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A Ásia Central Pós-Soviética: 32 anos depois

Guilherme Geremias da Conceição*

Historicamente a Ásia Central foi uma região disputada por grandes potências, tendo em vista suas riquezas naturais e sua posição estratégica no coração da Eurásia[1]. Ainda assim, passadas três décadas desde o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e da emancipação de cinco novos Estados no local, essa região permanece chamando pouca atenção dos estudiosos brasileiros dada à escassez de pesquisas disponíveis sobre o assunto. Mesmo que, com os desdobramentos recentes na política internacional, as perspectivas econômicas quanto ao uso de seu potencial exportador energético estejam sob análise, as características do desenvolvimento social da região, bem como a compreensão sobre os seus processos políticos, quando estudadas, continuam sendo conduzidas por um debate ocidental enviesado. Nesse sentido, com vistas a desfazer a aparência monolítica das repúblicas, este texto objetiva realizar um breve balanço sobre a Ásia Central pós-soviética, analisando seus projetos de integração regional e os posicionamentos internacionais adotados pelos países que compõem a região separadamente.

Uma vez que foram conservadas as fronteiras nacionais-administrativas, herdadas do período soviético, inúmeros problemas relacionados à distribuição de recursos, à infraestrutura, ao sistema de transportes e às questões étnicas eclodiram nas jovens repúblicas. Entregues a sua própria sorte, estas precisaram se estabelecer rapidamente enquanto Estados independentes sem a experiência de tê-lo feito anteriormente. Dessa forma, para os “cinco stãos” da Ásia Central, o fim da URSS significou enfrentar uma dura transição para o incerto e o desafio de organizar, em um curto período, quadros tecno-burocráticos e estruturas político-administrativas sem o respaldo prestado pela União anteriormente[2]. Embora alguns países da região tenham conseguido manter uma relativa estabilidade pós-1991 – o que não implica adoção de práticas democráticas ou a recusa de usar a violência contra opositores, como nos casos do Cazaquistão, Turcomenistão e Uzbequistão –, outros viveram momentos de conflito e tensão política desde os primeiros anos de emancipação, como foi a guerra civil no Tadjiquistão entre 1992 e 1997, e a instabilidade política pós-Revolução Colorida, ou “Revolução das Tulipas”, no Quirguistão entre 2005-2011 e 2017-2020 (Linn, 2004; Kubicek, 2011).

No tocante à política externa, os países da Ásia Central vêm se comportando de maneira pendular em relação às divergências territoriais que possuem entre si e às alianças bilaterais e regionais que firmaram durante os últimos trinta e dois anos. No caso tadjique, por exemplo, existe uma constante oscilação no relacionamento com os vizinhos Uzbequistão e Quirguistão. Enquanto, em 2018, Tashkent e Dushanbe discutiram sobre a cooperação industrial de defesa e exercícios militares conjuntos, em 2021, uma disputa por um corpo de água na divisa quirguiz se transformou em um dos confrontos fronteiriços mais graves desde 1991. No caso das relações, por vezes tensas, uzbeque-turcomenas, o Turcomenistão aceitou assinar a Convenção do Mar Cáspio em 2018 e trouxe uma resolução parcial para as disputas de fronteira com o Uzbequistão, com o qual mantém uma cooperação estratégica no setor energético. Podemos, ainda, considerar que embora o Estado turcomeno, rico em gás e autodeclarado “neutro”[3], e o Tadjiquistão possuam diferenças no quadro dos recursos naturais, ambos compartilham uma longa fronteira com o Afeganistão, principal produtor de heroína e ópio do mundo. Este fato, somado ao papel de rota para grupos extremistas, não somente destaca as fragilidades destes Estados como também o seu caráter de “escudos”, enquanto fiadores da segurança regional (Visentini, 2022; De Haass, 2017).

