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A carta dos generais franceses é parte de algo muito maior

Carolina Antunes Condé de Lima*

 

No dia 21 de abril, vinte e cinco generais da reserva francesa publicaram uma carta, assinada por outros mil militares, alertando o presidente Emmanuel Macron sobre a possibilidade e o limiar de uma guerra civil estourar na França. De acordo com os generais, as políticas frouxas de segurança pública do atual governo resultariam em caos, gerando a necessidade de intervenção dos militares na ativa, a fim de proteger aquilo que chamaram de “valores civilizacionais franceses”. 

Em sua carta, os generais apontam para o perigo da desintegração da integridade e da identidade francesas e os culpados por isso seriam os antirracistas, pessoas não brancas e, particularmente, o islã. A carta deslegitima os muçulmanos como cidadãos legítimos ou residentes da França e os trata como uma horda de estrangeiros cujas ideologias e práticas ameaçam a identidade natural da França. Na carta, os generais ainda afirmam que áreas ao redor de algumas cidades francesas foram transformadas em territórios sem lei pelos seus habitantes não-brancos, abalando as estruturas da república da França. No fim, para eles, a simples existência de minorias é uma ameaça à nação.

Como resposta, o governo e partidos de esquerda se manifestaram contra a carta, uma vez que o documento fere a ideia de controle civil sobre os militares, esperado em governos democráticos. A Ministra da Defesa, Florence Parly, falou em punir os signatários que ainda estão na ativa por descumprirem com a lei que requer que militares sejam politicamente neutros. Uma semana após a carta, o chefe do Estado-Maior, general François Lecointre, afirmou que os militares na ativa que assinaram a carta irão passar por um tribunal militar e receberão sanções.

O assunto que parecia resolvido, voltou às manchetes no dia 09 de maio, quando uma nova carta, dessa vez atribuída a militares franceses na ativa, veio a público, apontando para o que chamam de “concessões ao islamismo”, feitas pelo governo de Macron, reforçando o alerta de uma guerra civil. A nova manifestação é feita por homens e mulheres que dizem terem dado suas vidas em combate ao islamismo em intervenções mundo afora e agora assistem a concessões sendo feitas no próprio país. 

Manifestações como essa, não são novidade na França. A publicação da primeira carta aconteceu na data na qual se relembra a tentativa de golpe sofrida pelo então presidente Charles de Gaulle, conhecido como putsch de Argel, há sessenta anos. Na ocasião, um grupo de militares se uniu para depor o então presidente como forma de retaliação aos planos de reconhecer a independência da Argélia. Além da memória histórica, a carta foi publicada num contexto de preparação para a eleição presidencial, que acontece ano que vem e, portanto, de disputa pelo eleitorado francês, que entende a  luta contra o terrorismo e a segurança como pautas importantes. Em função disso, temas como imigração e a disseminação do chamado Islã Radical têm feito, cada vez mais, parte das agendas dos candidatos.

Esse novo ataque à política de Macron, e à comunidade muçulmana francesa, acontece num momento em que se assiste ao crescimento das intenções de voto para Marine Le Pen e de aumento da reprovação da atual administração. Le Pen, candidata da extrema-direita apontada como principal rival de Macron na eleição presidencial do próximo ano, se manifestou em apoio à carta dos generais, os convidou para fazer parte de sua campanha e os convocou para aquilo que chamou de ‘batalha pela França’. A manifestação de Le Pen gerou críticas dos governistas e, mais abertamente, da Ministra Parly, que afirmou que a politização do exército, tal qual defendido por Le Pen, enfraqueceria a própria França, uma vez que “os exércitos não estão lá para fazer campanha [política], mas para defender a França e os franceses”. A segunda carta também causou reações de repúdio do governo francês e recebeu o apoio de Le Pen. 

Dentro desse contexto de disputa pelo eleitorado francês, o atual presidente tem sido acusado de se aproximar cada vez mais da direita e estar se valendo de algumas pautas. Em outubro de 2020, Macron lançou seu projeto de lei para por fim ao que ele denominou de “separatismo islâmico”. A proposta de lei surgiu após ataques cometidos por radicais voltarem a acontecer no país, reacendendo os debates sobre islã, secularismo e islamofobia na França, lar da maior população muçulmana na Europa (são aproximadamente seis milhões de muçulmanos, que correspondem a quase 10% da população).

Ao mesmo tempo em que há uma hiper politização do Islã na França, acadêmicos e a comunidade são excluídos dos debates sobre a questão, inviabilizando maior conhecimento e aproximação real da comunidade e suas demandas e problemas, resultando numa dificuldade de entender a diversidade de opiniões entre os quase seis milhões de muçulmanos que moram no país. Uma das principais razões para isso é a instrumentalização do secularismo francês, ou seja, as ideias de laicidade e secularismo são usadas como justificativa para não se engajar nem reconhecer a diversidade religiosa do país. Outra razão se deve ao passado colonial e orientalista, que criou e perpetuou a ideia de que muçulmanos são um bloco único e homogêneo.

Outra frente da lei de Macron contra o separatismo islâmico foi a imposição do não uso do veú por mulheres muçulmanas. Em 2004, o governo aprovou a primeira lei que proibiu o uso de coberturas religiosas em escolas e espaços públicos, em 2011 foi proibido o uso de vestimentas que cobrem toda a face em locais públicos, e em 2016 o governo proibiu o uso de burkinis, lei que depois foi suspensa. Agora, o governo pretende proibir mulheres que estejam acompanhando seus filhos em atividades escolares e meninas menores de 18 anos a usarem o véu. 

Todas essas medidas são parte da assim chamada “batalha cultural” contra o “esquerdismo islâmico”, uma suposta aliança entre acadêmicos assumidamente de esquerda e indivíduos das comunidades islâmicas. Essa imposição sobre o que mulheres muçulmanas podem ou não usar remete ao recente passado colonial francês, que reverbera em sua sociedade. Quando da invasão francesa ao Norte da África (1830-1975), também foi imposto às mulheres que deixassem de usar os véus, além das diversas imposições contra símbolos e práticas religiosas. A ideia de resgatar mulheres muçulmanas sempre foi parte integral do imperialismo francês e foi usado como justificativa e, consequentemente, apagamento, das violências cometidas nos territórios invadidos: estima-se que os franceses tenham matado 825.000 pessoas durante a ocupação da Argélia, além dos estupros cometidos contra as mulheres da região. O debate sobre o véu, portanto, é parte de algo muito maior: é apenas um elemento da atual batalha do governo francês contra ideais de equidade de gênero, raça e teorias pós-coloniais, que têm sido colocadas como ameaças à estabilidade e identidade nacional francesa.

Ainda que seja cedo para apontar as consequências da carta e do apoio oferecido aos militares por Le Pen, a situação tem se desdobrado de forma preocupante. No dia 30 de abril foi publicada uma pesquisa na qual 58% dos entrevistados concordam com o que dizem os militares e 49% afirmou que apoiaria uma intervenção militar na França. Isso não significa que a França irá sofrer um golpe de Estado, mas pode ser um indicativo do que a eleição presidencial aponta para o ano que vem. 

Quando olhada sem contextualização, a carta dos vinte e cinco generais, prontamente respondida e rechaçada pelo governo Macron, perde sua força justamente pela resposta e pela punição aos seus signatários. Porém, a carta mais recente dos militares na ativa e os números de intenções de votos a favor de Le Pen, demonstram que há algo muito maior acontecendo na França. Enquanto a guinada de Macron à direita já é perceptível em uma França na qual a esquerda tem sido, cada vez mais, marginalizada, as eleições do ano que vem podem levar o país numa guinada para a extrema-direita.

 

*Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e Membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI).

Imagem: Emmanuel Macron. Por: https://www.president.gov.ua/.

Colombia 2021: crisis y proyecciones

Gabriel Gaspar*

 

Colombia es sacudida desde hace días por masivas movilizaciones.  Su origen puntual fue el rechazo a una reforma tributaria que el Gobierno propició.  En forma súbita miles de manifestantes se lanzaron a las calles a protestar.  Todo en medio de un difícil momento de la pandemia que ya lleva mas de un año.

Las protestas no han cesado y hace rato que el  presidente Duque retiró el proyecto y que el ministro de Finanzas renunció.  Pero la protesta continua, con mas de una veintena de victimas, ciudades semiparalizadas, tomas de calles y caminos, carnavales pacíficos en el día, junto a graves incidentes en las noches, que incluyen asaltos a retenes policiales.  Por cierto, denuncias de violencia policial y de militarización de las ciudades y preocupación de la comunidad internacional.

A estas alturas, debemos asumir que si la reforma tributaria fue la chispa, se impone evaluar porque la pradera estaba tan seca lo que permitió su incendio.  Dada la cercanía de los hechos, solo podemos sugerir algunos factores que explicarían la actual crisis colombiana.

Ante ello proponemos cinco tesis sobre la crisis.

  1. El fin de la guerra

En los años precedentes Colombia asistió al final del proceso de paz, con la firma de los Acuerdos entre el Gobierno del entonces presidente Santos y las FARC.  Se puso termino al conflicto interno mas prolongado de América latina.  La firma de la paz no fue una perita en dulce, para empezar el referéndum convocado para ratificar los Acuerdos fue rechazado, y si bien luego se destrabo la aprobación, la implementación fue lenta y tortuosa, hasta la fecha.  Pero terminaron los combates, las FARC dejaron las armas y se incorporaron a la política como partido, donde hay que decir que a la fecha sus resultados han sido pobres, Naciones Unidas supervisó el proceso.  El conflicto armado concluyó en lo fundamental.

El nuevo escenario provocó cambios en el sistema.  Así como se desmovilizaron las FARC, también empezó a perder fuerza el discurso duro que explicaba todos los males del país por la presencia guerrillera.  Este tipo de posiciones fue liderada por ex presidente Uribe, que gobernó con férrea mano el país a inicios de siglo y conformó un partido: el Centro Democrático, que logró instalar al actual presidente Duque en el poder.

En un plano más subjetivo, la paz generó diversas y fuertes expectativas.  Para un sector del país el fin de la guerra y la guerrilla, iba a generar un escenario propicio para dar un gran salto al desarrollo, para otros, la paz implicaría el fin de la violencia y los abusos, la alegría ya venía.  Como resultó el proceso después de algunos años, lo veremos mas adelante, lo que destacamos acá es que imperceptiblemente el fin de la paz abrió espacio para una reformulación de la política y estimuló muchas expectativas.

  1. La persistencia de la violencia y la desigualdad

La firma de los acuerdos facilitó la desmovilización del grueso de las tropas farianas.  A lo largo de la guerra, las FARC fueron construyendo un verdadero Estado guerrillero en las zonas bajo su control, ubicadas en las regiones mas apartadas, montañosas y selváticas del vasto territorio colombiano.  En esas zonas las FARC ejercían el gobierno, administraban justicia, cobraban impuestos, mantenían el orden.  Al desmovilizarse y concurrir a los lugares de concentración, esos territorios fueron ocupados por las disidencias que nunca se unieron al proceso de paz, como el Frente 1 del Guaviare, comandado por Gentil Duarte.  Además de  estas disidencias, a las zonas vacías acudió el Ejercito de Liberación Nacional.  En los territorios que desocuparon los mas de 60 frentes de las FARC también se instalaron diversos grupos armados del  narcotráfico: los Rastrojos, el Cartel del Golfo, los Pelusos, entre otros, buscando controlar fronteras y corredores para sacar la droga.  En otras palabras, se instalaron todos, menos el Estado.

La violencia recrudeció por el control territorial.  Perdura hasta la fecha, inclusive varios de estos grupos incursionan y operan fuera de las fronteras, invadiendo territorio venezolano y ecuatoriano,  donde se instalan corrompen, extorsionan  y establecen todo tipo de alianzas que les facilite su operación.  A ellos se sumó la disidencia encabezada por el negociador de paz, Iván Márquez, acompañado por el Paisa, jefe de las tropas especiales de las FARC, estos abandonaron el proceso de paz y se realzaron y se identifican como FARC, Nueva Marquetalia.

Pero la violencia no es el único factor que perduró.  También lo hizo la profunda desigualdad social que impera desde hace mucho en Colombia, como en muchos otros países de nuestra región.  Según datos del Departamento Administrativo Nacional de Estadísticas, DANE, el 42,5% de la población colombiana se encontraba en condición de pobreza el 2020, un incremento de 6.8% en relación a 2019.  Es decir, 21,02 millones subsisten con menos de 331,668 pesos mensuales (hoy el dólar se cambia a 3.800 pesos aprox.)

  1. Pandemia no controlada

Colombia al igual que el resto de la región padece desde hace mas de un año de la pandemia del covid.  Las cifras al día de hoy son duras: casi tres millones de contagiados y mas de 76 mil fallecidos.  El ritmo de vacunación es bajo, a la fecha según datos del Minsal hay cerca de 5 millones de vacunados de los cuales 1.5 son con doble dosis.  A fines de abril las autoridades planeaban intensificar sus esfuerzos y llegar a los 9 millones de vacunados a fines de mayo, lo que obviamente será difícil en el actual cuadro.

Los colombianos, al igual que la mayoría de los latinoamericanos, están agotados de la cuarentena, perjudicados por la recesión, especialmente los trabajadores informales.  Un horizonte de pandemia interminable agobia a la población.

  1. Agotamiento temprano del proceso de paz

La paz llego, la mayoría de los guerrilleros y milicianos de las FARC, aproximadamente unos 12.000 combatientes se acogieron al proceso.  Pero el proceso empezó a ralentizar, los compromisos asumidos por el Estado en materia de apoyos a los ex combatientes, regularización de tierras, y otros pactados en las negociaciones se cumplieron parcial y lentamente, y algunos no se cumplieron derechamente.  Al asumir el gobierno del presidente Duque la desafección se incrementó, con un fuerte cuestionamiento de las autoridades hacia los mecanismos y potestades pactadas en la Justicia Especial para la Paz.  Pero lo peor es la gran cantidad de asesinatos de dirigentes sociales, lideres de  derechos humanos, representantes de desplazados y victimas desde el fin del conflicto.  Casi medio millar desde la firma de los Acuerdos, a los que hay que agregar cerca de 200 ex combatientes desmovilizados, la inmensa mayoría de ellos por sicarios, todo con una amplia impunidad.

