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O conflito separatista na Córsega e os protestos de março de 2022

João Vitor Tossini*

Em 9 de março de 2022, a ilha da Córsega, uma das 18 regiões administrativas da França, testemunhou o início de protestos por parte de nacionalistas corsos após o antigo líder nacionalista, Yvan Colonna, ser alvo de um ataque em uma prisão francesa, falecendo vítima dos ferimentos três semanas depois. Colonna, antigo membro da Frente da Libertação Nacional da Córsega entre anos 1980 e 1990, havia sido preso em 2003, e posteriormente condenado pelas autoridades francesas pelo planejamento e assassinato, em 1998, do então Representante de Estado (préfet) para a sub-região da Córsega do Sul. Após sua morte, deu-se início a uma série de protestos violentos por parte de seus apoiadores no movimento separatista que alegavam falhas do governo francês em garantir a segurança de Colonna. Os eventos de março de 2022, que resultaram em mais de 102 feridos, em sua maioria forças de segurança do governo local, levaram ao retorno do debate sobre a autonomia da ilha. Ademais, apesar do fim da campanha armada da Frente de Libertação Nacional da Córsega em 2014, os protestos demonstraram a persistência dos anseios nacionalistas dentre parcela significativa da população da Córsega e da violência que continua a permear este tema. Este texto traz um panorama histórico do conflito separatista, buscando subsídios para analisar a conjuntura atual.

A longa história do nacionalismo corso remonta aos anos 1750, período em que a ilha era alvo de disputas entre o Reino da França e a República de Gênova. Em 1755, tendo êxito na expulsão da maioria das forças de Gênova, as lideranças locais declararam a formação da República Corsa. O Estado corso manteria sua independência por aproximadamente 14 anos, sendo invadido pela França em 1768 e anexado no ano seguinte. Membros expoentes da liderança política procuraram exílio na Grã-Bretanha, uma das principais apoiadoras da extinta República (SIMMS, 2008). A experiência de autonomia da Córsega foi brevemente restaurada entre 1794 e 1796 por meio do apoio militar britânico que possibilitou a expulsão das forças francesas e o estabelecimento de um Estado-cliente da Grã-Bretanha na ilha, o Reino da Córsega ou Anglo-Corso. Contudo, a influência britânica era permeada por atritos com as lideranças locais, além da constante ameaça francesa à existência do Reino. Com a entrada da Espanha nas Guerras Revolucionárias Francesas (1792-1802) ao lado da França em outubro de 1796, as forças britânicas se retiraram da ilha e os principais membros do governo local renunciaram perante à iminência de uma nova invasão francesa, colocando fim à experiência soberana da Córsega (GREGORY, 1985).

Assim, ao longo do século XIX, a Córsega foi alvo da centralização política e assimilação cultural realizada pelo Estado francês, especialmente por meio da padronização do ensino laico em escala nacional. No fim da década de 1890, parcialmente em resposta aos avanços centralizadores da Terceira República Francesa, surgiram os primeiros movimentos com ambições separatistas ou de maior autonomia para a ilha. Contudo, essas correntes políticas permaneceram grandemente marginalizadas até o fim da Primeira Guerra Mundial, um conflito particularmente custoso em vidas humanas para a Córsega, que apresentou a maior taxa de perdas per capita dentre todas os Departamentos Franceses. Nos anos 1930, a Córsega era palco de dois movimentos políticos que buscavam a alteração do status quo: o autonomista e o separatista. O primeiro se distanciou do segundo, optando pela atuação política e não-violência. Concomitantemente, uma parcela minoritária dos separatistas corsos se alinhava com os ideais do Regime Fascista Italiano, que se apresentava como uma alternativa moderna ao Estado francês, e buscavam integrar a Ilha da Córsega à Itália Fascista (PELLEGRINETTI; ROVERE, 2004). Na década após a Segunda Guerra Mundial, a associação com o fascismo italiano levaria ao recuo do sentimento nacionalista corso como uma força política local (ELIAS, 2009).

