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Memória e verdade: sobre a necessidade de manter acesa a história da resistência ao autoritarismo

Os ataques de Jair Bolsonaro à memória dos presos políticos, torturados e executados pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985) devem ser interpretados como um assalto à democracia brasileira. Seria ingênuo afirmar que as manifestações raivosas e mentirosas do presidente quanto à memória de Fernando Santa Cruz são o ápice de uma comunicação verborrágica e que demonstra o desafeto de Bolsonaro às instituições democráticas. A carreira política do capitão da reserva do Exército brasileiro foi erigida sobre declarações e posicionamentos violentos e inverossímeis; não é inusitado antever a recorrência de falas virulentas. Listamos a seguir alguns dos episódios indignantes de louvor do atual presidente da República ao autoritarismo.

O atual chefe do Executivo constantemente se apresentou como uma personagem afeita à ditadura militar brasileira. Antes de assumir a presidência em 2019, Jair Bolsonaro afirmou que a ditadura brasileira deveria ter executado um número maior de seus oponentes políticosostentou imagens repugnantes de chacota à busca de ossadas dos combatentes da Guerrilha do Araguaia, e celebrou solitariamente o golpe de 1º de abril de 1964 em frente ao Ministério da Defesa, no ano de 2013.  Durante o rito do impeachment, o voto de Bolsonaro foi precedido de louvores ao reconhecido torturador da ditadura militarCarlos Alberto Brilhante Ustra, responsável, dentre outras dezenas de vítimas, pela tortura da presidenta Dilma Rousseff.

Marca de sua campanha, a falta de compromisso com a memória e a verdade histórica também se fez presente ao zombar da tortura e execução do jornalista Vladimir Herzog 1975, na sede do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na cidade de São Paulo. Na ocasião, Bolsonaro afirmou: “suicídio acontece, pessoal pratica suicídio”. Os fatos contrariam as alegações de Bolsonaro. O Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de investigação e responsabilização dos torturadores de Herzog. Após ser empossado presidente da República, a postura de Bolsonaro permaneceu inalterada. Ao final do mês de março, determinou que o Ministério da Defesa realizasse celebrações nas unidades militares em referência ao início da ditadura militar. O 31 de março havia sido retirado do calendário oficial de comemorações das forças armadas em 2011, no governo Rousseff – mais de duas décadas após o fim do regime. Em julho, contrariou a história da repressão no país, e mesmo documentos oficiais do Estado, ao negar a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão e a execução de Fernando Santa Cruz. As declarações foram acompanhadas de caracterizações pejorativas das vítimas, atribuindo-lhes a participação em movimentos da resistência armada à ditadura brasileira. Quando questionado acerca da inverossimilhança das declarações, o chefe do Executivo afirmou que os documentos históricos em relação aos mortos durante a ditadura militar são “balela”.

A comunicação verborrágica – que revela a covardia de enfrentar a verdade – também resulta em políticas materiais. Um decreto assinado por Bolsonaro e pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, determinou a alteração de 4 dos 7 membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A nova composição da comissão responsável por investigar crimes da ditadura passa a contar com militares e filiados do Partido Social Liberal (PSL). Em agravo, entre os novos integrantes há defensores do período autoritário, como o deputado federal, Filipe Barros (PSL-PR).

O revigoramento das narrativas estapafúrdias sobre a ditadura militar no Brasil pode ser parcialmente atribuído à incapacidade em investigar os crimes do regime autoritário e responsabilizar seus autores. O empenho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) permitiu desnudar parte das violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Instituída durante o governo Rousseff a partir da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, a CNV teve como objetivos centrais a efetivação do direito à memória e à verdade histórica e a reconciliação nacional.

A proposta de uma comissão que investigasse os crimes da ditadura remonta ao ano de 2004, quando o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a organização do Arquivo da Intolerância, cuja função era tornar público o acesso documentos referentes a torturas, prisões e desaparecimentos ocorridos durante o regime militar e que estivessem sob a tutela do Estado brasileiro. Entretanto, o decreto 4.553 assinado na última semana do governo de Fernando Henrique Cardoso, aumentou o prazo de duração da classificação de documentos ultrassecretos para 50 anos renováveis indefinidamente, “de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”. A conjuntura política à época, somada ao debate público que surgiu sobre o tema e às barreiras impostas pelas forças armadas, postergaram a efetivação do projeto do presidente Lula (SAINT-PIERRE; WINAND, 2007, p. 69).

A comissão atuou durante o governo Rousseff, em meio a debates relacionados à revisão da Lei da Anistia brasileira (1979) e ao aniversário de 50 anos do golpe de 1964. Temas sensíveis trabalhados pela Comissão, como a execução dos componentes da Guerrilha do Araguaia e a participação brasileira na Operação Condor, estiveram entre os debates da CNV e foram divulgados pelos principais veículos de comunicação do país à época. A operacionalização da CNV, contudo, foi seguidas vezes obstaculizada pelas forças armadas brasileiras, interessadas em evitar o acesso e a divulgação de documentos que comprovassem sua responsabilidade na repressão violenta (WINAND; BIGATÃO, 2014).

Após mais de dois anos de extensivos trabalhos de pesquisa documental e coleta de depoimentos, a Comissão publicou em três volumes seu relatório final, entregando-o em 10 de dezembro de 2014. De lá para cá, mesmo as aparentemente incontestáveis e exequíveis recomendações ali permaneceram. Apesar dos esforços de investigação e identificação dos responsáveis conduzidos pela CNV, seu empenho não ecoou entre representantes políticos e seu eleitorado. A onda autoritária contemporânea no Brasil aderiu a narrativas deturpadas sobre o período ditatorial.

Os projetos brasileiros para a conservação da memória e para a garantia do direito à verdade em relação à ditadura militar permanecem tímidos diante da ação de outros Estados para a preservação da história de regimes autoritários. Em outros países sul-americanos, assim como nos países que outrora foram ocupados pelo fascismo e o nazismo na Europa, a marca indelével da violência de regimes autoritários é reavivada no cotidiano como sinal de respeito às vítimas do passado e lembrete às novas gerações. Para além das comissões da verdade instaladas ainda na década de 1980, Argentina, Chile e Uruguai, sediam edificações destinadas à preservação da história dos regimes autoritários. Um olhar para essas experiências internacionais pode contribuir para aventarmos iniciativas de preservação da verdade no Brasil.

No Chile, o Parque por La Paz Villa Grimaldi, resignificou um centro de sequestro, tortura e extermínio gerido pela Dirección de Inteligencia Nacional. Na cidade de Santiago, o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos garante visibilidade às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1973 e 1990 e tem como missão estimular debates para que as atrocidades da ditadura de Pinochet não se repitam. Na Argentina, o Archivo Provincial de la Memoria, na cidade de Córdoba, é apenas um dos monumentos de preservação da história recente de autoritarismo e violência. Em Buenos Aires, o Parque de la Memoria recorda “as vítimas do terrorismo de Estado”; enquanto o Museo de la Memoria de Rosário mantém vívida a memória das crianças sequestradas pelo Estado argentino. Em Montevideo, no Uruguai, o Centro Cultural Museo de la Memoria possui uma exposição permanente com objetos, fotografias e documentos que retratam as prisões, a resistência popular e o exílio.

Que seja inequívoco: a defesa dos valores democráticos demanda posturas intransigentes diante da ressaca do autoritarismo. Hoje, esse movimento requer um inabalável apreço pela verdade e um profundo respeito pela memória daqueles que, lutando pelo retorno da democracia e da liberdade, foram aprisionados, torturados ou executados pela ditadura. O resguardo da verdade histórica contribui para a identificação dos arroubos autoritários e de suas manifestações violentas no presente e evita o seu ressurgimento erigido com base em narrativas distorcidas.

 

Referências Bibliográficas:

SAINT-PIERRE, Héctor Luis; WINAND, Érica. O legado da transição na agenda democrática para a Defesa: Os casos brasileiro e argentino. IN: Controle civil sobre os militares e política de defesa na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguay. Org: Héctor Luis Saint-Pierre. São Paulo: Editora UNESP: Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNESP, Unicamp, e PUC-SP, 2007.

WINAND, Érica Cristina A.; BIGATÃO, Juliana P. A política brasileira para os direitos humanos e sua inserção nos jornais: a criação da Comissão Nacional da Verdade. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. v. 2, n. 2. 2014. p. 41-52.

 

Leonardo De Paula e Laura Donadelli são pesquisadores do GEDES e, respectivamente, mestrando e doutoranda pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

 

Imagem: Comissão Nacional da Verdade. Por: Júlia Lima/ PNUD Brasil.

As efemérides humanitárias de 2019: a atualidade dos limites de Ruanda e Kosovo

Há 25 anos, em 07 de abril de 1994 teve início o Genocídio de Ruanda, que durou cem dias e matou cerca de um milhão de pessoas. Em 1999, teve início a intervenção no Kosovo liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que ocasionou na província um processo de paz inconcluso e ainda muito questionado sobre seus resultados, mesmo 20 anos depois. Os dois eventos chocaram a comunidade internacional e a sociedade civil global e tiveram parte fundamental no exponenciamento das crises humanitárias causadas por conflitos na década de 1990.

