALIA, 2020) e com o “pivô para a Ásia” dos Estados Unidos. Em adição, o caso do AUKUS representou uma convergência de interesses estratégicos de Londres na região. A formação dessa parceria contribuiu para o avanço de dois objetivos da Grã-Bretanha Global.

No aspecto econômico, a AUKUS detém o potencial de fornecer um dos acordos mais substanciais ao setor industrial de defesa do Reino Unido em anos, ao passo que, estrategicamente, fornece a um aliado próximo os meios militares para contribuir na contenção da ascensão militar chinesa na região. Além disso, os poucos detalhes da transferência de tecnologia nuclear indicam que Londres e Washington planejam capacitar a Austrália para a manutenção dos reatores nucleares, enquanto o funcionamento da tecnologia e dos sistemas de propulsão nuclear serão retidos pelos dois países. Logo, a Austrália passará a deter uma dependência dos demais membros do AUKUS para a continuidade da operação dessa tecnologia (GILL, 2021), contribuindo para a persistência do alinhamento estratégico australiano com os Estados Unidos e o Reino Unido em detrimento de outras parcerias.

 

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem:UK Carrier. Por: U.S. Indo-Pacific Command.

 

 

Referências Bibliográficas:

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GILL, Bates. AUKUS is a Big Deal, but Needs to be Put in Perspective. Royal United Services Institute (RUSI). 20 September 2021. Disponível em: https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/aukus-big-deal-needs-be-put-perspective Acesso em: 03 out. 2021.

HARPER, Stephen J. A Very British Tilt. Towards a new UK strategy in the Indo-Pacific Region. Policy Exchange. Report by Policy Exchange’s Indo-Pacific Commission, London, 2020.

HYDE-PRICE, Adrian. European Security in the Twenty-First Century: The Challenge of Multipolarity. London: Taylor & Francis Group, 2007.

JONES, Dustin. Why A Submarine Deal Has France At Odds With The U.S., U.K. And Australia. NPR News. September 19, 2021. Disponível em: https://www.npr.org/2021/09/19/1038746061/submarine-deal-us-uk-australia-france Acesso em 03 out. 2021.

LUNN, Jon; MILLER, Vaughne; SMITH, Ben. British foreign policy since 1997. Research Paper 08/56. House Commons Library. 23 June 2008.

MAO, Frances. Aukus: Australia’s big gamble on the US over China. Sydney, British Broadcast Corporation. 22 September. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-australia-58635393 Acesso em: 30 set. 2021.

MCCLURE, Tess. Aukus submarines banned from New Zealand as pact exposes divide with western allies. New Zealand, The Guardian, 16 set. 2021. Disponível em https://www.theguardian.com/world/2021/sep/16/aukus-submarines-banned-as-pact-exposes-divide-between-new-zealand-and-western-allies Acesso em 01 out. 2021.

UNITED KINGDOM. Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy. CP 403. Presented to Parliament by the Prime Minister by Command of Her Majesty. 16 March 2021.

 

A Grã-Bretanha Global e o HMS Defender no Mar Negro

João Vitor Tossini*

 

A concepção de sucessivos governos britânicos sobre a posição do Reino Unido como uma grande potência persiste apesar do período de declínio relativo que afetou o país após a Segunda Guerra Mundial. Com o fim da Guerra Fria, sucessivos governos em Londres buscaram reafirmar o Reino Unido como uma das lideranças do Ocidente e, consequentemente, como uma grande potência. O Governo Tony Blair (1997-2007) foi um dos expoentes desse objetivo de conservação e reafirmação de status, retomando o enfoque britânico na projeção de poder para além da Europa e empregando estas capacidades militares no Afeganistão, Iraque, Serra Leoa, dentre outros países (BROWN, 2010).