A partir da segunda metade dos anos 1950, partidos minoritários nacionalistas passaram a experimentar crescente alcance eleitoral. Esse crescimento ocorreu, em partes, devido ao acelerado crescimento econômico da ilha nos anos 1950 e 1960. Parcela da população corsa entendia que os benefícios da expansão econômica eram direcionados para a França continental. Em adição, o processo de independência das colônias francesas no Norte da África acentuou as frustrações locais com o governo central, em especial após Paris conceder aos repatriados francesas das ex-colônias acesso privilegiado às novas oportunidades econômicas que estavam sendo criadas na Córsega, incluindo terras férteis para cultivo (SIMEONI, 1995). Ainda assim, o movimento nacionalista corso avançou pacificamente dos anos 1950 ao início da década de 1970. Um dos expoentes da linha reformista e constitucionalista era a Ação Regionalista Corsa (ARC), criada em 1967, que buscava autonomia e expansão dos investimentos do governo central na infraestrutura local, dentre outras questões (ELIAS, 2009).

Todavia, um episódio afetaria centralmente o movimento nacionalista da Córsega que, posteriormente, expandiria sua orientação e os meios empregados para alcançar seus objetivos políticos. Em 1975, no vilarejo corso de Aleria, objetivando atrair atenção do público para as disparidades econômicas entre corsos e franceses continentais, membros da ARC ocuparam uma vinícola local pertencente à um produtor francês repatriado da Argélia (LEFREVE, 2000; SIMEONI, 1995). Resultando em duas mortes, o impasse entre o grupo de nacionalistas e um maior número de representantes armados das forças de segurança francesas aludiu à intransigência de Paris em relação aos apelos locais. A Ação Regionalista Corsa foi proibida pelo Governo francês no mesmo ano e substituída pela Associação do Patriota Corso (APC), posteriormente renomeada União do Povo Corso (UPC), de orientação autonomista. Em maio de 1976 foi formada a Frente de Libertação Nacional da Córsega (FLNC), com tendências radicais e separatistas (ELIAS, 2009). Logo, o movimento nacionalista da Córsega se dividiu entre duas vertentes, uma constitucional e outra separatista, sendo esta adepta do emprego de métodos variados para o alcance da independência local.

Em maio de 1976, uma série de ataques com bombas por parte da Frente de Libertação Nacional contra representações do governo francês deu início ao conflito nacionalista corso contemporâneo. Dois meses depois, empregando armamento de uso exclusivo militar, a Frente de Libertação Nacional realizou ataques contra forças policiais na Córsega. O uso de equipamentos militares levantou suspeita das autoridades francesas sobre a possibilidade de envolvimento da Frente de Libertação com o Exército Republicano Irlandês (IRA, em inglês) e possível apoio do Regime da Líbia. Em setembro do mesmo ano, novos ataques da FLNC contra oficiais militares fracassaram, deixando feridos em ao menos duas cidades corsas. Assim, o ano de 1976 foi  marcado pelo início de uma campanha separatista armada na Córsega que possuía como inspiração as ações do IRA na Irlanda do Norte (RAMSAY, 1983).

Ataques às representações do governo francês, incluindo bases militares, permaneceram o enfoque da FLNC no restante da década de 1970. Entretanto, essas ações deram origem a grupos contrários à independência ou autonomia, em especial a Frente Ação Nova Contra a Independência e Autonomia (FRANCIA). Este grupo unionista realizou ataques contra indivíduos e locais associados à FLNC em 1977, dando início a uma campanha retaliatória entre os dois movimentos. Nesses anos, a principal operação realizada pela FLNC foi o ataque à estação de radar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Solenzara, no ano de 1978, indicando que os alvos da FLNC incluíam aqueles considerados aliados do Estado francês. Nos primeiros três meses do ano seguinte, a FLNC realizou cerca de 115 ataques com dispositivos explosivos na ilha, marcando o auge de sua atuação armada. Entre 1978 e 1979, operações das forças policiais e da inteligência francesa indicavam que os associados da FLNC e de outros grupos separatistas estavam em crescimento, com apoiadores na França continental (RAMSAY, 1983).