¿Fue un fracaso el proceso?  Es temprano para dar un juicio categórico, pero es evidente que no todo lo que se pactó en las largas conversaciones en La Habana se cumplió.  Si se cumplió lo fundamental: el fin de las acciones armadas, el desarme de la guerrilla y su transformación en partido político. Una parte no medible de los desmovilizados volvió al monte, principalmente a la Nueva Marquetalia.

  1. Recomposición de la representación política

La Colombia del pos conflicto mantuvo algunas tendencias históricas, como la desigualdad social, pero también impacto a la política.  Durante buena parte del siglo XX el clivaje liberales vs conservadores perduró, pero el auge de la guerra a fin de siglo pasado posibilito la emergencia de un nuevo clivaje, donde el uribismo se ubico con fuerza vs el resto.  El fin de la guerra libró del problema que a la social democracia colombiana le creaban las FARC – algo parecido a lo que en su momento le creo Sendero a la izquierda peruana – y a su vez, fue dejando con poco proyecto al uribismo.

El presidente Duque esta a poco mas de un año de terminar, y se perfilan los presidenciables, donde destaca Gustavo Petro, ex militante del M 19, del izquierdista Polo Democrático después, ex alcalde de Bogotá.  Las encuestas le dan un 30% de apoyo y lo sigue con casi la mitad, el centrista ex gobernador de Antioquia, Sergio Fajardo.  La derecha de Centro Democrático pierde terreno, y lo mas probable es que eso se acentúe con estas movilizaciones.  La alcaldía de Bogotá la ganó Claudia López quien no oculta su condición de lesbiana. Las FARC han tenido un misérrimo resultado electoral. Continuidad y cambio en la Colombia de pos guerra.

A modo de conclusión

Fue en este apretado cuadro de frustraciones, cambios, expectativas no cumplidas y miedo y agobio ante la pandemia, en el cual el gobierno intento una reforma tributaria que subía los impuestos.  La reacción la conocemos por la prensa.

Las movilizaciones han agregado nuevos puntos a la agenda, imposibles de soslayar si se piensa en una solución: la investigación de los muertos y heridos de estos días, la responsabilidad política e institucional de todo ello, un examen a fondo de la Policía Nacional, principal responsable de las bajas según primeros informes.  Agreguemos que también hay heridos y fallecidos entre los uniformados.

El Gobierno ha convocado a un cronograma de diálogo, demasiado largo ante la urgencia y gravedad de los hechos.  El congreso cita al ministro de Defensa a dar explicaciones, los dirigentes sociales condicionan el dialogo al cese de la represión, el gobierno convoca al cese de toda violencia.  Los desordenes, en especial las tomas de carreteras y calles están provocando escasez y desabastecimiento, lo que agrava el drama de la pandemia.

La economía obviamente sufrirá mas.  Ojo para Chile: en Colombia están presentes mas de 120 empresas chilenas que en su conjunto han invertido mas de 19.000 millones de dólares.

En suma, la crisis esta en pleno desarrollo, su curso es incierto y llama a que todos los involucrados construyan con rapidez una salida.  De lo contrario están dadas las condiciones para una profundización.  Que decir si la crisis persiste y sus consecuencias económicas, sociales y migratorias.  Al lado de una Venezuela ya en crisis hace años, con un mundo andino convulsionado y un Brasil donde la pandemia contagió todo.

 

* Gabriel Gaspar fue viceministro de defensa de Chile, embajador en Colombia y embajador plenipotenciario para America Latina.

Imagem: Bogotá, Colômbia. Por Pedro Szekely.

Depois do Plano Colômbia: as novas relações EUA-Colômbia na área de segurança*

João Estevam dos Santos Filho**

 

Entre 2000 e 2016, os governos da Colômbia e dos Estados Unidos (EUA) mantiveram relações próximas na área de segurança, baseadas principalmente na execução do Plano Colômbia. Este foi um pacote de assistência norte-americana para a Colômbia proposto pela administração de Andrés Pastrana (1998-2002), inicialmente voltado para o desenvolvimento do país andino. Após as negociações entre os dois países em 1999, o programa entrou em vigor formalmente em 2000, mas passou a executado de fato a partir de 2001 (ROJAS, 2015).

Apesar de a proposta colombiana ter se focado na assistência ao desenvolvimento econômico e social do país, prevaleceu a norte-americana, cuja ênfase recaía sobre o combate às drogas no país. Segundo os argumentos do governo dos EUA, o enfraquecimento do narcotráfico na Colômbia levaria a um declínio dos grupos armados atuantes no país (PIZARRO; GAITÁN, 2006). Isso porque desde meados da década de 1990, as duas principais guerrilhas colombianas – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) – começaram a fortalecer-se por meio de recursos vindos do narcotráfico (PÉCAUT, 2010).

Tendo contribuído para a modernização das Forças Armadas da Colômbia e para o enfraquecimento das guerrilhas – apesar de não ter sido eficaz no combate ao narcotráfico –, o Plano Colômbia foi encerrado em 2016, sendo substituído pelo plano Paz Colômbia, uma iniciativa norte-americana voltada para o apoio à implementação do acordo de paz assinado entre o governo de Juan Manuel Santos (2010-2018) e as FARC, em Havana. Apesar do fim desse que foi o principal programa de assistência de segurança na história das relações entre os dois países, isso não significou um distanciamento.

Nesta nova etapa, o que se vê, por um lado, é um foco nos aspectos qualitativos da assistência de segurança: treinamento e influência doutrinária das instituições norte-americanas sobre as Forças Armadas colombianas. Por outro lado, há uma tendência à desmilitarização da ajuda estadunidense. Apesar de o número de militares colombianos treinados por técnicos dos EUA não ter sido tão grande quanto no período que vai de 2001 a 2007, continuou em um patamar relativamente alto para a região, variando entre aproximadamente 4.000 e 2.000 militares.

Além disso, as Forças Armadas norte-americanas treinaram unidades colombianas importantes para o período pós-acordo, como a Escola de Missões Internacionais e Ação Integral, responsável pelo ensino de efetivos empregados em ações de auxílio a projetos de desenvolvimento socioeconômico (MOYAR; PAGAN; GRIEGO, 2014). Outro ponto importante é o apoio do Comando Sul dos EUA para que militares colombianos treinem forças de segurança de outros países a partir do modelo adotado durante a vigência do Plano Colômbia. O programa encarregado disso é o Plano de Ação EUA-Colômbia sobre Cooperação em Segurança Regional, assinado em 2012, tendo sido treinados 16.997 integrantes das forças de segurança de países da América Central e do Caribe entre 2013 e 2017 (TICKNER; MORALES, 2015).

Em relação à influência doutrinária dos EUA, esta pode ser vista a partir da presença de militares norte-americanos nos comitês das Forças Armadas colombianas encarregados da formulação da nova doutrina colombiana no período pós-acordo, chamada de Doutrina Damasco. Nesse sentido, técnicos do Exército dos EUA participaram do Comitê Estratégico de Desenho do Exército do Futuro, enquanto o Comando Sul auxiliou o Centro de Doutrina do Exército da Colômbia na elaboração do novo modelo doutrinário. Além disso, o principal conceito operacional dessa doutrina foi baseada em um dos manuais de campo do Exército norte-americano (ROJAS, 2017).

Por outro lado, as novas relações bilaterais passaram a ser menos baseada na assistência militar, voltando-se para a promoção de projetos de desenvolvimento socioeconômico em áreas antes dominadas pelas guerrilhas. Apesar de ter se iniciado no final do governo Bush (2001-2009), esse fato se consolidou com o governo Obama, através de iniciativas ligadas ao Departamento de Estado. Esse foi o caso do próprio plano Paz Colômbia, da Iniciativa de Desenvolvimento Estratégico da Colômbia (CSDI), com forte presença da Embaixada dos EUA na Colômbia e da Estratégia de Cooperação para o Desenvolvimento do País, executado pela USAID. Todos esses programas, embora com valores mais baixos que o Plano Colômbia, demonstram uma grande diferença com relação ao período de 1998 a 2010.

Portanto, apesar de as relações entre EUA e Colômbia terem passado por uma transformação que incluiu o fim do Plano Colômbia e a diminuição da assistência militarizada, o que se viu foi a continuação de uma relação próxima entre os dois países na área de segurança, sendo possível afirmar que a dependência do país sul-americano para com os EUA continua, por outras formas, adaptada ao contexto doméstico de ambos os países e à nova conjuntura internacional.

 

*  Esse texto é baseado no artigo intitulado “Relações militares entre Estados Unidos e Colômbia: do Plano Colômbia ao Acordo de Paz (2000-2018)”, publicado pela Meridiano 47.

** Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e Pesquisador Associado do Instituto Sul-Americano de Pesquisa e Estratégia (ISAPE).

Imagem por: Southcom media.

 

Referências bibliográficas

BEITTEL, June S.. Colombia: Background and U.S. relations. Washington, D.C: Serviço de Pesquisa do Congresso, 2019.

MOYAR, Mark; PAGAN, Hector; GRIEGO, Will.. Persistent Engagement in Colombia. Florida: JSOU Press, 2014.

PIZARRO, Eduardo; GAITÁN, Pilar. Plan Colombia and the Andean Regional Initiative: lights and shadows. In: LOVEMAN, Brian (Ed.). Addicted to failure: U.S. security policy in Latin America and the Andean region. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006. p. 53-79.

PIZARRO, Eduardo; GAITÁN, Pilar. Plan Colombia and the Andean Regional Initiative: lights and shadows. In: LOVEMAN, Brian (Ed.). Addicted to failure: U.S. security policy in Latin America and the Andean region. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006. p. 53-79.

ROJAS Guevara, Pedro Javier. Doctrina Damasco: eje articulador de la segunda gran reforma del Ejército Nacional de Colombia. Revista Científica General José María Córdova, v. 15, n. 19, p.95-119, 2017. Escuela Militar de Cadetes José María Córdova.

ROJAS, Diana Marcela. El Plan Colombia: la intervención de Estados Unidos en el conflicto armado colombiano (1998-2012). Bogotá: IEPRI, 2015.

TICKNER, Arlene B.; MORALES, Mateo. Cooperación dependiente asociada: Relaciones estratégicas asimétricas entre Colombia y Estados Unidos. Colombia Internacional, Bogotá, v. 1, n. 85, p.171-205, 2015.

 

Represa da Renascença reacende tensões geopolíticas entre Egito, Sudão e Etiópia

Lucas Oliveira Ramos*

Muitas das tensões geopolíticas no Chifre da África são decorrentes da luta colonial e histórica dessa sub-região que envolveu  França, Itália, Reino Unido e  Etiópia (nação que resistiu à jornada colonial europeia dos séculos passados). Hoje, a herança dessa luta pode ser lida através das disputas territoriais, as indefinições acerca da posse e do uso dos recursos hídricos advindos do Rio Nilo e a crescente onda de migração e refúgio, corolário dos conflitos civis e interestatais que esses países sofreram em seu passado recente.

Recentemente, atritos nas relações de Etiópia, Sudão e Egito voltaram ao centro das atenções devido ao acirramento das negociações da construção da barragem no Rio Nilo, projeto e sonho antigos dos governos etíopes. Dadas as instabilidades internas e rivalidades entre esses três países, a possibilidade da militarização dessa região é iminente e chama a atenção.

 

Uma breve retomada histórica das relações tríplice

No início de março de 2021, Sudão e Egito assinaram um pacto militar que visava a melhoria das relações entre os dois Estados através de um encaixe coeso no que tange às suas principais políticas de segurança nacional. Este acordo surge no contexto de negociações das barragens momentaneamente interrompidas da Represa do Renascimento (Grand Ethiopian Renaissance Dam — GERD) e a consequente disputa fronteiriça com Sudão e Etiópia. Historicamente, os três países disputam a posse e usufruto dos recursos hídricos do Nilo. Importante ressaltar que a Etiópia é um país montante (mais próximo da nascente) em relação ao Nilo e possui cerca de 85% da extensão do rio, ao passo que Sudão e Egito estão à jusante (mais próximos da foz).

Em 2011, Meles Zenawi, à época primeiro-ministro etíope, lançou os fundamentos da GERD. Desde então, reacenderam-se os problemas de cooperação fronteiriça sobre o domínio das águas daquela região, o que contribuiu para o pacto firmado em 2021 pelo Egito e o Sudão. Muito embora ambos os países afirmem que o motivo do pacto tem a ver com as semelhanças em relação aos desafios de segurança nacional e às grandes possibilidades de spillover das suas situações internas, é importante que esse pacto também seja interpretado dentro do contexto geopolítico ampliado.

A assinatura do acordo aconteceu após a visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros sudanês, Mariam Al Mahdi, ao presidente egípcio Abdel Fattah El Sisi. Os chefes de pessoal das forças armadas de ambos os países, General Mohammed Farid Hegazy (Egito) e General Mohamed Othman Al Hussein (Sudão), assinaram o pacto na capital do Sudão, Cartum.

Em declaração, ambas as partes expressaram a sua gratidão pelo aumento das relações de segurança e cooperação entre os dois países. O General Hegazy declarou que “o Egito está pronto para atender o pedido do Sudão em todos os domínios, incluindo armamentos, formação conjunta, apoio técnico e fronteiras conjuntas de segurança”, aludindo à potencial ameaça iminente que paira sobre ambos os países. Esta declaração serve como uma garantia para os sudaneses, mas um aviso aos potenciais inimigos sobre a disponibilidade de recursos e a prontidão para utilizá-los.