Apesar de variações políticas em cada novo governo, incluindo períodos de austeridade como no primeiro Governo David Cameron (2010-2015), todos concebiam o Reino Unido como uma grande potência – ou uma potência de primeira grandeza – e almejavam a conservação desse status. Em 2016, o Governo Theresa May (2016-2019) adota o termo “Grã-Bretanha Global” (Global Britain) como uma nova definição para a política externa britânica após o voto pela saída da União Europeia. O sucessor de Theresa May, Boris Johnson, incluiu a “Grã-Bretanha Global” como o centro de sua primeira Revisão de Defesa, indicando o compromisso do governo em expandir o engajamento britânico para além da União Europeia e do eixo euro-atlântico, além de apoiar aliados contra Estados considerados revisionistas, como a China e a Rússia (UNITED KINGDOM, 2021). Assim, a Grã-Bretanha Global simboliza a disposição do Reino Unido em adotar um novo meio de se reafirmar como uma grande potência e como uma das lideranças ocidentais, ainda que isso possa representar crescente oposição e atritos com China e Rússia, como observado nas recentes incursões navais britânicas no Mar Negro.

O HMS Defender no Mar Negro 

Nesse contexto, em 23 de junho de 2021, um contratorpedeiro (destroyer) da Marinha Real Britânica (Royal Navy), o HMS Defender, adentrou as águas territoriais disputadas da Crimeia, território ucraniano controlado pela Federação Russa desde 2014, visando exercer o princípio do direto de liberdade de navegação e demonstrar o apoio britânico à Ucrânia na questão do território em litígio. Segundo o Governo Britânico, o HMS Defender transitava pela rota mais curta entre a cidade portuária de Odessa, na Ucrânia, para Batumi, na Geórgia, sendo que o navio seguiria uma série de exercícios conjuntos com esses dois Estados. Durante um breve trecho dessa rota, a embarcação adentrou as águas territoriais da Crimeia que, para os britânicos e outras potências ocidentais, pertence aos ucranianos (GARDNER, 2021).

O contratorpedeiro britânico passou a poucos quilômetros da costa e de Sevastópol, local da principal base naval russa no Mar Negro, e foi o foco de avisos por parte de seus navios da guarda costeira e caças de combate, incluindo disparos de advertência. Apesar disso, Londres negou que o HMS Defender tenha sido alvo de disparos de advertência, indicando que a Rússia havia anunciado com antecedência a realização de treinamentos navais nas proximidades (BEALE, 2021; GARDNER, 2021).

No dia seguinte, outro incidente próximo ao mar territorial da Crimeia envolveu uma embarcação militar holandesa, o HNLMS Evertsen, que acompanhava o Defender no Mar Negro. Menos de uma semana após o incidente, em 28 de junho, ocorreu o início do exercício anual da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Mar Negro com a participação de todos os países costeiros da região, com exceção da Rússia – além da presença de Reino Unido, França, Itália, Estados Unidos, e outros países convidados (UNITED STATES, 2021).

Destaca-se que, diferentemente de outras incursões prévias da Royal Navy, a bordo do Defender havia um jornalista da principal estatal da mídia britânica, a British Broadcast Corporation (BBC), que foi a primeira fonte de informações sobre a questão no Reino Unido, indicando que Londres possuía interesse em deter o controle inicial da narrativa. Quatro dias após o episódio, documentos sigilosos do Ministério da Defesa britânico foram encontrados em uma estação de ônibus e divulgados pela mídia do país. Por meio desses documentos, torna-se possível indicar que o Governo Britânico realizou considerações prévias sobre as possíveis reações da Rússia ao deslocamento de navios da Royal Navy nas proximidades da Crimeia.

Segundo os documentos, oficiais militares e civis britânicos entendiam que o Reino Unido possuía duas opções no caso da rota do HMS Defender entre Odessa e Batumi: evitar as águas territoriais controladas por Moscou ou adotar o trajeto tradicional utilizado por embarcações militares antes da ocupação russa da Crimeia, o que envolvia um breve período nas águas territoriais contestadas. A primeira opção foi descartada pois a adoção de um “desvio” de rota foi interpretada pelos oficiais britânicos como uma demonstração de fraqueza relativa e de aceitação do controle russo do território ucraniano. Assim, Londres optou pela segunda alternativa apesar das possíveis reações das forças russas (ADAMS, 2021).