Com a prisão de dezenas de seus membros em 1979, a FLNC adentrou a década de 1980 com reduzida capacidade operacional. Baseando-se nas ações do IRA, a FLNC passou a empregar uma nova abordagem estratégica. A partir de 1979, o objetivo da Frente era “levar o problema corso aos franceses”, com ataques na França continental, além das tradicionais operações na Córsega (RAMSAY, 1983). No decorrer da década, dois cessar-fogos foram acordados com o governo francês. O primeiro deles foi anunciado unilateralmente pela FLNC em 1981 e o segundo em conjunto com o governo francês em 1988. Contudo, o cessar-fogo de 1988 contribuiu para acentuar as divergências internas da Frente, resultando na divisão do movimento separatista em outros grupos (ELIAS, 2009).

Concernente à FLNC, o fim dos anos 1980 e início dos 1990 foi marcado por divisões internas e fragmentações. Seguindo sucessivas disputas internas pelo seu controle, parcela significativa da estrutura da Frente de Libertação colapsou entre 1988 e 1990. Antigos líderes, como Pierre Poggioli, deixaram o movimento e iniciaram partidos políticos que detinham ramificações no formato de grupos clandestinos. Em 1990, o FLNC se dividiu novamente com a formação do “FLNC canal habitual”, com o Movimento pela Autodeterminação (MPA) atuando como sua representação política, e “FLNC canal histórico” que detinha em líderes tradicionais, como Poggioli, os seus principais representantes. Em 1992, a facção “canal histórico” do FLNC – representada pelo partido Cuncolta Naziunalista – buscou alianças com partidos moderados, como o UPC, pertencentes ao movimento constitucional pela autonomia local. Nota-se que, nas décadas anteriores, o UPC foi a principal vertente do movimento autonomista, apresentando-se como uma linha constitucional que o FLNC histórico buscava apoio. No mesmo ano, a recusa de parcela dos membros do FLNC histórico em abandonar o uso da violência levou ao colapso da aliança até então intitulada Nação Corsa. Assim, contendo apenas o Cuncolta Naziunalista, a aliança se tornou a representação eleitoral do movimento radical nacionalista, diretamente ligada à FLNC canal histórico (ELIAS, 2009).

Uma nova fase do movimento nacionalista corso foi iniciada em fevereiro de 1998 com o assassinato do préfet francês na Córsega, Claude Erignac, por membros de um grupo separatista, dentre eles Yvan Colonna, morto em março de 2022. Buscando uma tentativa de estabelecer uma “política de reconciliação” entre os diversos setores do movimento (CRETTIEZ; SOMMIER, 2002), entre 1998 e 1999, a maioria dos grupos nacionalistas legalizados se juntaram na formação de uma aliança eleitoral chamada Unità. Similarmente, grupos clandestinos seguiram o caminho da reunificação após anos de divisões, estabelecendo a FLNC União de Combatentes. Entretanto, nos três anos seguintes, divergências internas novamente resultaram na fragmentação da união dos grupos legais e clandestinos.

No âmbito dos partidos políticos nacionalistas, em 2004, a fragmentação elevou o número de partidos dessa vertente a aproximadamente 18, minimizando as possibilidades de sucessos eleitorais com a divisão dos votos do eleitorado nacionalista (ROUX, 2005). Apesar disso, nesse período, a totalidade do movimento nacionalista se apresentava como a segunda maior força na política corsa (ELIAS, 2009).  Diversas facções da FLNC continuaram a realizar atentados contra autoridades francesas na Córsega entre 2000 e 2014. Apenas nos últimos quatro meses de 2011 foram realizados 38 ataques com bombas na ilha (MALONEY, 2012).

