O artigo de Alexandre Fuccille e Danielle Makio, membro do CIRE, examina os motivos geopolíticos e identitários por trás da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. A pesquisa revela como o projeto político de Vladimir Putin se aprofundou em sua rivalidade com o Ocidente e no uso da memória histórica para fortalecer a posição da Ucrânia na agenda russa. A expansão da OTAN e o papel da identidade estatal são elementos chave na análise, que pode ser acessada integralmente no artigo completo.
Ucrânia
Tensão na fronteira ucraniana: reflexos de um mundo em mudança
Getúlio Alves de Almeida Neto*
O ano de 2021 marcou os 30 anos da dissolução da União Soviética. No início do mês de dezembro deste mesmo ano, tropas russas – em números estimados em até 175 mil, segundo os serviços de inteligência do governo dos Estados Unidos – foram posicionadas próximas às fronteiras com a Ucrânia. A situação provocou o aumento da tensão das relações russo-estadunidenses e pode ser apontada como reflexo de um processo que evidencia a questão ainda a ser resolvida sobre as configurações de forças e a arquitetura de segurança no continente europeu, sobretudo no que tange ao chamado espaço pós-soviético, e são motivos de apreensão aos olhos da comunidade internacional em relação à iminência de um conflito em maiores escalas.
Apesar de intensificada ao longo da última década, a latência destas tensões pode ser traçada desde a queda do bloco comunista em 1991. Nesse sentido, os acontecimentos e desdobramentos observados neste período trazem à tona alguns pontos que merecem atenção especial. Em primeiro lugar, torna-se claro que, mesmo passados 30 anos, a formação dos novos Estados pós-soviéticos ainda traz questionamentos sobre a identidade destes e o papel da Rússia neste novo contexto geopolítico. Em segundo lugar, mostram a evolução da capacidade militar russa e a disposição do Kremlin em fazer uso de suas forças armadas – direta ou indiretamente – no processo de barganha e reivindicação de seus interesses. Como terceiro ponto, destaca-se a tendência de reconfiguração de forças no tabuleiro internacional a partir da ascensão da China ao posto de principal concorrente dos Estados Unidos e do renascimento militar russo. Em razão destes dois elementos, os cálculos estratégicos dos atores envolvidos passam a ser feitos a partir da percepção do fim da hegemonia estadunidense estabelecida no pós-Guerra Fria. Por fim, este cenário evidencia o papel crucial da geopolítica para análise da política externa russa e de sua relação com os Estados Unidos e a OTAN. Na origem das tensões atualmente em curso na Ucrânia encontra-se um fenômeno geopolítico percebido pela Rússia como lesivo a sua segurança nacional: a crescente expansão da OTAN, uma aliança militar forjada para combater a União Soviética, em direção às fronteiras russas.
A crise em torno da Ucrânia se iniciou após o posicionamento de tropas russas munidas de artilharia, veículos blindados de combate e tanques ao redor de praticamente toda a fronteira com a Ucrânia. Conforme pode ser visto por imagens de satélites, Kiev se vê cercada ao norte, leste e sul por forças russas. O medo gerado pela aproximação de soldados à fronteira ucraniana se deve ao histórico recente de anexação da Crimeia (2014) e apoio militar – ainda que negado oficialmente pelo Kremlin – às forças separatistas na região do Donbass, nas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. Todos estes elementos fazem com que Ucrânia, Europa e Estados Unidos passem a projetar a possibilidade de invasão militar russa em solo ucraniano. Vale ressaltar, no entanto, que, em abril de 2021, episódio semelhante já havia acontecido. Na ocasião, o governo russo alegou se tratar de uma ação defensiva em resposta aos exercícios militares da OTAN na Europa e como medidas preemptivas para impedir o governo ucraniano de lançar uma ofensiva na região de Donbass (BIELIESKOV, 2021).