O Reino Unido após o Brexit: a periferia europeia e a OTAN

Nota-se que o episódio envolvendo o HMS Defender nas proximidades da Crimeia ocorre em um período em que o Reino Unido busca reforçar seu papel na OTAN após a sua saída da União Europeia (processo que ficou popularmente conhecido como Brexit). A inclusão da Ucrânia nos mecanismos de cooperação da OTAN é apoiada por Londres desde a anexação russa da Crimeia, sendo o Reino Unido, ao lado dos Estados Unidos, um dos membros da Organização mais engajados com a Ucrânia no âmbito da Defesa e Segurança. Desde 2015 o Reino Unido possui operações militares destinadas ao treinamento das forças ucranianas na medida em que adota um posicionamento para o avanço do processo de integração da Ucrânia como membro da OTAN (UNITED KINGDOM, 2020). A Declaração dos Chefes de Estado e de Governo da OTAN do início de junho de 2021 confirmou planos para o avanço desse processo, cabendo ao Governo Ucraniano a decisão final sobre sua relação com a organização quando os requisitos para alcançar o status de membro forem alcançados (NATO, 2021).

Simultaneamente, o incidente no Mar Negro ocorreu poucos meses após a divulgação da Revisão Integrada de Segurança e Defesa, na qual Londres aponta a Rússia como a principal ameaça estatal ao Reino Unido, seguida pela China, e destaca que busca maior engajamento com países do Leste Europeu, incluindo a Ucrânia (UNITED KINGDOM, 2021, p. 60). Os documentos sigilosos divulgados pela mídia britânica aparentam reforçar o entendimento de que o Reino Unido possui uma percepção mais sensível em relação à Rússia do que à China.  Isso ocorre quando oficiais civis e militares britânicos indicam que o governo de Joe Biden ainda apresenta “muita continuidade” em relação ao foco no Indo-Pacífico e na China (ADAMS, 2021).

Em adição, entre maio e julho de 2021 um Grupo de Ataque a partir de Porta-Aviões (Carrier Strike Group) britânico esteve presente no Mar Mediterrâneo como parte do deslocamento inaugural da nova classe de porta-aviões da Royal Navy. Em julho, o Grupo avançou para o Indo-Pacífico, visando realizar exercícios com parceiros do Reino Unido, incluindo a Austrália, a Malásia, o Japão e os Estados Unidos. Destaca-se que o HMS Defender constitui parte da escolta de superfície do porta-aviões britânico, o HMS Queen Elizabeth, que é o centro dessa formação naval de projeção de poder. Enquanto a parte principal do Grupo realizava reabastecimento no Chipre, local de dois enclaves ultramarinos do Reino Unido, o Defender foi enviado ao Mar Negro, visitando a Ucrânia e a Geórgia, e outras embarcações participariam de missões diplomáticas e exercícios militares com Israel, Chipre, Egito e Grécia (MEDITERRANEAN, 2021).

Dentre essas missões, a visita do Defender à Ucrânia resultou em um acordo que expande a cooperação do país no âmbito da Defesa com o Reino Unido. O acordo inclui a construção de duas bases navais por parte de empresas britânicas para uso ucraniano, venda de sistema de mísseis e outros armamentos, treinamento e a compra de duas embarcações anti-minas da Royal Navy, além de oito navios rápidos de lançamento de mísseis (fast missile warships). Por fim, a indústria de Defesa britânica liderará os planos de desenvolvimento das novas fragatas ucranianas, a principal plataforma de superfície operada pela Marinha da Ucrânia. Entende-se que este ponto abre a possibilidade de exportação da nova classe Type 31 de fragatas britânicas, ou de similares projetos baseados nessa classe, elaborada especialmente visando exportações. Os recursos financeiros para a realização do acordo, que ultrapassam 1,25 bilhão de libras, serão fornecidos ao Governo em Kiev pela agência estatal de empréstimos e financiamentos do Reino Unido, a UK Export Finance (UNITED KINGDOM, 2021a), demonstrando a disposição britânica em expandir a sua influência e atuação político-militar na região.

Dentre os tópicos acordados mencionados anteriormente, destaca-se a construção de duas bases navais para a marinha ucraniana. Considerando que uma dessas bases será construída no Mar de Azov – entre a Crimeia, a Rússia e a Ucrânia – é reforçado o entendimento de que o Reino Unido busca contestar a presença russa na Crimeia ao passo que estabelece novos laços com Estados da periferia europeia e reforça seu papel como uma das principais forças de liderança da OTAN na Europa. Esta concepção é sustentada quando considerados os anseios do Governo Britânico para o avanço do seu projeto de uma “Grã-Bretanha Global” no âmbito diplomático-estratégico.

