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Os 50 anos do TNP: onde chegamos e para onde vamos?

Em julho de 2018, comemoram-se os 50 anos da conclusão e abertura para assinaturas do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), que entrou em vigor em 1970. Espinha dorsal do regime de não-proliferação nuclear, o tratado apresenta um tripé: não-proliferação de armas nucleares, desarmamento nuclear e cooperação para os usos pacíficos da energia nuclear. Esse tripé reflete o quid-pro-quo entre os países que detinham armamentos nucleares (em inglês, nuclear weapons states, ou NWS) e os países que não possuíam essa capacidade (em inglês, non-nuclear weapons states, ou NNWS). De um lado, os NNWS renunciariam à ambição de adquirirem armamentos nucleares, recebendo em troca acesso facilitado à tecnologia nuclear para fins civis. De outro lado, os NWS se comprometiam a adotar medidas sistemáticas para a promoção do desarmamento e a respeitar o direito inalienável de todos os Estados à tecnologia nuclear para usos pacíficos.
De fato, esse arranjo consolidado no TNP foi resultado de duas décadas de reflexão sobre as possibilidades de controle da tecnologia nuclear, e sua formulação evidencia os desafios para a incorporação de perspectivas divergentes e conflitantes sobre as políticas a serem adotadas. O embate entre diferentes posições resultou na adoção de uma linguagem por vezes vaga ou ambígua, que não contrariasse abertamente os interesses das partes mais vocais na negociação. Assim, não foram estabelecidos critérios precisos para o desarmamento, e nota-se uma permissão tácita para a alocação de arsenais nucleares nos territórios de NNWS, contanto que esses arsenais pertencessem oficialmente às forças de NWS.
Desde 1970, o TNP demonstrou fragilidades, mas também apresentou importantes avanços. É notável, em primeiro lugar, a amplitude da adesão internacional ao tratado, a qual atingiu abrangência quase universal na década de 1990. Em 1992, França e China, que não haviam aderido ao TNP quando de sua formulação, passaram a compor o grupo dos NWS. Além disso, países tradicionalmente críticos do arranjo discriminatório estabelecido pelo tratado – ou seja, da diferenciação entre os países que desenvolveram armamento nuclear antes de 1968 e os que não estavam nessa condição – aderiram ao sistema, incluindo o Brasil e a Argentina. Não obstante esse sucesso, e apesar de o TNP ter mais Estados-parte do que qualquer outro mecanismo internacional controle de armamentos, os Estados que permanecem ausentes são justamente aqueles que optaram por adquirir armamentos nucleares à revelia dos termos acordados em 1968: Israel, Índia, Paquistão (que nunca assinaram o TNP) e Coreia do Norte (que assinou o TNP, mas denunciou o tratado em 2003).
Em segundo lugar, os mecanismos de salvaguarda, que envolvem processos de monitoramento e verificação, são um aspecto que repetidamente desperta debates internacionais. Esses processos, conduzidos pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e sistematizados em documento da própria AIEA (INFCIRC/153) em 1971, tinham como foco a fiscalização de materiais e instalações declarados pelos países signatários do tratado, e não a busca por materiais e instalações não declarados. A fragilidade desse modelo foi evidenciada no início da década de 1990, quando foi descoberto o programa nuclear clandestino do Iraque, após o fim da Guerra do Golfo.
Em decorrência disso, a década de 1990 trouxe novos esforços de reformulação do regime, com as deliberações acerca de um Protocolo Adicional (INFCIRC/540), que concedesse maior liberdade de ação à Agência. Assim, foram estabelecidos mecanismos para salvaguardas integradas, que garantissem aos Estados-parte do TNP que as declarações feitas pelos demais países eram não apenas corretas, mas também completas. Esses mecanismos, no entanto, só se aplicam aos países que aderiram ao Protocolo Adicional, ato que é inteiramente voluntário.
Em terceiro lugar, o que talvez seja o aspecto mais polêmico do TNP e de sua implementação se refere aos esforços dos NNWS para a promoção do desarmamento. Após 1970, as potências nucleares continuaram ampliando seus arsenais até o fim da década de 1980, à revelia do compromisso assumido através do tratado. Foi apenas com o fim da Guerra Fria e as mudanças no contexto geoestratégico que os esforços de desarmamento se tornaram uma realidade. De fato, esse ponto é sistematicamente fonte de discórdia entre os NWS e os NNWS, sendo que estes reivindicam ainda a concretização do Tratado Compreensivo de Proibição de Testes Nucleares (CTBT) como uma demonstração adicional do comprometimento dos NWS para com o desarmamento.
Além disso, os NNWS demandam garantias de segurança por parte das potências nucleares: garantias negativas, de que os armamentos nucleares não serão usados contra países que não têm capacidade nuclear; e garantias positivas, de que as potências nucleares estenderão sua proteção aos países que abrirão mão dessa capacidade. Não é surpreendente que os NWS relutem em assumir tais compromissos.
De fato, nas Conferências de Revisão do TNP realizadas a cada cinco anos, o distanciamento entre os NWS e os NNWS tem se acentuado, como evidenciado pelo esforço destes em promover a negociação de um Tratado de Proibição de Armas Nucleares, repudiado pelas potências nucleares. Assim, os últimos 50 anos viram importantes avanços, mas também mantiveram pontos de tensão pendentes. Em 2020, será realizada mais uma Conferência de Revisão do TNP, e muitas das mesmas questões serão levantadas e, provavelmente, permanecerão irresolutas.
Não há respostas simples para essas questões: sistemas de salvaguardas, desarmamento, garantias de segurança, Estados que rejeitam o regime. Ademais, essas questões tendem a se agravar na medida em que se complicam as relações políticas entre tradicionais aliados, como os Estados Unidos e os países europeus, e entre tradicionais rivais, como os Estados Unidos, a Rússia e a China. Mas a lição do TNP deve ser observada atentamente pelos líderes de Estado nesses tempos conturbados: a diplomacia evitou que o problema nuclear se tornasse uma catástrofe nos últimos 50 anos, e a diplomacia é ainda a melhor resposta para os desafios nucleares que virão.
Luiza Elena Januário é doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas, professora da UNIP e pesquisadora do Gedes.
Raquel Gontijo é doutora pelo PPGRI San Tiago Dantas, professora da PUC- MG e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Nuclear Wetlands. Por: James Marvin Phelps.