Com o objetivo de resolver o impasse, uma sequência de conversas entre líderes da Rússia, EUA e OTAN têm acontecido. Nas negociações, o Kremlin lançou uma gama de reivindicações que incluem, principalmente: 1) o compromisso da OTAN em nunca incorporar a Ucrânia à aliança militar ocidental; 2) eliminar a alocação de armas e tropas da OTAN em países que aderiram à aliança após 1997[1]; 3) banimento de mísseis balísticos de alcance intermediário da OTAN instalados na Europa; 4) garantir a autonomia através da região de Donbass através da federalização da Ucrânia conforme os acordos de Minsk de 2015 (MEYNES, 2022).
Desse modo, o Kremlin tem elevado suas apostas sobre a reposta da OTAN a uma eventual invasão russa em território ucraniano, com o objetivo de coagir seus membros a uma nova rodada de negociações que estabeleça garantias à segurança russa e que formalmente estabeleça o fim da expansão militar ocidental próximo à fronteira russa. Segundo Pifer (2021), Putin sabe que as demandas feitas seriam consideradas desproporcionais pelo governo Biden e pelos outros líderes da OTAN, que tais termos não seriam aceitos e que sua rejeição poderia servir como um pretexto para a incursão russa. Pode-se conjecturar, também, a hipótese de que Vladimir Putin estaria testando os limites de concessões e a forma de negociação do governo estadunidense sob comando de Biden.
Nesse sentido, pode-se argumentar que um objetivo do governo russo foi atingido, ao menos por ora: gerar tensão para chamar atenção das potências ocidentais e garantir um lugar à mesa de negociação, estabelecendo seus próprios termos e interesses. Entre esses interesses, destaca-se o objetivo de reformular a configuração de forças estabelecidas no pós-Guerra Fria, no qual o avanço da OTAN ao Leste Europeu e a adesão de ex-repúblicas bálticas soviéticas, além da sinalização da possível adesão de Geórgia e Ucrânia, foram percebidas por Moscou como política agressiva do bloco ocidental capitaneado por Washington e ameaça à segurança doméstica russa. Com isso em mente, a postura atual russa em relação à Ucrânia deve ser entendida como uma estratégia de brinkmanship, que consiste na elevação da tensão e ameaça de um conflito iminente em busca de obter ganhos em relação à contraparte, como visto na Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. De fato, um episódio que ressoou as tensões vividas no auge da Guerra Fira, o vice-chanceler da Rússia, Sergei Ryabkov cogitou a possibilidade de envio de recursos militares russos à Cuba e Venezuela.
A Rússia parece, a princípio, ter vantagem quanto aos desdobramentos da crise ucraniana. Enquanto suas tropas não ultrapassarem a fronteira, o país não poderá ser acusado de agressão e, nesse meio tempo, continuará a pressionar o Ocidente a negociar em termos favoráveis a Moscou. Como consequência, o dilema de como agir em relação a este imbróglio fica, em sua maior parte, nas mãos da Administração Biden. No cenário em que os Estados Unidos concordem com as demandas de Moscou, a imagem de Washington a nível internacional demonstraria um sinal de fraqueza e mais um indício de que a hegemonia exercida pelo país desde o fim da Guerra Fria está se deteriorando, uma vez que a despeito do imenso poderio militar e econômico, não é mais capaz de fazer prevalecer seus interesses políticos ao redor do globo.
No cenário em que os Estados Unidos iniciem o conflito, Putin terá ainda mais argumentos para justificar a intervenção militar na Ucrânia e aumentar sua retórica de expansionismo militar ocidental como ameaça à segurança russa. Caso a Rússia eventualmente tome o primeiro passo e invada a Ucrânia, Biden terá que lidar com o dilema de não reagir com o uso de força militar, como já ocorreu no caso da Crimeia e, novamente, demonstrar fraqueza política, ou também enviar tropas à Ucrânia. Se este último cenário acontecer, haveria uma linha tênue entre evitar a escalada dos conflitos e se ver em meio a uma guerra indesejada, logo após a retirada humilhante das tropas do Afeganistão.