Por sua vez, o Quirguistão, conhecido como a “Suíça da Ásia Central” por abrigar as principais montanhas e bacias hidrográficas da região, tentou estabelecer uma política externa multidimensional concentrada em relações flexíveis com os Estados vizinhos. Mesmo que o início da década de 1990 tenha sido marcado por hostilidades com o Uzbequistão e o Cazaquistão, resultado da saída de Bishkek da zona do rublo, as três nações logo se aproximaram e criaram uma união econômica, a Comunidade Econômica da Ásia Central – hoje fundida com a União Econômica Eurasiática (UEE). Dessa forma, as disputas na fronteira uzbeque-quirguiz se estabilizaram na medida em que o Uzbequistão reconheceu a dependência dos recursos hídricos do vizinho e que o Quirguistão passou a necessitar do gás uzbeque. No mesmo sentido, o Cazaquistão apostou em uma inserção global multi-vetorial – em alguns momentos ocidentalizada. O país desenvolveu uma política exterior que equilibrou a triangulação Rússia-China-Estados Unidos no local ao mesmo tempo que sustentou as iniciativas de integração regional e a disputa velada pela hegemonia centro-asiática com o Uzbequistão.

O movimento conciliatório também foi adotado pelo Estado uzbeque recentemente. O país é o mais populoso e o único que compartilha fronteiras com os demais Estados da região, além de possuir a força militar mais especializada. Hoje, Tashkent, de maneira inversa ao modelo de inserção internacional tímido – e por vezes contraditório – desenvolvido desde o início da independência, busca cada vez mais a consolidação de relações bilaterais harmônicas, tornando-se novamente um player significativo para o xadrez geopolítico regional (Cornell; Starr, 2018; Toktogulov, 2022).

Como resultado do fim da Guerra Fria, os novos e instáveis países da Ásia Central também tiveram de lidar com uma série de atores internacionais dispostos a assentar sua presença na região, principalmente interessados em sua posição estratégica e nos recursos energéticos[4]. Abria-se, assim, um grande espaço para competição e concorrência entre atores locais e extrarregionais, com a entrada de países ocidentais na região e o sucesso de acordos para exploração de gás e petróleo, os quais deveriam compor com os países centro-asiáticos no decorrer dos anos 1990 em um movimento relacionado com a retração russa logo após o desmantelamento da URSS). Nesse sentido, Moscou não tardaria a retornar ao cenário com força total, principalmente porque busca controlar tais rotas de exportação via Comunidade dos Estados Independentes (CEI) ou via UEE. Já o esforço chinês de aproximação teria início em 1997 com a compra de direitos de exploração no Cazaquistão. Dependendo de importações de petróleo desde o começo dos anos 1990, Pequim procurava diversificar seus parceiros e diminuir a dependência das rotas marítimas de transporte (Cornell; Starr, 2018; Visentini, 2022).

Outros países também demonstraram interesse em fechar acordos com a Ásia Central. Entre eles estão Azerbaijão, Coreia do Sul, Índia, Irã, Paquistão, Japão e, mais recentemente, a Turquia, que busca capitalizar suas ligações culturais e étnicas com a região em troca de concessões econômicas e benefícios políticos (Toktogulov, 2022). Os Estados Unidos também aumentaram sua presença local no começo dos anos 2000, quando teve início a guerra ao terrorismo. A resposta americana aos ataques de 11 de setembro criou a necessidade de estabelecer pontos de apoio na conflagração contra o Afeganistão. Para tanto, Washington buscou parcerias com os países centro-asiáticos, estabelecendo bases militares em alguns deles. Esse contexto marca a aproximação entre os EUA e Uzbequistão, concretizada com a instalação na base de Karshi-Khanabad (K2). Processo semelhante foi desenvolvido com o Quirguistão através da criação de uma base (mansitcenter) localizada no aeroporto de Manas[5] (Schwirtz, 2011). No entanto, apesar dos esforços ocidentais de manter ativos esses canais de comunicação com os governos regionais, as pressões para a democratização e um possível epicentro de Revoluções Coloridas que se agregaram à presença dos EUA fez com que os regimes passassem a se sentir ameaçados.