Setenta anos de operações de paz da ONU: balanço histórico e atuais desafios

Desde o estabelecimento do Organismo das Nações Unidas para a Vigilância da Trégua (ONUVT) em 1948 – com o objetivo de monitorar situações de cessar-fogo e armistícios no Oriente Médio sem o emprego da força –, outras setenta operações de paz foram instauradas sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) até hoje. Considerando o aniversário de setenta anos do organismo em 2018, é oportuno relembrar o contexto de surgimento dessas operações, traçar um balanço histórico, bem como balizar seus avanços e atuais desafios.
Tendo em vista o contexto de polarização entre Estados Unidos e a antiga União Soviética durante a Guerra Fria, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) não encontrava o consenso necessário para acionar o mecanismo de segurança coletiva – idealizado enquanto principal instrumento para a manutenção da paz e segurança internacional. Foi justamente sob essa conjuntura que surgiram as operações de paz, mecanismo alternativo que buscava evitar a simples inação da recém-criada organização perante conflitos interestatais.
Em texto intitulado “A evolução das operações de manutenção da paz das Nações Unidas”, Marrack Goulding apresentou uma das definições mais abrangentes sobre o que é uma operação de paz. Segundo o autor, trata-se daquelas operações de campo estabelecidas com o consenso das partes envolvidas, com o objetivo de auxiliar no controle e resolução de conflitos, agindo de modo imparcial em relação a essas partes em litígio e empregando a força o mínimo necessário.
Entretanto, apesar de todas atenderem em certa medida a essa definição mais ampla, o contexto no qual se inserem também influencia as atribuições de cada operação de paz. Nesse sentido, para fins didáticos e consciente de algumas exceções, é possível dividi-las em três fases, desconsiderando as missões políticas ou escritórios de bom ofício, por estarem subordinados ao Departamento de Assuntos Políticos da ONU. A primeira fase abarca aquelas operações estabelecidas durante a Guerra Fria, caracterizadas por efetivos essencialmente militares e atividades quase restritas à atuação nos conflitos enquanto terceira parte observadora, apenas auxiliando na prevenção do retorno das hostilidades e no monitoramento de cessar-fogo.
A segunda fase engloba o aumento exponencial no número de operações de paz estabelecidas pela ONU ao longo da década de 1990, marcada pelo fim da Guerra Fria e crescente instabilidade nos territórios recém-independentes. Entretanto, esse aumento – 38 operações de paz estabelecidas em apenas dez anos – foi acompanhado por mudanças no panorama da segurança internacional, demandando um debate mais profundo sobre esse instrumento que deixava de ser meramente extra-regular para figurar enquanto principal mecanismo de gerenciamento de conflitos da ONU.
Ao contrário das missões estabelecidas ao longo da Guerra Fria, mais homogêneas em relação aos efetivos empregados e às atividades desenvolvidas, além de usualmente limitadas à facilitação do diálogo entre as partes beligerantes sem imposição de soluções políticas, as operações de paz na década de 1990 passaram a englobar tarefas adicionais como: assistência humanitária; monitoramento de eleições; auxílio ao governo local em atividades administrativas; entre outras. É nesse contexto que tem início o processo de reforma das operações de paz, com a criação do Departamento de Operações de Paz (DPKO, na sigla em inglês) e a elaboração de diversos documentos que buscavam debater os principais obstáculos e estabelecer diretrizes.
Por fim, podemos compreender uma terceira fase das operações de paz seguindo desde 2000 até os dias atuais. Estas diferenciam-se por serem influenciadas pelas recomendações desses documentos, em especial o Relatório Brahimi, que abrangia desde a concepção e planejamento até a execução dessas operações. Atualmente, quinze operações de paz das Nações Unidas seguem em curso, sendo que apenas uma não está localizada no continente africano ou na região do Oriente Médio – a Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH). Isso demonstra que, apesar de os países contribuintes terem se diversificado com o tempo, segue concentrada a localização dessas operações de paz.
Além disso, entre os atuais desafios, duas questões ganham destaque. A primeira delas envolve o emprego da força, muitas vezes compreendido enquanto solução lógica, mas que esconde nuances e demanda exames mais profundos. Recentemente foi divulgado um relatório sobre o assunto, elaborado sob coordenação do general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz – que comandou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) entre 2007 e 2009, e a Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrático do Congo (MONUSCO) entre 2013 e 2015. Recomendando mudanças em relação ao que se intitulou “uma postura excessivamente defensiva” das forças de paz da ONU, o documento tem como objetivo identificar por que tantos integrantes de forças de paz foram mortos nos últimos anos e o que deveria ser feito para reduzir esse número.
Entretanto, apesar de considerar aspectos importantes como o preparo e as condições para tal emprego, a discussão permanece concentrada nas mortes de militares e civis das próprias forças de paz da ONU. Ainda que essa não seja um uma questão menor, não pode ser compreendida como quadro completo de uma discussão que também deveria priorizar a população afetada por essa violência. Ao trazer enquanto subtítulo do relatório a frase “precisamos mudar a maneira como estamos desenvolvendo as atividades” (tradução livre), os debates marginalizam a maneira como essas atividades afetam a população que vivencia cotidianamente esses cenários de instabilidade.
Ainda nessa linha, a segunda questão que permanece enquanto desafio atual das operações de paz diz respeito à baixa participação da população local no processo de recondução da paz, o que acaba perpetuando sistemas estratificados e excludentes. Especialmente no que se refere à marginalização de jovens e mulheres no debate político e na elaboração de novas dinâmicas, amplamente compreendidos enquanto grupos recebedores de auxílio apenas, quase desprovidos de capacidade de agência. Em suma, apesar de as lacunas observadas não significarem um completo fracasso das operações de paz, elas deixam claro que tal mecanismo não representa um recurso irrevogavelmente benéfico ou, tampouco, livre de interesses, permanecendo fundamental uma análise mais detida e crítica sobre seus preceitos e efeitos.
Kimberly Alves Digolin é mestre em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas, pesquisadora do Gedes e professora da UNIP.