A retaliação não-bélica mais provável seria, portanto, a aplicação de sanções à Rússia. Contudo, Moscou tem demonstrado, desde a anexação da Crimeia, que está disposta a sofrer os custos econômicos em detrimento de seus interesses estratégico-securitários e garantir a primazia de sua influência política e militar sobre as ex-repúblicas soviéticas, sobretudo no caso da Ucrânia, cujos laços históricos e culturais trazem um elemento de ainda mais complexidade. Como bem define Bordachev (2021, p. 13, tradução nossa) “a política externa russa não é focada em considerações materiais: as questões de segurança, prestígio e étnicas prevalecem sobre os ganhos e benefícios.”
Não obstante, é preciso dizer que a eclosão de um conflito tampouco é de interesse entre os russos. Como mostra Kolesnikov (2021), a população não é favorável a um conflito com a Ucrânia, sobretudo em razão dos laços históricos entre os dois povos. Além disso, o apoio político a Vladimir Putin, a nível doméstico, vem se deteriorando em decorrência dos anos de estagnação econômica e da pandemia de Covid-19. A possibilidade de uma repressão violenta a eventuais protestos contra o governo russo ecoaria os acontecimentos em Belarus e Cazaquistão[2] e seria mais um elemento prejudicial à figura do presidente, doméstica e internacionalmente.
Por fim, cabe destacar que a atual situação envolvendo a possibilidade de um conflito na Ucrânia se desenvolve a partir de um cauteloso cálculo estratégico das potências envolvidas. Ainda que o autor desta análise acredite ser improvável a eclosão de um conflito, ao menos em curto e médio prazo, os desdobramentos das negociações e o desencadeamento de hostilidades em razão de possíveis falhas de comunicação entre as partes dotam o futuro das relações russo-estadunidenses em relação ao contexto pós-soviético de uma grande carga de imprevisibilidade.
[1] A expansão da OTAN a partir de 1997 deu-se em quatro rodadas de adesão de novos membros: Hungria, Polônia e Tchéquia (1999); Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Romênia e Bulgária (2004); Albânia e Croácia (2009); Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020).
[2] No caso de Belarus, os protestos eclodiram em 2020, após o anúncio da reeleição de Lukashenko, a sexta seguida desde a independência do país da União Soviética, apesar das pesquisas eleitorais apontarem para a derrota do governante. No Cazaquistão, as revoltas começaram no início de 2022 em resposta ao aumento do preço dos combustíveis. Em comum, os dois casos se dão em ex-repúblicas soviéticas marcadas pela centralização de poder e autoritarismo de seus governos, que contam com o apoio de Vladimir Putin para a manutenção de seus mandatos. Na crise cazaque, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) – aliança militar composta por Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão – foi acionada pela primeira vez desde sua criação, em 1992, a pedido do governo cazaque. A Rússia contribuiu com, ao menos, 2 mil soldados.
*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br
Imagem: Foto de Kiev por Pixabay.
REFERÊNCIAS
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BORDACHEV, Timofei. Space Without Borders: Russia and Its Neighbours. Valdai Discussion Club. December 20, 2021. Disponível em: https://valdaiclub.com/a/reports/space-without-borders-russia-and-its-neighbours/. Acesso em: 18 jan. 2022.
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MAYNES, Charles. 4 things Russia wants right now. NPR. January 13, 2022. Disponível em: https://www.npr.org/2022/01/12/1072413634/russia-nato-ukraine. Acesso em: 18 jan. 2022.
PIFER, Steven. Russia’s draft agreements with NATO and the United States: Intended for rejection? Brookings. December 21. 2021. Disponível em: https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2021/12/21/russias-draft-agreements-with-nato-and-the-united-states-intended-for-rejection/. Acesso em: 18 jan. 2022.