As calamidades humanitárias colocaram em pauta importantes debates sobre a responsabilidade dos organismos internacionais em responder a conflitos localizados, face à monta de violência aberta deste período. A somatória destas situações na periferia – com menção também à guerra na ex-Iugoslávia – gerou um profundo mal-estar sobre a incapacidade dos instrumentos de governança global em prevenir e conter violações de direitos humanos em larga escala.   A presunção de proteção à dignidade humana é uma das bases do sistema das Nações Unidas; um compromisso da comunidade internacional para impedir a repetição dos genocídios ocorridos na Segunda Guerra Mundial.

Entretanto, a experiência mais clara do envio de operações de paz anterior aos anos 1990 ocorreu ao final da década de 1950 com a descolonização do Congo; isto, pois com a preocupação sobre os armamentos nucleares na segunda metade do século XX, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) dedicou pouca atenção à proteção das populações minoritárias. Assim, passada a euforia pela suposta expansão dos direitos humanos e da democracia liberal com a queda da União Soviética já ao final do século, o compromisso ficou sem lastro pela inação internacional frente à profusão de tragédias humanitárias – que escalava a necessidade de a organização direcionar esforços neste sentido.

As cenas de corpos empilhados, miséria extrema, campos de refugiados como verdadeiros concentrados de sofrimento humano passaram a compor o imaginário coletivo – graças ao efeito dos meios de comunicação em massa. E este contexto de urgência desembocou em um longo e inconcluso processo de reformulação dos pilares constitutivos da segurança internacional legislada pelo CSNU, criando mecanismos de atuação internacional. As intervenções humanitárias foram revividas de modo mais robusto, passaram a incluir fortes contingentes militares e a autorização do uso da força pelos capacetes azuis tornou-se uma questão incontornável do modelo de operações.

O que ocorreu durante os anos 1990 foram tentativas apressadas de dotar de eficácia os mecanismos onusianos de ação humanitária, com a ampliação destes instrumentos sobre o uso da força, sob o véu da necessidade de tornar a proteção internacional vigorosa. A costura deste elo com as noções de segurança humana – que torna peremptória a condição dos indivíduos enquanto elemento da estabilidade social – colocou o tema das intervenções humanitárias como expressão da conjunção de dois regimes centrais do sistema ONU: o acordo de segurança coletiva sobre a manutenção da paz internacional e o regime universal de direitos humanos.

As experiências dos anos 1990 se provaram emblemáticas para a consolidação de diretrizes internacionais de atuação e de expedientes militares em contextos de convulsão humanitária. Houve a produção, pela Secretaria Geral da Organização, de uma série de documentos que aludiram a modelos de contingenciamento de crises e reconstrução – a exemplo de “Uma Agenda para Paz”, em 1992; “Suplemento de Uma Agenda para Paz”, de 1995; “Relatório Brahimi”, 2000; e da “Doutrina Capstone”, 2008 –, os quais balizavam tanto a autoridade do CSNU sobre contextos localizados de conflito aberto, quanto a noção central de proteção a civis com o uso da força.

Os dois trágicos eventos citados no início deste texto são paradigmas para formação do entendimento da comunidade internacional sobre como lidar com crises humanitárias. Ambos os casos foram pautados pela dificuldade em conciliar interesses das potências do Conselho – a França no episódio ruandês e a Rússia no caso kosovar; esta última contornada via OTAN – e expuseram o flanco vulnerável das Nações Unidas, isto é, o contraste entre a exortação à ação prevista em seus instrumentos e a capacidade de agir eficazmente.

Ademais, os exemplos de Ruanda e Kosovo são ligados pela centralidade que a narrativa sobre civis obteve nas incursões. Em Ruanda, a preocupação em divulgar o número de mortes civis pelas organizações internacionais não-governamentais – especialmente os Médicos Sem Fronteira e a OXFAM – e pelo comando da restrita missão humanitária, já encampada em 1994, fez recrudescer o debate sobre a responsabilidade da ONU em proteger a população ruandesa e dos efeitos práticos de sua própria omissão.  A manifesta inquietação do governo de Bill Clinton sobre o risco de extermínio dos kosovares pelo Estado sérvio justificou o mote de “ilegal, porém legítima”, atribuído à intervenção da OTAN, que não contou com mandato autorizado pelo CSNU no primeiro momento.

Ao final da década de 1990 estava patente a transformação da legitimidade no campo internacional em favor da proteção de diretos humanos e com relativização da soberania estatal. Sem dúvidas, esta mudança não foi acompanhada unanimemente por todos os membros da comunidade internacional, nem sequer provou-se consolidado nos instrumentos legais. No entanto, a pavimentação de mecanismos que justificam a proteção humana como imperativo, apesar da predominância dos princípios de um sistema de segurança coletiva gestado em 1945, impulsionou movimentações institucionais intensas para a reforma de parâmetros de não intervenção, sendo também fundamental nas retóricas de atuação militar dentro e fora da autoridade do Conselho – como é o caso da invasão do Iraque pelos EUA em 2003 e da incursão da Rússia na Geórgia em 2008.

A partir deste panorama, a constelação de temas sobre as intervenções humanitárias desdobrou-se em múltiplas vertentes, contudo, as marcas duodecenais aqui apontadas levam à reflexão de dois tópicos comuns a todas: o primeiro é o imperativo da proteção civil, que inaugurou reformas importantes no arcabouço das operações de paz onusianas; o segundo é a decorrente discussão sobre a compatibilidade entre a “legitimidade pelo resultado” e os objetivos protetivos.

Assim, nos últimos 25 anos, a ONU criou intersecções normativas destes temas com a presunção de imperatividade da proteção civil como mote poderoso para a reforma das operações de paz. O passo retórico dado foi o posicionamento do objetivo de salvaguarda das populações como razão de ser da atuação internacional, mobilizando as nuances de legitimidade para este campo.

O movimento mais ousado neste sentido foi a formulação do princípio de Responsabilidade de Proteger – difundido em inglês como Resposibility to Protect, R2P –, em 2001. De modo bastante sucinto, o R2P criou elos de responsabilidade entre as autoridades estatais e a comunidade internacional, a fim de evitar violações massivas de direitos humanos; e condicionou a soberania territorial a esta proteção. O instituto passou por remodelações significativas desde seu lançamento e sofre com resistências de países como Rússia e China – especialmente depois de seu uso na malfadada operação na Líbia em 2011.

O que esta breve retomada temporal aponta é a permanência das preocupações já presentes em Ruanda e no Kosovo em promover o uso militar legitimado por princípios de proteção defendidos na esfera das Nações Unidas. Os dois exemplos da década de 1990 inauguraram um processo de reestruturação normativa cadenciada pelo argumento da proteção de civis. Hoje, entre a reformulação de diretrizes operacionais e a continuidade de incursões controversas, é possível identificar aprendizados institucionais que consolidaram os direitos humanos como imperativo da segurança internacional. Entretanto, este entendimento não é pacificado entre os membros da comunidade internacional que autorizam o uso da força, de modo que a capacidade da organização em entregar suas promessas de proteção permanece coibida pelo jogo clássico de poder no Conselho de Segurança. A paralisia do órgão frente a atual guerra na Síria é a prova mais evidente neste sentido.

Ao final, Ruanda e Kosovo permanecem atuais como exemplos das barreiras levantadas pela conformação da governança global instaurada em 1945 e apontam os desafios constantemente presentes para a efetivação da proteção de civis em conflitos armados, mesmo depois de mais de duas décadas de seus acontecimentos.

 

 

Letícia Rizzotti é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.

A Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo e a presença do Brasil

Em 2010, com base no capítulo VII da Carta da ONU, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) decidiu prolongar a Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC), que passou a se chamar Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO). Essa missão destaca-se, especialmente, pela proteção de civis e defesa dos Direitos Humanos, assim como pela estabilização e consolidação da paz no país. Posteriormente, devido à permanência dos conflitos, o CSNU deu continuidade à missão e as resoluções sucessoras trouxeram novos enfoques, tais como verificar e prevenir a questão do estupro pelas milícias e o aumento do contingente militar no país.

Assim, uma das funções da MONUSCO foi atender a população civil congolesa contra as milícias, sobretudo na região leste do país, pois as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) vinham se mostrando incapazes de desmantelar os grupos rebeldes que atuam nas regiões mais vulneráveis. Considerando a complexidade para a resolução dos conflitos na República Democrática do Congo (RDC), o CSNU decidiu aplicar a quinta técnica de resolução de conflitos, chamada “Imposição da Paz” (Peace-enforcement), buscando manter a estabilidade no país.

De modo geral, apesar da persistência dos conflitos, os resultados da MONUSCO desde a sua implementação são considerados positivos. Vale citar, por exemplo, a criação da Rede de Alerta da Comunidade da MONUSCO para a proteção de civis, onde a segurança do Estado e a MONUSCO conseguiram resolver 85% de alertas de ameaças, além da patrulha militar para proteção dos civis e detenção de forças negativas. Ainda, foram realizadas 93 campanhas e 34 capacitações aos atores da sociedade civil a fim de mitigar riscos em eleições.