As relações russo-estadunidenses e o caso Skripal: um balanço do governo Trump

O noticiário internacional recente se devotou, em larga escala, ao caso Sergei Skripal e suas repercussões sobre as relações entre as grandes potências. Sem prover evidências conclusivas, o Reino Unido – onde, em 4 de março, foi envenenado o ex-agente duplo da inteligência militar russa – logo responsabilizou Moscou pelo ocorrido e ordenou, dez dias depois, a expulsão de 23 diplomatas da embaixada russa no país.
Os EUA prontamente se solidarizaram com seu tradicional parceiro transatlântico. Em 15 de março, em nota conjunta assinada com o Reino Unido, a Alemanha e a França, Washington compartilhou o diagnóstico britânico de que não haveria “alternativa plausível” à “altamente provável” autoria do governo russo no caso. No final de março, a condenação norte-americana ganhou impulso com a expulsão de diplomatas russos dos EUA, decisão que rapidamente suscitou medidas recíprocas da Rússia.
A escalada das retaliações em torno do caso Skripal contribuiu para o agravamento das relações entre as duas maiores potências nucleares, e se soma a uma série de outros eventos e tendências que vêm desmentindo as projeções largamente difundidas de uma aproximação entre Rússia e EUA sob Trump. Do ponto de vista russo, a nova administração vem, em muitos sentidos, dando seguimento às práticas e discursos que ocasionaram os cíclicos períodos de azedamento das relações entre os dois países no pós-Guerra Fria. Ao atacar as forças do governo sírio em abril de 2017, por exemplo, Trump sinalizou a persistência do espírito punitivo com que os EUA unilateralmente castigam, via força ou sanções, o que consideram ser os rogue states. O espectro do unilateralismo estadunidense, tradicionalmente criticado pela Rússia por desconsiderar seu poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi reforçado pelas intimidações dirigidas à Coreia do Norte.
No que tange às sanções contra a Rússia ocasionadas por seu envolvimento no conflito na Ucrânia, a administração Trump vem dando seguimento à política de Barack Obama. A remoção das sanções permanece condicional à revogação da anexação da Crimeia e ao fim do apoio de Moscou às repúblicas secessionistas de Donetsk e Luhansk. Na dimensão militar, o atual governo norte-americano foi além da administração anterior ao aprovar a venda de armamentos para a Ucrânia. O apoio de Washington a Kiev corrobora a enraizada visão russa de que o suporte dos EUA aos governos oriundos das chamadas revoluções coloridas constitui tão somente uma plataforma para o avanço do cerco estratégico à Rússia.
A atuação da OTAN, por sua vez, permanece nos moldes criticados por Moscou. O governo Trump vem desmentindo, no discurso e na prática, a visão negativa que o presidente dizia ter sobre a aliança antes da vitória eleitoral. A nova administração vem dando seguimento às iniciativas de Obama no sentido de afirmar a presença militar dos EUA na Europa, bem como desenvolver sua cooperação com os aliados da OTAN para contrapor-se à Rússia. O tema da expansão, por sua vez, continua em voga: embora efetivamente bloqueada nas fronteiras russas pelas ações militares de Moscou na Geórgia (2008) e na Ucrânia (2014), a agenda do alargamento da aliança tem sido compensada por novas incursões nos Bálcãs, região que tem figurado crescentemente no discurso antirrusso de oficiais estadunidenses.
Em junho de 2017, Trump autorizou a entrada do Montenegro na OTAN, coroando um processo pesadamente racionalizado com base na ameaça russa. A aliança encaminha, ainda, a admissão da Macedônia em suas fileiras. Embora se trate de uma região que não figura entre as prioridades da política externa russa – o que significa que eventuais expansões provavelmente não suscitarão reação significativa por parte do Kremlin –, a atuação da OTAN nos Bálcãs, em conjunto com as iniciativas de fortalecimento da aliança de um modo geral, dão continuidade às formas de exclusão da Rússia do sistema de segurança europeu capitaneado pelos EUA. A percepção da ameaça russa que vem racionalizando tal processo acentua ainda mais as incompatibilidades entre Washington e Moscou.
Por fim, os documentos estratégicos da gestão Trump aprofundaram a narrativa da ameaça russa à primazia global estadunidense. A Estratégia de Segurança Nacional publicada em dezembro de 2017 repetidamente menciona a Rússia, ao lado da China, como principal desafiadora dos EUA no sistema internacional. Utilizando “táticas subversivas”, Moscou estaria desafiando o “poder, a influência e os interesses” dos EUA em busca de construir um mundo “contrário a seus valores”. O documento elenca uma série de diretrizes necessárias para conter a “subversão e a agressão” russas. Na Revisão de Postura Nuclear e no Resumo da Estratégia Nacional de Defesa, ambos de 2018, o tema da ameaça russa (e chinesa), com os correspondentes deveres de contenção a serem assumidos pelos EUA, também é recorrente.
As desmentidas expectativas de uma aproximação entre os dois países devem-se, largamente, a um clima geral bastante negativo e beligerante sobre a Rússia e Vladimir Putin nos EUA em virtude da suposta ingerência de Moscou na eleição presidencial norte-americana de 2016. Tal atmosfera é alimentada por uma cobertura midiática de contornos histéricos sobre o assunto, cujos reflexos têm sido sentidos no campo político. As acusações de conluio com o Kremlin desafiam a legitimidade do mandato de Trump e constituem importante constrangimento para que o presidente dos EUA busque uma aproximação com a Rússia.
Nesse sentido, congressistas democratas e até mesmo copartidários republicanos de Trump, por vezes utilizando linguagem que beira o cômico, têm cobrado atitude mais firme contra a Rússia. Em março último, as pressões por punições a Moscou se consubstanciaram em legislação que resultou em medidas concretas tomadas pela Casa Branca, como as sanções impostas a entidades e cidadãos russos acusados de interferir na eleição estadunidense de 2016. No início de abril, em combate à “atividade maligna global” da Rússia, as autoridades dos EUA anunciaram mais sanções a indivíduos e empresas ligados ao governo russo.
Se tal quadro de inimizade contraria muitas predições sobre o período Trump, o mesmo não se pode dizer da perspectiva daquele que é certamente o personagem principal das atuais desavenças entre Rússia e EUA, Vladimir Putin. Em uma das entrevistas concedidas ao cineasta norte-americano Oliver Stone, o presidente russo foi perguntado sobre suas expectativas quanto ao mandato do então recém-eleito Donald Trump. “Esse é o seu quarto presidente [dos EUA], estou certo? O que muda?”, perguntou Stone. Calejado pela experiência de quase duas décadas lidando com líderes dos EUA, Putin respondeu rapidamente, sem esconder o sarcasmo denunciado por seu discreto sorriso: “Quase nada”.
A resposta transparece a percepção de um caráter aparentemente imutável das posições dos EUA sobre a Rússia. Na ótica russa, a permanente incongruência entre os dois países deve-se à insistência dos EUA em afirmar sua posição hegemônica em nível global, fundamentada na conservação da supremacia política, econômica e militar do país. Desde o fim da Guerra Fria, esse esforço tem subtendido as tentativas de sufocamento de qualquer polo de poder independente e contestador da hegemonia de Washington. Nesse sentido, o America First de Trump, ao atribuir mais ênfase à ação unilateral e ao poder dos EUA, pode soar mais cru e agressivo do que American Leadership ou qualquer outro slogan mais vendável produzido por políticos e acadêmicos norte-americanos. Contudo, como atestam as tendências e decisões mencionadas acima, o governo Trump compartilha, em essência, o objetivo básico de conservar a primazia inconteste dos EUA no sistema de Estados.
No que diz respeito à Rússia, esse esforço assumiu diversos matizes. Nos termos do russólogo britânico Richard Sakwa, passou-se da “contenção branda” (soft containment) para a “contenção dura” (“hard containment”): enquanto a primeira variante, mais saliente nas duas primeiras décadas do pós-Guerra Fria, reprimia a Rússia de forma implícita pelo não compartilhamento do poder decisório, a segunda, impulsionada pela crise ucraniana, enfatiza elementos de pressão, coerção e isolamento. Ambas compartilham, todavia, a visão fundamental da Rússia como um rival definitivamente derrotado na Guerra Fria e, por isso, indigno de tratamento equitativo.
Como destacou recentemente o analista russo Dmitri Trenin, essa percepção choca-se de modo frontal com um consenso historicamente enraizado na elite de seu país: a percepção da Rússia como uma eterna grande potência que, não obstante eventuais disparidades de poder, deve sempre conservar sua autonomia, identidade e posição de igualdade perante os Estados mais poderosos. Em sua versão putinista, essa espécie de excepcionalismo russo se traduz na preferência por um concerto de grandes potências à frente da política internacional, no qual a superioridade de capacidades dos EUA conviveria e seria balanceada pelo compartilhamento do poder decisório com a Rússia e outras potências. A consecução desse objetivo não descarta o uso da força para resguardar os interesses russos, inclusive em teatros antes tidos como espaços dominados pelos EUA, como o Oriente Médio.
A assertividade da Rússia de Putin faz com que o país, mesmo que não seja percebido como competidor estratégico mais sério dos EUA a longo prazo – posto que pertence à China – assuma a representação de um rival bastante indigesto para a elite norte-americana. Por isso, dentro das fronteiras que a dissuasão nuclear permite, ela deve ser punida por sua insistência em não se submeter aos imperativos estratégicos dos EUA. As recentes mudanças na composição do governo Trump sinalizam a possibilidade de manutenção, ou mesmo de aprofundamento, desse direcionamento. Figuras como Mike Pompeo, que assume a função de secretário de Estado, e John Bolton, designado como assessor de segurança nacional no lugar de Herbert McMaster – que já se notabilizara por posição pouco amigável sobre a Rússia –, são conhecidos por suas visões negativas sobre Moscou. Não por acaso, suas nomeações repercutiram negativamente na Rússia e geraram expectativas de continuidade das pressões vindas dos EUA.
A responsabilidade a priori atribuída por Washington a Moscou no caso Skripal, assim como a retaliação que a seguiu, são indicativos desse estado de hostilidade e de predisposição ao conflito. Levando em conta esse contexto, as ações dos EUA de Trump podem ser compreendidas como o aproveitamento de um pretexto útil para prosseguir no caminho das sanções e outros tipos de punição à Rússia. Elas contribuem, desse modo, para perpetuar as incongruências que as lideranças dos dois países possuem sobre a ordem internacional e a posição que nela ocupam seus Estados, sinalizando o quão difícil pode ser a concretização do cenário de relaxamento duradouro nas relações entre Rússia e EUA.
Imagem: Putin com o presidente Trump. Por Kremlin.
Gustavo Oliveira Teles de Menezes é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP).

Regras de Engajamento: breves considerações sobre os limites para a atuação das Forças Armadas