Com o acentuado declínio do impacto da luta armada no âmbito político desde os anos 1980 e com as crescentes críticas desde o assassinato de Erignac em 1998, além do crescimento de partidos autonomistas e separatistas moderados, a campanha armada começava a perder força em 2014, após 38 anos. Em junho daquele ano, após tentativas de reconstituição de sua unidade como movimento, a FLNC União de Combatentes anunciou que iniciaria um processo unilateral de desmilitarização e de saída progressiva da clandestinidade. Em contrapartida, uma antiga facção da FLNC, União de Combatentes, intitulada FLNC-22, formada em meados dos anos 2000, continuaria na ativa. Com a inédita formação de um governo local liderado por uma coalizão de partidos nacionalistas em 2015, esse último grande grupo armado declarou sua adesão ao cessar-fogo em 2016.

Entre 1975 e 2016, além de centenas de feridos, 13 civis e oficiais do governo local foram mortos por meio de operações de assassinato organizadas por grupos separatistas e, apenas nos anos 1990, ao menos 20 membros do movimento nacionalista foram mortos em conflitos internos de facção. Nos primeiros nove meses de 1990, o segundo ano com mais vítimas do conflito corso, 30 pessoas perderam suas vidas em atentados separatistas. Cinco anos depois, em 1995, 36 indivíduos morreram em uma série de ataques terroristas reivindicados por grupos separatistas, elevando o número de mortos para mais de 80 desde 1976 (MARP, 2004).

Entretanto, episódios de violência envolvendo grupos nacionalistas continuaram presentes na Córsega após o fim das operações armadas das principais facções da FLNC entre 2014 e 2016. Nesses anos, destacam-se os ataques coordenados com explosivos de março de 2019 que ocorreram na ilha semanas antes da visita do presidente francês, Emmanuel Macron. Três dias antes da visita presidencial, dispositivos explosivos foram encontrados em prédios governamentais, destacando a possibilidade de existência de pequenos grupos nacionalistas dispostos a ocupar o espaço deixado pela FLNC no âmbito da luta armada pela independência. Nesse contexto, em setembro de 2019, o fim das hostilidades seria fragilizado pelo anúncio feito por um grupo nacionalista armado, de que a FLNC seria reestabelecida para retomar a campanha armada, além de emitir ameaças a estrangeiros residentes e proprietários de terras na Córsega.

Assim, os eventos de março de 2022 após o ataque ao antigo membro da FNLC, e que resultaram em mais de uma centena de feridos, demonstram a persistência do movimento nacionalista na Córsega e a violência que continua a marcar ao menos uma parcela do debate sobre a autonomia ou independência, ainda que a luta armada tenha sido encerrada. Contudo, apesar da centralização do Estado francês, grandemente influenciada pelo antigo regime absolutista, o desejo de reconhecimento de um status especial para a Córsega se apresenta em ascendência. Os protestos de março de 2022 aceleraram a pressão local para o avanço dos planos do governo francês em rever a posição da Córsega, sendo a autonomia interna uma das principais soluções debatidas em Paris para evitar a radicalização de setores que apoiam a autonomia. Em meio aos protestos na Córsega e ao debate em Paris, a NLFC União de Combatentes anunciou que poderá retornar às atividades armadas caso o governo francês não apresente propostas sobre a autonomia. Destarte, o ataque a Yvan Colonna trouxe novamente as tensões dos movimentos nacionalistas locais ao centro do debate político na Córsega e na França continental e com eles os temores do retorno da violência armada em uma região da Europa Ocidental.

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: Vista da ilha de Córsega. Por NASA/Wikimedia Commons.

Referências Bibliográficas

CRETTIEZ, X. and SOMMIER, I. La France Rebelle, Paris: Éditions Michalon, 2002.