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Guerra Civil no Leste da Ucrânia
Getúlio Alves de Almeida Neto: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.
E-mail: g.alvesneto3@gmail.com
Danielle Amaral Makio: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
E-mail: daniellemakio@gmail.com
Desde março de 2014, o Leste Ucraniano é palco de um conflito armado entre movimentos separatistas pró-Rússia que reivindicam a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, e o governo de Kiev. Também conhecido como Guerra em Donbass, região da bacia do rio Donets, o conflito deu-se na esteira das manifestações do Euromaidan em fins de 2013 e concomitante à anexação da Crimeia pela Federação Russa. Em razão de evidências que apontam para o apoio indireto russo aos separatistas, através de suporte logístico e armamentista e do envio de tropas paramilitares à região (SCIUTTO, 2019), Kiev receia que haja uma nova anexação de parte do território ucraniano à Federação Russa, como ocorrera na Crimeia. Fruto desse contexto, o conflito reverbera na imagem russa perante a União Europeia, os Estados Unidos e a outros países do chamado espaço pós-soviético. Sobretudo, a Guerra em Donbass reflete a tensão gerada pela oposição russa ao alargamento do bloco europeu em direção às regiões reivindicas por Moscou como sua zona de influência.
O conflito na Ucrânia é fortemente marcado por questões de cunho étnico, linguístico e cultural que dividem a Ucrânia em dois grandes grupos identitários: enquanto o centro-oeste do país defende a aproximação com Europa, as populações do sul e do leste ucraniano defendem maior influência de Moscou na região, ou até mesmo a futura incorporação à Federação Russa. O caráter identitário e cultural do conflito tem suas raízes no processo de formação das identidades de russos e ucranianos, que remontam ao século IX. A origem comum dos atuais Estados Russo e Ucraniano é tema de controvérsia entre ambos os povos sobre o real nascimento de suas nações. A lacuna criada por esta ausência de consenso, por sua vez, reflete tanto na forma como a Ucrânia é vista pela Rússia quanto na percepção dos nacionais ucranianos sobre a Rússia (ADAM, 2018).
Somente após a dissolução da União Soviética em 1991 houve o surgimento do Estado Ucraniano soberano e independente (a despeito de um breve período após a Revolução de 1917). Como consequência do grande número de russos que permaneceram fora da Rússia após a extinção do bloco soviético, a Ucrânia conta com significativa parcela de russos étnicos na composição de sua população: 17,3% segundo o censo de 2001 (UCRÂNIA, 2001). No entanto, as características demográficas da Ucrânia sofrem de alto grau de regionalização. Nas regiões de Donetsk e Lugansk, a porcentagem de russos étnicos se eleva para 38,2% e 39%, respectivamente. Quanto ao número de russófonos, cerca de 75% da população da região do Donbass são falantes de russo o que contribui para a percepção de pertencimento cultural à Rússia (GIELOW, 2019). À medida em que se observa a demografia ucraniana do Leste em direção a Oeste, menor é a porcentagem da população étnica russa e/ou falante da língua russa (UCRÂNIA, 2001).
Dentro desse contexto de divisão identitária no país, ocorrem as primeiras manifestações políticas em 2004, na chamada Revolução Laranja. Os protestos tiveram início após as alegações de fraude nas eleições a favor de Viktor Yanukovytch, de tendência pró-Rússia. Com o êxito das manifestações, realizaram-se novas eleições sob observação de órgãos nacionais e internacionais, culminando na eleição do governo pró-Ocidente liderado por Viktor Yushchenko (MIELNICZUK, 2014). Yushchenko, no entanto, não conseguiu se reeleger nas eleições de 2010, cujo vencedor foi Yanukovytch.