O decreto que autorizou a intervenção militar do governo federal no setor de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro gerou dúvida em relação aos limites da ação de militares das Forças Armadas. A intervenção deve se estender até o fim de 2018 e tem como objetivo solucionar os graves problemas de segurança no estado fluminense. É adequado considerar que a confusão foi gerada pela ausência de planejamento e negociação entre os atores relevantes para a decisão. Com efeito, a relatora do projeto na Câmara dos Deputados, Laura Carneiro, questionou a falta de detalhes sobre a disponibilidade de recursos financeiros e estratégias de atuação dos militares no texto editado pelo Palácio do Planalto. Contudo, a iniciativa foi aprovada em ambas as casas legislativas com relativa tranquilidade.
É possível observar ao menos duas perspectivas referentes à delimitação das Regras de Engajamento, conjunto de disposições operacionais que limitam o emprego da força por contingentes das Forças Armadas. Por um lado, representantes da sociedade civil destacam a necessidade de definir com exatidão os limites para o engajamento de militares durante o período de intervenção. Defende-se a relevância de manter a transparência e mecanismos de verificação da iniciativa do governo federal. De maneira complementar, mecanismos de verificação contribuem para a observância das normas relacionadas a direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos. Em contrapartida, militares requisitam maior proteção jurídica para desempenhar as atividades e “flexibilidade” nas regras de engajamento. O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, enfatizou a necessidade de garantias para evitar que militares enfrentem “uma nova Comissão Nacional da Verdade”. Assim, ensaia-se a relevância de determinar Regras de Engajamento para evitar excessos na atuação de contingentes militares.
Ao observar os diálogos referentes à atuação das Forças Armadas em missões relacionadas à “pacificação” ou a “manutenção da ordem e segurança públicas” é possível descrever pouca ênfase sobre o debate de formulação das Regras de Engajamento para militares. Reconhece-se que o principal argumento para a manutenção do sigilo da tática de ação consiste na possibilidade de comprometimento da missão e, consequentemente, redução de sua eficiência. No entanto, é adequado afirmar que o uso da força constitui uma ferramenta e um meio para a imposição de um modelo de organização social, frequentemente associados a ideais considerados mais eficientes para a manutenção de instituições estatais.
Observa-se que a atuação das Forças Armadas no estado do Rio de Janeiro é frequentemente comparada à presença de contingentes militares brasileiros no Haiti sob o mandato da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). O cenário predominantemente urbano e a presença de grupos armados com diferentes estruturas hierárquicas no estado do Rio de Janeiro são utilizados por parte dos atores da mídia e por autoridades locais e nacionais como imagens similares ao cenário de segurança observado, sobretudo, nos anos iniciais da MINUSTAH.
Contudo, convém diferenciar os limites impostos à ação dos militares em ambos os casos. Compreende-se que a ação militar no país caribenho é amparada por regras de engajamento mais flexíveis quando comparadas à mobilização das Forças Armadas em operações no território brasileiro. O contingente militar da missão no Haiti, amparado pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, possuía prerrogativa para o uso da força em situações de ameaça e confronto. Em agravo, os Estados que contribuem com tropas para as Operações de Paz das Nações Unidas requisitam uma série de garantias para os contingentes mobilizados no exterior. Acordos celebrados antecipadamente garantem, por exemplo, que os militares enviados a uma Operação de Paz sejam julgados pelo setor judiciário de sua nacionalidade. Em agravo, é prudente considerar também que a acessibilidade aos canais de denúncia e investigação sobre as ações de militares em Operações de Paz é frequentemente reduzida. Assim, observam-se casos significativos de impunidade em relação a condutas excessivas e crimes perpetrados por militares estrangeiros.
Ao debater os limites para a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, reitera-se a ausência de definição para a atuação das Forças Armadas no decreto presidencial. Não se ignora, que a intervenção federal, apesar de prevista na Constituição de 1988, constitui uma medida inédita. As missões internas desempenhadas pelas forças militares em outras ocasiões foram formuladas segundo o dispositivo de Garantia da Lei e da Ordem, que permite o emprego das Forças Armadas com a função de força policial. Assim, a atuação das Forças Armadas durante o período de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro é circunscrita a limites bastante similares ao trabalho policial cotidiano.
No entanto, é possível descrever ao menos um traço de semelhança entre ambas as operações: o aspecto autoritário e a frequência do uso excessivo da força. É preciso considerar que, apesar do discurso militar e diplomático, a participação brasileira na missão de imposição da paz é marcada por questionamentos e acusações referentes a excessos cometidos por militares do país. Nota-se que a atuação de militares no estado do Rio de Janeiro é fundamentada pela possibilidade de emprego de meios coercitivos para a manutenção da ordem pública. Em agravo, as atuações em comunidades periféricas do estado do Rio de Janeiro são descritas a partir da posição autoritária violenta das forças de segurança.
O pedido das Forças Armadas por regras de engajamento mais flexíveis e garantias jurídicas excepcionais desperta atenção para a possibilidade de impunidade de ações excessivas e violações a direitos e liberdades fundamentais. Convém considerar que, a partir do governo de Michel Temer, crimes cometidos por militares contra civis durante ações das forças castrenses são julgados pela Justiça Militar, tradicionalmente favorável aos membros das Forças Armadas. É possível ilustrar a impunidade a membros das Forças Armadas sob o exemplo da participação não investigada de dezessete soldados em mortes ocorridas em novembro de 2017 na cidade do Rio de Janeiro. Compreende-se, então, que os militares mobilizados para a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro já detêm privilégios jurídicos.
Nesse sentido, é possível descrever ao menos três possíveis implicações negativas para a flexibilização dos limites para o recurso a meios coercitivos e a ampliação da proteção jurídica aos militares mobilizados para a intervenção federal no estado fluminense: (i) a elevação da intensidade dos confrontos entre militares e associações do crime organizado; (ii) a violação de direitos e liberdades fundamentais; (iii) a impunidade a crimes cometidos por militares contra civis. Dessa maneira, é adequado considerar a necessidade de delimitar a ação militar durante o período de intervenção e estabelecer mecanismos de verificação que permitam ampliar a transparência das operações conduzidas sob o decreto presidencial.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas – UNESP/UNICAMP/PUC-SP e pesquisador do Gedes.
Imagem: Forças armadas já estão operando nas ruas e avenidas do Rio. Por: Agência Brasil de Fotografia.

Por que ainda precisamos falar sobre crianças-soldado

12 de fevereiro é considerado o Dia Internacional Contra o Uso de Crianças-Soldado. Nessa data, em 2002, um dos principais documentos acerca do emprego de crianças-soldado entrou em vigor: o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Crianças Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, atualmente assinado por mais de cem países, incluindo o Brasil. Esse Protocolo é resultado de um processo de estabelecimento dos direitos da criança que ocorreu, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, quando alguns documentos internacionais sobre a infância foram assinados como a Declaração dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil (1999). De modo geral, todos esses instrumentos procuram estabelecer que a criança deve ser poupada da violência, da guerra, do trabalho e da exploração sexual e garante direito ao lazer, à educação e à saúde.
O objetivo de lembrar anualmente o dia 12 de fevereiro é chamar a atenção para o fato de que as crianças continuam sendo empregadas nos conflitos armados. Uma das metas do Protocolo Facultativo é garantir que nenhuma pessoa com menos de 18 anos seja utilizada ou treinada por forças armadas, grupos armados e outras organizações militares em qualquer função – incluindo funções que não envolvam o uso de armas – e que os menores de 18 anos que já estão engajados em algum serviço militar sejam liberados de suas funções e recebam a devida assistência para retornar às suas vidas civis.
Logo, o propósito do Protocolo não é apenas impedir que crianças sejam usadas em diversas funções durante os conflitos armado, mas prevenir que crianças sejam incentivadas a participar de atividades militares. Esse incentivo pode ocorrer de várias formas, até mesmo de formas mais sutis – como dar armas de presente para crianças ou ensiná-las a atirar, prática recorrente em muitos países nos quais o acesso a armas de fogo é amplo. Atingir um consenso global acerca da idade apropriada para entrar nas forças armadas e nas demais atividades militares é uma meta difícil de ser atingida, pois esbarra nas legislações internas de alguns países que consentem que menores de 18 anos participem de serviços militares. É o caso do Reino Unido que permite que pessoas com 16 anos juntem-se às suas forças armadas. Esse exemplo nos lembra que quando falamos em crianças-soldado não estamos nos referindo somente a crianças que estejam envolvidas em algum conflito armado em uma região pobre – imagem tradicionalmente reproduzida pela mídia, pelos documentos publicados pela ONU e por algumas ONGs e pelas histórias contadas nos filmes. De acordo com o Unicef, o termo criança-soldado designa qualquer menor de 18 anos que cumpre alguma função junto a uma força armada ou grupo armado– atuando como cozinheiras, escravas sexuais, espiãs, carregadores de munição, portando armas, etc. De fato, é um conceito amplo que busca abarcar as diversas maneiras que a atividade militar se manifesta para as crianças. Assim, trata-se de uma questão mais profunda que envolve conscientizar as crianças e os adultos de que o trabalho militar exige maturidade física e psicológica para ser realizado.
Outro desafio importante é nomear publicamente e punir as partes que empregam crianças-soldado diante do Tribunal Penal Internacional ou cortes nacionais. É mais simples enquadrar atores estatais, exigindo um comprometimento maior e mudança de postura, visto que muitos Estados são membros da ONU e signatários do Protocolo. Entretanto, existem atores não estatais – como o Estado Islâmico – que também utilizam crianças. Controlar esses atores, mapear de que forma as crianças estão sendo utilizadas, punir os responsáveis e impedir que mais crianças sejam recrutadas são objetivos ainda mais complexos. Os mecanismos legais e os documentos de proteção das crianças, apesar de relevantes, são instrumentos limitados que não abrangem toda a dimensão do emprego de crianças-soldado e não dialogam com todos os atores envolvidos na questão. Temos que considerar que os atores não estatais são partes importantes nos conflitos armados atuais, os quais são formados por uma rede de atores que interagem entre si. Estados, grupos armados, organizações internacionais, empresas privadas e forças armadas estabelecem diálogos e relações políticas e econômicas de forma dinâmica. Pensar em modos de impedir a utilização de crianças-soldado deve levar em conta todos esses atores.
Uma forma de atingir grupos e Estados que utilizam crianças-soldado é desarticulá-los, restringindo seu financiamento, dificultando a aquisição de armamentos, componentes militares e munição. Todavia, controlar os fluxos de armamentos – legais e ilegais – que chegam aos grupos e aos países que utilizam crianças demanda um esforço maior de desmontar todo um esquema de enriquecimento que pode afetar diversas regiões do mundo. Esse processo envolve tanto cortar a ajuda militar a países cujas forças armadas recrutam menores de idade, quanto fiscalizar a venda e o tráfico de armas, o que pode comprometer as atividades comerciais de grandes empresas de armamentos e as rotas ilegais utilizadas no tráfico. Assim, a decisão de controlar os armamentos que chegam às crianças-soldado varia também em função de interesses políticos e econômicos e não apenas em função da proteção das crianças. Destarte, a retórica em torno do combate ao emprego de crianças-soldado aparece quando é conveniente trazer à tona o assunto a fim de reforçar que determinado grupo ou país é um inimigo que deve ser combatido e privado de seu financiamento e aquisição de armas. Contudo, quando não há a percepção de inimizade, a proteção da criança aparece somente em segundo plano.
Apesar do esforço de criar documentos internacionais de proteção das crianças, sabemos que ainda há muitos casos de emprego de crianças-soldado em todo o mundo. Na década de 1990, emergiram diversos conflitos em que crianças-soldado eram utilizadas em países como Serra Leoa, Libéria, Moçambique, Uganda, fazendo com que o assunto ganhasse maior repercussão internacional e fosse divulgado pela mídia. O tema foi até mesmo incluído na agenda do Conselho de Segurança da ONU, em 1999. Porém, a utilização de crianças-soldado não se resume aos anos de 1990 e não terminou após esses conflitos. Atualmente, ainda noticiamos casos de crianças envolvidas em conflitos armados em algumas regiões do Oriente Médio, no Sudão do Sul, em Mianmar e na Colômbia, país em que, por outro lado, muitas já foram reintroduzidas à vida civil. Dezesseis anos após o Protocolo Facultativo, ainda precisamos falar sobre as crianças-soldado, refletindo sobre como estabelecer um conceito global de criança e ao mesmo tempo respeitar as particularidades de cada região do mundo; como garantir a dignidade e os direitos da criança; e como garantir que atores estatais e não estatais comprometam-se a não utilizar crianças-soldado. O tema envolve não somente as crianças, mas uma rede de atores e as relações de poder que estabelecem entre si.
Imagem:

. Por Stephen Davies.

Giovanna Ayres é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (UNESP – UNICAMP – PUC/SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Autonomia estratégica brasileira e as negociações entre Boeing e Embraer

No último dia 21, por meio de um comunicado conjunto, a estadunidense Boeing e a brasileira Embraer tornaram pública a existência de tratativas em relação a uma potencial combinação de seus negócios. A iniciativa segue os eventos de outubro do ano passado, quando a europeia Airbus, principal competidora da Boeing, adquiriu a participação majoritária no programa de jatos C-Series da canadense Bombardier – principal concorrente da Embraer no mercado de aeronaves comerciais regionais. No entanto, a despeito do anúncio da Boeing e Embraer, a formalização e o formato do negócio continuam indefinidos, sobretudo pela necessidade de aprovação do governo brasileiro.
Empresa de capital aberto, a maior parte das ações da Embraer encontra-se sob posse da gestora norte-americana Brandes Investments Partners, a qual exerce controle sobre 14% das ações da empresa. Ainda que com participação restrita a 5,4% das ações, o governo federal possui a prerrogativa da golden share, o que permite o controle sobre decisões estratégicas da empresa e, potencialmente, o veto a qualquer tipo de fusão ou aquisição. O atual mandatário do governo brasileiro já se manifestou contrário a qualquer negociação envolvendo o controle acionário da Embraer. Em mesma medida, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, se mostrou favorável ao acordo desde que mantidas as prerrogativas estratégicas do governo brasileiro.
Cabe destacar que, em meados de 2017, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, encaminhou ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma consulta para saber como alterar as regras das golden shares. Entretanto, membros do governo federal negam que foi cogitado encerrar com todas as ações especiais da Embraer. De acordo com o secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, Flávio Corrêa Basílio, a proposta defendida por Meirelles preservaria as regras referentes a questões deimportância para a defesa.
Embora tal mecanismo também exista para outras empresas, a golden share no contexto da Embraer possui maior relevância estratégica por seu papel na base industrial de defesa do país, traduzida especialmente na estreita relação com os projetos da Força Aérea Brasileira (FAB). Única empresa brasileira a figurar no ranking das 100 maiores empresas de defesa do mundo, as vendas de armamentos representaram 15% de todos os negócios realizados pela Embraer em 2016, segundo dados organizados e disponibilizados pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI).
Ainda de acordo com o SIPRI, as vendas de armamentos da Embraer cresceram 10% entre 2015 e 2016, atingindo a cifra de US$ 930 milhões – 0,2% do total de armamentos vendidos pelas 100 maiores do mundo. Em comparação, as vendas da Boeing em 2016, segunda maior empresa de defesa do mundo, totalizaram US$ 29 bilhões – ou 7% das vendas de armamento das maiores empresas de defesa do mundo. Dessa forma, perante tamanha discrepância de capacidades e dimensão, as incertezas e preocupações em torno de uma possível aquisição pela Boeing são ainda mais agudas quando considerada a atuação da divisão de Defesa e Segurança da empresa brasileira.
A redução nos orçamentos de defesa no imediato pós-Guerra Fria, em conjunção com fatores de natureza tecnológica e de doutrina militar, implicou em significativas transformações na organização da indústria de defesa em nível mundial. Foi durante esse período que a Boeing se consolidou como uma das maiores empresas de defesa dos EUA e do mundo. Os elevados custos envolvidos no desenvolvimento e produção de novos armamentos, gradativamente mais complexos em termos tecnológicos, e as dificuldades em garantir escala produtiva a partir do mercado doméstico, impulsionaram a internacionalização da produção de armamentos. Uma das principais consequências desse processo foi o agravamento das barreiras à entrada de novos concorrentes no mercado de defesa.
A despeito dessa configuração internacional, sob a qual tornou-se virtualmente inalcançável o objetivo de produção autárquica de armamentos, a maior parte dos produtores marginais ao núcleo orgânico do sistema internacional tende a enfatizar objetivos de autossuficiência em relação ao desenvolvimento e à produção de armamentos. Os recentes documentos de Defesa brasileiros, cujas atualizações foram encaminhadas para a apreciação do Congresso Nacional no final de 2016, elencam como um de seus objetivos a promoção da autonomia produtiva e tecnológica na área de Defesa.
A almejada independência de provedores externos no âmbito militar elevaria o grau de autonomia estratégica do país, entendida como condição para ampliar a liberdade da decisão política independente de constrangimentos impostos por Estados mais poderosos. Pelo reconhecido know-how em projetos da área de tecnologia militar, bem como pelo estreito relacionamento com as Forças Armadas brasileiras, o braço de Defesa e Segurança da Embraer é parte fundamental na concepção e execução dos meios requeridos para a tentativa de alcançar tal objetivo. Atualmente, a empresa participa em diversos projetos estratégicos das Forças Armadas do país, como o Prosub – por meio de sua subsidiária Atech – e o SISFRON – por meio de sua subsidiária Savis –, além de projetos relacionados à FAB.
No âmbito do projeto FX-2, voltado para o desenvolvimento e aquisição de novos caças multipropósito para a FAB, a Embraer é a empresa líder nacional no acordo junto à sueca Saab para o projeto do Gripen. Além de importante ator no processo de transferência de tecnologia – que, dentre outros mecanismos, tem se desenvolvido por meio do Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen, inaugurado em 2016 –, também será responsável pelo desenvolvimento completo da versão biposto da aeronave, em conjunto com a Saab, compartilhando com a empresa sueca a design authority do Gripen E/F. Nesse sentido, cabe destacar que a Boeing, por meio da proposta do F-18 Super Hornet, foi parte derrotada na concorrência pelo contrato de aquisição de novos caças para a FAB, o que leva a questionamentos acerca das potenciais consequências das negociações entre Boeing e Embraer sobre as tecnologias obtidas no escopo da parceria com a Saab, bem como sobre o futuro do programa Gripen.
Dessa forma, é preciso ter em mente que, a depender dos termos acertados em uma possível negociação, a aquisição da Embraer pela Boeing pode, no limite, representar a renúncia do já debilitado objetivo de autonomia tecnológica no setor industrial militar. Se o atual governo decidir de modo favorável à aquisição – com ou sem a golden share –, que não seja respaldado exclusivamente pela falsa percepção da ideologia do mercado difundida por alguns comentaristas, os quais, presos aos benefícios comerciais da associação entre as duas empresas, perdem de vista suas potenciais consequências políticas.
Durante cerimônia de almoço entre membros do governo federal e os oficiais generais das Forças Armadas, o Comandante da Aeronáutica, Brigadeiro Nivaldo Rossato, parafraseou um conhecido texto de Napoleão Bonaparte para afirmar que “não há nada mais precioso do que saber decidir”. Frente ao cenário que se avizinha, mais do que saber decidir, cabe ao governo a sensatez de compreender a importância de também poder decidir.
Imagem: Embraer E-195 E-2. Por: Embraer.
Jonathan de Araujo de Assis é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (UNESP – UNICAMP – PUC/SP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