Na questão de gênero, em 2018, mais de 80% dos escritórios da missão trabalharam em ações específicas para maior participação da mulher congolesa na sociedade. No âmbito infantil, mais de 1000 crianças foram separadas de grupos armados. Ademais, sobressaem-se as atividades de Organizações Internacionais Não Governamentais presentes no país, como a Cruz Vermelha Internacional e os Médicos Sem Fronteiras, que atuam em áreas assoladas pela epidemia do Ébola, levando auxílio e garantindo a proteção dos civis nas regiões que são foco principal da missão. Porém, os desafios continuam sobretudo no que concerne ao fortalecimento das instituições estatais de segurança, tendo em vista que os grupos rebeldes continuam atuando, ocasionando mortes e obrigando o deslocamento da população local.

Desse modo, a presença de soldados especialistas em guerra na selva foi solicitada, pois boa parte dos grupos rebeldes se refugiam nas florestas. Tal empreitada foi encarregada ao Brasil por ser a principal referência na área em nível internacional por meio do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Assim, a missão conta com 13 soldados brasileiros especializados em guerra na selva para se juntarem à Brigada de Intervenção – composta por batalhões da África do Sul, Tanzânia e Malui – que já atuam no combate aos grupos armados. Os soldados brasileiros se encontram no país desde junho de 2019 para treinar a Brigada, assim como a FARDC.

Vale destacar que a presença do Brasil na MONUSCO data desde o mandato do General Santos Cruz que esteve na frente de comando durante os anos 2013-2014, sendo reconhecido por ajudar a desmantelar o grupo rebelde M23 em março de 2013. Atualmente, o General Elias Filho, também brasileiro, está à frente da missão, com vasta experiência em Operações de Manutenção de Paz, administrativa e operacionalmente. Ainda, o general tem atuado em atividades de formação com representantes de outras missões de paz da ONU no continente africano, compartilhando experiências seja em termos de baixa de tropas, segurança individual e coleta, planejamento, neutralização de grupos armados, dentre outros.

Ademais, o Brasil possui uma longa participação em Operações de Manutenção de Paz da ONU, o que lhe dá credibilidade nesta atividade, tanto do ponto de vista da atuação diplomática na resolução dos conflitos, quanto na disponibilidade de soldados para o campo de ação. O país também apoia iniciativas de caráter administrativo, como foi o caso do fornecimento de materiais de escritórios, com o objetivo de auxiliar no equipamento de unidades locais que lutam contra violência e abusos sexuais, assim como buscam promover a proteção de crianças.

Destaca-se ainda o âmbito educacional recreativo, como o projeto “Capoeira para a paz” (Capoeira for Peace), implementado em 2014 com intuito de treinar ex-crianças-soldado como forma de reintegração social. O projeto é resultado da integração entre a Embaixada do Brasil e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e têm como desafios a reintegração das mais de 3 mil crianças que ainda se encontram associadas a grupos armados, sobretudo nas regiões do Kivu e Katanga, no leste do país. No entanto, apesar da complexidade ainda apresentada pela missão e os problemas internos do país em garantir a segurança e estabilidade em nível nacional, reconhece-se que os esforços do aparato militar e administrativo têm sidos disponibilizados, sobretudo financeiramente.

O apelo pela técnica de “imposição da paz”, mediante o uso da força pelos soldados da missão, deve ser analisado cuidadosamente considerando o processo de construção do Estado como um todo, principalmente no setor de segurança que ainda depende de ajuda externa para manter o clima de estabilidade. Embora pouco executadas, as atividades de peace enforcement na MONUSCO têm auxiliado em grande medida a execução das atividades estratégico-militares, impulsionando o processo de construção do Estado no setor de segurança.

Apesar de as operações de peace enforcement terem seu caráter jurídico na Carta da ONU, sua aplicação é recomendada em situações de ameaças à paz e à ajuda humanitária, na proteção e defesa da missão no país. Porém, vale destacar que as experiências observadas na década de 1990, como o genocídio de Ruanda, mostraram resultados insuficientes e frágeis no processo de consolidação e estabilização paz.

Na RDC, o uso da força focou na neutralização de grupos rebeldes em conjunto com as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) e a Brigada da Intervenção, visando a proteção dos civis. Assim, contou ainda com auxílio tecnológico do uso de drones para eliminar as ameaças de grupos rebeldes escondidos nas florestas. É neste cenário que a presença de soldados brasileiros especialistas em guerra na selva contribui, por meio de treinamento, no combate a estes grupos foragidos.

Interpreta-se que, a aplicação da imposição da paz na RDC tem objetivo estratégico militar para desmantelar grupos rebeldes em ação. Porém, o processo de construção e consolidação da paz vai além, passando pela análise de como ocorreram as negociações de paz pós-conflitos entre as partes envolvidas. Ou seja, passa por uma discussão do processo de construção do Estado considerando a necessidade de estabelecimento de instituições estatais competentes capazes de congregar os interesses dos atores locais com base nas origens dos conflitos.

Logo, um programa de atividade de reforma do setor de segurança eficiente serve de política de encaminhamento para a consolidação da paz mediante aplicação de programas como Desmobilização, Desarmamento e Reintegração (DDR) de ex-combatentes, bem como interação dos atores locais e internacionais para implementação prática dessas atividades. Nesse sentido, é mister recordar a atuação brasileira no processo de construção do Estado timorense, diplomaticamente, com destaque para a figura de Sérgio Vieira de Mello nesse processo de negociação no Timor Leste.

Contudo, os desafios da MONUSCO continuam, especialmente aqueles voltados para ações militares e estratégicas de combate aos grupos rebeldes que têm causado instabilidades no país e impedido a ação das intervenções de ajuda humanitária. Assim, reafirmando os objetivos da missão de proteger os civis, estabilizar o país e apoiar a implementação de paz, a missão conta atualmente com 1,3 mil agentes policiais e 4 mil civis atuando no terreno, além de 16 mil militares sob comando do general brasileiro Elias Filho.

As políticas para a consolidação da paz não abrangem o território nacional, a atuação dos atores internacionais ainda é restrita e o exército nacional ainda atua de modo delimitado na proteção da sociedade civil. Dessa forma, a presença brasileira tem sido percebida principalmente no  papel desempenhado pelos comandantes especialistas em missões de paz, e, recentemente, pela chegada de soldados brasileiros especialistas em guerra na selva para o treinamento da Brigada de Intervenção a fim de enfrentarem os grupos rebeldes.

Contudo, a MONUSCO vem mostrando resultados satisfatórios e a presença brasileira tem sido relevante aos olhos da comunidade internacional, seja na sua liderança em campo, como em questões táticas e estratégicas por meio de troca de experiência com os soldados recém-chegados ao país, de grande relevância no combate aos grupos rebeldes. Apesar dos desafios internos no estabelecimento de instituições no setor de segurança, é possível notar certo clima de confiança e esperança da sociedade congolesa no trabalho da missão e dos governos locais.

Autor: Laurindo Tchinhama é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Os Militares do Presidente

Em meio a um festival de incompetências, amadorismos e declarações estapafúrdias que tem se mostrado o governo Bolsonaro, um grupo, em específico, chama atenção por ao menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque não devia estar lá. Em segundo lugar, porque tem dado manifestações recorrentes de que é o locus de racionalidade de um governo que mais se assemelha a uma versão mal editada de um reality show. Refiro-me aqui aos militares, notadamente do Exército, que têm ocupado cargos importantes no governo. “Braço Forte e Mão Amiga”, os militares têm sustentado o governo Bolsonaro não apenas executando as missões a eles atribuídas, mas dando ao governo uma dosagem de legitimidade imprescindível.

A face deste fenômeno é, por certo, Hamilton Mourão. Atual vice-presidente da República, Mourão, um militar da reserva, tem chamado atenção pelas declarações que, não raramente, colocam-se em contraposição aos demais membros da equipe de governo, quando não, ao próprio presidente. Sua atuação na Vice-Presidência tem se destacado de tal forma que até mesmo o jornalista Ricardo Noblat, em sua conta no Twitter, realizou uma enquete avaliando o desempenho do general.

Num âmbito geral, Mourão tornou-se a figura governista favorita da mídia brasileira, por um motivo muito simples: o tratamento dispensado ao jornalismo é o que, naturalmente, espera-se de um representante político. Ao contrário do secto bolsonarista, adepto à moda trumpista de deslegitimar a atividade jornalística, Mourão monstra tamanha polidez que lhe rendeu a alcunha de “queridinho da imprensa”. Sua atual aparente sensatez choca-se com as declarações polêmicasemitidas durante a campanha. Em que medida isso representa um recém-adquirido senso de responsabilidade, resta ser avaliado.

De todo modo, uma vez empossado, o agora vice-presidente tem se esforçado, por motivos ainda desconhecidos, para superar o clima de campanha e se colocar a altura do cargo que ocupa – contrastando, assim, com o papel de youtuber do entourage da Presidência. E foi dessa forma que foi percebida, por exemplo, sua declaração quanto ao exílio de Jean Wyllys – sobre as ameaças sofridas pelo parlamentar, Mourão declarava que se tratava de um ataque à democracia.