ELIAS, Anwen. Minority Nationalist Parties and European Integration: A Comparative Study. Reino Unido, Taylor & Francis, 2009.

GREGORY, Desmond. The Ungovernable Rock: A History of the Anglo-Corsican Kingdom and Its Role in Britain’s Mediterranean Strategy During the Revolutionary War, 1793-1797. London: Fairleigh Dickinson University Press, 1985.

LEFEVRE, M. Géopolitique de la Corse. Le Modèle Républicain en Question, Paris:

L’Harmattan, 2000.

MARP (Minorities at Risk Project). Chronology for Corsicans in France, 2004. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/469f388a1d.html Acessado em: 30 maio 2022.

SIMMS, Brendan. Three Victories and a Defeat: The Rise and Fall of the First British Empire, 1714-1783. 2008.

PELLEGRINETTI, J; ROVERE, A. La Corse et la République: la Vie Politique de la Fin du Second Empire au Début du XXIe Siècle. Paris, 2004.

RAMSAY, Robert. The Corsican time-bomb. Manchester | Dover, N.H, Manchester University Press, 1983.

Roux, C. ‘Corse: vote à gauche, île de droite’, in B. Dolez, A. Laurent and C. Patriat (eds), Le Vote Rebelle. Les Élections Régionales De Mars 2004; Dijon: Editions Universitaires de Dijon, 2005.

SIMEONI, E. Corse: La Volonte d’Etre , Ajaccio: Albiana. 1995.

CONFLITO E IDENTIDADE NO ESPAÇO PÓS-SOVIÉTICO: O CASO DE NAGORNO-KARABAKH

O capítulo de Larissa de Castro Nogueira e Danielle Amaral Makio, membro do CIRE, investiga o conflito de Nagorno-Karabakh, focando nas dinâmicas de identidade e statebuilding no espaço pós-soviético. A análise parte da hipótese de que a construção de identidades e as marcas históricas da era soviética são fatores determinantes na complexidade do conflito. O capítulo oferece uma visão abrangente, com uma análise teórica sobre a relação entre estado e identidade, além de uma reflexão sobre as negociações de paz e possíveis soluções para a disputa.

Leia o capítulo completo aqui.

Os Conflitos no Sudão do Sul e as tentativas de alcançar a paz

Ligia Maria Caldeira Leite de Campos 

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES  Emailligia.campos4@hotmail.com 

O Sudão do Sul se originou em 2011, como resultado de um Amplo Acordo de Paz (Comprehensive Peace Agreement, CPA), assinado com o intuito de encerrar anos de conflito. Nele, estava previsto um referendo que possibilitou a independência da região Sul do Sudão, o que levou à criação de um novo país com a cidade de Juba como sua capital (GUIMARÃES, 2013; VARMA, 2011). 

Nesse contexto, o partido Movimento de Libertação do Povo do Sudão (SPLM, em inglês), que havia liderado a oposição ao Sudão na luta pela independência, assumiu o governo. Salva Kiir passou a ocupar a presidência e Riek Machar a vice-presidência. Desde o seu surgimento, o país conta com a presença da Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS), que na época objetivava consolidar a segurança e a paz, além de auxiliar em seu desenvolvimento e preparar o governo que assumia o seu posto (JOHNSON, 2014; UNITED NATIONS, 2011). 

No entanto, em 2013, uma nova disputa eclodiu, agora entre Kiir e Machar. Dentre as possíveis motivações, destacam-se atitudes arbitrárias do Presidente, como a retirada de Machar de seu cargo e o isolamento dos antigos participantes do movimento de libertação. O quadro que se apresentava no país era complexo, composto por baixo desenvolvimento, corrupção e falta de segurança. É relevante salientar que, desde o princípio, o Sudão do Sul já tinha que lidar com falta de infraestrutura, extrema pobreza, baixa qualidade de vida, disputas por petróleo e dificuldades na configuração do governo. A soma de todos esses fatores pode ter sido a razão para que Machar reunisse o Movimento de Libertação do Povo do Sudão em Oposição (SPLM-IO), contrário ao Presidente e seu governo (ROACH, 2016; JOHNSON, 2014; RADON; LOGAN, 2014; OLIVEIRA, 2011).  