Neste contexto, ocorre uma maior aproximação com a Rússia e a China, representados na figura da Organização para Cooperação de Xangai (OCX). Segundo Collins (2009), a criação da OCX[6] – uma evolução dos Cinco de Xangai – demonstra a existência de um espaço para cooperação em temas de segurança sem que os governos da Ásia Central percebam isso como uma ameaça. Isso se deve ao fato de que esses países teriam suas reivindicações contra movimentos radicais internos atendidas no âmbito da organização, como a Estrutura Antiterrorista Regional (SCO-RATS), sediada em Tashkent. Além disso, a OCX trabalha  em conjunto com a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), cujo mandato inclui a participação de sua Força Coletiva de Reação Rápida no combate ao terrorismo. Esta organização adjacente, fundada pela Rússia em 2002, conta com a participação da Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão, e representa um forte pilar da influência do Kremlin na região (Visentini, 2011).

Como um último elemento-chave para entender o núcleo eurasiano pós-soviético, vale mencionar o desenvolvimento do que se convencionou chamar de Nova Rota da Seda ou Belt and Road Initiative (BRI). O conjunto de ambiciosos projetos de construção de rodovias, ferrovias, gasodutos e oleodutos hoje representa a incontestável conexão entre a infraestrutura chinesa e as repúblicas da Ásia Central. Estima-se que, entre 2013 e 2020, a quantidade total de investimentos chineses no Cazaquistão no âmbito da BRI foi de US$18,69 bilhões destinados ao setor de energia, transporte e mineração. Enquanto as empresas chinesas representam atualmente um terço do total de investimentos estrangeiros no Quirguistão, e participam a níveis superiores a 50% na dívida externa do Tadjiquistão. Os números são também expressivos no Uzbequistão, onde o IDE chinês foi de US$3,9 bilhões nos últimos três anos e tende a duplicar até 2025 (Gerstl; Wallenböck, 2020).

Ainda que de maneira mais tímida, o Turcomenistão também integra a estratégia de Pequim por meio do gasoduto Ásia Central – o qual conecta os campos Bagtyyarlyk e Iolotan ao coração da China, via Uzbequistão – e do Corredor Norte-Sul – que liga Rússia, Cazaquistão, Turcomenistão e Irã –, além da ferrovia Lapis Lazuli, que visa integrar o Afeganistão de volta ao comércio global por ligações com Azerbaijão, Geórgia e Turquia. A linha férrea também está prevista para conectar o Estado turcomeno ao Uzbequistão no Norte, ao Paquistão no Sul e a portos como Gwadar, no Golfo Pérsico (Gerstl; Wallenböck, 2020).

No entanto, se tratando de uma região com tamanha importância política, são inúmeros os desafios para o futuro da Ásia Central e seus projetos de integração. Diante dos últimos acontecimentos no Cazaquistão (2022) e do histórico deixado pelas Revoluções Coloridas desde a década de 2000, uma desestabilização efetiva no Quirguistão, por exemplo, poderia preparar terreno para a radicalização da rivalidade Sul no país, região de fronteira com o Tadjiquistão, e para a difusão de combatentes jihadistas visando o Uzbequistão e Xinjiang, na China[7]. Caso fosse o epicentro de uma revolta, o Estado turcomeno – que se encontra no centro dos interesses energéticos da China, de segurança imediata do Irã e de profundidade estratégica da Rússia – também poderia fragilizar a integração eurasiana, principalmente porque sua neutralidade internacional impediria o fornecimento de assistência militar multilateral no âmbito da CSTO ou da OCX[8]. Outro cenário provável, seria um distúrbio generalizado no Uzbequistão, mais especificamente na região autônoma do Karakalpakstão, o que poderia não somente irradiar a instabilidade para toda Ásia Central, por conta de sua localização, como também ressuscitar células do Movimento Islâmico do Uzbequistão (IMU)[9], que durante a “Guerra ao Terror” dos EUA no Afeganistão estiveram escondidas no Paquistão.

