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Solidariedade e Violência: notas sobre os 15 anos do desembarque brasileiro em Porto Príncipe

O dia 1º de junho de 2019 marcou 15 anos do início do engajamento de militares brasileiros na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A operação de paz iniciada em 2004 foi instrumentalizada como estandarte das políticas Externa e de Defesa brasileiras. As implicações do engajamento na missão de pacificação no Caribe difundiram-se através de temas da política doméstica, sobretudo naqueles relacionados à segurança pública. É plausível indicar que o prestígio e a experiência adquiridos pelas forças armadas através da participação na operação de pacificação no Haiti foram fatores importantes para seu emprego em questões domésticas e para sua reaproximação ao centro do poder. No entanto, há que se desvelar episódios controversos do engajamento de militares brasileiros no Haiti, e que se repetem em território brasileiro.

A participação brasileira na MINUSTAH não permaneceu alheia às críticas às ações violentas de militares no decorrer do processo de pacificação, mesmo que caracterizada como demonstração de solidariedade em relação à população haitiana e de não-indiferença diante das crises humanitárias. A proposição de um modus operandi característico dos contingentes brasileiros em operações de paz foi maculada por problemas comuns ao engajamento das forças armadas de outros Estados em intervenções ao redor do globo. Investigações conduzidas por organizações não-governamentais e agências de jornalismo concentraram-se em discutir episódios de violações de direitos e liberdades fundamentais por membros de diferentes nacionalidades do quadro da missão.

Entre os casos de emprego excessivo da violência está a operação conduzida pelo comandante do componente militar da missão entre 2004 e 2005, general Augusto Heleno, em 6 de julho de 2005. A ação denominada “Operação Punho de Aço” foi também reconhecida pela alcunha de massacre. Em busca de Emmanuel Wilmer, chefe de uma gangue na favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, 440 militares da MINUSTAH assassinaram ao menos 27 civis, incluindo crianças, e 5 membros do grupo de Wilmer. Relatos da população local contabilizaram até 60 mortos em decorrência da ação violenta executada pelos militares internacionais. Na ocasião, registraram-se disparos de 22 mil projéteis de acordo com documentos oficiais. Os excessos cometidos no Haiti guardam inquietante semelhança com os projéteis disparados contra o carro de uma família na cidade do Rio de Janeiro e que resultaram na morte de Evaldo dos Santos Rosa e Luciano Macedo.

O combate às gangues haitianas foi reforçado pela mobilização de um destacamento de operações especiais marcado pela falta de transparência na condução de suas atividades. O Destacamento de Operações de Paz foi imbuído de realizar o reconhecimento de regiões críticas e empregado em confrontos diante dos grupos locais. Amiúde, o grupo também executou ações tipicamente vinculadas às doutrinas militares de contrainsurgência, contribuindo para a aquisição de controle da MINUSTAH sobre regiões críticas no Haiti. O engajamento desse grupo de militares brasileiros foi caracterizado pelo sigilo na condução de operações para adquirir informações que amparassem as atividades do componente militar da MINUSTAH.  Amparados por atiradores de elite, por vezes os militares desse destacamento atuaram sem identificação e com as faces cobertas para evitar seu reconhecimento.

No que toca a política de segurança pública brasileira, a experiência adquirida na MINUSTAH foi muitas vezes considerada como referência para a condução de operações de pacificação com o apoio das forças armadas no Brasil. As consecutivas operações de Garantia da Lei e da Ordem e a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, dependentes da participação das forças armadas, reimportaram parte das práticas executadas nas comunidades de Porto Príncipe (HARIG, 2019). Seguidas vezes, a aplicação das regras de engajamento vigentes na MINUSTAH foi apresentada como necessidade para garantir o sucesso das incursões militares nas comunidades fluminenses. As semelhanças geográficas e a aproximação das características da crise de segurança pública em Porto Príncipe e no Rio de Janeiro foram dispostas como justificativas para o emprego mais violento das tropas. Em entrevista, o atual ministro do Gabinete de Segurança Internacional, general Augusto Heleno, defendeu a possibilidade do emprego de violência letal durante o período de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como fator de sucesso para as operações. O ex-comandante do Exército, general Villas Boas, argumentou que a ação mais robusta das forças armadas brasileiras no Rio de Janeiro deveria ser amparada por um conjunto de garantias jurídicas de que excessos cometidos por militares durante sua atuação não fossem investigados.

Cabe ainda reiterar uma outra questão influenciada pela participação brasileira na operação de paz no país caribenho: a reaproximação das forças armadas ao centro do poder. A participação na MINUSTAH foi considerada como experiência para a aquisição de qualidades necessárias às tratativas políticas, bem como oportunidade de profissionalização dos contingentes enviados ao Haiti, e prestigiou oficiais e praças do contingente brasileiro. Mais recentemente, seis militares com participação na MINUSTAH foram alçados a ministros de Estado, incluindo quatro ex-comandantes do componente militar da missão.

São eles: o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e comandante militar da operação entre 2004 e 2005; o general Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo e comandante militar da MINUSTAH entre 2006 e 2009; o general Floriano Peixoto, ministro da Secretaria-Geral da Presidência e comandante militar da missão entre 2009 e 2010; e o atual ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, force commander da MINUSTAH entre 2011 e 2012. A lista é complementada pelos ministros da Infraestrutura, capitão Tarcísio Gomes de Freitas, e da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que assumiram, respectivamente, as funções de chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia entre 2005 e 2006, e de Chefe de Operações do 2º Contingente brasileiro na MINUSTAH.  Demandam relevo ainda a designação dos ex-comandantes da missão, generais Ajax Porto Pinheiro e Edson Leal Pujol, para a assessoria da presidência do Supremo Tribunal Federal e para o Comando do Exército.

As ramificações do engajamento de militares brasileiros na MINUSTAH instigam investigações que tragam a lume os eventos que permanecem irresolutos na história da participação das forças armadas brasileiras no Haiti e desvendem suas implicações na política brasileira. Um passo inicial demanda desacreditar a narrativa de uma intervenção solidária e sem máculas a partir do estudo minucioso de casos que reemergiram em um passado recente.

Autor: Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

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