Como mencionado anteriormente, o projeto Grã-Bretanha Global almeja, dentre outras questões, maior engajamento com parceiros para além da União Europeia, a consolidação do país como a principal potência militar europeia da OTAN e o “retorno” de sua atuação estratégica no Indo-Pacífico, acompanhado pela expansão de sua presença e atuação militar ultramarina focada nas suas capacidades aeronavais (UNITED KINGDOM, 2021). Em suma, esse projeto busca encerrar o que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, intitulou de a “era do recuo” (BEALE, 2021a) do pós-Segunda Guerra Mundial, período marcado pelo fim do Império Britânico e a redução da presença global do Reino Unido.

Assim, o caso da Ucrânia apresenta-se como uma das iniciativas bilaterais iniciadas por Londres para fortalecer sua posição internacional pós-Brexit, sendo o acordo firmado a bordo do HMS Defender um complemento ao Acordo de Parceria Comercial anglo-ucraniano firmado em 2020 – que visa expandir o acesso de produtos primários ucranianos ao mercado britânico, reduzindo a dependência do Reino Unido de importações de alimentos da União Europeia (TOMS, 2020). Entretanto, ainda que o Brexit tenha reforçado a posição do Reino Unido sobre a centralidade da OTAN e estimulado maior engajamento com outros Estados, sucessivos governos britânicos tradicionalmente mantiveram posição similar. O Brexit apresenta-se como um fator que reforçou a concepção do Reino Unido sobre a centralidade da OTAN na segurança europeia e como um meio do país manter um papel relevante no continente para seus aliados, incluindo os Estados Unidos.

Nesse contexto, o incidente envolvendo o Defender ocorreu logo após o anúncio por parte do governo russo, no final de março de 2021, sobre a imposição de áreas de exclusão a navios estrangeiros em determinados locais do Mar Negro, incluindo as águas nas proximidades da Crimeia e na entrada ao Mar de Azov, local de uma das futuras bases navais ucranianas construídas pelos britânicos. Logo, a rota adotada pela embarcação da Royal Navy simbolizou a ausência de reconhecimento por parte do Reino Unido e da OTAN sobre as reivindicações russas de soberania sobre a Crimeia e a preponderância de Moscou sobre o Mar Negro. O incidente é parte de uma estratégia empregada por outros membros da OTAN desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Acompanhada pela crescente presença militar, cooperação e treinamentos conjuntos com a Ucrânia e a Geórgia, essa estratégia é caracterizada pelas demonstrações de não-reconhecimento da soberania russa, como a realizada pelo Defender, e pela rotatividade de embarcações das marinhas da Organização no Mar Negro, especialmente dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França, na tentativa de manter uma presença constante na área (EGGERT, 2021).

O crescimento de exercícios militares e da presença naval de membros da OTAN na região contribui para a adoção dos padrões da Organização por parte da Marinha Ucraniana e reduz a possibilidade da repetição de episódios de tensão entre esta força e a Marinha Russa. Neste caso, destaca-se que um episódio de confrontação ocorreu em 2018 e resultou na apreensão de três navios militares ucranianos por parte da frota russa. A diferença das ações russas derivadas das tensões envolvendo as forças navais da Ucrânia em 2018 e as resultantes da incursão britânica em 2021 destaca o peso ligado às capacidades diplomático-militares do Reino Unido e da OTAN. Apesar da aparente tensão enquanto o Defender navegava nas águas territoriais da Crimeia (BEALE, 2021), o comportamento russo em relação aos membros da Organização apresenta-se significativamente mais contido do que em relação à Ucrânia. Apesar da retórica oficial de Moscou após a passagem do HMS Defender incluir ameaças aos futuros deslocamentos navais britânicos nas proximidades da Crimeia, entende-se que as maiores capacidades diplomático-militares do Reino Unido e da OTAN em relação aos ucranianos contribuíram para que as reações russas imediatas fossem mais comedidas.