Apesar de não ser contrário à aproximação com a União Europeia, Yanukovytch era marcadamente mais favorável ao estreitamento das relações com Moscou do que seu antecessor. Nesse contexto, o presidente ucraniano suspendeu, em novembro de 2013, as negociações econômicas com a União Europeia, as quais possibilitariam a possível adesão do país ao bloco europeu no futuro Em resposta à decisão do governo, tiveram início protestos da Praça Maidan, em Kiev, exigindo a renúncia do Presidente Yanukovytch. Os protestos receberam o nome de Euromaidan, em alusão à reivindicação da população local da volta das negociações com Bruxelas, e duraram até fevereiro de 2014, marcados pela repressão policial e escalada da violência, culminando na fuga de Yanukovytch para a Rússia (HENDLER, 2014; SCIUTTO, 2019).
Após a fuga do então governante, instaurou-se um parlamento interino em Kiev. Dentro das medidas apresentadas pelo governo de transição, havia uma proposta de rebaixar o status oficial da língua russa no país. Em resposta a esta perspectiva, uma série de protestos pró-Rússia começaram em cidades do Leste e do Sul da Ucrânia e também na península da Crimeia. No caso da Crimeia, em um referendo realizado em 16 de março de 2014, 90% dos votos expressaram a vontade da população de incorporarem-se à Rússia, processo concluído pelo tratado de adesão da Crimeia à Federação Russa assinado em 18 de março de 2014. Da mesma forma, os protestos nas regiões de Donetsk e Lugansk passaram a ter um caráter separatista e a buscar por maior aproximação e integração com a Rússia.
Ao contrário da Crimeia, no entanto, esses movimentos separatistas evoluíram para um conflito armado com a tomada de prédios públicos em Donetsk e Lugansk e o envio do exército ucraniano e da Guarda Nacional – organização paramilitar que havia sido criada durante os protestos de Maidan para controlar as revoltas no leste do país. A República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk autodeclararam-se independentes de Kiev em 7 e 14 de abril de 2014, respectivamente. Em 22 de maio do mesmo ano, foi anunciada a criação de uma confederação envolvendo as duas repúblicas, chamada de Nova Rússia (Novorossyia). Um ano depois, os líderes regionais anunciaram o congelamento deste projeto (KOLESNIKOV, 2015).
Apesar de o governo russo negar, constantemente, o envolvimento no conflito, e de não apoiar oficialmente um processo de adesão das repúblicas separatistas à Federação Russa, como foi o caso da Crimeia, há evidência de envolvimento de forças russas na região. Chamados informalmente de “pequenos homens de verde”, soldados que não carregam a insígnia do exército russo, mas que são russófonos e estão armados com arsenal russo ocupam a região do leste da Ucrânia, assim como na Crimeia. Ainda, de acordo com dados da OTAN, do Pentágono e do governo ucraniano à época, estimava-se a presença entre 20 mil e 45 mil soldados russos posicionados na fronteira entre Rússia e Ucrânia. Ademais, a derrubada do voo MH17 da Malaysia Airlines, com origem de Amsterdam e destino a Kuala Lampur, em 17 de julho de 2014, enquanto sobrevoava o território controlado pelos separatistas, é motivo de forte desconfiança quanto à origem do míssil lançado. Segundo relatos, as 283 mortes de passageiros e tripulantes ocasionadas pelo ataque foram causadas pela utilização do sistema de míssil russo BUK-TELAR, corroborando as suspeitas de envolvimento da Rússia na região (SCIUTTO, 2019).
Para além da ingerência militar, um novo decreto assinado por Putin em abril de 2019, que facilita a concessão de cidadania russa a cidadãos das regiões separatistas (GIELOW, 2019), contribui para o receio das autoridades ucranianas de que haja uma nova anexação promovida por Moscou. Tal medida se relaciona, sobretudo, com a nova abordagem de Putin sobre a questão étnico-nacional a partir de seu terceiro mandato em 2012, que inaugura um período conhecido por dar maior ênfase ao estreitamento de laços linguísticos e culturais entre a Rússia e demais países da região. Ao liderar este processo, a Rússia passa, então, a facilitar que populações que vivem fora de seu território possam também ser consideradas russas (BLAKKISRUD, 2016). A medida também pode ser entendida como uma forma de frear os avanços do exército ucraniano contra os separatistas, que poderiam ser reconhecidos pela Rússia como uma agressão aos seus nacionais.