Mas é no campo das decisões em política externa que se torna mais visível o abismo entre um certo senso de responsabilidade dos militares no governo e os voluntarismos irresponsáveis dos demais membros do gabinete, principalmente do próprio presidente. Fala-se mesmo em um “cordão sanitário” formado pelos militares do governo em torno do chanceler Ernesto Araújo. Nesse campo, ganham destaque as falas do general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), além das afirmações de Hamilton Mourão. Comecemos, pois, pelo vice-presidente:

Mourão foi pivô de assertivas que questionavam diretamente as diretrizes da política externa do governo Bolsonaro, bem como a capacidade de Ernesto Araújo em conduzi-la. Em entrevista concedida à revista Época para a formulação de um perfil do chanceler, Mourão sugeria como chamada: “terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?”. Somado a isso, o vice-presidente tem mantido uma agenda nutrida de reuniões com diversas representações internacionais. Em muitos desses encontros não houve a presença de Araújo e, nas reuniões em que o chanceler participou, cumpriu apenas o papel de pajem. Sua participação no Grupo de Lima, por exemplo, no qual o chancele teve apenas papel secundário ou ainda também na reunião mantida por Mourão com Juan Guaidó, autoproclamado presidente venezuelano, no marco de sua visita ao Brasil. Em suma, seu entendimento sobre a política externa bolsonarista expressa-se  na seguinte frase: “está faltando prudência. Não podemos falar qualquer coisa e depois desfalar (sic). Agora é tempo de analisar. Não é tempo de sacar soluções da cartola. A palavra é prudência”.

Não bastasse, tem sido também divergente a abordagem dos militares e do governo em relação à crise na Venezuela. Tanto Mourão, quanto Heleno têm sido enfáticos na negação de que uma intervenção militar no país vizinho faz parte dos planos do governo brasileiro. Durante o período de transição, Heleno ressaltava o trabalho humanitário feito pelas Forças Armadas com os refugiados venezuelanos e pontuava os impedimentos constitucionais a uma incursão militar brasileira na Venezuela. Quando ainda era cotado para ocupar o Ministério da Defesa, na tentativa de pôr fim aos rumores de intervenção, Heleno afirmava que o Brasil não aderiria à defesa estadunidense de uma intervenção militar. Considerando os custos de uma eventual intervenção, declarava: “é constitucional que o Brasil não aceita ingerência de países estrangeiros nos assuntos internos e também não fará ingerência nos assuntos internos de outros países. Então, é isso aí”.

O comportamento dos militares do presidente denota uma elevada familiaridade com o fazer político. Pedimos licença aqui para não nos atermos especificamente à legitimidade de sua atuação política. Dado o processo de formação na caserna, é difícil sustentar que uma vez na reserva os militares deixam de ser militares e passam a configurar como corpo civil. Na verdade, a própria noção de reserva vem acompanhada de um “senso de servir” – os militares da reserva estariam sempre em prontidão para voltar à ativa caso convocados. Seja como for, fato é que a atuação dos militares no governo tem funcionado como um sustentáculo de racionalidade num mar de despautérios. E a pergunta que fica é: mas a que custo?

No dia 13 de novembro de 2018, no marco da nomeação de Azevedo e Silva ao Ministério da Defesa, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, voltou a pontuar que apesar de aprovar a nomeação do militar para o cargo, não haveria de se confundir o número de militares no governo com um governo de militares. Em suas palavras, “embora muitos militares estejam sendo chamados a participar do Governo, isso não significa que o Exército, como instituição, esteja fazendo isso. O Exército continua no seu papel de instituição de Estado, apolítica e apartidária”.

Apesar do paradoxo de suas declarações, quando confrontadas com o fato de que o próprio Villas Bôas hoje faz parte do governo, a preocupação manifestada pelo então comandante dialoga exatamente com nosso argumento. Ao transferirem para o governo a legitimidade institucional de que gozam perante a sociedade, os militares arriscam serem confundidos, em si, com o governo no qual ocupam cargos. Como consequência, expõem-se ao risco de terem não apenas a imagem manchada face à sociedade brasileira, mas principalmente de desprofissionalização de seus quadros.

No bojo da crescente participação militar nos quadros governamentais – fato cujo fenômeno mais recente é o anúncio de quatro programas televisivos para as Forças na TV pública –, as manifestações sobre o Golpe de 1964 chamam especial atenção pelo caráter esdrúxulo e desrespeitoso às vítimas do regime opressor e assassino que se instaurou no Brasil. Após o comunicado de Bolsonaro que incentivava comemorações ao golpe, a cúpula militar manifestou-se – por receio ou prudência – alegando que os eventos deveriam ser conduzidos “de maneira discreta” e “sem manifestações públicas”. Ciosos pelo esquecimento deste período da história brasileira, os militares deparavam-se ali com o que há de mais atroz no governo: a releitura deturpada da história.

Quando Dilma Rousseff instituiu a Comissão da Verdade, a relação entre seu governo e os militares, já deteriorada, rumou à debacle – o que é corroborado por Sérgio Etchegoyen, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, em evento no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Tomando sua ação como um ataque direto à instituição, os militares, ao menos tacitamente, passaram a antagonizar a presidenta. O resto da história é conhecido. Agora, aos militares que apostaram na figura de Bolsonaro como ferramenta de retomada do poder via voto, resta a tomada de consciência de que, além deles, o governo é composto por unidades não tão organizadas. Dão-se conta dos desmandos de um Abraham Weintraub na Educação e dos absurdos proferidos por uma Damares Alves, ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos. Deparam-se com a influência de um suposto filósofo a quem Alberto Santos Cruz, general e então responsável pela Secretaria de Governo, qualificava como desequilibrado.

Ao fim, do ponto de vista das Forças, a pergunta mais importante é: conseguirão as forças armadas brasileiras terminar o período do governo Bolsonaro sem ter sua imagem maculada? Em se confiando nos dados disponíveis, o cenário não é positivo. É exatamente isso que indica a recente exoneração do próprio Santos Cruz da Secretaria de Governo da Presidência da República. Fruto justamente da disputa entre ala olavista e os militares, a queda de Santos Cruz acaba por confirmar o inevitável: sua presença no governo os coloca na linha de frente das disputas políticas nacionais, fazendo-os sujeitos, inclusive, às mesmas táticas de difamação que elegeram o atual presidente.

Por outro lado, se é certo que a desprofissionalização das Forças é anterior ao seu retorno ao poder, sendo a imagem mais evidente deste processo a crescente participação militar em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), é certo também que sua atuação política é disfuncional em si mesma, demandando atenção redobrada. Num contexto no qual grassa a insensatez, não se pode estar desatento ao simbolismo de uma estrutura de governo cuja equivalência em termos de militarização só se encontra no período ditatorial. Em outras palavras, não podemos cair no canto da sereia.

Em texto escrito para a Revista Piauí, a jornalista Malu Gaspar iniciava com a seguinte chamada: “atacado pelos radicais bolsonaristas, o vice-presidente se coloca como garantia contra solavancos do governo”. A chamada – assim como o título no qual lê-se “Mourão, o avalista” – é representativa da situação que se instaurou no Brasil, quando comparamos as alas mais radicais do governo aos militares. Há uma espécie de excitação geral quanto a participação dos militares na política que se expressa em duas linhas básicas.

Por um lado, tal visão advém do respeito de que gozam as forças armadas perante a sociedade, o que faria com que sua atuação política fosse vista como compromissada com o país e livre de desvios morais. Por outro, tem sido cada vez mais recorrente o argumento de que os militares serviriam como moderadores, impondo limites ao governo. Esta última acepção é particularmente interessante – e preocupante – e se expressa de forma singular na declaração de Gaudêncio Torquato: “eles [os militares] se consolidam como poder moderador e escudo protetor do governo em caso de crise. A simples presença deles inibirá sugestões de alternativas fora da Constituição”.

O que se apresenta problemático não é necessariamente que se tenha uma visão positiva acerca dos militares. Ora, no âmbito da subjetividade somos livres em nossas percepções – ao menos em tese. A questão torna-se mais complexa, entretanto, quando observamos jornalistas e acadêmicos transpondo essa percepção ao exercício de suas funções, numa espécie de agitação esperançosa inapropriada. Lembremos: comparativamente, até mesmo o mandato relâmpago de Fernando Collor pode ser considerado positivo. Tudo é questão de parâmetros.

Em que pese seu recente Media Training, não esqueçamos que foi Mourão quem, caneta em punho, feriu de morte a Lei de Acesso à Informação. Foi também esse mesmo Mourão, ainda na ativa, que insinuou, por diversas vezes, a necessidade de um novo golpe militar no país. Assim, se aceitamos a tese de Marcos Nobre de que a eleição de Bolsonaro representa “a revolta das baixas patentes”, sendo os militares o fator de legitimação e, até certo ponto, organização desse governo, é certo que não podemos admitir, a priori, a normalidade de suas ações ou sequer que tais ações advenham de um senso de responsabilidade imaculado para com o país. Com isso, não intento atacar a instituição, senão que reconheço a singularidade do momento em que vivemos: preparados para a guerra, aos militares não cabe a posição de avalista. Instituições burocráticas do Estado, não lhes cabe assumir o papel de Quarto Poder.