À época em que a declaração foi redigida, a Etiópia ainda não havia respondido ao movimento estratégico de Egito e Sudão. Ainda assim, em março de 2021, o Sudão acusou a Etiópia de estar envolvida em disputas relacionadas com a fronteira. A disputa de um século sobre a região al-Fashqa — onde a região de Amhara, na Etiópia, se encontra com o estado sudanês de Gadarif — foi reacendida recentemente. Os tratados anglo-etíopes de 1902 e 1907 atribuíram a terra ao Sudão, mas os agricultores etíopes utilizaram as terras agrícolas ao longo dos anos. Em 2008, o antigo primeiro-ministro da Etiópia, Meles Zenawi, e o governo do Sudão celebraram um acordo bilateral relativo à disputa fronteiriça da al-Fashqa. A Etiópia reconheceria a área como parte do Sudão e, em troca, os agricultores etíopes seriam autorizados a continuar a lavrar as terras agricultáveis. 

Tanto o Sudão como a Etiópia acusaram-se mutuamente de usurpação. No início de 2021, o Sudão recuperou a zona al-Fashqa e acusou a Etiópia de sobrevoar aviões militares, emboscando soldados sudaneses e matando civis, incluindo cinco mulheres e crianças. A Etiópia alegou que os militares sudaneses tiraram proveito  de sua supervisão e  proteção de  fronteiras para invadir e pilhar propriedades, enquanto abordava o conflito do Tigray.

Cartum, por sua vez, alega que Adis Abeba vendeu armas a grupos rebeldes para permitir a desestabilização do país, um ato que os sudaneses entendem como uma tentativa de distração  das verdadeiras questões que afligem ambas as partes e a região, em geral. Estas acusações surgem na sequência da assinatura do pacto militar entre o Egito e o Sudão em março.

Interesses, segurança e a Represa da Renascença

A GERD tem sido um ponto de inflexão à cooperação na região. Na sequência da decisão unilateral da Etiópia de construir uma barragem de 6.450 megawatts no alto do Nilo Azul, o Sudão e o Egito contestaram a decisão invocando direitos “históricos” ou “coloniais” sobre a via navegável, tal como acordado pelo Tratado Anglo-Egípcio de 1929 e 1959.

Na sua busca por desenvolvimento e autonomia, a Etiópia considera a segurança energética como um fator importante e integral. À jusante, Egito e Sudão citaram o risco potencial para a sua segurança hídrica com implicações para a alimentação, o meio ambiente e a segurança humana, mais amplamente, nos seus territórios. Independentemente das suas preocupações, a Etiópia construiu a barragem e a segunda fase de abastecimento  está atualmente em curso. Esta tem sido a fonte do imbróglio entre os três países.

O Egito e o Sudão apelaram a um “acordo global” para assegurar que os seus interesses não sejam ameaçados após a conclusão da barragem. Em resposta, a Etiópia rejeitou o pedido de outro acordo e está prestes a iniciar a segunda fase da construção da barragem. O Egito e o Sudão responderam assinando o pacto militar para reforçar a inteligência e a partilha de recursos entre os dois Estados à jusante.

Ambiente político interno

A dinâmica política interna instável tanto na Etiópia como no Sudão é outro fator que contribui para a recente instabilidade. Após sua ascensão como primeiro-ministro da Etiópia, em 2018, Abiy Ahmed cultivou alianças com o descontente Partido Democrático Amhara (ADP), ao mesmo tempo em que deixou de lado a Frente de Libertação do Povo Tigre (TPLF), da qual Zenawi (o primeiro-ministro que cedeu a al-Fashqa aos sudaneses) era membro.

No Sudão, o governo de transição, um acordo de partilha do poder civil-militar foi recebido com desentendimentos e desconfianças. O Sudão tem de gerir conflitos no Porto do Sudão e na região de Darfur. Os conflitos internos resultam frequentemente em migração populacional para áreas menos conturbadas ou regiões vizinhas e crises de refugiados — complicando ainda mais o desacordo fronteiriço entre a Etiópia e o Sudão.

O papel dos atores externos

A administração Trump, juntamente com o Banco Mundial, liderou o processo de mediação entre os três países, desde novembro de 2019, até meados dos anos 2020. O fracasso dos esforços internacionais ocasionou a passagem do bastão ao então presidente da União Africana (UA), Cyril Ramaphosa. Em 2 de março de 2021, os ministros dos negócios estrangeiros egípcio e sudanês apelaram a uma expansão do quadro de mediação para incluir as Nações Unidas, os EUA, e a União Europeia. A Etiópia rejeitou este pedido, citando que tal gesto mina as “soluções africanas para os problemas africanos”, apresentado por Thabo Mbeki e a agenda pan-africana. Além disso, os esforços estabelecidos por Cyril Ramaphosa antes de ser sucedido por Félix Tshisekedi, da República Democrática do Congo, seriam comprometidos.

Para além das negociações regionais, também é necessário pontuar os alinhamentos internacionais que esses países possuem, uma vez que isso influi diretamente no processo negociador do imbróglio. Embora os EUA tenham uma boa relação com o governo egípcio em termos militares, a Etiópia desenvolveu uma das mais fortes relações econômicas com a China no continente. Embora as relações Egito-EUA sejam sublinhadas por tensões em torno de questões de direitos humanos, os primeiros vêem os EUA como um aliado influente, sobremaneira na ONU.

A Etiópia, antecipando as dinâmicas apresentadas, insiste que a UA seja o principal mediador dos processos de negociação. No esquema mais amplo da Agenda 2063 (programa de desenvolvimento econômico africano, lançado em 2015), a UA tem um papel mais importante a desempenhar na obtenção de um consenso sobre a GERD, no entanto, o ônus recai sobre o Egito para reavaliar a premissa sobre a qual reivindica “direitos adquiridos” aos recursos hídricos da Bacia do Nilo.

Por fim, é importante destacar a crescente presença do estado de Israel no Chifre. À medida em que os laços etíopes e israelenses se reforçam, o Egito tem se preocupado com as implicações dessa relação nas negociações das barragens. Dado o histórico de inimizade entre Egito e Israel, é importante mencionar, entretanto, que essas relações evoluíram positivamente, especialmente através das linhas de segurança nacional. Com ambos os países preocupados com a crescente influência do Irã na região árabe e o aumento da insurgência islâmica na Península do Sinai, no Egito, e no território palestino da Faixa de Gaza, a ameaça comum às suas agendas de segurança nacional resultou na cooperação e na coordenação da estratégia entre ambos. 

Por que essa questão é importante para a União Africana?

Subjacente ao estabelecimento e transição da Organização de Unidade Africana (OUA) para a União Africana esteve a busca de um desenvolvimento orientado para a África que seja anti-colonização, anti-imperialista e anti-imposição externa — uma agenda de desenvolvimento doméstico que vise à plena exploração do potencial da África como ator estratégico e global, englobando a fundação da instituição. Ao traçar a sua trajetória de desenvolvimento, vários tratados e agendas —  tais como o Plano de Ação de Lagos, o Tratado de Abuja, a Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (Nepad) e a Agenda 2063 — foram ratificados por todos os países do continente africano.

Embora a vontade política e o empenho sejam fundamentais para a implementação bem-sucedida da agenda do desenvolvimento, a paz, a segurança e a estabilidade são de igual importância. Assim, é necessária uma ação da UA para escapar ao conflito interestatal na região, ao mesmo tempo que exorta diplomática e pacificamente todas as partes no sentido de uma (re)solução duradoura. Contudo, no caso de uma guerra em larga escala, é importante examinar os potenciais resultados.

Mais do que nunca, o presidente da UA precisa demonstrar liderança no Chifre de África. Uma equipe de mediadores africanos (com a participação periférica e apoio de parceiros internacionais estratégicos como os EUA, China, Rússia, e Nações Unidas) é imperativo e urgente para resistir à tempestade iminente na sub-região.

* Lucas Oliveira Ramos é doutorando no PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.

Imagem Destacada: Blue Nile Falls. Por Guistino/Wikimedia Commons.

Imagem no corpo do texto: Grand-Ethiopian dam. Por Wikimedia Commons.

A democracia permanece distante da política de poder das Forças Armadas

Eduardo Mei, Héctor Luis Saint-Pierre, Suzeley Kalil Mathias e Samuel Alves Soares* 

 

Texto originalmente publicado em Jornal da Unesp

 

A eleição do atual presidente do Brasil impulsionou análises segundo uma suposta diferença polarizada dos atores. Em pouco tempo foram apontadas “alas”, aqui uma ideológica, acolá outra neoliberal privativista. Entre ambas existiria um grupo racional e técnico, catapultado a um patamar mágico e infenso aos ditames das baixezas do fazer político pouco nobre e mesquinho.

Nomes de próceres das alas ideológicas e liberalizantes são bem conhecidos. A terceira ala foi ocupada pela corporação militar, sem que despontasse um ideólogo específico. A parcela racional e técnica foi mostrada pela grande imprensa como exercendo a condição do equilíbrio racional, em especial para controlar o histrião presidencial e conter arroubos inerentes a um despreparado beócio.

As alas desfilariam ao embalo dos ritmos “preservados” de procedimentos democráticos. Parcela considerável da opinião pública e da grande imprensa adotou esses marcos de forma apressada e acrítica. É possível analisar os processos e fatos recentes sob outra perspectiva.

Um ponto de partida é questionar se a própria eleição corresponde a um estatuto básico democrático, dimensão já razoavelmente considerada. Há outra possibilidade analítica, contudo, ainda pouco explorada. Foi estabelecido, sem mais, que as instituições armadas emprestaram sua imagem pública para referendar a eleição de um ex-militar de baixo calão e mobiliar o governo para dotá-lo de uma refundação política, capaz de decidir e agir afastado da sordidez dos usuais mecanismos político-partidários.

A fábula foi sendo engabelada com a contribuição de figuras como um astrólogo-filósofo, um ex-chanceler embevecido, uma ministra dos Direitos Humanos aturdida e outros prestidigitadores disponíveis. A eles coube reverberar a luta renhida contra um fantasioso ‘marxismo cultural’ e alertar para as ‘hostes comunistas’ afoitas e à espreita para aniquilarem valores ocidentais considerados inarredáveis.

O ‘partido militar’

Esse movimento veio a calhar para preservar as instituições castrenses, que jamais abandonaram o mantra do anticomunismo, do antiesquerdismo, de posições claramente antidemocráticas. Mais do que uma concepção de Guerra Fria obsessivamente prorrogada, o que orienta o “partido militar” é uma autopercepção de constituírem um poder soberano, preparado para definir, a seu critério e com seus valores, os momentos em que a excepcionalidade pode ser convocada para dirimir questões da esfera política, uma decisão que se desdobra para a definir quem são os amigos e os inimigos.

Na história política brasileira os inimigos estão claramente demarcados pelas campanhas contra populações pobres, negros, militares de baixa hierarquia. Recentemente, determinaram de forma explícita no Manual de Operações de Garantia da Lei e da Ordem os movimentos sociais e quilombolas como perpetradores contra uma ordem que os próprios fardados consideram como seu desígnio estabelecer.

Por imposição dos fardados, com apoio e conluio de lideranças civis, o artigo 142 da Constituição Federal estabelece para as Forças Armadas a garantia da ordem. Uma ordem que em um país com desigualdades dilacerantes mantém no limbo parcela considerável da população, considerados indignos de direitos mínimos. É esse artigo que fornece argumentos para os que consideram que aquele exercício soberano está orientado para “garantir os poderes constitucionais” e contra eles insurgirem-se a seu bel-prazer e quando considerarem oportuno.

Mais que partícipes

A tintura mais recente nas fardas é o pretenso preparo para a gestão pública, algo que não é novo na história política, pois remonta ao período do Império, considerando o elevado número de governadores e interventores militares. Agora, entretanto, recebem a alcunha de modernos gestores titulados em cursos adeptos do gerencialismo. De concreto, revelam o despreparo para a administração pública, o que de resto não lhes compete.

As sinecuras são ainda outro fator a explicar a participação de milhares de militares no atual governo, desvelando que o exercício do poder também se alimenta de vantagens pecuniárias. Dispositivos previdenciários diferenciados, para toda a corporação, adicionados das benesses para os que mobíliam ministérios, autarquias e fundações as mais variadas.

A serventia do fantoche na Presidência é que permite reforçar a concepção de que cabe aos militares refrear seus mais criminosos impulsos, como se o descalabro que ceifa vidas e a condição de o país ser considerado um pária internacional fossem alheios ao aparato de força, cuja sina é investir contra a nação estarrecida. Ao revés, torna-se crescentemente claro que os militares são, para além de partícipes do governo, os mentores e o seu pilar central.

Demissões no alto escalão

E bem recentemente há um abalo, efetivo ou aparente, na relação entre o governo e as Forças Armadas. O ministro da Defesa é substituído, assim como os três comandantes das Forças. De fato, essa é uma situação muito inusual e os pormenores do caso serão conhecidos no futuro. Por ora, e seguindo a abordagem analítica aqui proposta, robustece o argumento de que as Forças, em especial o Exército pelo seu peso político, agem com muita desenvoltura, ou mais precisamente, com autonomia. Publica-se que o presidente definiu os nomes, porém as evidências atuais são pouco críveis que assim tenha sido.

O atual comandante do Exército, em entrevista largamente divulgada dias antes das mudanças na estrutura de comando das Forças, havia indicado a forma como a crise da Covid-19 tem sido conduzida na instituição. Apenas corroborou o que o próprio Exército apresentou no início da crise, em 2020. Em estudo elaborado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército, as tendências da pandemia e as formas mais eficazes para o seu enfrentamento estavam claramente indicadas no documento, convergente, por exemplo, às orientações da Organização Mundial da Saúde. Ficou disponível por poucos dias e foi retirado do site do referido Centro. Ao revés, o governo estabeleceu uma linha de ação muito diversa e os resultados da necropolítica foram sentidos em pouco tempo.

O comandante do Exército era justamente o general que conduzira ações na contramão daquelas definidas pelo governo , cujo ministro da Saúde era então um general da ativa. Por ora nota-se que as instituições militares, outra vez, tomam as decisões e reafirmam sua autonomia política. Reside neste ponto uma contradição profunda. Trata-se de um governo militar-bolsonarista, mas não significa que os militares detenham completo controle das ações. Os movimentos ultraconservadores e a extrema direita não possuem uma gênese exclusivamente militar, ainda que segmentos internos às corporações os reforcem.