A primeira tentativa de acordo entre as partes foi realizada através do Protocolo de Minsk, concebido na capital da Bielorrússia em setembro de 2014. O acordo, assinado por Ucrânia, Rússia e representantes das repúblicas separatistas da Ucrânia, consistia em doze pontos e previa: 1) um cessar-fogo imediato; 2) a anistia aos rebeldes que se desarmassem; e 3) um corredor para ajuda humanitária e refugiados. No entanto, o acordo fracassou e as hostilidades entre as partes combatentes continuam. Após inúmeras tentativas frustradas de cessar-fogo e de uma série de negociações, em outubro de 2019 estabeleceu-se, sob o âmbito do Fórmula Steinmeier, em alusão ao Presidente Alemão Frank-Walter Steinmeier, uma negociação entre os governos da Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk, República Popular de Lugansk e da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). O acordo prevê as eleições livres nos territórios separatistas, observadas pela OSCE, e reincorporação destes ao território ucraniano com status especial. Após o acordo, tropas separatistas começaram a se retirar de algumas cidades ocupadas. Em dezembro do mesmo ano, se reuniram na Normandia, França, o atual presidente ucraniano Volodymyr Zelensk, Vladimir Putin, Emmanuel Macron e Angela Merkel, para que fosse negociada a troca de prisioneiros entre as partes e para que fosse reiterada a necessidade da realização de eleições e negociações futuras.
O conflito no Leste Ucraniano afeta cerca de 5,2 milhões de pessoas. Desse total, estima-se que 3,5 milhões necessitarão de algum tipo de ajuda humanitária para sobreviver (OCHA, 2020a). Em 2015, apenas um ano após o início do conflito em Donbass, 925.500 pessoas haviam fugido para países vizinhos (OCHA, 2015). Já em relação ao número dos deslocados internos, os registros oficiais em 2020 indicam ao menos 1,4 milhão de pessoas. Segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgado em 12 de março de 2020, o conflito já causou a morte de 13 mil a 13,2 mil pessoas. Estima-se que este total seja composto pela morte de ao menos 3,350 mil civis, 4,1 mil soldados ucranianos, e 5,650 mil de outros grupos armados. No entanto, o mesmo relatório aponta para uma forte tendência de queda no número de vítimas. Em 2019, registrou-se a morte de 27 civis, 40,6% a menos que no ano de 2018, sendo então o ano com menor número de baixas desde o início das hostilidades (ACNUDH, 2020b).
Apesar do arrefecimento recente das hostilidades entre separatistas e forças governamentais, o conflito estende-se há seis anos. Como desdobramento dos protestos iniciados em 2013, na Praça Maidan, em Kiev, e da anexação da Crimeia pela Federação Russa, a Guerra em Donbass evidencia a disputa interna entre narrativas pró-União Europeia e pró-Rússia. Nesse sentido, o entendimento das razões que desencadearam o movimento separatista passa pela necessidade de um olhar histórico da construção da identidade ucraniana após a dissolução da União Soviética, bem como do posicionamento russo em relação aos países do chamado espaço pós-soviético. Como demonstrado pelo cessar-fogo negociado em 2019, na Normandia, um acordo de paz entre as partes necessitará da participação em conjunta entre o Kremlin e líderes europeus.
REFERÊNCIAS
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KOLESNIKOV, Andrei. Why the Kremlin is Shutting Down the Novorossyia Project. Carnegie Endowment for International Peace. 29 maio 2015. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2015/05/29/why-kremlin-is-shutting-down-novorossiya-project/i96u. Acesso em: 06 maio 2020.
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Imagem: Guerra no leste da Ucrânia: Getty images