A Necessidade de Participação de Atores Locais em projetos pela paz

A partir da década de 1990 é possível observar o aumento do engajamento de atores internacionais em intervenções para a resolução de crises da agenda de Segurança Internacional. Progressivamente, as iniciativas pela consolidação da paz são autorizadas e conduzidas não só por atores tradicionais como as Nações Unidas, mas também por grandes potências, coalizões ad hoc de Estados e acordos regionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ou a União Africana. Com efeito, as missões aprovadas por esses atores mantêm características similares às operações autorizadas e mobilizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesse sentido, é possível identificar a aplicação de princípios presentes na Carta de São Francisco e em demais documentos da instituição. Identifica-se que, majoritariamente, as intervenções conduzidas por Estados, coalizões e organismos regionais recebem anuência de outros atores centrais do cenário mundial como alternativa para garantir a legitimidade. Simultaneamente, é possível descrever relações de interesse entre os atores centrais que mobilizam as intervenções internacionais e as regiões submetidas às operações de paz. Convém destacar a reduzida participação de atores locais em projetos internacionais de paz e o contestado consentimento concedido por autoridades e elites políticas à intervenção estrangeira.
A partir das falhas em operações conduzidas pelas Nações Unidas no início da década de 1990, debates acadêmicos e institucionais destacam a necessidade de promover reformas no engajamento dos atores internacionais em crises da agenda de Segurança. Noções de “empoderamento” e “apropriação local” são incorporadas às práticas discursivas de atores relevantes no processo decisório de novas intervenções (BORGES; MASCHIETTO, 2014). Simultaneamente, é possível observar lacunas no discurso proeminente sobre operações de paz, sobretudo no que tange à necessidade de se pensar questões como “cidadania” ou “emancipação”. Depreende-se, portanto, que os projetos de paz implementados a partir do fim da Guerra Fria mantêm uma dinâmica impositiva sobre os atores locais. Dessa maneira, é possível identificar a sobreposição de modelos políticos e econômicos considerados mais eficientes pelos atores centrais sobre as instituições que regem a organização política, econômica e social das sociedades sob intervenção. A partir do ano de 2001, identifica-se, ainda, um agravamento nas dinâmicas de intervenção e reconstrução de instituições estatais, sob o exemplo da invasão estadunidense ao Afeganistão e ao Iraque. Descreve-se, portanto, um nível adicional de opressão, estabelecido pelas relações entre atores relevantes na agenda de Segurança Internacional e os atores submetidos às operações de paz.
É possível identificar a predominância de princípios liberais nos fundamentos dos modelos internacionais que, majoritariamente, apresentam contradições em relação às instituições locais. Destaca-se a ênfase sobre a consolidação de democracias liberais representativas, a criação de mercados livres e modelos burocráticos inspirados nas instituições dos atores centrais do sistema internacional.
Com efeito, destaca-se que a imposição de modelos institucionais através de projetos de paz pode implicar a manutenção de estruturas de poder favoráveis às potências internacionais, como a desigualdade em relação aos Estados periféricos. Observa-se que as intervenções conduzidas pelos Estados centrais se fundamentam na consideração de que as instituições locais carecem de eficiência na garantia de pilares do pensamento liberal. Argumenta-se, portanto, que os projetos de paz delineados sob a tutela dos atores centrais apresentam desconhecimento em relação às dinâmicas locais.
Em análise, é plausível argumentar que as ações internacionais, de maneira contraditória, refletem reminiscências do poder colonial de antigas potências, apesar do objetivo em consolidar conjunturas pacíficas nas sociedades sob intervenção. Em agravo à contradição, os modelos internacionais estabelecidos sobre a organização do cotidiano local implicam obstáculos à iniciativa de reunir e garantir princípios consonantes às noções de democracia, segurança, crescimento econômico e direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, presentes nos projetos de paz contemporâneos. Dessa maneira, é possível observar a manutenção de disputas presentes nos conflitos armados que mobilizaram o engajamento de atores centrais pela paz. É possível questionar, portanto, a possibilidade de impactos positivos a longo prazo das intervenções.
É preciso destacar que o processo de imposição de modelos de organização política e econômica através de intervenções internacionais é permeado por movimentos de resistência ou aceitação pelos atores locais. (RICHMOND, 2014). É possível utilizar a noção de “ordens políticas híbridas” para descrever a resultante das dinâmicas entre ações intervencionistas e os movimentos locais de resistência ou aceitação (BOEGE, et al., 2009). Ao indicar a complexidade de relações estabelecidas no nível local de análise, compreende-se que as ordens políticas derivadas do encontro entre formas locais e internacionais de organização institucional podem resultar em estruturas de poder negativas, que reforçam aspectos de violência estrutural como exclusão e desigualdade. Não obstante, enseja-se a possibilidade de formação de “ordens políticas híbridas” positivas, que contam com potencial para consolidar a paz em uma sociedade pós-conflito.
Nesse sentido, adverte-se a necessidade de promover a participação ativa de atores locais na formulação e implementação de projetos de paz. A superação de situações de opressão, como as relações de poder estabelecidas entre atores do sistema internacional ou entre diferentes classes do contexto local, depende da inserção crítica de atores oprimidos na realidade que se pretende transformar (FREIRE, 1974). Compreende-se que a consolidação de uma conjuntura pacífica a longo prazo deriva da possibilidade de promover princípios de inclusão política e social, redução da desigualdade e incentivar um processo autônomo de reconciliação nacional. Depreende-se que a promoção desses princípios oferece potencial à emancipação das sociedades que foram afetadas por conflitos violentos.
Simultaneamente, destaca-se a importância de fundamentar os projetos de paz definidos por atores internacionais em estudos substantivos das conjunturas locais. Ressalta-se a necessidade de ampliar o debate institucional sobre as ações de intervenção, permitindo o questionamento dos princípios considerados mais eficientes para a organização política e econômica das sociedades pós-conflito. Nesse sentido, é preciso compreender que as instituições consideradas nacionais que se apresentam no contexto locais constituem alternativas para a solução de disputas e concertação de interesses. Reiteradamente, ao valorizar as formas de organização locais, e incluí-las nos processos de paz internacionais, amplia-se a possibilidade da formação da paz a partir de elementos e dinâmicas fundamentais de sociedades pós-conflito.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais no PPG RI San Tiago Dantas – Unesp, Unicamp, PUC-SP, pesquisador do Gedes e possui financiamento da FAPESP.
Imagem: Timor Leste se prepara para Eleições Parlamentares. Por: United Nations Photo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOEGE, V. et al. On hybrid political orders and emerging states: what is falling States in the global South or ressearch and politics in the West. Berghof Research Center for Constructive Conflict Management, 2009.
BORGES, M.; MASCHIETTO, R. H. Cidadania e empoderamento local em contextos de consolidação da paz. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 105. Dezembro de 2014. pp. 65-84.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
RICHMOND, O. P. Failed Statebuilding: intervention and the dynamics of peace formation. New Haven: Yale University Press, 2014.