O espólio militar é, portanto, muito grave. Para o interior das instituições militares parecem ter cumprido os protocolos mais eficazes para debelar a pandemia. Registre-se, entretanto, que ainda não há evidências suficientes para sustentar essa versão. De todo modo, caso confirmado, e com um Ministério da Saúde militarizado a conduzir de forma criminosa as ações relativas à segurança sanitária, caberia explicar o que levou a tratamento tão diferenciado para o chamado público interno e para a sociedade brasileira como um todo.

Imagem de afastamento da política

Estes eventos serviram para propagar um afastamento do governo ou, mais propriamente, uma forma de reafirmar que constituem uma instituição de Estado e não de governo. Recepcionar e difundir a visão de que as Forças Armadas estão apartadas de Bolsonaro é funcional para o projeto militar mais amplo, de permanência no poder, bem como de não serem responsabilizadas pelo desastre que o governo causou.

A política de poder é o que explica os movimentos das Forças Armadas, por vezes aparentemente contraditórios. Não houve retorno aos quartéis. É permanente esta condição, que na atual fase conjuga-se ao exercício do governo. O saldo final é duplamente assustador. Por um lado, a debilitação da Defesa, já que as armas se voltam para nacionais de específico espectro, os deserdados e os que lutam contra a ordem discriminatória estabelecida. Por outro, a terrível e inimaginável situação de milhares de mortos pela incúria na condução insana da política sanitária. A responsabilização da instituição militar há de vir, caso restem esperanças na justiça humana.

E a democracia permanece nostalgicamente distante enquanto o garrote autoritário é tensionado pela política de poder das Forças Armadas.

 

 

* Eduardo MeiHéctor Luis Saint-PierreSamuel Alves Soares e Suzeley Kalil são professores do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp (FCHS), câmpus de Franca, e pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes).

Imagem: Cerimônia aos generais promovidos. Por: Alan Santos/Flickr/Palácio do Planalto.

A quem interessa a discussão do 5G no Brasil?

Patricia C. Borelli[1]

O final de março foi especialmente conturbado no cenário político brasileiro, começando pela saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores (MRE). A saída de Araújo foi entendida como o resultado de desencontros entre os interesses do “centrão” com os do atual governo. Um dos pontos de desencontro reside em uma questão: a tecnologia de rede móvel 5G.

Inclusive, foi esse o ponto que Araújo ressaltou nas suas redes sociais ao comentar o episódio que teria levado à sua saída do ministério. Segundo uma matéria publicada pela Folha de São Paulo, nas redes sociais, Araújo alegou que recebeu a senadora Abreu no MRE no início de março e que, na ocasião, ela o aconselhou a “fazer um gesto” em relação ao 5G, o que o faria “rei do senado”.

A discussão sobre a tecnologia 5G é recente, mas não exatamente nova na pauta política do país. Parte do desencontro de interesses ocorre devido ao fato de que são empresas chinesas que estão despontando como fabricantes dos equipamentos que viabilizam a implementação da nova tecnologia de rede móvel. Como parte da orientação da política externa do atual governo, as relações com a China não estão na lista de prioridades do MRE. Pelo contrário, o Brasil tem assumido uma postura até hostil em relação ao país que abriga os maiores fabricantes desses equipamentos, o que tem levado a um atraso relativo nas negociações para implementação da tecnologia de rede móvel.

Um ponto específico desse episódio da semana passada desperta atenção: por que o interesse da senadora Kátia Abreu pelo 5G? Poderíamos levantar uma lista de motivos como, por exemplo, estreitar as parcerias entre Brasil e China. Entretanto, não deixa de ser curioso o porquê de este tema ser o ponto destacado na conversa de Araújo com a senadora.

Talvez não tenhamos elementos suficientes para responder essa questão. Nossa intenção aqui é levantar alguns fatores que ajudariam a entender o interesse de Kátia Abreu, uma das principais representantes do agronegócio no senado brasileiro, na nova tecnologia de rede móvel.

Primeiro, é importante compreendermos no que consiste a tecnologia 5G. Mais do que uma “internet mais rápida”, a rede 5G deve proporcionar mudanças significativas na infraestrutura dos mais diversos âmbitos: nas cidades, nas fábricas, nas casas, no transporte, nos domicílios e, claro, na agricultura.

É esperado que a nova rede seja, de fato, mais rápida, mas também que possibilite a transmissão de um volume significativamente maior de dados, com baixa latência – o que garante segurança na comunicação entre os dispositivos e a transmissão de dados com menor atraso (delay). Esse conjunto de fatores possibilita a implementação da chamada Internet das Coisas (Internet of Things) em larga escala.

Em outras palavras, objetos e utensílios poderão ser transformados em dispositivos inteligentes (como os nossos celulares foram transformados em smartphones) que, conectados à rede, são capazes de coletar e transmitir dados precisos em tempo real que, por meio de instrumentos e serviços digitais, como Big Data e Inteligência Artificial, permitirão a automatização dos processos nos âmbitos citados anteriormente. Em linhas gerais, essa é a base do que se cunhou chamar de “indústria 4.0” ou “quarta revolução industrial” – por isso a transformação não fica restrita a uma “internet mais rápida”, mas traz um impacto significativo sobre a infraestrutura dos mais diversos setores da economia e da sociedade.

Desse modo, entende-se que um atraso na implementação da nova tecnologia de rede móvel pode deixar o país relativamente em desvantagem. Inclusive, essa foi a base da discussão no Reino Unido quando foi anunciado que o país não utilizaria equipamentos da empresa Huawei na infraestrutura 5G, alegando problemas de segurança em relação aos equipamentos chineses. Não deixa de ser curioso, porém, que a mesma preocupação pouco se estende para fabricantes de outras nacionalidades, como a Coreia do Sul ou a Finlândia.

Em uma perspectiva semelhante à do Reino Unido, o Brasil tem apresentado uma postura resistente em relação a compra de equipamentos da Huawei para a infraestrutura 5G. Entretanto, o atraso brasileiro em acompanhar essa transformação que deriva da nova rede móvel pode ser um dos motivos que despertaria o interesse da senadora Abreu na discussão sobre a tecnologia.

No debate sobre a Internet das Coisas, a possibilidade de viabilização de casas inteligentes ou cidades inteligentes normalmente sobressaem. Entretanto, as transformações no campo merecem atenção equivalente. A ideia de agricultura inteligente, ou agricultura 4.0, é um dos principais resultados esperados a partir da instalação da nova rede 5G e expansão da Internet das Coisas para a agricultura – o que, talvez, corresponda mais diretamente aos interesses da senadora sobre essa tecnologia.

Empresas como Microsoft, Apple e Amazon já estão trabalhando em projetos direcionados à agricultura inteligente. Inclusive, em uma matéria recente, o jornal The Guardian apontou que Bill Gates – criador da Microsoft – é hoje o maior proprietário privado de terras agrícolas nos Estados Unidos. Um artigo da organização Grain traz um levantamento interessante sobre a participação desses grupos na agricultura. O texto aponta que os serviços oferecidos não se restringem a essas empresas, mas acabam envolvendo outros grandes nomes de setores relacionados, como grandes laboratórios.

A Bayer-Monsanto, por exemplo, possui hoje como parte do seu conglomerado, o grupo The Climate Corporation, que começou como uma seguradora para produtores agrícolas contra adversidades climáticas. A seguradora, por sua vez, foi criada por antigos funcionários do Google. Entre os produtos oferecidos pelo grupo Climate Corporation está o aplicativo Fieldview, que trabalha com serviços digitais para o monitoramento e gerenciamento de todo o processo de produção, a partir dos dados inseridos pelos produtores, inclusive para identificar problemas no cultivo que – por sua vez – podem ser resolvidos com os produtos do laboratório. O aplicativo está disponível no Brasil desde 2017. Também não deixa de ser curioso que, nesse aspecto, a questão da segurança – e da nacionalidade – dessas tecnologias quase não entra na pauta da discussão.

De todo modo, a ideia é que, com o 5G, a agricultura inteligente possa ser efetivamente implementada em larga escala no país. Mas, quem tem condições de arcar com essa implementação? A agricultura inteligente envolve o emprego, em maior escala, de maquinários inteligentes, drones, e outros dispositivos acoplados, por exemplo, com sensores, que consigam captar um volume grande de dados e informações precisas sobre o solo, condições climáticas e de cultivo, entre outros fatores que tendem a auxiliar a produção e a produtividade no campo.

Isso, porém, deve ser realizado a partir de parcerias com as grandes empresas de tecnologia – como a Microsoft – que, por sua vez, terão um acesso praticamente irrestrito a essa vasta quantidade de dados, em nome da produtividade. Não obstante, o projeto de agricultura inteligente já vem sendo debatido entre órgãos como a Embrapa e, claro, os representantes do agronegócio brasileiro. Recentemente, foi ainda divulgado que, no país, o desenvolvimento startups voltadas para o campo tem sido liderado por jovens de famílias de grandes produtores rurais.

Com as informações disponíveis, ainda não é possível dizer com precisão quais os interesses da senadora Abreu na conversa com Araújo sobre o 5G. Entretanto, “ligando os pontos” não deixa de ser curioso o fato de esta pauta ter surgido a partir de uma representante no agronegócio brasileiro em um episódio que seria o estopim para a queda do ministro, como apontado por ele mesmo. Cabe acompanhar os desdobramentos sobre a discussão do 5G no Brasil, mas tendo em mente a questão: a quem interessa?

*  Patrícia Borelli é doutoranda no PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem por Pixabay.

Arrumando a casa

Ana Penido*

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.

 

Existiam dois grandes problemas nas salas do Planalto. O primeiro, Ernesto Araújo. Sem nenhuma sustentação política, exceto o olavismo. Para setores importantes na base do governo, como as forças armadas e o agronegócio, o ex-ministro já poderia ter caído faz tempo.

O outro grande problema na sala não incomodava tanto o presidente, mas incomodava muito as forças armadas, e passou a perturbar também a turma da Faria Lima – o general Pazuello. Isso sem mencionar a insatisfação popular com a falta de vacinas, a fome, e as mortes se avolumando.

Fora da sala, ressurgiu um elefante: o STF julgou Lula inocente. O ódio ao Lula unifica de A a Z, e reaviva a natural aliança entre militares e Moro.

Bolsonaro reacomodou interesses, dando uma arrumada na casa, e militares iniciaram uma “Operação Limpa Lambança”. Voltarei a isso. Por enquanto, vejamos quais posições Bolsonarou ganhou:

  • Atender ao Centrão: será viabilizado através dos ministérios da Saúde e de Governo, e, principalmente, através da enorme margem para ementas parlamentares que ficou no orçamento aprovado. São concessões, mas a chave das nomeações fica na Casa Civil, na qual Bolsonaro manteve seu fiel general Ramos (que internamente, é mau visto). O Centrão não ganhará espaço no MD, na AGU e nem no Itamaraty. Atendeu parcialmente.
  • Atender a “Famiglia”: controlará o Ministério da Justiça (e as interlocuções com as Polícias Militares). Enquanto salvam o pescoço de quem gostam, seguirá o uso da Lei de Segurança Nacional, acelerará o PL contraterrorismo e ainda mantém a polêmica sobre a interpretação do artigo 142 viva.
  • Atender às Forças Armadas Brasileiras (ffaa) e entregar Pazuello: justiça seja feita, Bolsonaro tentou propor quarta estrela, ministério, alocação em outras pastas ou outras saídas honrosas para o colega, mas nada colou. Então, Bolsonaro resolveu mexer nas pastas de “dentro de casa”. No plano macro, dos diversos segmentos que sustentam o governo, o local onde é mais fácil para o presidente movimentar uma peça é o Ministério da Defesa, porque seria substituir alguém de um segmento por outro do mesmo segmento na base de composição política do governo (mesmo jogo no Itamaraty).
  • Atender ao seu núcleo político nas ffaa: Braga Netto, desde a intervenção militar no RJ, tem a ficha dos envolvimentos políticos das milícias. Pensa num rabo preso… Ramos, seu braço direito, segue no controle das nomeações e do governo. Chama a atenção que mudanças no GSI não foram sequer cogitadas (e que, enquanto o circo pegava fogo, o general Heleno estava com o desembargador Thompson Flores).
  • Atender os neofascistas: aqui, na realidade, ele só deu uma agitada por causa do 31 de março. Com militares ou sem militares, a turma adora a data, e Bolsonaro mostrou TIMING POLÍTICO. Além disso, eles vinham perdendo espaço no governo, e estavam insatisfeitos.

ISSO NÃO É UM GOLPE. Bolsonaro não tem apoio internacional para isso, não há grave situação de desestabilização interna (mesmo com mais de 317 mil mortos e o preço da cesta básica), não tem apoio da camada de cima (mesmo com a cartinha da Faria Lima, os estudos de cadeias de valor na área de energia e agronegócio, por exemplo, não apontam para perdas), e não tem da imprensa.

Como apontamos desde o início do governo, as ffaa estão contentes por voltar ao poder através de eleições. Mesmo em 1964 cuidaram de construir uma fachada normativa democrática. AS FFAA NÃO SERÃO AS PROTAGONISTAS DE UM AUTOGOLPE NO BRASIL, O QUE NÃO QUER DIZER QUE ELAS SEJAM MAIS DEMOCRÁTICAS QUE BOLSONARO.

Um cenário mais provável de golpe é, caso seja necessário e em outro momento, algo como a via Boliviana, com as polícias militares (PM) fazendo o trabalho sujo público e depois as ffaa vindo salvar a nação e arrumar a casa.

Daí a importância da carta dos governadores relatando incitação para motins, o desenrolar positivo das crises da PM na Bahia e da Guarda Municipal em Juiz de Fora, e as informações da inteligência da PM de SP que implicaram em uma mudança de residência do governador Doria.

Sem números exatos, são 411 mil PMs, 431 mil vigilantes armados, e as Guardas Municipais que, em 19 das 26 cidades onde existem, portam armas de fogo. Além disso, mesmo contra pareceres do Exército, as regras de comercialização de armas e munições vêm sendo flexibilizadas pelo presidente.