Com isso, nota-se que a Ásia Central enquanto região, mas também levando em consideração seus atores estatais e suas agendas externas independentes, passou a ser uma peça importante na estruturação dos cenários estratégicos internacionais. Seja pelo viés econômico, no âmbito dos recursos naturais que possui e em seu potencial de escoamento, ou pelas considerações político-securitárias, as quais envolvem o radicalismo de alguns grupos que agem na região e sua posição “pivotante”, conforme já defendido pelo geoestrategista britânico Halford Mackinder, em 1919 (MELLO, 1999). Nesse sentido, mesmo que as repúblicas centro-asiáticas sejam, comumente, caracterizadas pelo autoritarismo e apresentem similaridades ao ponto de serem analisadas em conjunto, os cinco Estados têm percorrido caminhos autônomos e alternativos entre si, bem como na perseguição de seus objetivos de desenvolvimento político e econômico, oscilando entre aliança e rivalidade. Dessa forma, se faz extremamente importante ressaltar o papel destes países para o resto do mundo, considerando o seu peso geopolítico e suas particularidades no cenário da integração eurasiana atual.

[1] Não por acaso, a famosa Rota da Seda tinha o espaço hoje formado pelos países centro-asiáticos como um de seus trechos de maior proeminência.

[2] Outro assunto de extrema importância para os países da Ásia Central é a gestão das águas na região e a consequente exploração de seu potencial hídrico, concentrado principalmente no Quirguistão e no Tadjiquistão. O compartilhamento de fluxos de água pelas repúblicas implica uma gestão compartilhada dos recursos, limitando assim o impacto que obras de irrigação e hidrelétricas poderiam ter sobre os países que repousam no baixo curso dos rios.

[3] Apesar dessa condição, o Turcomenistão mantém relações comerciais significativas com os EUA, Rússia, Irã e um crescente comércio transfronteiriço com o Afeganistão. Nesse sentido, o governo turcomeno parece aproveitar-se dos interesses – muitas vezes – conflitantes desses atores como meio de extrair concessões, especialmente em questões de energia.

[4] No que diz respeito ao petróleo e ao gás passíveis de exploração na Ásia Central, o estabelecimento de acordos multilaterais e bilaterais deram origem a uma rede de gasodutos e oleodutos ligando a região ao Ocidente e Oriente, seja através da Rússia – continuidade das tradicionais rotas de transporte – ou de novos caminhos e parceiros. Muitos projetos ainda estão em discussão e disputam o apoio dos governos regionais. Nesse sentido, ainda resta definir o futuro de projetos ambiciosos como, por exemplo, o Nabucco, o South Stream (ambos paralisados atualmente) e o TAPI (Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia, hoje sendo implementado pelo Banco Asiático de Desenvolvimento), além daqueles ligados à Belt and Road Initiative (BRI), lançada no Cazaquistão em 2013 pelo presidente da China, Xi Jinping (Cornell & Starr, 2018).

[5] Em 2009, diante de pedidos para o fechamento da base por parte do governo do Quirguistão, os Estados Unidos concordaram em aumentar os repasses de investimento e em reformar o aeroporto de Manas para permanecerem na localidade. No entanto, a chegada de um novo presidente, Almazbek Atambayev, em novembro de 2011, reviu as reivindicações e declarou sua intenção de fechar definitivamente a base em 2014, ano em que terminaria a licença concedida aos estadunidenses (Schwirtz, 2011).

[6] Fazem parte da OCX: China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão. No início da década de 2010, considerados todos os seus membros, a organização ocupava uma área de 30.183,554 km, na qual viviam em torno de 1.532.323.523 de pessoas; e possuía um PIB somado de US$12,51 trilhões. Para fins de comparação, a União Europeia possui área de 4.324.782 km, para uma população de 502.489.143 de pessoas, e PIB de US$14,82 trilhões (Visentini, 2011).

[7] Ver mais em: KORYBKO, A. “The Coming Color Revolution Chaos And ‘Media Crimea’ In Kyrgyzstan” (2014), In KORYBKO, A. Hybrid Wars: the indirect adaptive approach to regime change. Moscow: Peoples’ Friendship University of Russia, 2015.