Não obstante as tentativas de militares – dentro e fora do governo – de se afastarem do passado ditatorial, o assunto ainda é muito recente e muito mal resolvido para que não nos atentemos às excepcionalidades. Na ânsia de encontrarmos algum grau de normalidade num governo marcado pelo caos, temos de ter cuidado para não incorrer na normalização da crescente participação e ingerência militar na política – em todo o país, são cerca de 7 mil os postos ocupados por militares. É preciso estar atento e forte.

Autor: Jorge M. Oliveira Rodrigues é mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).

Imagem: Roque de Sá/ Agência Senado CC

Solidariedade e Violência: notas sobre os 15 anos do desembarque brasileiro em Porto Príncipe

O dia 1º de junho de 2019 marcou 15 anos do início do engajamento de militares brasileiros na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A operação de paz iniciada em 2004 foi instrumentalizada como estandarte das políticas Externa e de Defesa brasileiras. As implicações do engajamento na missão de pacificação no Caribe difundiram-se através de temas da política doméstica, sobretudo naqueles relacionados à segurança pública. É plausível indicar que o prestígio e a experiência adquiridos pelas forças armadas através da participação na operação de pacificação no Haiti foram fatores importantes para seu emprego em questões domésticas e para sua reaproximação ao centro do poder. No entanto, há que se desvelar episódios controversos do engajamento de militares brasileiros no Haiti, e que se repetem em território brasileiro.

A participação brasileira na MINUSTAH não permaneceu alheia às críticas às ações violentas de militares no decorrer do processo de pacificação, mesmo que caracterizada como demonstração de solidariedade em relação à população haitiana e de não-indiferença diante das crises humanitárias. A proposição de um modus operandi característico dos contingentes brasileiros em operações de paz foi maculada por problemas comuns ao engajamento das forças armadas de outros Estados em intervenções ao redor do globo. Investigações conduzidas por organizações não-governamentais e agências de jornalismo concentraram-se em discutir episódios de violações de direitos e liberdades fundamentais por membros de diferentes nacionalidades do quadro da missão.

Entre os casos de emprego excessivo da violência está a operação conduzida pelo comandante do componente militar da missão entre 2004 e 2005, general Augusto Heleno, em 6 de julho de 2005. A ação denominada “Operação Punho de Aço” foi também reconhecida pela alcunha de massacre. Em busca de Emmanuel Wilmer, chefe de uma gangue na favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, 440 militares da MINUSTAH assassinaram ao menos 27 civis, incluindo crianças, e 5 membros do grupo de Wilmer. Relatos da população local contabilizaram até 60 mortos em decorrência da ação violenta executada pelos militares internacionais. Na ocasião, registraram-se disparos de 22 mil projéteis de acordo com documentos oficiais. Os excessos cometidos no Haiti guardam inquietante semelhança com os projéteis disparados contra o carro de uma família na cidade do Rio de Janeiro e que resultaram na morte de Evaldo dos Santos Rosa e Luciano Macedo.

O combate às gangues haitianas foi reforçado pela mobilização de um destacamento de operações especiais marcado pela falta de transparência na condução de suas atividades. O Destacamento de Operações de Paz foi imbuído de realizar o reconhecimento de regiões críticas e empregado em confrontos diante dos grupos locais. Amiúde, o grupo também executou ações tipicamente vinculadas às doutrinas militares de contrainsurgência, contribuindo para a aquisição de controle da MINUSTAH sobre regiões críticas no Haiti. O engajamento desse grupo de militares brasileiros foi caracterizado pelo sigilo na condução de operações para adquirir informações que amparassem as atividades do componente militar da MINUSTAH.  Amparados por atiradores de elite, por vezes os militares desse destacamento atuaram sem identificação e com as faces cobertas para evitar seu reconhecimento.

No que toca a política de segurança pública brasileira, a experiência adquirida na MINUSTAH foi muitas vezes considerada como referência para a condução de operações de pacificação com o apoio das forças armadas no Brasil. As consecutivas operações de Garantia da Lei e da Ordem e a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, dependentes da participação das forças armadas, reimportaram parte das práticas executadas nas comunidades de Porto Príncipe (HARIG, 2019). Seguidas vezes, a aplicação das regras de engajamento vigentes na MINUSTAH foi apresentada como necessidade para garantir o sucesso das incursões militares nas comunidades fluminenses. As semelhanças geográficas e a aproximação das características da crise de segurança pública em Porto Príncipe e no Rio de Janeiro foram dispostas como justificativas para o emprego mais violento das tropas. Em entrevista, o atual ministro do Gabinete de Segurança Internacional, general Augusto Heleno, defendeu a possibilidade do emprego de violência letal durante o período de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como fator de sucesso para as operações. O ex-comandante do Exército, general Villas Boas, argumentou que a ação mais robusta das forças armadas brasileiras no Rio de Janeiro deveria ser amparada por um conjunto de garantias jurídicas de que excessos cometidos por militares durante sua atuação não fossem investigados.

Cabe ainda reiterar uma outra questão influenciada pela participação brasileira na operação de paz no país caribenho: a reaproximação das forças armadas ao centro do poder. A participação na MINUSTAH foi considerada como experiência para a aquisição de qualidades necessárias às tratativas políticas, bem como oportunidade de profissionalização dos contingentes enviados ao Haiti, e prestigiou oficiais e praças do contingente brasileiro. Mais recentemente, seis militares com participação na MINUSTAH foram alçados a ministros de Estado, incluindo quatro ex-comandantes do componente militar da missão.

São eles: o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e comandante militar da operação entre 2004 e 2005; o general Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo e comandante militar da MINUSTAH entre 2006 e 2009; o general Floriano Peixoto, ministro da Secretaria-Geral da Presidência e comandante militar da missão entre 2009 e 2010; e o atual ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, force commander da MINUSTAH entre 2011 e 2012. A lista é complementada pelos ministros da Infraestrutura, capitão Tarcísio Gomes de Freitas, e da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que assumiram, respectivamente, as funções de chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia entre 2005 e 2006, e de Chefe de Operações do 2º Contingente brasileiro na MINUSTAH.  Demandam relevo ainda a designação dos ex-comandantes da missão, generais Ajax Porto Pinheiro e Edson Leal Pujol, para a assessoria da presidência do Supremo Tribunal Federal e para o Comando do Exército.

As ramificações do engajamento de militares brasileiros na MINUSTAH instigam investigações que tragam a lume os eventos que permanecem irresolutos na história da participação das forças armadas brasileiras no Haiti e desvendem suas implicações na política brasileira. Um passo inicial demanda desacreditar a narrativa de uma intervenção solidária e sem máculas a partir do estudo minucioso de casos que reemergiram em um passado recente.

Autor: Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

As violências contra crianças e adolescentes no Brasil

Nos últimos tempos, brasileiros e brasileiras que possuem importantes cargos políticos – como o próprio presidente, Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves e o ministro da Educação, Ricardo Vélez  – têm se manifestado sobre formas de proteger as crianças e os adolescentes no Brasil. Apesar da ênfase em se autoproclamarem defensores da infância e da adolescência, não se discute o que significa, de fato, protegê-las, e a quais formas de violência elas estão submetidas. Frases de efeito como “Nunca a infância foi tão atingida como nos dias de hoje” são repetidas à exaustão, fazendo com que levantar a bandeira da defesa das crianças e dos adolescentes torne-se um senso comum, com baixos esforços de reflexão e que diz pouco sobre as formas de violência na nossa sociedade brasileira. Refletir sobre as consequências e as manifestações da violência é um primeiro passo para elucidar essa situação.

Johan Galtung (1969; 1990), analista da violência e da paz cujo trabalho ganhou destaque na década de 1960, já pensava a conceituação da violência de forma ampla. O autor propôs que violência é o desequilíbrio entre a realização potencial e real das capacidades humanas. Em outras palavras, Galtung considera que há violência quando os indivíduos não conseguem desenvolver suas plenas potencialidades humanas – seja por um impedimento direto de um indivíduo sobre o outro ou por um obstáculo estrutural da sociedade que nega aos seres humanos condições de justiça social. Segundo esse raciocínio, a violência – física e psicológica – pode se expressar nas formas direta, estrutural e cultural.

A violência direta manifesta-se em ocasiões em que o sujeito e o objeto da violência são identificáveis como indivíduos concretos. Essa forma de violência expressa de forma mais explícita, por exemplo, em atos de violência de um indivíduo sobre outro, como em um assassinato, ataque com armas ou mesmo por meio de armas de destruição em massa. A violência direta impressiona e choca, pois é visível, preocupante, gera medo e insegurança pessoal. Pode ser percebida, identificada, denunciada e seus agentes punidos (GALTUNG 1969).

Não menos preocupante é a violência estrutural (ou indireta). Na concepção de Galtung, a estrutura da sociedade em que os indivíduos nascem os impede de desenvolver todo o seu potencial como humanos porque não lhes são dadas as mesmas oportunidades (FERREIRA, 2016; GALTUNG, 1969; 1990). Isso abarca as desigualdades sociais; as relações desiguais de poder; o acesso desigual a serviços básicos de educação e saúde; discriminação racial; discriminação de gênero; exploração econômica de uma classe social sobre as outras. A violência estrutural manifesta-se independentemente da existência de um indivíduo praticando atos diretos de violência sobre outro. Ela existe na estrutura das sociedades e está ancorada na injustiça social.