Essa é a variável principal que torna as eleições de 2022 distintas das anteriores.

“Operação Limpa Lambança”

Nos últimos tempos, as insatisfações militares vêm sendo depositadas no STF. Com a absolvição do Lula, a caserna em geral ficou indignada. Não estão insatisfeitos com Bolsonaro. As nomeações em pastas seguem, e as conquistas pra carreira também, única com aumento salarial em 2021.

Mas as ffaa estavam insatisfeitas com a exposição das suas entranhas que o Pesadelo na ativa e no Ministério da Saúde provocava. Tentaram fazer com que ele fosse pra reserva usando da sua coerção social, mas não funcionou, e Pazuello seguiu na ativa (graças à nossa legislação absurda, ele podia tomar essa decisão individualmente se quisesse). Bolsonaro gostava da fidelidade do seu general Ministro da Saúde, mas cedeu para que ele saísse. Entretanto, o que fazer com esse ENORME BODE QUE CONTINUOU NA SALA?

No final das contas, o bode virou boi de piranha, e enquanto isso, as ffaa ganham tempo para rearrumar a casa. O TIMING DAS MUDANÇAS PRAS FFAA também não é ruim.

De toda maneira, algumas cadeiras girariam com as promoções dos novos 4 estrelas em 31 de março e alguns comandantes completando dois anos nas tarefas, indo pra rotação. Essas provavelmente eram pautas sendo tratadas com o presidente, o ministro e as ffaa na última quarta, e entre o ministro e os comandantes na sexta.

Por que sobrou pro general Fernando Azevedo? O que mudou de sexta pra segunda? Vejamos:

  1. Interessa aos militares participar das boquinhas mil do governo, mas não interessa participar de intervenção para controlar motins policiais;
  2. Bolsonaro sentiu que as FFAA tentam novamente (dizemos novamente pois é presente em todas as declarações desde 2018 o mantra das instituições de Estado) o descolamento retórico (lockdowm interno, poucas mortes, Pujol caladinho diante do 31.03 e do Lula livre) e cobrou a fatura. Se querem ganhar tanto no governo, que fiquem com o ônus também, ainda mais em um momento de isolamento;
  3. Pelos dados disponíveis, Bolsonaro pediu o cargo. A nota em tom moderado mostra que Azevedo sabe que o governo “pode ser uma bosta, mas é deles”.

Um palpite: decretar estado de sítio não cola. Um autogolpe com as ffaa na cabeça também não. Uma alternativa soft ao estado de defesa, estado de sítio, intervenção federal e estado de calamidade pública parece estar sendo construída.

O deputado major Victor Hugo propôs na última quinta-feira (25) um PL para regulamentar o que seria decretar Mobilização Nacional. A iniciativa partiria do presidente, subsidiado por um comitê de 10 pessoas, que pela atual composição ministerial, contaria com 4 membros das ffaa e 1 delegado da PF.

A crise sanitária é, nesse sentido, uma oportunidade. Diferente do estado de sítio, o decreto de mobilização não precisaria ser aprovado pelo Congresso. No dia 11 de março, o Ministério da Defesa aprovou seu novo Manual de Planejamento para Mobilização Militar.

O Partido Militar segue hegemônico no governo, mesmo com as mudanças. Bolsonaro tem o apoio militar, aliás, o único partido que sustenta o seu governo. Mas acuado por outros setores, Bolsonaro poderia até pressionar por comprovações de fidelidade, declarações públicas.

As forças seguiriam o mantra retórico desde o início do governo. “Somos instituições de Estado”, mesmo comprometidos até o último fio de cabelo com o governo. Mas daí a uma ruptura entre fardados e governo, falta muito.

Pra entrar Braga Netto, seria provável que Pujol saísse, não é uma regra, ou tradição, mas existem egos e ele é mais antigo (a tradição deveria ser um ministro civil, mas aí nem vale a discussão nesse momento). Daí Bolsonaro matar dois coelhos com uma machadada.

Mas a saída dos demais comandantes em solidariedade é inédita desde o fim do regime dos generais e denota crise.

Braga Netto entra fragilizado, mas a escolha do seu nome aponta que Bolsonaro estica a corda, mas nem tanto, ou teria nomeado um ministro civil. A tendência seria a retomada da normalidade, e para isso, a escolha dos novos comandantes deveria recair sobre os mais antigos de cada força, mas a crise ainda é presente, e de desenlace incerto. Quanto se trata de Bolsonaro, o método é o caos.

Perguntas incômodas que a imprensar deveria fazer

  1. Se Pazuello incomodava tanto, por que Pujol não o convocou de volta? Por que permanecem militares no Ministério da Saúde? E no restante do governo, particularmente os da ativa?
  2. Se são técnicos, por que não adotaram para o governo as recomendações do documento do CEEx? Quem mandou tirar o documento do ar? Foram feitos novos documentos? O Exército adotou internamente as recomendações do documento, se configurando como uma ‘nação dentro da nação’? Isso não configura insubordinação ao presidente?
  3. Os militares cederam espaço para o centrão no governo? Além das cabeças dos ministérios e autarquias, como estão os corpos? Foi feito algum levantamento posterior ao do TCU, que já completa quase um ano?
  4. Quais as informações sobre as milícias cariocas que Braga Netto levantou enquanto interventor federal? Elas envolvem em alguma medida o presidente ou seus familiares?
  5. Como a troca do ministro da Defesa se articula com a troca no ministério da Justiça e Segurança Pública?
  6. Quais são os novos 4 estrelas das forças armadas? O que foi publicado no último mês no Diário Oficial da União? Que tal usar menos informantes em off, e noticiar mais o que de fato as Instituições estão fazendo?
  7. As manifestações favoráveis a um golpe militar ou ameaçando outros poderes feitas por militares da ativa em redes sociais tiveram algum objetivo? Houve alguma punição, mesmo que apenas internamente? E nas polícias? E as manifestações de rua, inclusive na porta de quartéis desde 2020, pedindo por golpe militar, tiveram algum desenlace, inclusive judicial?
  8. O que será feito diante da carta dos 16 governadores denunciando incitação à motins nos seus estados?
  9. No último mês, setores militares receberam menos incentivos do presidente? Houve mudança no salário, orçamento, regalias, nomeações ou outras questões que pudessem levar a uma insatisfação na caserna com o presidente?
  10. Nossa legislação protege a democracia brasileira da intromissão política das FFAA? Ela protege as próprias FFAA? O que acontece se um comandante não autorizar a ida de um subordinado para o governo? Isso já ocorreu?
  11. Pazuello pode ter se tornado o boi de piranha público, mas o que fazer com o enorme bode que continua na ativa e na sala do Alto Comando do Exército? De quem foi a ideia de promover o Pazuello, um Intendente, a 4 estrelas? Quem vetou?
  12. Qual a base de sustentação do presidente? Quem hegemoniza essa base de sustentação? As trocas ministeriais mudam essa situação ou apenas agitam a superfície?
  13. Quem serão os novos nomeados para o comando e para o Ministério?
  14. Para a demissão do ministro da defesa, qual foi a gota d’água? Pediu a cabeça de algum subordinado? Não topou um endurecimento? Não topou dar alguma declaração? Como quem tem a resposta pra essa pergunta é apenas o ex-ministro e o presidente, não vale a pena investir muito nela. As declarações de outros atores são especulações ou interpretações.
  15. Qual papel os militares devem ter no regime democrático brasileiro? Em que medida a atual situação do país é tributária dos 21 anos de ditadura? Outra condução da pauta sobre a Memória, Verdade e Justiça teria alterado esse cenário?

Síntese

A politização das ffaa é ruim para a política e para elas mesmas. Elas se mostram politizadas quando tuítam, quando compõem o governo, e quando saem dele, de forma discreta (Azevedo) ou estridente (Santos Cruz).

Agora é o exemplo perfeito: se saem, foi por insubordinação. Se ficam, são golpistas. A politização expõe as ffaa

A tragédia social em que vivemos é também responsabilidade das ffaa: cloroquina, privilégios diante dos demais trabalhadores brasileiros, desnacionalização na infraestrutura, ministro da ciência que destrói universidades, Almirante que permite apagão, etc, etc…

Com o Bode isso era mais nítido. Transformar ele em boi de piranha não resolve o problema. Se, de fato, as ffaa querem limpar a sua barra, têm que desembarcar em peso do governo, aos milhares, assim como o ocuparam.

Não acho que isso vá ocorrer. Terão que ser tirados, com eleições e medidas legislativas.

Bolsonaro manterá sempre a ameaça de golpe/endurecimento. Ter medo disso não adianta. Há que se antecipar cenários, travar a batalha das ideias e, essencialmente, dialogar com a população sobre as razões da tragédia em que nos encontramos.

NOSSOS MORTOS, DE ONTEM E DE HOJE, NENHUM MINUTO DE SILÊNCIO, MAS TODA UMA VIDA DE LUTA.

* Ana Penido é pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (GEDES – UNESP) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Imagem: Novos comandantes das forças armadas. Por: Marcos Corrêa/ Flickr/ Palácio do Planalto.

As escolas cívico-militares

Ana Penido e Suzeley Kalil Mathias*

Texto publicado originalmente do blog A terra é redonda

 

O objetivo deste texto é tecer algumas considerações sobre o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído pelo Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. O PECIM constitui a materialização das promessas de campanha de Bolsonaro, cujo sucinto Programa (um power point, na verdade) indicava de maneira vaga que a educação precisava de “novos conteúdos e métodos, sem doutrinação e sexualização precoces”, objetivando reverter os “péssimos resultados” diante dos “investimentos adequados”.

Para lograr este objetivo, dividimos o texto em curtos tópicos, dedicados a cada uma das ‘promessas’ contidas no PECIM, além dessa introdução, na qual se localiza o tema e sua problemática, e as considerações finais, quando resumimos nossas impressões. As fontes do trabalho são fundamentalmente a legislação disponível e material jornalístico, confrontados com algumas parcas análises sobre o processo de militarização do ensino brasileiro,[i] aqui representado pelo PECIM.

A educação no Brasil é regulada pela Constituição Federal e pela Lei 9394/1996, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A Constituição indica a educação como direito de todos e dever do Estado (art. 205), determinando, entre outros quesitos “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Art. 206-VI). Sobre este aspecto, a LDB estabelece que:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Grifamos ‘sistemas de ensino’ para determinar do que estamos falando. São regulados pela LDB (Art. 8), três sistemas de ensino: o sistema federal, os sistemas dos Estados e do Distrito Federal e os sistemas municipais. Além desses, e que todos nós conhecemos, se somam outros três sistemas expressamente excluídos da alçada da LDB (Art. 83), o da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, cada um com sua própria lei de ensino. Uma rápida consulta às respectivas leis, mostra que nenhum dos sistemas de ensino militar menciona “gestão democrática”. A isso voltaremos.

Ter seu próprio sistema de ensino foi uma prerrogativa que os militares garantiram para si mesmos ainda durante o Congresso Constituinte de 1988, reflexo de tantos anos de poder das corporações. As escolas militares têm outros métodos de ensino, outro material pedagógico, outro currículo, etc. E, principalmente, têm um objetivo diferente da emancipação através do conhecimento: seu objetivo é a disciplina necessária à guerra, que pode ser resumida pela doutrina dos três Ds: “não duvidar, não divergir, não discutir” (Rattembach, 1972). Em outras palavras, se o trabalho pedagógico exige disciplina, esta é um meio “consciente e interativo” na educação civil, enquanto que nas escolas militares a disciplina funciona como “um fim em si mesmo” (Alves; Toschi, 2019, p. 640).

Deve-se ter em conta também que o projeto de militarizar o ensino no Brasil não é novo. Pelo contrário, vários especialistas mostram que pelo menos desde a proclamação da República, as forças armadas fornecem projetos tanto de conteúdo (a introdução de disciplinas como educação física é o exemplo mais conhecido) e método (Ribeiro; Rubini, 2019), quanto de modelos administrativos (Mathias, 2003). Acrescente-se que o neoliberalismo e o conservadorismo em ascensão no mundo e especialmente no Brasil, combinado com o aumento da violência e da criminalidade é terreno fertilizado para o avanço de respostas mecânicas das autoridades (Martins, 2019), como o é a militarização das escolas.

Ditas essas breves palavras sobre as escolas para militares, encaminhamo-nos para o objeto desse curto artigo: o projeto das escolas cívico-militares. Como informado, por meio do decreto no 10.004, instituiu-se o Programa Nacional das Escolas Cívico-militares (PECIM). Embora o documento afirme que a adesão dos entes federativos ao PECIM seja voluntário, já no discurso de lançamento do projeto, Bolsonaro afirmou que é preciso impor a militarização às comunidades, pois pais que não aceitam a militarização seriam ‘irresponsáveis’, não sabem o que é melhor para seus filhos.[ii]

Outro elemento que cabe destacar deste mesmo discurso é sobre a novidade do PECIM, alardeada pelo MEC e pela propaganda oficial, mas ausente da fala presidencial que, ao contrário, mostra que o PECIM está lastreado nos projetos de ‘militarização’ das escolas públicas promovidas nos diferentes entes federativos por projetos de parceria com as secretarias de segurança pública, com o emprego das polícias militares e corpos de bombeiros. Assim, a única novidade do PECIM, como admite Bolsonaro, porque exalta as escolas sob gestão das PMs, é a inclusão de membros reformados das forças armadas para aturem nas escolas.

A primeira escola civil militarizada (gestão da PMGO) foi inaugurada em 1998 – apenas dois anos depois da LDB –, em Goiânia (GO), espalhando-se por 22 estados brasileiros de modo acelerado, chegando a 120 escolas em 2018, 55 das quais em Goiás. Com vinte anos de experiência, houve tempo mais que suficiente para que tais escolas mostrassem se e quanto são melhores que escolas públicas civis. No entanto, o que especialistas têm indicado é que as escolas civis militarizadas cumprem suas promessas apenas na aparência, repetindo experiências do passado (Ribeiro, Rubini, 2019, 762), além de confrontarem preceitos legais, inclusive constitucionais (Martins, 2019, 697). Conforme aponta a experiência do Amapá, “(…) a novidade do modelo aqui analisado só se sustenta do ponto de vista do arranjo institucional que transferiu a gestão da escola pública civil para [policiais] militares, constituindo-se assim, um modelo híbrido. Do ponto de vista da Pedagogia não há qualquer novidade (…) (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 763). Nosso objetivo aqui não é estudar tais experiências estaduais. No entanto, com o fito de apresentar melhor o próprio PECIM, utilizaremos as avaliações disponíveis sobre as experiências das escolas civis militarizadas.