[8] Ver mais em: KORYBKO, Andrew. “Turkmenistan As The Three-For-One Staging Ground For Eurasian Destabilization” (2014) In KORYBKO, A. Hybrid Wars: the indirect adaptive approach to regime change. Moscow: Peoples’ Friendship University of Russia, 2015.

[9] No Afeganistão, o grupo que buscava estabelecer um califado islâmico no Uzbequistão, recebeu apoio do regime Talibã, da Interservices Intelligence Agency do Paquistão e da al-Qaeda de Osama bin Laden, além de orquestrar inúmeros atos de terrorismo no Estado uzbeque entre os anos de 1998 e 2009, utilizando suas instalações no Quirguistão (Cornell & Zenn, 2018).

 

*Guilherme Geremias da Conceição é mestrando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui interesses em temas de pesquisa como construção de Estado na URSS; política externa Uzbeque; integração regional na Ásia Central e espaço pós-soviético. Pesquisador e membro-fundador do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético).

Imagem: “Monumento Lenin”. Istaravshan, Tadjiquistão (1965). Por: Stefano Perego

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLLINS, Kathleen. Clan Politics and Regime Transition in Central Asia. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

CORNELL, S.E.; STARR, S.F.. “Regional Cooperation in Central Asia: Relevance of World Models”. The Central Asia-Caucasus Analyst, 2018. Disponível em: <https://www.cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/13547-regional-cooperation-in-central-asia-relevance-of-world-models.html>. Acesso em: 02 jan. 2024.

DE HAAS, Marcel. “Relations of Central Asia with the Shanghai Cooperation Organization and the Collective Security Treaty Organization”. The Journal of Slavic Military Studies, v. 30, n. 1, p. 1-16, 2017. DOI: 10.1080/13518046.2017.1271642.

GERSTL, Alfred & WALLENBÖCK, Ute. China’s Belt and Road Initiative: Strategic and Economic Impacts on Central Asia, Southeast Asia, and Central Eastern Europe. Reino Unido: Taylor & Francis, 2020.

KUBICEK, Paul. Authoritarianism in Central Asia: curse or cure. In Third World Quarterly, vol. 19, n. 1, p. 123, 2011.

LINN, Johannes F. Economic (Dis)Integration matters: the Soviet collapse revisited. The Brookings Institution, out. 2004.

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Quem tem medo da geopolítica?. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1999.

SCHWIRTZ, M. “New Leader Says U.S. Base in Kyrgyzstan Will Be Shut”. The New York Times, 8 de novembro de 2011. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2011/11/02/world/asia/kyrgyzstan-says-united-states-manas-air-base-will-close.html>. Acesso em: 02 jan. 2024.

TOKTOGULOV, B. “Uzbekistan’s Foreign Policy Under Mirziyoyev: Change or Continuity?”. Eurasian Research Journal, 4 (1), 49-67, 2022.

VISENTINI, Paulo Fagundes. O dragão chinês e o elefante indiano: a ascensão da Ásia e a transformação do mundo. São Paulo: Leitura XXI, 2011.

VISENTINI, Paulo Fagundes. Oriente Médio, Afeganistão e Ásia Central: a lógica da guerra sem fim. Porto Alegre: Leitura XXI, 2022.

 

 

Autodeterminação e irredentismo: a luta por independência de Nagorno-Karabakh

Danielle Amaral Makio: Mestranda nos programas Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Santas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies (Universidade de Glasgow) e bolsista Erasmus Mundus. E-mail: daniellemakio@gmail.com

O horizonte político do enclave de Nagorno-Karabakh (N-K), também conhecido como Artsakh, coloca-se como verdadeiro obstáculo à estabilidade regional no sul do Cáucaso. A assimetria causada pela existência de um território majoritariamente composto por armênios dentro do Estado azeri fomenta violentos atritos entre os dois grupos étnicos, atritos estes que permanecem latentes mesmo após a assinatura do cessar-fogo em 1994. As históricas demandas do enclave pela incorporação à jurisdição da Armênia foram substituídas, nos anos recentes, por demandas separatistas que ambicionam o reconhecimento de N-K como um Estado independente (POKALOVA, 2015).