O que nos diz o caso ARA San Juan? Obsolescência, Reaparelhamento e Corrida Armamentista

Nas últimas semanas surpreendeu-nos o desaparecimento do submarino argentino ARA San Juan. A suspensão nas comunicações entre a Marinha argentina e a tripulação do submarino levou a uma incessante busca, animada inicialmente pela esperança de resgate das 44 pessoas que se encontravam a bordo. A comoção foi geral. O assombro, talvez, não tanto. Hoje sabe-se que um dos comunicados enviados à Marinha argentina pelo submarino dizia respeito a uma situação de avaria no casco e consequente entrada de água, o que levou a um curto-circuito e, posteriormente, a um incêndio. Terminadas as buscas pelos tripulantes do submarino, segundo informe da Armada argentina, fica a questão: em que medida tal tragédia poderia ter sido evitada pela manutenção apropriada dos equipamentos militares argentinos?
Em entrevista ao podcast UNESP, o professor Héctor Luis Saint-Pierre ressaltava o caráter de obsolescência das Forças Armadas argentinas, apontando para o estado defasado dos equipamentos argentinos. Tal situação não é exclusividade da Armada argentina. São diversas as reclamações também no Brasil sobre a situação de desgaste das forças militares do País. O caso FX-2 é, nesse sentido, simbólico pois trata-se de reaparelhamento da Força Aérea Brasileira (FAB) num cenário de deterioração dos caças da FAB. Talvez à exceção das forças chilenas, que contam com a Lei do Cobre como fonte orçamentária relativamente fixa, as Forças Armadas sul-americanas tendem a se deparar com o problema financeiro e com questionamentos sobre a legitimidade dos gastos militares – “canhões ou manteiga” tende a ser pelos anos que se seguem um dilema imposto aos países da região.
Nesse cenário, é interessante notar que movimentos individuais voltados ao rearmamento dos países tendem a ser compreendidos – ou, melhor dito, taxados – como indícios de uma corrida armamentista supostamente em voga na região. Assim, a compra de caças russos pelo governo venezuelano é visto como uma ameaça por Bogotá, assim como o investimento no setor militar por parte de Brasília é discutido em termos de ameaça a Buenos Aires, Assunção e Montevidéu. Tais dinâmicas, entretanto, são anacrônicas.
Quando, em 2008, foram iniciados os diálogos para a conformação de um fórum sul-americano de Defesa, os países da região entravam num processo que envolvia, sobretudo, a construção de relações baseadas na confiança em detrimento de percepções mútuas de ameaça. Os processos de fomento à confiança mútua, simbolizado dentre outros por iniciativas de transparência em gastos militares, são fundamentais para a compreensão da anacronismo inerente ao argumento de que haveria uma corrida armamentista na região. Evidentemente, não se trata aqui de supervalorizar o órgão em si, uma vez que são inúmeras as dificuldades pelas quais vêm passando em termos de concertação regional, principalmente após a conformação do novo quadro político regional – uma guinada à direita, em relação ao cenário anteriormente vigente. Vale, entretanto, ressaltar que a criação de uma instituição, um fórum de concertação política se se prefere, voltada para a temática da Defesa exclusivo aos países da região é indicador de que, apesar de insistentes desconfianças, é remoto um cenário de conflito armado entre os Estados sul-americanos. Assim, a iniciativa de conformação do Conselho de Defesa Sul-Americano pode ser considerada como marco no aprofundamento dos laços regionais e um avanço no que diz respeito à superação das desconfianças e percepções de ameaça. Não se dissuade aquele com quem se coopera.
Com isso podemos agora retomar ao caso nefasto do ARA San Juan.
É fundamental que se considere a necessidade básica de manutenção dos equipamentos das forças armadas regionais. Se se comprovar que o que houve, de fato, deveu-se a uma avaria no casco do submarino levanta-se novamente o questionamento sobre o descaso dos governos para com a manutenção das forças. Na já mencionada entrevista, Saint-Pierre destaca muito apropriadamente que “não é bom ter esse tipo de acidente para que se dê esse tipo de discussão. Quem tem forças armadas deve prestar atenção na manutenção dessas forças armadas”. Uma suposta corrida armamentista não pode ser considerada justificativa plausível para a desatenção ao estado deteriorado das forças.
Apenas para citar uma alternativa, vale retomar a discussão sobre a integração da Base Industrial de Defesa da região. O debate em questão gira em torno da necessidade de que a região garanta a manutenção de suas forças, bem como adquira certo grau de autonomia frente a atores exógenos. Nesse cenário, no marco da cooperação regional em defesa, a integração da base industrial sul-americana é, não raro, apresentada como meio para que se alcance os objetivos supracitados. Dentre os argumentos a favor podemos citar: ganho de escala, redução de custos, maior nível de coordenação e de articulação entre as diferentes forças armadas regionais, fomento à ciência e à tecnologia de desenvolvimento autóctone. Em suma, são diversos os ganhos apontados. Como símbolo de iniciativa nesse sentido vale destacar o projeto para o desenvolvimento de um veículo aéreo não tripulado, o VANT UNASUL. Embora sejam ainda remotos os ganhos em termos de recursos materiais advindos desse projeto, considera-se que em 2014 os atores envolvidos no mesmo já avançavam para a definição dos requisitos operacionais do equipamento, o que denota que num cenário de efetiva vontade política há potencial a ser aproveitado na concertação regional que viabilizaria a discussão que se faz necessária sobre reaparelhamento e manutenção de capacidades combativas das forças.
Reiteramos que o desenvolvimento de projetos como o citado demanda alto comprometimento político e relativo grau de harmonização de interesses – fatores que fazem com que empreendimentos para produção conjunta de armamentos muitas vezes não se desenvolvam em sua plenitude. Entretanto, entendemos que as dificuldades inerentes a iniciativas desta magnitude não devem servir de justificativa para o atual grau de negligência ao qual são, muitas vezes, submetidas as forças sul-americanas. Falar em corrida armamentista ofusca uma discussão mais importante, a saber: como garantir a capacidade dissuasória da região num cenário de constrangimentos econômicos internos aos países e de maneira a não reavivar antigas desconfianças? A busca pela resposta a tal pergunta é basilar para a discussão sobre a viabilidade não apenas de uma base industrial de defesa integrada, mas do próprio projeto de integração regional.
Jorge Matheus Oliveira Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC/SP) e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES) e do Grupo de Estudos Comparados em Política Externa e Defesa (COPEDE).
Imagem: Mapa da Argentina. Por: NordNordWest.

Brasil e Estados Unidos: aproximação bilateral em Defesa no pós-impeachment

Desde o início do governo de Michel Temer e da gestão de Raul Jungmann no Ministério da Defesa, houve certas modificações no posicionamento internacional brasileiro que incorrem em aproximação aos Estados Unidos. Não se trata de ruptura total, haja vista que a preservação de boas relações bilaterais com a potência é uma preocupação constante dos governos e burocracias brasileiros. Contudo, algumas ações empreendidas durante o mês de novembro demonstram a maior convergência de visão de mundo e a abertura do país para a potência norte-americana.
A realização de um exercício multilateral inédito na Amazônia, com a participação de Estados Unidos, Peru e Colômbia é relevante nesse sentido. O exercício, que teve início no dia 11 de novembro, buscava “desenvolver doutrina para ações humanitárias que respondam de forma rápida a adversidades causadas por ondas migratórias, catástrofes e acidentes”. Embora sejam comuns os exercícios conjuntos, a realização na região amazônica com a presença de potências globais é uma novidade e o episódio mostra o distanciamento da postura de anos anteriores. A Estratégia Nacional de Defesa de 2008, por exemplo, apresentava como hipótese de emprego “a ameaça de forças militares muito superiores na região amazônica”. A sentença deixava implícita a desconfiança frente a possíveis ataques à soberania nacional por parte de potências mundiais, notadamente os Estados Unidos.
A agenda de Jungmann durante sua visita a Washington, de 14 a 17 de novembro, também revela a aproximação. Na ocasião, Jungmann propôs que o Brasil e os Estados Unidos adotassem uma política de Estado sobre cooperação bilateral, estável e duradoura. Também buscou negociar o uso da base de lançamento de Alcântara pela potência. Nesse caso, já havia sido assinado um acordo bilateral nos anos 1990, que foi retirado do Congresso no início da presidência de Lula, em 2003, antes de ser ratificado. Contudo, não se trata de um retorno àquela década, uma vez que o governo atualnão pretende conceder o monopólio aos EUA. Rússia, China, Israel e França também possuem interesse em utilizar o centro de lançamentos do estado do Maranhão.
A cooperação regional também passa por importante mudança de orientação, aproximando-se da perspectiva dos Estados Unidos. Durante sua visita aos EUA, o ministro abordou com o subsecretário de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Thomas A. Shannon Jr., a criação de uma Autoridade de Segurança Sul-Americana. A iniciativa é conduzida em parceria com o Ministério das Relações Exteriores e nas palavras de Jungmann, trata-se de uma “proposta coletiva da área de Defesa, Justiça e Inteligência” para o compartilhamento de informações e troca de experiências de êxito no combate ao crime transnacional. Assim, participariam do organismo tanto ministros da área de segurança pública quanto de defesa.
Embora o ministro argumente que possa ser criado um organismo semelhante ao Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), as diferenças são marcantes. O CDS propunha uma agenda que separava temas tradicionais de defesa e aqueles de segurança pública. Assim, contrastava com a agenda norte-americana, na qual o crime organizado transnacional é entendido como uma das principais ameaças à região e a atuação conjunta interagências, com a participação de policiais e militares, é vista como o mecanismo ideal para seu combate. Nesse sentido, a criação do CDS representava a busca de autonomia e de uma orientação regional autóctone nessa área. Por outro lado, a iniciativa proposta por Jungmann e Aloysio Nunes incorpora a agenda debatida nas organizações hemisféricas e representa uma aproximação à agenda de segurança da potência.
Tais iniciativas explicitam que a agenda internacional de Defesa brasileira liderada por Jungmann pauta-se, entre outros aspectos, na busca de aproximação bilateral com os Estados Unidos. Nesse processo, a América do Sul não fica excluída ou marginalizada, mas é entendida a partir de um novo prisma. A cooperação regional continua presente, porém com outra orientação. Não se trata de buscar autonomia frente à potência ou de criar um espaço geopolítico próprio, mas de garantir a estabilidade regional e o combate conjunto ao narcotráfico de acordo com os preceitos do Norte, em um processo de aceitação e busca de cooperação iniciado pelo Brasil. Tampouco, há maiores preocupações com as consequências do emprego militar no combate ao narcotráfico, que tende a gerar retrocessos em questões de direitos humanos, e policialização das Forças Armadas, que são desviadas de sua função principal: a defesa contra ameaças militares externas.
Lívia Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas – UNESP-UNICAMP-PUC-SP, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Imagem: Em Washington Jungmann esteve em reunião com o setor aeroespacial privado norte-americano. Por: Ministério da Defesa.