Segundo o portal do MEC, 15 estados e o Distrito Federal, e 600 prefeituras manifestaram interesse em participar do PECIM. Analisadas as demandas, foram escolhidas 54 para a chamada “edição piloto”. Dessas escolas, metade delas terão participação de membros das forças armadas, concentradas em 12 estados (Acre, Amapá, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins); nas outras 27, serão as corporações policiais (PM e Bombeiros) que cederão seus soldados e o governo federal repassará os recursos.[iii]Pode-se notar, portanto, que diferentemente do prometido, é bem pouco distinta a ‘nova’ escola cívico-militar daquelas implementadas por iniciativa dos próprios governos estaduais.

Considerando, portanto, esta introdução ao tema, elencamos algumas outras questões – o que chamamos antes ‘promessas’ – que imputamos muito importantes na concepção e implantação do PECIM:

O PECIM parte de um diagnostico equivocado da realidade

Desde antes de chegar à Presidência da República, Bolsonaro e sua equipe afirmavam, relativamente à educação, que o principal problema era a “doutrinação nas escolas”, que afastariam o estudante do civismo necessário à cidadania – daí o grande apoio que grupos como o “Escola sem Partido” deram à campanha do capitão. A falta de civismo alimentava ainda mais a violência do entorno, especialmente nas escolas da periferia, expostas ao tráfico de drogas, gerando indisciplina e trazendo o crime para o interior das escolas. A falta de segurança, portanto, é apresentada como a grande justificativa para a criação das Escolas Cívico Militares (ECIM). Embora muito explorada pela mídia, os poucos estudos existentes não revelam uma relação causal entre militarização da escola e redução da violência. Por exemplo, para Alves e Toschi (2019, p. 642),

[A]pesar de Goiás estar no topo do processo de militarização das escolas públicas, possuindo, em abril de 2019, 54 escolas sob a responsabilidade da Polícia Militar (PM), com 61 mil alunos (…) lamentavelmente, o estado ainda figura nas páginas policiais como um estado com altos índices de violência, amargando dois assassinatos de coordenadores de escolas estaduais no curto espaço de quatro meses (abril e agosto de 2019) (…)

Pode-se dizer que a promessa da escola militar não é reduzir a violência na comunidade na qual a escola se encontra, mas permitir um ambiente escolar alheio à violência juvenil, organizando-o de forma a construir um futuro cidadão ‘de bem’. Todavia, se a imposição da ordem acontece apenas no interior das escolas, o que ela faz é escamotear e até alimentar maior violência contra os próprios estudantes, que precisam viver em dois mundos repressivos sem poder expressar-se. Isso, no melhor dos casos, criará um cidadão ordeiro, mas também desajustado.

O PECIM é enganoso especialmente com os professores

Quando professores ouvem falar em escolas cívico-militares, de imediato os profissionais da educação, em especial as professoras do ensino fundamental, pensam em seus pares dos colégios militares. Naquele ambiente, a remuneração é mais alta e é paga em dia, os profissionais têm um plano de carreira e condições de trabalho melhores, não precisando dobrar ou às vezes triplicar a jornada de trabalho para obter uma renda mensal digna. Diante desse cenário material para o exercício docente, sabemos que alguns professores até relevariam os constantes relatos de assédio moral e censura dos profissionais concursados nas escolas militares, em busca de melhorias na remuneração. Entretanto, o PECIM não altera nenhuma das características materiais da profissão e, como informa o MEC, sequer a verba reservada para o projeto – R$ 54 milhões – será aplicada para melhorar materialmente a realidade escolar, pois a maior parte desse montante irá para o pagamento do pessoal militar que atuará nas escolas.[iv]

Outra crença alimentada entre os professores é que as ECIM serão muito mais seguras, inclusive no seu entorno, pela presença dos policiais, bombeiros e militares que ali atuarão. Mais uma vez, é um engano. Conforme estabelece o próprio decreto, os militares atuarão na gestão administrativa, didático-pedagógica e educacional, e não na segurança da escola. Ademais, como mencionamos acima, militarizar as escolas não leva necessariamente à redução da violência em seu entorno.

O PECIM ilude a comunidade, especialmente a família

É conhecida a crescente dificuldade de envolvimento da comunidade escolar na rotina da escola, e que essa é uma questão que não se resolve apenas culpando uma pretensa “falta de vontade” de uns ou de outros. O projeto ilude a família ao oferecer a ideia de que questões muito complexas do ambiente escolar serão resolvidas por meio da militarização.

Dois exemplos devem bastar para mostrar este engodo. O primeiro deles, a temática das drogas. Para muitos pais, preocupados, a escola militarizada será capaz de “salvar o filho do mundo das drogas”. No entanto, um corte de cabelo curto e a proibição de usar brinco não farão isso, daí o engodo. São necessárias políticas públicas de saúde, educação, e trabalho que permitam ao jovem uma compreensão crítica sobre a própria realidade que o cerca, permitindo que ele tome decisões informadas inclusive sobre drogas, que é um tema de saúde a ser tratado no ambiente escolar, e não de segurança pública. Outro exemplo é a questão LGBT. Para muitos militares, a orientação sexual e o feminismo destroem as famílias, e ambos são culpados pelo esfacelamento moral da sociedade. Será mesmo? Impedir que as/os jovens expressem a sua sexualidade só faz com que eles a pratiquem de forma desinformada ou escondida, o que os expõe a toda natureza de vulnerabilidades, particularmente psicológicas e sexuais.

Cabe lembrar que, diferente das escolas em geral, os colégios militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola, diferente das escolas territorializadas, que funcionam nos diversos bairros da cidade. Estudos preliminares com as escolas civis militarizadas revelam que estas têm passado por um processo semelhante, se ‘elitizando’ (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 753) porque, além de cobrarem mensalidades, reservam vagas para os filhos de policiais, bombeiros e professores de escolas semelhantes, o que reforça a ideia de homogeneidade.

Os colégios militares são os melhores, portanto, devem ser o exemplo

Eis outra falácia. Para quem frequenta o ambiente escolar, sabe que a grande questão que diferencia o ensino da escola pública em geral, do ensino nos institutos federais e escolas de aplicação é o investimento por aluno. O investimento por aluno dos colégios militares é quase três vezes maior que o do ensino público civil. Ainda assim, têm resultados inferiores aos institutos federais, que também recebem mais verbas. Em outros termos, se fosse para tomar alguma escola como exemplo, seriam os institutos federais. Segundo os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), avaliando as áreas de Ciência, Leitura e Matemática, se considerássemos apenas os resultados da Rede Federal, o país ocuparia a 11a posição entre 70 países em Ciência, a 2a posição em Leitura, e superaria a média do Brasil em mais de 100 pontos.

Sobre investimentos, pesquisa realizada periodicamente pela OCDE que no ano de 2019 compilou dados de 36 países, mostra que o investimento em educação no Brasil é maior que a média do apurado (4,2% contra a média de 3,2%). Embora mencionando outra fonte, a ONU, o programa eleitoral do então candidato à presidência pelo PSL, confirma este dado. No entanto, esquece de ler o restante da pesquisa, pois esta contraria os dados: conforme indica a OCDE, o Brasil investe muito menos em educação por aluno, sendo 56% menor no ensino fundamental e aproximadamente 64% no ensino médio. A diferença é melhor visualizada na tabela abaixo:

Gasto por aluno por nível de ensino (em US$)[v]

Fonte: Confecção própria com base nos dados de G1, 10 de setembro de 2019.

Soma-se a isso que a experiência mais próxima ao projeto do atual governo, as escolas civis militarizadas, não apresentam maiores índices de aproveitamento nas avaliações, embora, como mencionamos, existam há mais de 20 anos. Pelo contrário, a própria ONU expressou preocupação com o avanço destas experiências no Brasil.[vi] Na verdade, o único exemplo fornecido pelas escolas civis militarizadas, e não apenas as públicas, é de ser um ótimo negócio. Tais escolas “(…) representam uma mescla de interesses públicos e privados, entre os interesses das secretarias de educação e de segurança pública que atuam sobre a escola pública.” (Alves; Toschi, 2019, p. 641).

O projeto desvia recursos da educação para o Ministério da Defesa

De fato, essa não é uma novidade. Tem sido comum, infelizmente, o desvio dos recursos destinados constitucionalmente para a educação. Nesse caso, ocorre o mesmo. Recursos do Ministério da Educação são descentralizados para o Ministério da Defesa para o pagamento dos militares da reserva contratados. O decreto deixa claro que os militares não são profissionais da educação. Eles mantêm seus vencimentos como militares da reserva e acrescentam a eles o adicional pelo PECIM. Em um país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. Além disso, é comum ter nos quadros escolares um alto número de profissionais contratados, e não concursados. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, ou como melhorar a carreira, com a consequente elevação salarial, dos profissionais da educação, já muito defasada em relação as demais.

Conforme divulgado pelo MEC, entre os critérios utilizados para excluir estados e municípios do processo de adesão ao PECIM estavam aqueles “(…) com número baixo ou sem militares da reserva residindo na cidade”.[vii] Ora, se a proposta do PECIM é melhorar a educação, especialmente nas violentas periferias, como explicar que esta ou aquela localidade, a despeito de responder positivamente a todos os critérios de adesão seja eliminada do programa apenas por não ter militares residentes? Assim, o próprio governo admite que o maior montante do dinheiro está vinculado ao pagamento de militares e policiais que participarão do projeto.

Pode-se visualizar melhor como as verbas são usadas para dar salário a quem já tem por meio dos números disponibilizados pelo próprio MEC, mas não sem resistência. Via Lei de Acesso a Informação, o MEC foi obrigado a detalhar a aplicação dos recursos da etapa piloto. Em resposta, informou-se que a maior parte deles tem como destino o pagamento dos militares que atuarão nessas escolas[viii].

Pelo projeto, cada escola de 1000 alunos receberá 18 oficiais da reserva para atuarem como docentes e eles (e somente eles) receberão um adicional de 30% sobre seus vencimentos e mais décimo-terceiro, férias, transporte e alimentação. Levando-se em consideração que o soldo-base (salário) de um militar na fase intermediária da carreira (capitães e majores) gira em torno de R$ 9.200,00 a R$ 11.200,00, sem contar os adicionais e gratificações, podemos fazer uma conta simples e chegar aos seguintes números: cada “oficial-professor” receberá, na média, em torno de R$ 3.000,00 a mais por mês– salário superior ao da maioria absoluta dos trabalhadores da redes estaduais do país[ix] – e custará aos cofres públicos cerca de R$ 45.000,00 por ano.

Considerando-se a duração projetada para o PECIM, ainda que mantendo o tamanho atual, devemos multiplicar por 18, o que representa um gasto de R$ 810.000,00 por escola, só em pagamento dos militares que atuarão nessas escolas em desvio de função – não serão empregados nem na defesa (caso dos militares) e nem em segurança (caso dos policiais e bombeiros). Tomando o orçamento do projeto, retirando o pagamento de pessoal, restaria, em média, R$ 200 mil por ano para a própria escola gastar. Para uma unidade escolar com mil alunos, o saldo final é muito pequeno, talvez suficiente para uma reforma em quadra esportiva, por exemplo. E detalhe: mesmo com a pandemia e as escolas paralisadas, muitos desses militares foram contratados no ano passado e estão recebendo normalmente.

Então, para que servem as escolas cívico-militares?

Em primeiro lugar, elas servem para fazer proselitismo político e alimentar uma base conservadora, inclusive alguns neofascistas, que elegeram o presidente em virtude da sua disposição em usar a força, inclusive das armas, para resolver todo e qualquer problema. Em segundo lugar, elas passam uma mensagem de patriotismo, como se este pudesse ser garantido pela maquiagem verde amarela nas escolas. Esta foi a mesma pretensão quando, em 1969, o regime burocrático-autoritário (1964-1985) introduziu as disciplinas de Moral e Cívica (ensino fundamental), Organização Social e Política do Brasil, OSPB (ensino fundamental e médio) e Estudos dos Problemas Brasileiros, EPB (ensino superior), tornando-as obrigatórias para todos os níveis. Mesmo controlando os conteúdos dessas disciplinas – também elas foram uma forma de empregar militares da reserva, especialmente coronéis, que preparam conteúdos e escreviam apostilas e livros didáticos (Mathias, 2004, p. 170) –, em pouco tempo o próprio governo passou criticá-las, afirmando que não cumpriam os objetivos de forjar o cidadão patriótico que desejavam. De fato, como o cultivo artificial de símbolos e bandeiras nacionais pode tornar um jovem mais amante de sua pátria? É possível dizer que a geração dos anos 1990 é mais patriota que a dos anos 2000?

Em terceiro lugar, as escolas cívico-militares normalizam a militarização da educação, em seus aspectos éticos, políticos, morais, financeiros. Trata-se de uma espécie de amostra, um laboratório daquilo que está por vir. Trata-se de um projeto de militarização da vida (do individuo como um todo, compreendendo os aspectos sociais, políticos, econômicos, etc.) já em curso no Brasil. Da mesma forma que não se cria o cidadão patriota por imposição, a ‘paz dos quartéis’ imposta à sociedade como um todo tende, como mostrou a História, a vir acompanhada do esgarçamento crescente da solidariedade social, desorganizando de tal forma as relações sociais que a única ordem que prevalecerá ao final é a ‘paz dos cemitérios’.