Entretanto, o real estopim do conflito de dezembro de 2013 ainda é discutido. O Presidente alegou a ocorrência de uma tentativa falha de golpe de Estado, a qual não foi comprovada. Em resposta, ele enviou tropas para diversos bairros, tendo como alvo políticos opositores e a população da etnia Nuer, sendo que Machar é Nuer e Kiir é da etnia Dinka [1]. Por conseguinte, Machar instou que o Exército derrubasse Kiir e grupos de civis Nuers armados se juntaram a ele (JOHNSON, 2014). 

Em 2014, começaram a ser relatadas violações de direitos humanos perpetradas por ambas as partes. Em setembro de 2015, foi ratificado um acordo de paz, que resultaria em um período de transição até as eleições de 2018. O documento se propunha a consertar as falhas do Estado e do CPA (particularmente no que se refere à inclusão política e à falta de transparência na gestão do petróleo), assim como renovar a confiança da população em seus líderes e no sistema político. Todavia, os relatos de violações do acordo foram recorrentes. Ambos os lados mantiveram a disputa pela liderança, gerando dúvidas a respeito do seu comprometimento com a paz (OCI, 2015; ROACH, 2016). 

Em fevereiro de 2016, Kiir, sob pressão, chamou Machar novamente para o posto de vice-presidente, o que não implicou que as partes fossem reintegradas. Em julho, houve um surto de violência de quatro dias em Juba, causando aproximadamente 300 mortes. A partir desse momento, ocorreram intensos embates entre tropas fiéis aos dois lados e o governo passou a agir de maneira ainda mais hostil contra seus opositores, levando Machar a se exilar na República Democrática do Congo (RDC). Grupos armados anteriormente existentes e outros que foram surgindo junto a essas hostilidades também participaram ativamente do conflito [2]. Desse modo, a União Africana (UA) autorizou o envio de tropas regionais para se juntarem à missão de paz da ONU e essas novas tropas teriam um mandato mais robusto para impor a paz (ROACH, 2016; OCI, 2016a; OCI, 2016b). 

Novamente, foram realizadas inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, particularmente violência sexual, detenção forçada, tortura, assassinatos e destruição de propriedades, configurando um quadro que se aproximava a um genocídio (OCI, 2016c; OCI, 2016d; OCI, 2017) 

No espaço de tempo entre o acordo de 2015 e 2018, foram várias as tentativas falhas de fazer as partes retomarem a negociação. Finalmente, em setembro de 2018, foi assinado o Acordo Revitalizado sobre a Resolução do Conflito na República do Sudão do Sul (R-ARCSS, em inglês), prevendo um sistema de power sharing (compartilhamento de poder) [3] e a instituição de um Governo de Transição Revitalizado de Unidade Nacional, além de tratar de questões como segurança, economia, justiça e reconciliação, assistência humanitária, reconstrução e desmilitarização de determinados locais. Está também previsto que as eleições devam ser realizadas em um período de transição de três anos. Entretanto, diversos grupos armados não o assinaram e outros assinaram-no com ressalvas. Mais ainda, houve dificuldades em estabelecer o governo de transição, problema que só foi solucionado em fevereiro de 2020 (AFRIYIE; JISONG; APPIAH, 2020; CAMPOS, 2019; ONAPA, 2019; UNMISS, 2020). 