Nos anos 1920, as nações transcaucasianas, nomeadamente armênios, geórgicos e azeris, buscaram se consolidar como Estados independentes, iniciando um turbulento processo de demarcação territorial. Neste contexto, os conflitos entre Armênia e Azerbaijão, que já haviam lutado pela posse do enclave de Nagorno-Karabakh, localizado na região fronteiriça entre ambos os países, antes de tornarem-se Repúblicas Soviéticas, escalariam substancialmente. Embora as raízes da disputa entre Armênia, cristã, e Azerbaijão, muçulmano de maioria xiita, pelo controle do território sejam seculares e tenham um nomeado embasamento étnico-religioso, é notável que o período soviético configura um verdadeiro ponto de viragem na postura dos dois Estado frente à região em virtude do redesenho das fronteiras do Cáucaso desempenhado pela URSS (GEUKJIAN, 2012).

Neste contexto, em 1923, o Politburo, comitê de comando da União Soviética, viria a declarar que, apesar da maioria étnica armênia em N-K, o enclave passaria a estar formalmente vinculado ao território do Azerbaijão. Como forma de amenizar as animosidades dos armênios de Karabakh, o Politburo concederia à região o status de província autônoma (Oblast) da União Soviética. A despeito da manobra constitucional adotada pelo Partido Comunista, torna-se evidente que os direitos de N-K constituíam um mero estatuto formal, uma vez que o governo azeri continuava a desempenhar um papel dominante em seus assuntos internos, constrangendo não apenas os anseios do vizinho rival, como os da própria população de N-K  (DE WAAL, 2003).

As políticas discriminatórias do Azerbaijão frente aos armênios de Karabakh constituiriam um elemento crítico nas reivindicações do enclave pela secessão. Sob a óptica da região fronteiriça, desde a década de 1920, suas características étnicas são constantemente ameaçadas pela nação titular azeri através de medidas como a supressão da história e dos símbolos armênios nas escolas e nos meios de comunicação. As posições mais elevadas na sociedade também tendem a ser delegadas aos nativos azeris, um tratamento preferencial que se explicita não apenas nas esferas da vida pública, mas também na constituição nacional, que fora gradualmente ajustada em favor da nacionalidade azerbaijana. A questão cultural seria agravada ainda pela forte política de migração promovida pelo Estado para compensar o predomínio da etnia armênia na região, enquanto que na esfera econômica o enclave enfrentaria privações no acesso a recursos e investimentos estruturais em decorrência de políticas econômicas formuladas pelo Azerbaijão. Gradualmente, estas intervenções se traduziriam em sistemáticas políticas discriminatória que visavam sufocar as potenciais demandas da região por autonomia e que, inevitavelmente, viriam a representar um elemento crítico das demandas de N-K por secessão (BERG; MÖLDER, 2012).

Em 1988, as preocupações frente ao comportamento hostil de Baku (capital azeri) se traduziriam em demandas substanciais do enclave para sua incorporação à Armênia, Estado com o qual tinha um forte sentimento de identificação em vista da compartilhada origem étnica de ambos. O Comitê Central da URSS, opondo-se a qualquer tentativa de alteração das fronteiras soviéticas e a qualquer mobilização que pudesse fornecer um precedente a demais movimentos separatistas, mostrou-se irredutível frente aos anseios dos armênios de Karabakh (DE WAAL, 2003). No entanto, a linguagem revolucionária da demanda pelo irredentismo enunciaria um novo período de confrontos violentos, cujo ápice se consolidaria em 1992 (SIMÃO, 2010).