Em quarto lugar, as ECIM, embora sustentem que sua implantação depende de consulta e sinal positivo da comunidade que a receberá, é uma forma dissimulada de cumprir a lei, que estabelece que as escolas públicas devem ter gestão democrática. Isso implica na não imposição de regras alheias àquela comunidade de estudantes. Implica que todo o corpo de funcionários, professores e responsáveis pelos estudantes, e até esses mesmos, sejam não apenas ouvidos, mas participem do planejamento pedagógico e gestão administrativa das escolas. O PECIM, como as escolas militarizadas antes dele confirmam, afasta esta possibilidade, pois submete inclusive as direções e coordenações das escolas aos preceitos trazidos pelos militares, que passam a tutelar a gestão escolar. A consulta à comunidade, realizada apenas no início do processo, é, portanto, um simulacro da necessária, inclusive porque determinada pela Lei, gestão democrática das escolas.

Por último, mas não menos importante, as ECIM são a forma que o presidente Jair Bolsonaro encontrou para manter fiel, principalmente por meio de benefícios financeiros, o núcleo mais tradicional de sua base eleitoral, composta por policiais militares, bombeiros e membros das forças armadas, em especial das patentes mais baixas. A seleção dos profissionais a serem contratados é feita pelos próprios militares, baseada em critérios como camaradagem, lealdade, honra… Ou seja, atributos bonitos para justificar a escolha dos apadrinhados políticos comprometidos com a sustentação do governo. O objetivo aqui nem é tão oculto: em uma situação de insatisfação do povo com o presidente, esses profissionais da segurança dificilmente ficarão contra quem garantiu o seu “extra”.

Considerações Finais

Em resumo, as escolas cívico-militares são caras, mas não o são porque investem na comunidade escolar, valorizando novos métodos pedagógicos e seus profissionais. Elas são caras e, como provavelmente veremos no futuro, tão ineficientes quanto as escolas civis militarizadas que já se espalharam pelo Brasil a partir das diversas métricas educacionais apresentadas ao longo do texto, servindo exclusivamente para desestruturar ainda mais a educação pública no Brasil.

A principal conclusão que chegamos desse debruçar sobre o PECIM não é, todavia, sobre a não novidade do projeto, mas sim que o principal projeto para a educação do governo Bolsonaro é, na prática, um “programa de transferência de renda” para militares da reserva. Mais que governar para a própria base que o elegeu, o presidente remunera essa base. E o principal, não é uma base qualquer, é uma base ARMADA.

*Ana Amélia Penido Oliveira é pesquisadora de pós doutorado no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp e do Gedes. Suzeley Kalil Mathias é professora do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp-Franca e pesquisadora do Gedes.

Imagem: Inauguração de escola cívico-militar no Rio de Janeiro. Por Palácio do Planalto.

Referências


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BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.

BRASIL (1996). Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l9394.htm>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.

BRASIL (2011). Lei 12.464, de 04 de agosto de 2011. Dispões sobre o Ensino na Aeronáutica. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12464.htm>. Consultado em 04 de março de 2021.

BRASIL (2012). Lei 12.704, de 08 de agosto de 2012. Dispões sobre o Ensino na Marinha. Disponível em <https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/ 1032695/lei-12704-12>. Consultado em 04 de março de 2021.

BRASIL (2012). Lei 12.705, de 08 de agosto de 2012. Dispões sobre os requisitos de ingresso nos cursos de formação do Exército. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12705.htm>. Consultado em 04 de março de 2021.

BRASIL (2019). Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. Institui o Programa de Escolas Cívico-Militares (PECIM). Diário Oficial da União – Seção 1 – 6/9/2019, Página 1 (Publicação Original). Disponível em <https://www2.camara.leg.br/ legin/fed/decret/2019/decreto-10004-5-setembro-2019-789086-norma-pe.html>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.

MARTINS, A. A. (2019). Sobre os dias atuais: neoconservadorismo, escola cívico-militares e o simulacro da gestão democrática. RBPAE 35 (3): 689-699, set-dez.

MATHIAS, S. KALIL (2003). A militarização da burocracia: a participação militar na administração das Comunicações e da Educação, 1963-1990. São Paulo, Ed. Unesp/Fapesp.

RATTENBACH, B. (1972). El sistema social-militar en la sociedad moderna. Buenos Aires, Pleamar.

RIBEIRO, A. C.; RUBINI, P. S. (2019). Do Oiapoque ao Chuí – As escolas civis militarizadas: a experiência do extremo norte do Brasil e o neoconservadorismo da sociedade brasileira. RBPAE 35 (3): 745-765, set.-dez. [DOI: 10.21573/vol35n32019.95997].

 

Notas


[i] Sugerimos a leitura do levantamento feito por Alves e Toschi (2019), o qual mostra que os estudos da militarização do ensino não são novos, mas são numericamente pouco significativos diante do avanço do processo de criação de ‘parcerias’ entre as escolas públicas e as instituições militares.

[ii]Por didático, vale reproduzir a fala do presidente: “E temos aqui a presença física do nosso governador do DF, o Ibaneis. Parabéns, governador, por esta proposta. Vi que alguns bairros tiveram votação e não aceitaram, me desculpa, não tem que aceitar não, tem que impor. Se aquela garotada não sabe… está na quinta série, está na nona série e na prova do Pisa ele não sabe uma regra de três simples, não sabe interpretar um texto, não responde uma pergunta básica de ciências, me desculpa, não tem que perguntar para o pai irresponsável, nessa questão, se ele quer ou não uma escola com uma, de certa forma,  militarização, tem que impor, tem que mudar. Porque nós não queremos que essa garotada cresça e vá ser, no futuro, um dependente, até morrer, de programas sociais do governo.” Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bol sonaro-durante-cerimonia-de-lancamento-do-programa-nacional-de-escolas-civico-militares-pecim>

[iii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.

[iv] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.

[v] Disponível em: <G1: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, consultado em 04/03/21.

[vi] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/02/escolas-militares-e-colegios-civis-com-mesmo-perfil-tem-desempenho-similar.shtml>. Consultado em 03/03/21.

[vii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/content/index.php?option=com_content&view=article&id =85371:mec-capacita-policiais-e-bombeiros-para-atuacao-nas-escolas-civico-militares&catid=12&Itemid=86>

[viii]http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares

[ix] Segundo a mesma pesquisa da OCDE, “(…) o salário médio dos professores no Brasil é menor do que na maioria dos países da OCDE, e que também é ao menos 13% menor do que o salário médio dos trabalhadores brasileiros com ensino superior.” Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, grifos no original. Consultado em 04/03/21.

De Volta à Pequim: o backlash conservador contra o movimento feminista latino-americano

 

Gabriela Aparecida de Oliveira* 

No ano de 2020, a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, apresentadas durante a 4ª Conferência Mundial sobre Mulheres das Nações Unidas, completou 25 anos. Por meio deste instrumento, mais de 180 países, dentre eles o Brasil, decidiram – embora não por unanimidade – promover ações específicas para a garantia dos direitos das mulheres. A Declaração previa mudanças estruturais para a plena participação de mulheres na política e na economia dos países, autonomia feminina sobre decisões sexuais e reprodutivas e eliminação dos estereótipos de gênero na mídia (UN WOMEN, 2020). Assim, trata-se de um marco normativo no que se refere aos direitos das mulheres e, portanto, um balanço sobre seus efeitos é necessário.

Durante reunião virtual para celebrar o aniversário do documento, o secretário-geral Antonio Guterres reconheceu que nesses 25 anos nenhum país conseguiu atingir satisfatoriamente os objetivos apresentados na Declaração, identificando avanços, permanências e retrocessos. Embora existam avanços significativos em áreas como o combate à mortalidade materna, aponta-se para a persistência da sub-representação feminina na política e para as altas taxas de violência de gênero e feminicídios, dentre outras continuidades (UN WOMEN, 2020).

Por outro lado, um legado importante deixado pela Plataforma de Pequim foi a criação de um terreno normativo e político para os movimentos feministas pelo mundo. Sobre as feministas latino-americanas, o Fórum de Huairou foi o espaço dentro da Conferência onde elas elaboraram uma crítica autônoma, focada nas diferenças de raça e classe entre as mulheres. Ao não encontrarem muitas opções de oficinas em que pudessem se expressar em seu idioma e partilhar códigos culturais em comum, elas criaram a “Tenda da América Latina e Caribe” ou “Tenda da Diversidade”. Ela significou uma resistência política e cultural frente à lógica de negociação com o poder oficial internacional levado à cabo pela Conferência (VARGAS & CUEVAS, 2020). Montada na cidade de Huairou, a 60 km de Pequim, a Tenda ofereceu debates diários sobre temas como a diversidade, a pobreza, a juventude, a cidadania, a sexualidade e a violência. Participaram mulheres diversas, organizações e delegações de países: das saarauís à UNICEF, da Anistia Internacional aos grupos indígenas mixes e mapuches, do Instituto da Mulher da Espanha às espanholas que se opunham ao Instituto, etc. (GARRIDO, 2020).

Os avanços do movimento nos anos 2000

Para além de uma conjuntura internacional favorável, a Onda Rosa – período caracterizado pela maior participação do Estado na elaboração de políticas públicas e redução de desigualdades por parte de governos de esquerda e de centro-esquerda – também contribuiu para uma crítica feminista latino-americana própria. Entre o final da década de 1990 e a metade da década de 2010, houve um considerável avanço normativo para a igualdade de gênero na região. Embora leis para a legalização do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o reconhecimento do direito à identidade de gênero fossem raras, países como o Uruguai e a Argentina conseguiram operar mudanças legislativas; enquanto outros, como o Brasil, Chile, Colômbia e México, alcançaram mudanças através de decisões judiciais (BALLESTRIN, 2020; BIROLI & CAMINOTTI, 2020).

O feminismo autônomo da América Latina de diversos espaços e grupos de mulheres. Dentre eles estão os coletivos de arte com agendas feministas, as mulheres LGBTQ+, os feminismos populares, os feminismos comunitários boliviano e guatemalteco, o feminismo autônomo, o feminismo negro e/ou antirracista, o feminismo de(s)colonial, a teologia da libertação feminista, o ecofeminismo e os movimentos sociais em defesa do território e da Mãe Terra liderados por mulheres negras, indígenas e camponesas (LERMA, 2019). Essas expressões do feminismo têm sido identificados como a principal fonte de renovação teórica, intervenção social, atuação política e resistência democrática tanto na América Latina quanto no mundo (BALLESTRIN, 2020).

De uma maneira geral, o feminismo latino-americano caracteriza-se por uma crítica à modernidade e por uma quebra epistêmica com o conhecimento ocidental. O seu enfoque é questionar a complexa hierarquia de dominação que está entrelaçada à “matriz colonial de poder” e a existência de uma “mulher universal”, tal como postulado pelo feminismo moderno liberal (ocidental, hegemônico, capitalista, burguês e branco), que atuou ativamente para a criação da Plataforma de Pequim. O conceito de “mulher universal” não daria conta de refletir sobre a complexidade das vivências de mulheres sob um sistema colonial, não atendendo as suas demandas específicas (GOETZ, 2020).

Retrocessos e desafios contemporâneos

Atualmente, o movimento feminista, tanto em sua expressão regional quanto global, tem sido ameaçado por uma onda de retrocessos denominada “backlash” ou “backsliding”, que estaria diretamente relacionada ao fenômeno da desdemocratização (UN WOMEN, 2020). Sobre isso, a ONU lançou em junho de 2020 um documento de reflexão em que denunciava o estarrecedor aumento de movimentos contrários ao ativismo pelos direitos das mulheres e o subsequente retrocesso nesses direitos. Grupos religiosos e atores conservadores, populistas de direita e nacionalistas, grupos pelos direitos dos homens e movimentos “anti-ideologia de gênero” têm identificado a pauta feminista como uma ameaça à família tradicional e heterossexual, às crianças, à ordem natural e aos valores nacionais. Tais atores teriam ganhado espaço a partir da crise econômica de 2008 e a chegada de governos e/ou partidos populistas ao poder nos mais diversos países. Explicitamente hostis à agenda de gênero, esses governos têm agido ativamente para o backlash nas políticas de igualdade de gênero, previamente firmadas. Segundo levantamento da Organização, quase um terço da população mundial encontra-se em países com reversões democráticas, particularmente em regiões com altos níveis de democratização: Europa Ocidental, América do Norte, América Latina, Leste Europeu e Ásia Central (ROGGEBAND & KRIZSÁN, 2020).

Na América Latina, protestos na Colômbia, no México e no Peru, ocorridos em 2016, sinalizavam uma dinâmica reacionária na região: organizações conservadoras mobilizaram milhares de pessoas e tomaram as ruas contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e uma educação sexual nas escolas. Eram atores seculares e, em sua maioria, religiosos, que invocavam o perigo da “ideologia de gênero” para a família em sua concepção tradicional e heteronormativa. Mais recentemente, o gênero tem sido central nas disputas políticas. Podemos dizer que a defesa dos direitos de mulheres e de pessoas LGBTQ+ têm representado um ponto de divergência entre partidos e seus candidatos, sendo que a oposição ao gênero é particularmente aflorada em movimentos de extrema-direita. Em 2018, as eleições do Brasil e da Costa Rica mostraram que divergências acerca de pautas de gênero e sexualidade podem acirrar disputas e dividir o eleitorado (BIROLI & CAMINOTTI, 2020).

Embora o feminismo tenha conseguido avançar em suas pautas nas últimas décadas, o backlash não deve ser interpretado como uma resposta à essa dinâmica. Para Diniz e Carino (2019), o termo “backlash” é com frequência usado equivocadamente, enfatizando que a ofensiva contra as mulheres e as feministas no campo da política é uma consequência do que elas fizeram. Portanto, não há backlash provocado pelo feminismo, mas a persistência do uso do poder masculino para sustentar o status quo.