Ademais, ainda há um outro contratempo: desde a assinatura do R-ARCSS, a violência intercomunitária está em ascensão mais uma vez. Em maio de 2020, uma nova onda de conflitos intercomunitários assolou o país e autoridades locais demonstraram preocupação com essa nova empreitada. Esses confrontos não-estatais envolvem grupos bem organizados que estão vinculados a determinada identidade, seja ela religiosa, étnica, linguística ou cultural. Eles podem atuar de forma paralela ou se relacionar ao conflito central, em que tomam partido de um dos lados. Os embates que realizam variam em grau, podendo causar a morte de dezenas, centenas ou até milhares de pessoas, sendo capazes de ultrapassar o índice de mortes de uma guerra civil, visto que as milícias também atacam os civis. Costumeiramente, essas ações acontecem em áreas rurais e remotas, mas podem se dar em zonas urbanas. As motivações para que ocorram podem ser: a polarização em relação à guerra civil, baixa representação política, desconfiança em relação ao governo, proteção à comunidade, vinganças e tensões sobre recursos locais (particularmente gado e terra). Além disso, muitos grupos podem ser instrumentalizados e cooptados pelas partes em guerra ou mesmo recebem armas e financiamento da elite política, que busca por meio deles os seus próprios interesses. Dessa maneira, eles estão cada vez mais militarizados, havendo uma ampla disponibilidade de armas leves. Perante esse quadro, é possível observar que um tipo de conflito interfere no outro e que, para atingir uma paz sustentável, a violência comunitária deve ser abordada nos processos de paz, interligando o âmbito local e nacional (KRAUSE, 2019; OCI 2020b; OCHA, 2019). 

Deve-se ressaltar que os países vizinhos acabam interferindo no conflito. Por um lado, Uganda possui um histórico de apoio a Kiir, porém, com o tempo, foi deixando de auxiliá-lo e passou a atuar mais em busca do acordo entre as partes em disputa. Por outro, o Sudão, quando governado por Omar al-Bashir, era entendido como apoiador de Machar. A respeito da razão para o envolvimento desses países nas hostilidades, muito se fala no interesse relacionado ao petróleo. Etiópia e Quênia, por sua vez, atuam nos processos de mediação, assim como a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) [4], a qual patrocina as tentativas de paz. O grupo armado ugandês Lord’s Resistance Army (LRA), realiza ataques na região, inclusive no Sudão do Sul. Portanto, é relevante considerar o escopo regional quando se interpreta o cenário sul sudanês. Ainda outros países dispensam atenção especial a esse contexto e ao processo de paz, como a China, os Estados Unidos (EUA), a Europa e a Troika (grupo composto por EUA, Noruega e Reino Unido que visa estabelecer a paz no Sudão do Sul) [5]. Há também uma importante participação da UNMISS, cujas funções são auxiliar o processo de paz e a implementação do R-ARCSS, proteger civis, investigar violações de direitos humanos e apoiar a entrega de ajuda humanitária (CAMPOS, 2017; AFRIYIE; JISONG; APPIAH, 2020; UNMISS, 2020). 

Segundo dados do Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, 2019), a situação humanitária do país é muito delicada, uma vez que 7,5 milhões de pessoas necessitam de assistência em um país de quase de 12 milhões de habitantes. No total, contabilizam-se 2,3 milhões de refugiados sul sudaneses ao longo de país como Sudão, Uganda, Etiópia, Quênia, RDC e República Centro-Africana, e 1,5 milhão de deslocados internos. Estima-se que, entre 2013 e 2018, 400 mil pessoas morreram devido ao conflito, sendo metade das mortes causadas por violência. É importante frisar que há uma significativa discrepância entre os dados obtidos sobre essas mortes, devido ao difícil acesso a informações. Ademais, nesta contabilização, não é possível distinguir entre os mortos em razão da guerra civil e as vítimas dos conflitos entre comunidades (KRAUSE, 2019). 