The San Juan submarine and the British presence in the South Atlantic

On 15 November 2017, the diesel-electric patrol submarine San Juan, in active service with the Argentine Navy, ceased communicating with the rest of the fleet during a routine patrol mission from the port of Ushuaia to Mar del Plata with 44 crew members aboard. The submarine, built in West Germany in 1983 and commissioned 1985, was one of the three vessels that composed the Argentine Submarine Force Command and was the newest of three boats of an ageing and under-funded Argentine fleet.
Shortly after the news of the disappearance of the San Juan was confirmed by the Argentine Government, other nations were quick to offer aid to locate the vessel. Amongst those that took part in the search, there were forces from neighbouring countries such as Brazil, Chile and Uruguay. The United States participated in the search offering aircraft and cutting-edge equipment to locate the disappeared boat. The UK also offered aid and participated in the tracking of the missing submarine, nonetheless its position in the region diverges from the others engaged in the mission; Britain’s position is tempered by its territories and permanent military presence in the area that generate diplomatic discomfort with Argentina.
Britain is present in the South Atlantic through its Overseas Territories, scattered from tiny Ascension Island, home of the Royal Air Force’s facility Wideawake Airfield, to the widely known Falkland Islands/Islas Malvinas. These territories offer to the European country a considerable space of manoeuvre in the region, and as the war for the Falklands/Malvinas showed back in 1982, they might be of use as staging points for military forces alongside Gibraltar and other British territories throughout the globe. Thereby, London keeps a garrison to protect its valuable dependencies in the South Atlantic.
When the San Juan went missing, Britain moved to support the Argentines using some of its forces based in the Falklands/Malvinas that are part of the "British Forces South Atlantic Islands". Royal Navy ships HMS Clyde, an offshore patrol vessel permanently located in the South Atlantic, and HMS Protector were sent to help the Argentine effort. One Royal Air Force (RAF) C-130 Hercules present in the disputed islands was placed at Argentine disposal, and one RAF Voyager based in Oxfordshire has landed in Comodoro Rivadavia, on 22 November; this landing was the first of a British military aircraft to do so in Argentina since 1982. Besides that, specialists from the British Submarine Parachute Assistance Group, regarded in British military ranks as an "elite unit", were deployed to advise its Argentine counterparts.
These were the forces mobilised by London in less than seven days to attend the Argentine request to search and rescue for the San Juan. Nevertheless, this British presence invoked the issue of the territories regarded by Argentina as illegally occupied by Britain. However, there were only isolated cases such as the Argentina’s Workers’ Party leader Gabriel Solano declarations which characterised the British as "pirates" and "responsible for war crimes, like the sinking of the General Belgrano". The broader repercussion of the British help was meet with more enthusiasm by the media both in Buenos Aires and London.
The British participation also demonstrates that even with budgetary constraints its military presence has been a relevant factor in the region and does not signal to be fading away back to London. Actually, British presence in the South Atlantic is represented by the three branches of the armed forces, primarily by the Royal Navy; its vessels are regularly paying visits to the region, and HMS Clyde does not leave the area not even for repairs that are made in South Africa, displaying British defence relations with a strategic regional player.
The increase in its technological capabilities is also relevant to comprehend the reduced numbers of British capital ships, aircraft and personnel not just in the South Atlantic. As the technological advancements are introduced, the total numbers are set to reduce, for the new assets are more efficient than its previous versions. This phenomenon is known as the "Revolution in Military Affairs". So, the new military assets are heading towards the concepts of capabilities and effectiveness instead of purely relying on numbers, helping to explain why the British military personnel in the Falklands/Malvinas is roughly 1,200.
Thus, the technological gap that persists between the South American nations and Britain is a matter as central as the total numbers of conventional forces. The historical trend is represented by a widening gap between the great powers, such as Britain, and the other nations from the periphery, such as Argentina and Brazil. Concisely, meanwhile the centre is capable of maintaining armed forces with the newest and most capable weaponry the peripheral nations are not able to follow the technological breakthroughs and the cost of its implementations, leaving them dependent on the central powers for military technologies that are only transferred when regarded as in the process of obsolescence.
Another aspect that can be noticed by the San Juan disaster is the conditions of the Argentine Armed Forces. The maintenance of the military have been under severe neglect, and the navy is a source of many problems concerning the readiness of its fleet. Under-funded and struggling to reach training requirements and upkeep of its vessels, the Argentine Navy is failing to sustain its commissioned ships fully operational. In 2013, the defence budgetpermitted 15 boats to spend no more than 11 days at sea, and the submarines spent on average just over six hours submerged in the previous year. Moreover, the fleet is composed of 42 ships, most of them construct and commissioned in the 1970s and the early 1980s and a few are British-made; for the standards adopted by Britain, the United States and other NATO members the Argentine Navy would be regarded as out-dated, in need of a complete reformulation and a more substantial budget.
So, the role played by the British military assets and the readiness in gathering some of them 8,000 miles from London in the search the San Juan reveals a glimpse of the capabilities of a former imperial nation in projecting its power elsewhere, despite its relative decline since the end of the Second World War. It also shows that the South Atlantic is not a stage exclusive to the regional nations, it is an area where foreign interests have its weight and do not show indications to renounce its share in the region’s future.
Britain’s position involves its territories and their relevance to London: They grant a permanent voice in the area, are support facilities for military forces therefore relevant part of its projection of power, since 1982 an increasing source of prestige and, concerning the Falklands/Malvinas, have a significant prospect of economic advantages like the profits from oil extraction. These points are some of the main reasons that since 1982 Britain does not negotiate the issue of sovereignty, other motives rely on the anglophile desires of the Islanders.
In spite of that, the British participation in the mission showed possibilities of cooperation between two nations with long-dated territorial disputes, which eventually led them in fighting each other. Argentina and Britain share a complicated history of highs and lows. If the tragic incident with the San Juan can teach a positive aspect to the two nations it is that cooperation with former rivals is possible and desirable; despite its divergent interests, it is a win-win situation for both parties.
João Vitor Tossini is a under-graduated student in the São Paulo State University (UNESP) in Franca and a collaborator at "UK Defence Journal". João Vitor’s scientific intiation research is funded by FAPESP.
Image: ARA San Juan in Buenos Aires, May 2017. By: Juan Kulichevsky.