Perante uma expressiva articulação global misógina e antifeminista, nos parece inevitável “retornar” à Pequim. A Conferência foi uma das responsáveis pela popularização do movimento feminista e pela adesão das novas gerações. Para as latino-americanas, Pequim significou a primeira demonstração de força de um movimento feminista regional perante as Nações Unidas. Embora o cumprimento da Plataforma de Ação tenha sido limitado, o processo de sua elaboração fez com que as pessoas envolvidas se sensibilizassem com a realidade de exclusão de mulheres, à nível local, regional e global (VARGAS & CUEVAS, 2020). Frente à diversidade de mulheres e feminismos, simbolizada pelo Fórum de Huairou, um dos desafios do movimento feminista tem sido a questão do pluralismo, decorrente do alargamento de sua luta: como elaborar estratégias feministas coerentes tanto ao contexto global quanto ao regional e, assim, enfrentar a ofensiva antifeminista?

 

Referências bibliográficas

BALLESTRIN, Luciana. El Feminismo De (s) colonial como Feminismo Subalterno Latinoamericano. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 3, 2020.

BIROLI, Flávia; CAMINOTTI, Mariana. The conservative backlash against gender in Latin America. Politics & Gender, v. 16, n. 1, 2020.

DINIZ, Debora; CARINO, Giselle. Não há ‘backlash’ provocado pelo feminismo. El País, 09 de março de 2019. Opinião. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/07/opinion/1551994753_797742.html>. Acesso em: 03 de março de 2021.

GARRIDO, Lucy. A 25 años de Beijing. El hexagrama de la continuidad. Revista Bravas, n. 11, 2020. Disponível em: < https://www.revistabravas.org/beijing-lucy-garrido>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2021.

GOETZ, Anne Marie. The new competition in multilateral norm-setting: Transnational feminists & the illiberal backlash. Daedalus, v. 149, n. 1, p. 160-179, 2020.

LERMA, Betty Ruth Lozano. Latin American and Caribbean Feminisms. In: ACOSTA, Alberto et. al. Pluriverse: A Post-Development Dictionary. Nova Déli, Índia: Tulika Books, 2019. P. 228-231.

ROGGEBAND, Conny; KRIZSÁN, Andrea. Democratic backsliding and the Backlash against women’s rights: Understanding the current challenges for feminist politics. UN Women, 2020.

UN WOMEN. On the 25th anniversary of landmark Beijing Declaration on women’s rights, UN Women calls for accelerating its unfinished business. Disponível em: < https://www.unwomen.org/en/news/stories/2020/9/press-release-25th-anniversary-of-the-beijing-declaration-on-womens-rights>. Acesso em: 26 de janeiro de 2021.

VARGAS, Virginia; CUEVAS, Daptnhe. A veinticinco años de la IV Conferencia Mundial sobre la Mujer en Beijing. Montevidéu, Uruguai: Cotidiano Mujer, 2020.

 

*Gabriela Aparecida de Oliveira é mestranda no PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.

Imagem: ONU Mujeres – América Latina y el Caribe.

O USS Greeneville e a presença extrarregional anglo-americana no Atlântico Sul

João Vitor Tossini*

Em 10 de fevereiro de 2021, o Vice-Almirante Daryl Caudle da Marinha dos Estados Unidos, Comandante das Forças Submarinas do Atlântico, declarou que um submarino nuclear norte-americano, o USS Greeneville, esteve no Atlântico Sul e usufruiu de suporte aéreo das forças militares britânicas permanentemente baseadas nas Ilhas Malvinas (ou Falklands, para os britânicos), território reivindicado pela Argentina. Por meio de uma declaração oficial do Vice-Almirante, o Comando das Forças Submarinas do Atlântico reconheceu as ilhas como território ultramarino britânico, desviando-se da posição oficial de Washington. Apesar do apoio diplomático e militar dado ao Reino Unido durante a Guerra das Malvinas em 1982, os Estados Unidos declaram-se neutros na disputa territorial que permanece entre Londres e Buenos Aires. Assim, o episódio se insere em um histórico de presença de potências externas no Atlântico Sul que fragilizam iniciativas regionais de cooperação nas áreas de Defesa e Segurança.

Após disputas entre Espanha e Reino Unido no século XVIII, e um posterior período de administração pela Argentina, o controle britânico sobre as ilhas foi estabelecido em 3 de janeiro de 1833, permanecendo de forma ininterrupta até 2 de abril de 1982, quando a Argentina, governada por uma Junta Militar, iniciou a invasão que desencadearia a Guerra das Malvinas/Falklands. O apoio dos Estados Unidos aos britânicos durante o conflito demonstrou que as prioridades estratégias norte-americanas residiam no Reino Unido e na OTAN (MELLO, 1996), fragilizando o acordo de defesa hemisférica com os Estados da região, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que postula a assistência recíproca em caso de ataque aos seus membros.

A vitória do Reino Unido no conflito cimentou a presença territorial e iniciou a expansão da infraestrutura e da presença militar britânica no Atlântico Sul. Desde 1982, Londres mantém unidades militares dos três braços das forças armadas, incluindo uma presença naval permanentemente baseada nas Malvinas (UNITED KINGDOM, 2012). Ainda que os números totais tenham passado por uma redução após a abertura da base militar de Mount Pleasant nas ilhas (BEACH, 1986), uma das principais bases ultramarinas do país, as forças e a infraestrutura britânicas mantidas no Atlântico Sul continuaram a ser altamente avançadas, mesmo em períodos de austeridade no Reino Unido. No início dos anos 2010, período de tensões com a Argentina sobre o início da exploração de petróleo na Zona Econômica Exclusiva das Malvinas, o governo britânico realizou um dos maiores investimentos em seus territórios sul-atlânticos desde o conflito de 1982. A construção de um aeroporto de duplo propósito na ilha britânica de Santa Helena (ST HELENA, 2011), passou a fornecer ao Reino Unido o quarto aeródromo sob sua soberania na região ao passo que diminuiu o isolamento geográfico das Malvinas em relação à Londres, além de minimizar a dependência britânica da base militar na Ilha de Ascensão que abriga militares dos Estados Unidos e constitui parte do cinturão de possessões da potência europeia no Atlântico Sul.

A soberania britânica sobre as Malvinas é tradicionalmente apoiada pelos integrantes da Comunidade das Nações, organização que reúne ex-colônias e domínios do Reino Unido (COMMONWEALTH OF NATIONS, 2012). Ademais, o Reino Unido possui laços próximos com a África do Sul e, principalmente, Serra Leoa, ambos membros da iniciativa regional que visa o estabelecimento de uma Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul, a ZOPACAS. Acordos com a África do Sul permitem que as forças navais britânicas operando no Atlântico Sul, a Marinha Britânica ou Royal Navy e a Frota Real Auxiliar, utilizem a estrategicamente relevante base naval de Simon’s Town para reabastecimentos e trabalhos de reparos (UNITED KINGDOM, 2017). Navios da Royal Navy que patrulham e garantem a soberania do Reino Unido nas Malvinas utilizam dessa base, reduzindo a necessidade de retorno frequente aos portos nas Ilhas Britânicas ou em Gibraltar. No caso de Serra Leoa, o país africano foi alvo de uma intervenção militar britânica no ano 2000, objetivando colocar fim à uma guerra civil. O alcance dos objetivos políticos e militares por meio intervenção marcou o retorno da presença militar do Reino Unido na África Ocidental. Serra Leoa defende a autodeterminação dos habitantes das Malvinas, apoiando assim a continuidade da presença britânica na região (MILLER 2012).

As relações do Reino Unido com Serra Leoa e, em menor medida, com a África do Sul demonstram os limites da ZOPACAS. A organização regional, criada em 1986 por meio de esforços do Brasil e Argentina, tem como um de seus objetivos centrais a redução e eventual eliminação da presença territorial e militar “extrarregional” no Atlântico Sul (UNITED NATIONS ORGANIZATION, 1986). Entretanto, a pluralidade de interesses, ausência de maior institucionalização e coordenação de agendas, além da assimetria de poder relativo dos Estados membros em relação ao Reino Unido e aos Estados Unidos, reduzem expressivamente o peso geopolítico da ZOPACAS. Em 2008, Washington restabeleceu a IV Frota, responsável pela manutenção da presença naval norte-americana nas águas caribenhas e ao redor da América do Sul (DAWOOD; HERZ; LAGE, 2017), fortalecendo a presença do país no Atlântico Sul. Neste ponto, torna-se necessário destacar que os Estados Unidos possuem um contingente terrestre e aéreo permanente na Ilha de Ascensão, operando a base militar local em conjunto com o Reino Unido. Este sistema de disponibilização ou operação conjunta de bases em território britânicos não ocorre somente no Atlântico Sul, a Ilha de Diego Garcia no Oceano Índico é amplamente utilizada pelas forças de Washington desde a década de 1960.

Assim, a presença do submarino nuclear USS Greeneville e as declarações do Comandante das Forças Submarinas do Atlântico ocorreram nesse contexto de tensões em que, apesar da pregada neutralidade em relação aos territórios britânicos, os Estados Unidos se beneficiam da presença ultramarina do Reino Unido. O apoio prestado ao USS Greeneville por componentes aéreos das forças britânicas nas Malvinas reforça a utilidade para Washington da manutenção do status quo na região. Além disso, como notado pela imprensa argentina, a presença desse submarino nuclear ocorreu poucos dias após o governo argentino cancelar atividades navais conjuntas com a Guarda Costeira dos Estados Unidos objetivando evitar desgastes com a China. Os exercícios envolviam treinamento de combate à pesca ilegal, sendo que esta prática possui na China a origem de crescente parcela das embarcações pesqueiras ilegais na costa Argentina e de outros país sul-americanos (ELGUETA, 2021).

Nota-se que o crescimento da influência econômica da China na região a partir da segunda metade dos anos 2000 foi lentamente acompanhado pelo surgimento em 2014 das primeiras incursões navais chinesas na forma de visitas a portos e treinamentos com marinhas locais, ações que rapidamente adquiram papel no aperfeiçoamento das capacidades de projeção de poder e de manutenção de operações militares em águas profundas. Em adição, questões como a pirataria no Golfo da Guiné contribuem para a justificativa da intermitente, mas crescente, presença naval chinesa na região. Dessa forma, ao longo da década de 2010, o contexto geopolítico do Atlântico Sul começou a presenciar um novo ator, ainda que este possua suas prioridades nos Oceanos Índico e Pacífico (MARTINSON, 2019).

A subsequente presença do USS Greeneville em conjunto com o apoio militar britânico a partir das Malvinas, destaca que os Estados Unidos detém um parceiro receptivo, membro da OTAN e permanentemente baseado no Atlântico Sul. O episódio do cancelamento dos treinos programados entre a Marinha Argentina e a Guarda Costeira dos Estados Unidos, possui como consequência direta o fortalecimento relativo da posição sul-atlântica de Londres perante Washington, contribuindo para a deterioração estratégica da ZOPACAS.

Posteriores protestos do governo argentino derivados da incursão do Greeneville foram marcados por dois aspectos. O primeiro deles concernente ao controle e presença militar britânica nas Malvinas, reafirmando o desacordo de Buenos Aires com o status quo. Outro aspecto levantado foi a possível violação que a presença do submarino nuclear USS Greeneville representaria para a ZOPACAS. O governo em Buenos Aires destacou que embarcações capazes de portar ou empregar armas nucleares violam a resolução da Organização das Nações Unidas que deu origem a Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (ELGUETA, 2021).

Todavia, o USS Greeneville, assim como seus irmãos da classe Los Angeles, é designado como “submarino de ataque” (attack-submarine), amplamente identificado pela sigla SSN, significando que este é movido por propulsão nuclear e detém como papel a guerra submarina e anti-navios (BETTOLLI, 2021) e indicando que classe Los Angeles não possui capacidade de armazenar ogivas e realizar ataques nucleares. Submarinos nucleares com essa habilidade são identificados pela Marinha dos Estados Unidos pela adição do termo “balísticos” (SSBN) em referências aos mísseis balísticos intercontinentais empregados por essa força. Desde o início dos anos 2000, a classe Ohio representa a capacidade de ataque nuclear dos Estados Unidos a partir de submarinos, sendo a base naval da tríade nuclear do país e significativamente maiores que a classe Los Angeles (CHINWORTH, 2006). Em suma, as dimensões e especificações técnicas do Greeneville impossibilitam o transporte ou a utilização de armas nucleares.

Apesar disso, o anúncio da presença do USS Greeneville e o auxílio militar britânico seguido pela indicação de reconhecimento da soberania de Londres sobre as Malvinas, reforçam o alcance global da superpotência norte-americana e da potência europeia e a continuidade da “relação especial” compartilhada pelos dois países desde os anos 1940. Ademais, considerando que os deslocamentos das forças submarinas dos Estados Unidos são raramente divulgadas, o caso do Greeneville se apresenta como uma demonstração de força em uma região que aparenta receber outras potências extrarregionais. A inserção militar da China no Atlântico Sul, uma área marcada pelo protagonismo exercido pela parceria anglo-americana, possui potencial de expandir a presença militar de Londres e Washington em detrimento das ambições regionais de estabelecimento de uma Zona de Paz e, apesar de protestos regionais, reforçar a posição dos britânicos nas Malvinas. Como demonstrado pelo Reino Unido desde 1982, essa presença não depende da cooperação militar com países lindeiros, ainda que este ator extrarregional cultive relações próximas com Estados africanos banhados pelo Atlântico Sul, estimulando indiretamente a fragmentação das iniciativas regionais de Defesa e Segurança ao alinhar ou aproximar atores, como Serra Leoa, ao posicionamento britânico.

* João Vitor Tossini é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: Ilhas Malvinas por Governo Argentino/CONAE.

 

REFERÊNCIAS

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CHINWORTH, William C. The Future of the Ohio Class Submarine. (Master of Strategic Studies thesis). Carlisle Barracks, Pennsylvania: U.S. Army War College. 15 March 2006.

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ELGUETA, Mario Estay. EE.UU. le devuelve desaire a Argentina: submarino nuclear operó en el Atlántico Sur con apoyo británico desde las Falklands. Infogate, 12 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.infogate.cl/2021/02/12/ee-uu-le-devuelve-desaire-a-argentina-submarino-nuclear-opero-en-el-atlantico-sur-con-apoyo-britanico-desde-las-falklands/. Acesso em: 18 fev. 2021.

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