Atualmente, após a assinatura do acordo R-ARCSS, houve alguns avanços, como o cessar-fogo em grande parte do território, alguns retornos voluntários de refugiados, progressos na relação entre Kiir e Machar e o estabelecimento de um governo de transição. Contudo, ainda há alguns entraves, tais quais: incidentes violentos, ligados diretamente ou não ao conflito em termos amplos; violações ao acordo; impunidade; diversos casos de violência sexual; violações da liberdade de imprensa; ataques a trabalhadores humanitários; alegações de uso indevido das verbas; postergações dos prazos; e, especialmente, um receio perante o histórico de tentativas falhas de alcançar a paz. Ademais, existem minas remanescentes e um quadro de criminalidade, o que torna a situação mais desafiadora aos civis que, de maneira geral, não se sentem seguros. Observando o contexto como um todo, o conflito foi reduzido, porém a adesão ao acordo de paz é insuficiente. O próprio Conselho de Segurança da ONU compreende que a violência diminuiu desde a assinatura do acordo, mas permanece preocupado com questões políticas e de segurança (OCI, 2019a; OCI, 2019b; CAMPOS, 2019; OCHA, 2019; OCI, 2019c; OCI, 2019d; OCI, 2020c). 

Em 2020, perante a pandemia de COVID-19, autoridades afirmam que as restrições por ela geradas são empecilhos para lidar com a segurança (OCI, 2020b). O Enviado Especial da ONU para a região dos Grandes Lagos, onde está localizado o Sudão do Sul, estima que as medidas preventivas juntas à realocação de recursos para gerenciar a crise sanitária irão, a longo prazo, debilitar as economias já frágeis, impactando os processos de paz e o desenvolvimento nessa área (OCI, 2020a). 

À guisa de uma conclusão, diante dessa multiplicidade de atores e esse cenário complexo, são entendidos como os principais desafios para o país alcançar a paz: a frustração com a política e a governança, reduzida participação da população, baixa qualidade de vida, corrupção, ambição pessoal de seus líderes, rivalidades étnicas, dependência econômica em relação ao petróleo, disputa por recursos (petróleo, gado, terras), problemas de segurança e fragilidade das instituições. Para que se consiga finalmente conquistar uma paz sustentável, é necessário abordar todas essas raízes que geram não só o conflito mais amplo, mas todos os conflitos presentes no país. 

 

NOTAS 

[1] Essas são as duas maiores etnias do país (GUIMARÃES, 2013). 

[2] Mais informações sobre esses outros grupos estão disponíveis em International Crisis Group, 2016. 

[3] Power Sharing se refere à participação de todos os representantes dos grupos relevantes para a tomada de decisão política. Esse “compartilhamento de poder” é empregado especialmente em governos democráticos em sociedades divididas (LIJPHART, 2004). 

[4] A IGAD é uma organização regional constituída por oito Estados do leste africano e tem como objetivo trazer e preservar a paz, segurança e estabilidade na região, atuando por meio da gestão, prevenção e solução de conflitos dentro e entre os países (MAWADZA; CARCIOTTO, 2017). 

[5] Dados adicionais sobre a participação externa no conflito podem ser encontradas em CAMPOS, 2017. 

 

REFERÊNCIAS 

AFRIYIE, Frederick Appiah; JISONG, Jian; APPIAH, Kenneth YawComprehensive analysis of South Sudan Conflictdeterminants and repercussionsJournal Of Liberty And International Affairs, Bitola, v. 6, n. 1, p. 33-47, maio 2020. 

CAMPOS, Ligia Maria Caldeira Leite de. O Atual Conflito no Sudão do Sul. Série Conflitos Internacionais, Marília, v. 4, n. 2, p. 1-9, abr. 2017. 

CAMPOS, Ligia Maria Caldeira Leite de. O Conflito no Sudão do Sul e o Papel da Missão de Paz da ONU no País. 2019. Texto publicado no site da Rede Brasileira de Pesquisa sobre Operações de Paz. Disponível em: https://rebrapazblog.files.wordpress.com/2019/10/campos-conflito-no-sudc3a3o-do-sul-e-unmiss.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020. 

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