 Por sua vez, a violência cultural ocorre por meio de símbolos, imagens, religião, ideologia, discursos inflamados, “onipresença do retrato do líder”, hinos e paradas militares, linguagem e arte, padrões de comportamento e consumo (GALTUNG, 1990, p. 291). Ou seja, são valores produzidos de cima para baixo, aquilo que possui valor simbólico capaz de justificar a dominação das estruturas de violência e naturalizar a violência estrutural.  A combinação da violência estrutural com a violência cultural pode resultar na violência direta, no sentido em que as pessoas encontram formas de se rebelar contra esse sistema desigual, que as forçam a buscar soluções pela violência direta (GALTUNG, 1969; 1990).

Justamente por serem profundas e enraizadas na sociedade e não tão explícitas como atos de violência direta, as formas estrutural e cultural acabam por ficar menos visíveis nas análises sobre violência, permanecendo quase intocáveis em uma sociedade que pensa mais em formas paliativas de frear a violência direta, e menos em formas de realmente tratar a violência estrutural. Mais do que isso, frequentemente as violências estrutural e cultural não são sequer consideradas formas de violência, mas sim consequências naturais do mérito de uns e demérito de outros: os indivíduos em melhores condições socioeconômicas são merecedores de desfrutar tais benefícios de vida, enquanto os indivíduos que não possuem essas condições são culpabilizados por não atingirem esse mesmo patamar social.

Envolvidas por esses três tipos de violência estão as crianças e adolescentes. De fato, eles estão sujeitos à violência direta quando são vítimas de sequestros, assassinatos, tráfico de crianças, pedofilia, entre outros. Porém, mesmo as formas de violência direta os atingem de maneira discriminatória. As crianças e os adolescentes negros e de baixa renda são mais vulneráveis a esse tipo de violência. São vítimas da violência extrema do próprio aparelho de segurança estatal que, em tese, foi feito para defendê-los. Por meio de atos de repressão policial desproporcionais – como espancamentos e mortes – em periferias de centros urbanos, presencia-se a banalização da violência contra jovens negros e pobres.

As crianças e os adolescentes brasileiros já partem de níveis socioeconômicos muito distintos. A violência estrutural é expressa quando lhes é dada diferentes chances de acesso à educação, quando lhes é negada acesso a lazer e saúde (direitos que estão garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente). Ocorre também quando esse mesmo Estatuto não é visto como garantidor de direitos, mas como um malefício que deve ser descartado, pois incentivaria a “malandragem e a vagabundagem infantil”. Violência é utilizar crianças e adolescentes como instrumentos morais para espalhar notícias deturpadas que aprofundam ainda mais a naturalização da violência estrutural. Violência também é manipular e inventar (des)informações sobre a educação sexual e ao cercear o acesso dos jovens à educação sexual nas escolas (afetando principalmente as meninas, que são culpabilizadas pela gravidez indesejada).  A violência contra a criança e o adolescente manifesta-se ao naturalizar a morte de crianças e adolescente em favelas e tratá-los como bandidos. Por meio de símbolos culturais como discursos, imagens e cenas de ódio, além de incentivar crianças e adolescentes a utilizarem armas, a violência se faz presente ao naturalizar uma cultura de ódio e hostilidade.

Portanto, a violência consiste em negar o acesso às mesmas oportunidades de desenvolvimento, além de não promover o acesso a uma cultura que incentive a paz. Ademais, é subestimar a capacidade de agência dos jovens ao moldá-los sob a rigidez do ensino militarizado como melhor forma de educação sem, entretanto, discutir junto à sociedade que tipo de educação está sendo oferecida e como ela contribui para formar cidadãos críticos e pensantes e não apenas obedientes às formas de dominação cultural e estrutural.

  A proteção de crianças e adolescentes está relacionada a todas as políticas que incidem – direta ou indiretamente – sobre a infância e a adolescência, tais como o acesso a creches, direito a licença maternidade e paternidade, direitos trabalhistas para que os pais possam também ter condições de cuidar de seus filhos e filhas da melhor maneira. Logo, proteger crianças e adolescentes abarca também protegê-los desse tipo de violência estrutural, ou seja, fornecer condições para que toda a sociedade possa cuidar de nossas crianças e adolescentes e para que eles tenham plenas capacidades críticas para serem agentes de transformação mundial.

É preciso levar em consideração esse ambiente de constante violência direta, estrutural e cultural para entender que, mesmo quando crianças e adolescentes são agentes da violência direta – isto é, quando praticam atividades criminosas como furto, roubo, tráfico de drogas – muitos não o fazem por “vagabundagem e malandragem infantil”.  Fazem-no porque estão inseridos em uma estrutura social em que cometer atos criminosos apresenta-se como uma possível forma de sobrevivência e de driblar algumas manifestações da violência estrutural, visto que fornecem certo ganho econômico e um vislumbre de ascensão social.

 Ao enxergarmos o quanto as violências são complexas, variadas e profundas, concluímos que respostas simples para proteger crianças e adolescentes são ineficazes e insuficientes. Além disso, soluções simplistas propostas por autoridades brasileiras acabam sendo formas de perpetuar as violências, no sentido em que não proporcionam discussões construtivas que evidenciem a dimensão estrutural que a temática possui. Nesse cenário, crianças e adolescentes não conseguem atingir seus plenos potenciais para se tornarem, elas próprias, agentes de transformação no mundo.

 

Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC/SP) e pesquisadora no Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Referências bibliográficas:

GALTUNG, Johan. Violence, Peace and Peace Research. Journal of Peace Reasearch, v.6, n.3, 1969.

_____. Cultural Violence. Journal of Peace Reasearch , v. 27, n.3, 1990.

FERREIRA, Marcos Alan. Contemporaneidade dos Conceitos de Paz e Violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul. In: Winand, E.; Rodrigues, T. and Aguilar, S. Defesa e Segurança no Atlântico Sul. Aracaju: UFS Press, 2016.

Imagem: CC/ Gustavo Minas.

A retomada das negociações entre Brasil e EUA para utilização da base de Alcântara: elementos da conjuntura recente para um possível desfecho

O debate sobre o acordo de salvaguardas tecnológicas (AST) entre Brasil e Estados Unidos é realizado, muitas vezes, de forma tão imediatista e com tanta animosidade que nem sempre ajuda a entender os interesses e objetivos envolvidos na negociação. O assunto, que por alguns anos ficou adormecido na mídia e entre os atores políticos, foi retomado recentemente e pode estar prestes a ter um desfecho. Por isso, é válido partir de uma visão do quadro mais amplo em que as negociações estão acontecendo para se ter uma ideia do que está – e do que não está – envolvido no acordo.

Primeiramente, deve-se ter em conta que o conceito de acordo de salvaguardas tecnológicas não é algo definitivo, nem do ponto de vista jurídico, nem do político. O que serve de base comum para se definir o que é um AST é seu objetivo principal: a proteção da propriedade tecnológica de uma das partes. No entanto, como isso vai ser articulado depende de cada caso. Assim, é possível que o documento final seja composto por cláusulas além da principal – cláusulas estas muitas vezes políticas, especialmente quando o objeto da negociação é relacionado com atividades militares. No primeiro AST assinado por Brasil e EUA, foram principalmente as denominadas cláusulas políticas que geraram os maiores entraves e a paralisação das negociações.

No entanto, o período de interrupção dos diálogos sobre o assunto de quase 20 anos não é decorrente apenas das discordâncias sobre o teor do documento. Houve uma mudança de prioridades, por parte do Brasil e dos EUA, que diminuiu a importância do tema de Alcântara na agenda das relações bilaterais. No lado brasileiro, assumiu maior destaque a parceria com a Ucrânia, com a qual o país também assinou um acordo de salvaguardas – que também teve controvérsias. Com essa parceria, retornava à agenda política o objetivo de promover atividades comerciais na base de Alcântara. Os EUA, por sua vez, estavam concentrados em atualizar as prioridades e as atividades da sua política espacial e, no que tange às questões internacionais, o foco era a competição política e comercial com Rússia e China.

Embora as notícias sobre um novo acordo sejam bastante recentes, os primeiros passos foram de fato realizados em governos anteriores. Nesse sentido, uma das primeiras medidas foi tomada no governo de Dilma Rousseff, em 2011, com a assinatura de um novo Acordo Quadro com os EUA em política espacial. Essa iniciativa visava atualizar as garantias jurídicas e os compromissos na matéria, uma vez que o primeiro acordo dessa natureza data do ano de 1996. Contudo, a principal medida para a retomada das negociações ocorreu logo após o impeachment de Rousseff, em agosto de 2016, quando o novo presidente, Michel Temer, encaminhou uma mensagem ao Congresso demandando a retirada da tramitação do primeiro AST, sendo que a aprovação da mesma ocorreu em dezembro do mesmo ano. A importância dessa ação é decorrente de que, desde 2001, o acordo não havia sido cancelado, mas apenas se encontrava paralisado no Congresso. Sem seu cancelamento efetivo, uma nova negociação não poderia ser feita. Desse modo, foi o governo Temer o responsável por recolocar, na agenda do programa espacial brasileiro, as discussões sobre a utilização da base de Alcântara pelos EUA.