Podemos notar, portanto, que o desmantelamento da URSS (datado de 1991) representou o fim do elemento de autoridade que assegurava a relativa estabilidade na região: durante a era soviética, as demandas do enclave eram verdadeiramente negligenciadas – e sufocadas – pelo Politburo, que temia que a concessão de maior autonomia a N-K pudesse fornecer o precedente para a revolta de outros grupos nacionais. No pós-1991, contexto da onda independentista das Repúblicas Soviéticas, os sucessivos confrontos entre armênios e azeris pela ocupação e controle de N-K escalaram ao nível do embate violento e do isolamento absoluto dos dois grupos étnicos. Em 1992, no episódio conhecido como  Desde então, o enclave se caracteriza pela população monoétnica, de origem exclusivamente armênia. Neste cenário, atesta-se que, a despeito do cessar-fogo acordado em 1994, a ausência de um confronto direto não se traduziu no estabelecimento da paz (DE WAAL, 2003; HILL, 1993).

Diante do cenário de “no war, no peace” estabelecido em Nagorno-Karabakh, tem início a intervenção da OSCE (Organization for Security and Cooperation in Europe) no conflito. As ações da organização, neste contexto, procuravam desmantelar o ambiente de demandas totalizantes e desconfiança com vistas a apontar uma alternativa consoante aos princípios, nem sempre conciliáveis, da organização: a integridade territorial dos Estados e o direito dos povos à autodeterminação. A criação do Grupo Minsk em 1992, uma comissão ad hoc composta por França, Rússia e Estados Unidos, marca o início da atuação da OSCE no contexto da Transcaucásia. No mesmo ano, entretanto, as reuniões iniciais falham e a ação militar predominou sobre a via diplomática. Após a assinatura do cessar-fogo, que se dá em 1994, por forte influência russa, são apresentados os princípios norteadores da atuação da organização no local, princípios estes que englobariam o direito de Nagorno-Karabakh à autoafirmação, a integridade territorial do Azerbaijão e a garantia de segurança à população do enclave (POKALOVA, 2015).

Uma nova tentativa de estabelecimento do pacote de resolução de conflito é feita pelo Grupo em 1997. A sugestão mantinha o reconhecimento do direito de autoafirmação dos armênios de Karabakh e previa, ainda, a criação de zonas-tampão patrulhadas por operações de peacekeeping da OSCE e a concessão da alcunha de unidade estatal do Azerbaijão a N-K. No mesmo ano foi adicionada à proposta uma cláusula de desmilitarização que previa a retirada das tropas das partes envolvidas no conflito. Todavia, a não definição clara do status formal concedido ao território litigioso acarreta uma nova rejeição, que é seguida por sucessivas tentativas também mal sucedidas de negociação (POKALOVA, 2015).

A lentidão e a falta de perspectiva das negociações levantam a necessidade de preenchimento das insuficiências existentes ao longo do processo, um problema cuja solução é então desenhada pelo Processo de Praga que, em 2004, sugere uma aproximação baseada em respeito e confiança mútuos entre ambos as partes negociadoras. Em 2006, entretanto, o frágil horizonte de possibilidades de resolução do conflito sofre uma forte alteração: após realizar uma série de referendos populares, N-K ascende à condição de busca por uma independência estrita, de modo que sua anexação à Armênia deixa de ser uma opção viável. A atitude dos armênios de Karabakh foi duramente criticada pela OSCE que, em 2007, cria os chamados Princípios de Madrid, prevendo a retirada das tropas dos Estados envolvidos e a realização de um novo referendo acerca do status de N-K. Já em 2011, durante as negociações de Kaza, ocorre mais um ponto de viragem da disputa: Armênia e Azerbaijão atacaram-se mutuamente alegando falta de comprometimento e sinceridade de ambas as partes (POKALOVA, 2015).

A análise da atuação da OSCE em N-K permite definir, basicamente, três momentos no conflito: (1) o desejo de independência da região que dá início ao litígio no início da década de 1990; (2) a aproximação da Armênia e a legitimação popular de uma possível anexação por esta que marca o início das negociações em 1994; e (3) a retomada da busca pela independência e pelo reconhecimento internacional formalizada em 2006 . A crescente solidificação das instituições de N-K leva a região a atingir um nível de maturidade suficientemente grande para que a autonomia volte a ser uma pauta definitiva. Junto do aumento do nível de militarização da segunda metade dos anos 2000, a desconfiança entre as partes e a posição de N-K enquanto estado de facto vem barrando as negociações, uma vez que levanta um impasse dentro do próprio escopo dos princípios da OSCE (MYCHAJLYSZYN, 2001).