Dessa forma, o interesse de Kiev na continuidade da aproximação com a OTAN e com o Reino Unido pode ser aprofundado por demonstrações similares às realizadas pela Royal Navy. Como constatado pelos documentos sigilosos do Governo Britânico, a adoção da rota pelo mar territorial da Crimeia seria uma excelente “oportunidade” para demonstrar o interesse do Reino Unido em restaurar a integridade territorial da Ucrânia, ainda que fosse necessário gerar novos atritos com a Rússia (ADAMS, 2021). Considerando o enfoque renovado de Londres na OTAN para a cooperação em Defesa, a inclusão da Ucrânia nesta organização estaria alinhada com os interesses geoestratégicos britânicos que, dentre outras questões, possuem na Rússia a principal percepção de ameaça imediata ao Reino Unido.

A Grã-Bretanha Global no Mar do Sul da China

 Por fim, ainda que o Governo Britânico tenha colocado maior ênfase na Rússia como competidora imediata, a China encontra-se como um dos principais desafios estratégicos identificados pela Revisão Integrada de Segurança e Defesa (UNITED KINGDOM, 2021). Neste ponto, a própria presença temporária do HMS Defender no Mar Negro e o restante do Carrier Strike Group no Mediterrâneo possui como principal objetivo operacional de seu deslocamento inaugural contestar a crescente preponderância chinesa no Mar do Sul da China. Assim, o Defender, em conjunto com os outros nove componentes navais do Strike Group, realizará incursões próximas aos territórios insulares reivindicados pela China na região como demonstração de não reconhecimento das reivindicações chinesas e como exercício de livre-navegação.

Acompanhando esse grupo desde sua partida da costa britânica, há um navio da Marinha dos Estados Unidos, o USS The Sullivans, e o HNLMS Evertsen da Marinha Real Holandesa (Royal Netherlands Navy), sendo que este último esteve com o Defender no Mar Negro em junho de 2021 (ALLISON, 2021). A presença de ao menos uma embarcação dos Estados Unidos e um aliado europeu membro da OTAN no deslocamento naval do Reino Unido contribui para o fortalecimento da posição britânica na contestação da posição chinesa ao demonstrar que Londres atua com o suporte direto de Washington e de outros aliados atlânticos.

Assim, o enfoque do Reino Unido por meio do Strike Group está na demonstração de sua capacidade em projetar poder em escala global e na apresentação aos seus aliados regionais do crescente engajamento britânico no Indo-Pacífico, caracterizado pela oposição às reivindicações regionais da China. Dentre os laços no aspecto da Defesa regional mantidos por Londres destacam-se os Cinco Acordos de Força de Defesa (Five Power Defence Arrangements) em conjunto com Singapura, Malásia, Austrália e Nova Zelândia. Originalmente estabelecidos para a defesa da Malásia e Singapura, esses acordos visam a consulta mútua em caso de uma das partes ser atacada militarmente. Tendo exercícios militares realizados de forma anual por meio dos Cinco Acordos, a presença do Strike Group marca a celebração dos 50 anos da organização em 2021 (ALLISON, 2021). Além disso, a incursão britânica no Mar do Sul da China pode ser vista como uma forma de Londres indicar estar disposta a apoiar atos similares dos Estados Unidos, contribuindo para a conservação da “relação especial” com Washington.

Logo, apesar de inserido dentro da reorientação do Reino Unido para além da União Europeia, o incidente envolvendo o HMS Defender pode ser entendido como um ensaio prévio e em menor escala quando comparado ao deslocamento similar que o Governo Britânico pretende realizar de forma regular a partir de 2021 no Mar do Sul da China. Na percepção de Londres, a Rússia permanece como a principal ameaça estatal ao Reino Unido, contudo, os anseios de uma Grã-Bretanha Global indicam que a expansão da atuação do país em regiões como o Indo-Pacífico colocam o Reino Unido crescentemente em oposição à China. As tensões renovadas com a Rússia e a disposição em testar a China em condições similares indicam que a Grã-Bretanha Global representa uma nova forma do Reino Unido se reafirmar como uma grande potência e como uma das lideranças ocidentais na oposição aos anseios político-territoriais da Rússia e da China.

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: O HMS Defender da Royal Navy. Por: Royal Navy/Defence Images/Wikimedia Commons.

 

Referências

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ADAMS, Paul. Classified Ministry of Defence documents found at bus stop. 27 June 2021. British Broadcast Corporation (BBC). Disponível em: <https://www.bbc.com/news/uk-57624942> Acesso em 12 jul. 2021.

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