Ainda no governo Temer, dois outros acontecimentos constituem antecedentes fundamentais para a tônica da velocidade das negociações sobre um novo AST. Primeiramente, no final de 2017, a base recebeu a visita de representantes de empresas estadunidenses do ramo, como a Boeing Co e a Lockheed Martin Corp, que se destacam no campo de lançamento de foguetes de grande porte, como a Vector, uma das principais na área de lançamento de microssatélites. Em segundo, a assinatura do acordo de cooperação em segurança de voos espaciais e fornecimento de serviços e informação, também conhecido como Space Situation Awareness (SSA – Consciência Situacional Espacial, em português), em 2018. Trata-se de um compromisso com o objetivo de divulgar a situação do domínio espacial de cada país e aumentar a segurança dos lançamentos espaciais, para evitar colisões, por exemplo. Esses dois eventos demonstram como, em dois anos, o interesse mútuo por um novo acordo ficou tão acentuado que gerou rápidas negociações em questões tangenciais.

De fato, para que o objetivo de promover atividades comerciais na base de Alcântara seja concretizado, é importante firmar um AST com os EUA, que se mantém um dos principais países no comércio internacional de tecnologia e serviços espaciais. Contudo, a assinatura do acordo não será a solução dos problemas da base – e do programa espacial brasileiro – por duas questões principais: em primeiro lugar, é fundamental que o acordo firmado supere os dilemas políticos que sobressaíram no acordo passado, especialmente nos entraves à aplicação dos recursos ao programa espacial e às restrições à cooperação com outros países – cabe ressaltar, por exemplo, a China, que embora ainda não tenha conquistado a predominância que os EUA tem no setor, desponta em áreas que esse país apresenta algumas deficiências, além de ser um parceiro histórico do setor espacial brasileiro; em segundo lugar, tão ou mais importante que o AST é a melhora da infraestrutura da base. As poucas atividades realizadas nos últimos anos e a necessidade de melhorias e adequações das instalações da base para lançamentos de grande porte são questões que, no fim, podem oferecer restrições maiores – e que levariam mais tempo para serem solucionadas – às atividades comerciais do que a ausência de um AST com os EUA.

Adriane Almeida é mestre pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.

Imagem: CLA -Centro de Lançamento de Alcântara. Por: Força Aérea Brasileira.

Entrevista del Prof. Dr. Héctor Saint-Pierre a “La Paz en Foco”: Situación política de Brasil frente a la elección de Bolsonaro

 

El pasado 28 de octubre el exmilitar Jair Bolsonaro fue electo como presidente de Brasil, la principal economía de la región y el quinto país más grande en territorio en el mundo. La elección se da en medio de una gran controversia debido a las posiciones radicales de Bolsonaro frente a algunos temas que parecían ser indiscutibles, como los derechos de las minorías, el ambiente y libertades democráticas (como la libre prensa). En el presente programa hablaremos con Héctor Luis Saint-Pierre, uno de los expertos en geopolítica más reconocidos en la región.

 

Acceso en: http://untelevision.unal.edu.co/detalle/cat/la-paz-en-foco/article/situacion-politica-de-brasil-frente-a-la-eleccion-de-bolsonaro.html?fbclid=IwAR1fdc-1PLH7vSNrd_hBiKG-qryLaPIcbc1pUQCC-V4vZ6vjkh_jTZ3R7wM

As imaginadas ameaças à Amazônia: a perspectiva militar sobre a preservação ambiental e os povos amazônicos

O início do mandato presidencial de Jair Bolsonaro foi submetido a um minucioso escrutínio pelos grandes veículos de mídia brasileiros e pela oposição. Para além das investigações em torno do núcleo familiar, resultou da atenção conferida aos primeiros passos do novo governo uma série de ruídos em torno dos ministros de Estado. Distando das expectativas de discrição e sigilo que se avolumam em torno das ações estatais de inteligência, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tornou-se epicentro das reportagens ao incluir a realização do Sínodo Amazônico, um encontro sobre a região amazônica realizado pela Igreja Católica em Roma, como uma preocupação à soberania nacional.

Assinala-se, no entanto, que o pensamento militar sobre a região amazônica foi reiteradamente marcado por inquietudes em relação à presença de atores favoráveis à preservação ambiental e à promoção dos direitos fundamentais dos povos amazônicos. Em entrevista, o ministro do GSI, general Augusto Heleno, reforçou que os “palpites” de atores internacionais sobre as questões amazônicas constituempreocupação na pauta de segurança internacional. Uma nota de imprensa do ministério contribuiu para fomentar o ruído em torno da questão ao afirmar que, apesar de não investigar os membros do clero, a pauta amazônica permaneceria em voga nas ações do órgão. Em agravo, o GSI considerou o envolvimento do Itamaraty, para acompanhar debates no exterior, e do Ministério do Meio Ambiente, para identificar participações ocasionais de organizações não-governamentais e ambientalistas no Sínodo Amazônico.

O evento envolve um cronograma de reuniões de bispos católicos, convocados pelo Papa Francisco I para discutir a atuação da Igreja Católica diante dos obstáculos à ação eclesial por todo o globo. O documento preparatório para o evento de 2019 exortou as comunidades eclesiais a discutir questões como a preservação da diversidade ambiental e cultural da região e a vulnerabilidade dos povos amazônicos, temas vilipendiados no discurso e nas políticas concretas dos novos mandatários no Brasil. Recorda-se que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, descreveu pejorativamente indígenas, quilombolas e ambientalistas em diversas ocasiões.

As políticas adotadas ao início de seu mandato presidencial corroboram o discurso negativo. A disposição em incluir a reunião eclesial como potencial ameaça à integridade territorial brasileira ocorre simultaneamente aos esforços econômicos liberalizantes traçados pelo governo, e especialmente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O recurso ao argumento da soberania não ecoa na política irrefreável de privatizações e abertura ao capital internacional. Observa-se a emergência concreta de contradições entre diferentes grupos que compõem e sustentam o governo de Jair Bolsonaro.

É prudente indicar que as presidências de órgãos vinculados às questões agrárias, diretamente relacionados aos temas ambientais, foram distribuídas a oficiais das Forças Armadas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), hoje subordinado ao Ministério da Agricultura, é presidido pelo general do Exército Jesus Corrêa; a Fundação Nacional do Índio (Funai) é atualmente presidida pelo general do Exército Framklimberg Ribeiro de Freitas. Esse último é suspeito de conflito de interesses por ter ocupado cargo em conselho consultivo de uma mineradora que atua no Pará após ter presidido a Funai entre maio de 2017 e abril de 2018.

A interpretação contravertida em relação às ações de movimentos sociais pela preservação ambiental e pelos direitos das populações locais, expressa na ação recente do GSI, não é recente e tampouco inovadora. A percepção militar em relação aos movimentos ambientais e indigenistas foi recorrentemente traçada através da designação de potenciais ameaças à integridade territorial brasileira nos movimentos favoráveis a medidas de proteção ambiental ou que clamassem por direitos dos povos amazônicos. A ideia da cobiça internacional pelo território amazônico está presente no pensamento militar sobre a região, atribuindo a esses atores o potencial de “desnacionalização” da Amazônia (MARQUES, 2007). A estratégia para evitar tais potenciais ameaças somou a vigilância das fronteiras e a ocupação populacional do território amazônico. Ressalta-se, no entanto, que essa estratégia de ocupação demográfica frequentemente ignorou a presença de comunidades indígenas, de ribeirinhos e outras populações amazônicas, demandando fluxos migratórios extraordinários para a sua conclusão.

A designação do Sínodo da Amazônia de 2019 como uma potencial ameaça para os interesses brasileiros no território amazônico divergiu a atenção a problemas latentes na região. Segundo o Atlas da Violência elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a região Norte teve o maior crescimento no número de homicídios no período entre 2006 e 2016. Em consonância com as estatísticas sobre homicídios na região, outro dado alarmante é o do aumento da violência no campo, ocasionado pelos conflitos por terras. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, no ano de 2017, Rondônia e Pará concentravam 54% dos 70 assassinatos no campo em todo o país. Ademais, é amplamente reconhecida a necessidade de desenvolver políticas púbicas de combate ao tráfico de drogas e à biopirataria.

Os dados referentes à depredação ambiental são igualmente alarmantes. Estatísticas recentes indicam o crescimento na taxa de desmatamento da região de floresta amazônica. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),  59% do desmatamento aconteceu em terras privadas ou de grilagem de áreas públicas, e, somente 15% do total são de terras indígenas. Em 2017, 46% das emissões de carbono no Brasil vieram da destruição de florestas, o que causa um agravamento do aquecimento do planeta.

Um conjunto variado de questões constitui preocupação mais urgente na agenda de preservação da Amazônia e de conservação dos interesses nacionais na região quando comparado à reunião eclesial a ser realizada em outubro de 2019. Em agravo, as soluções para essa miríade de problemas que incide sobre o território amazônico distam da proliferação da presença militar ou da promoção da ocupação demográfica. Nesse sentido, faz-se necessário promover ativamente políticas públicas que conciliem a preservação ambiental e os direitos das populações amazônicas diante do quadro de exploração irrefreável e insegurança cotidiana que se instala na região.