O conflito em questão origina-se, na perspectiva de Karabakh, a partir do direito de autodeterminação dos povos, enquanto que, sob a óptica azeri, há uma clara infração do princípio de integridade territorial. Uma vez que a independência passa a ser a única solução aceita por uma das partes, há uma necessária infração dos fundamentos basilares da OSCE – seja da autodeterminação, seja da integridade territorial. Outro impasse que dificulta a resolução do conflito em questão, ademais, é a falta de poder econômico para financiar os projetos propostos pelo Grupo Minsk, fato que dificulta a implementação dos pacotes propostos pela organização e aumenta a influência de grupos interessados na manutenção do conflito (MYCHAJLYSZYN, 2001).

Após anos de congelamento do conflito em vista do insucesso nas negociações e da supressão de interações violentas entre as partes, o conflito voltou a apresentar sinais de retomada das hostilidades em 2016. Em fevereiro deste ano, a Armênia acusou o Azerbaijão de investidas militares que desrespeitariam o acordo, declaração que gerou movimentações armadas sobre Karabakh por ambas as partes: ao longo de ofensivas que se prolongaram de 2 a 11 de abril, cerca de 200 pessoas foram mortas em decorrência do evento. Graças à atuação da OSCE e, sobretudo em decorrência de negociações encabeçadas pela Rússia, a escalada foi contida.

A situação do litígio permaneceu estável até meados de 2020, quando o então presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, afirmou que a resolução militar do conflito seria possível. A declaração foi o estopim para uma nova escalada do conflito, que voltou a contar com investidas militares entre azeris e armênios e mobilizou Rússia, União Europeia as Nações Unidas.

A incongruência entre Estado e nação constitui a lógica fundamental que sustenta o início do conflito em N-K, região que ainda hoje permanece ocupada por Karabakhs de origem étnica armênia e subjugada à jurisdição dos azeris . Os desdobramentos que sucederam o estopim do conflito em 1991, contudo, apontam para uma indelével característica da disputa: o silenciamento dos armênios de Karabakh. Se a princípio temos uma luta por autodeterminação, atualmente temos um contexto em que Armênia e Azerbaijão lutam pelo futuro de um território cujo povo busca por uma independência não atrelada a nenhum dos Estados. O protagonismo de armênios, azeris e terceiros na arena de negociações a respeito do futuro de uma nação irredentista, assim, parece não necessariamente favorecer os desejos da população de N-K e levanta questionamentos acerca de quais interesses têm sido de fato defendidos ao longo do histórico do conflito.

Outra questão que merece menção especial é a estratégica localização do litígio. N-K está no caminho de duas grandes rotas energéticas: (1) a malha de gasoduto que liga Rússia e Armênia e (2) linhas de transporte estabelecidos entre Turquia e Geórgia. Em virtude desta disposição geográfica, a disputa em questão tem relevância aos assuntos internos de atores regionais, nomeadamente Rússia e Turquia. Tipicamente interessada na manutenção de sua influência no espaço pós-soviético, a primeira sempre se mostrou um ator atento aos desdobramentos do cenário aqui discutido e proativo no que diz respeito à liderança do processo negocial. Contudo, ao passo em que os russos tipicamente demonstram favorecer um alinhamento à Armênia, o Azerbaijão tem sido recorrentemente apoiado pela Turquia, cuja expansiva presença no cenário securitário da Transcaucásia vem se afirmando em tempos recentes. É este, pois, o panorama geral de um dos mais sangrentos conflitos do Cáucaso,

Imagem: Garoto brinca em cidade destruída pela guerra de Nagorno-Karabakh, Brendan Hoffman/Getty Images

REFERÊNCIAS

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