 

 

Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes; Débora Reis é graduanda em Relações Internacionais pela Unesp-Franca.

 

Referência Bibliográfica:

MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. Orientada por: Rafael A. Duarte Villa. 2007. 232 f. Tese (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

Imagem: Vista Aérea da Floresta Amazônica. Por: Neil Palmer/CIAT.

Os militares na Política e os riscos à República

Jorge M. Oliveira Rodrigues*

 

No dia 13 de Outubro 2018, em reportagem do jornal O Globo, lia-se: “Uruguai manda prender comandante do Exército por dar opinião sobre lei”. Em comunicado à impressa o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, se limitou a afirmar: “o comandante em chefe do Exército atua em boa fé e com a lealdade institucional que devem ter as Forças Armadas, porém se equivocou e, em função disso, está sancionado”. Tabaré Vázquez reforçava os preceitos constitucionais afirmando que não seria da alçada militar comentar sobre política. Reafirmava, assim, a República uruguaia.

Dos lados de cá, em Terra Brasilis, a República ainda é objetivo distante: desejada por todos, ferida por muitos. Nessa corrida em que fôlego e virulência concorrem para definir o ganhador, nosso país se encontra sem ar e sem forças. Desde o processo ilegítimo que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do cargo, em 2016, que deparamo-nos com recorrentes manifestações por parte de setores das forças armadas que, no mínimo, fazem questionar se há de fato República no Brasil. Por certo, não se trata de problema datado. Mesmo com a criação do Ministério da Defesa em 1999 nunca chegamos nem perto de consolidar a autoridade civil sobre os militares.

Se por um lado, o duro processo de construção da Democracia supõe que todos tenham garantidos os seus direitos de voz, é fundamental que sejam respeitados os preceitos constitucionais e os regulamentos que pautam a atividade militar no Brasil. Pelo caráter específico de suas funções constitucionais, aos militares da ativa não é facultada a atuação política. Por outro lado, aos civis exige-se assumir a responsabilidade pela construção do controle civil no Brasil, introduzindo, assim, um dos pilares para a constituição de tradições republicanas no país. Ao fim, enquanto o Uruguai se agiganta atestando o primado da Política, no Brasil os poderes se acovardam. À medida que as autoridades civis se recusam a ocupar o espaço que lhes cabe, o vácuo de poder remanescente é ocupado por aqueles cuja função é, essencialmente, instrumental.

No Executivo, é preocupante a ascensão de um general da ativa ao cargo de ministro da Defesa. Na primeira metade de 2018, no marco da transferência de Raul Jungmann ao Ministério da Segurança Pública, assumia a pasta o general Silva e Luna. Sua ascensão ao cargo não representa, em si, quebra do ordenamento constitucional. Possui, entretanto, efeito simbólico considerável, que enfraquece as iniciativas de instituir-se o controle civil das forças armadas. Desde a criação do Ministério da Defesa em 1999, foram civis aqueles que encabeçaram o comando da pasta – afirmação que deve ser acompanhada de uma reflexão profunda quanto à presença massiva de militares na pasta. Fato é que depois de quase 20 anos, num quadro de instabilidade política, a pasta se encontra sob o comando militar.

No Judiciário, a nomeação de um general de quatro estrelas para sua assessoria pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, chama atenção pelo seu ineditismo e simbolismo. Trata-se do militar da reserva, Fernando de Azevedo e Silva. A justificativa apresentada é que o militar assessoria o agora presidente do STF em assuntos relativos à segurança – o que, por si só, é problemático uma vez que a função militar é a guerra, não a segurança pública.

Ademais, a corrida eleitoral está marcada por um aumento considerável de candidatos ligados às Forças Armadas – movimento que já em Abril deste ano dava sinais de fortalecimento. Em comparação com as eleições de 2014 o número de candidatos militares cresceu em 41%. Os dados dizem respeito à candidaturas no âmbito do Executivo e do Legislativo e contabilizam também a participação de militares da ativa que, não sendo eleitos, retornam às suas respectivas forças. O aumento destas candidaturas é associado, dentre outros fatores, a uma insatisfação da população com a “política tradicional”. Tomados pelo discurso de que “todo político é corrupto”, a sociedade migra àquele que julga ser o último reduto da moral: os militares.

Terminado o primeiro turno, confirma-se o movimento de “politização” dos militares. Na Câmara Federal 6 militares foram eleitos em 2018, todos do PSL. Os futuros deputados são: general Sebastião Roberto Peternelli, por São Paulo; general Elieser Girão Monteiro, pelo Rio Grande do Norte; coronel João Chrisóstomo de Moura, por Roraima; coronel Luiz Armando Schroeder Reis por Santa Catarina; o major Vitor Hugo de Araújo Almeida, por Roraima; e o subtenente Hélio Fernando Barbosa Lopes, pelo Rio de Janeiro. No Senado, o Espírito Santo elegeu o ex-militar e atual instrutor de defesa pessoal, Marcos do Val (PPS). Movimento similar, porém não necessariamente inédito, também é percebido em relação aos agentes de segurança pública. O estado de São Paulo, por exemplo, elegeu para o Senado o major da Política Militar, Sergio Olímpio Gomes, o Major Olímpio (PSL). Na mesma linha, o Rio Grande do Norte elegeu ao cargo o capitão da Polícia Militar, Eann Styvenson (REDE).

Não bastassem os fatos elencados, os últimos anos têm sido marcados pela verborragia das Forças Armadas. No dia 09 de Setembro, em entrevista à Folha de S. Paulo e falando com uma autoridade que não lhe compete, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirmava que com o acirramento dos ânimos na sociedade até a legitimidade de um novo governo poderia ser questionada. Chamado a opinar sobre o posicionamento da ONU acerca da participação de Lula nas eleições, Villas Boas taxa o manifesto de “tentativa de invasão da soberania nacional”. Anteriormente, em Abril deste ano, o general suscitou uma onda cibernética de ataques à democracia ao manifestar-se publicamente quanto a julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiria sobre habeas corpus ao ex-presidente Lula da Silva, condenado em segunda instância por corrupção. Ao posicionar-se, o Comandante do Exército vestiu de legitimidade outros generais da ativa que se sentiram no direito de manifestar, na Ágora virtual, quanto aos rumos políticos do país. Com ares conspiratórios, esse foi, senão o primeiro, o mais volumoso gole de cicuta dado à nossa Democracia.

Finalizando a série de ingerências políticas, temos episódio simbólico do escrutínio. Entre Maio e Junho deste ano, o general Villas Bôas manteve uma série de reuniões com os candidatos à Presidência da República. Segundo o general, as reuniões serviram apenas para a apresentação de questões relativas à Defesa Nacional. Mas a imagem que fica é outra. O episódio é símbolo da insistência de setores das Forças Armadas em se colocar como uma espécie de quarto poder, de cuja tutela dependeria, conforme supõem, a própria existência do Estado brasileiro.

E assim, entre entrevistas e pronunciamentos no Twitter, construiu-se o caminho das pedras que resultou no aumento das desconfianças quanto a uma possível intervenção militar e, por fim, no enfraquecimento da República. Em todos os casos, o problema é a insistência de setores militares em agir enquanto atores políticos. Ao contrário do que faz parecer o questionamento cínico de determinados setores da sociedade, não se trata de advogar por uma suposta “sub-cidadania” aos militares, como se fossem menos brasileiros ou menos humanos. É discussão que extrapola, necessariamente, aspectos jurídicos e constitucionais. É uma discussão sobre modelo de Estado. É uma discussão sobre República.

Sabiamente anuncia Elio Gaspari: “por maior que seja a confusão existente, quando se chamam os militares para botar ordem no circo, cria-se outra confusão, que nem eles são capazes de prever”. É sintomático do momento político em que vivemos no Brasil que os espaços políticos estejam sendo ocupados por setores militares ou por grupos vinculados.

De Gaspari, passamos à Estratégia: se a racionalidade da Guerra é dada pela Política, o inverso não pode ser verdadeiro. A gramática da Guerra, já dizia o general Von Clausewitz, não se sobrepõe à Política simplesmente porque nela não encontra encaixe. Assim, aos militares que se aventuram na política resta uma opção: deixar de ser militar. Nesse processo as Forças Armadas brasileiras se afundam numa dinâmica de desprofissionalização, perdendo aptidão às funções que lhes são previstas constitucionalmente. Ao fazê-lo, o militar perde sua essência e faz desaparecer a essência da Política.

Sufoca-se a Política, distancia-se a República e militariza-se a sociedade. Ao fim, com a proximidade do segundo turno, resta-nos o drama de Elio Gaspari: “quando não se sabe o nome do ministro da Educação, mas conhece-se o de generais, coisa ruim pode acontecer”.

 

 

Imagem: Soldados do Exército Brasileiro durante o desfile militar do Dia da Independência de 2003 em Brasília, Brasil. Por: Victor Soares/Agência Brasil.

 

*Jorge Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Grupo de Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).