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O fim do mundo e a reponsabilidade individual

No dia 26 de janeiro de 2017, o Comitê de Ciência e Segurança do Bulletin of the Atomic Scientists anunciou que o mundo está um pouquinho mais próximo do Fim: o relógio que marca essa trajetória da humanidade, conhecido como Doomsday Clock, está a apenas dois minutos e meio da meia noite.
Desde 1947, o Bulletin of the Atomic Scientists anuncia anualmente uma estimativa de quão elevado é o riso de um evento de grandes proporções capaz de desestruturar fundamentalmente a civilização humana. Não se trata, é evidente, de uma estimativa literal: as chances de o mundo acabar nos próximos dois minutos e meio são, felizmente, remotas. Trata-se, antes, de uma representação figurativa sobre as grandes ameaças que têm enorme potencial destrutivo para nossa forma de vida. É, assim, uma forma de chamar a atenção do público, inclusive de lideranças políticas, para problemas que precisam ser enfrentados e que, frequentemente, requerem um nível significativo de cooperação entre as nações.
Como o marco de 1947 indica, a iniciativa foi lançada em decorrência do advento da era nuclear. Naquele contexto, após as primeiras explosões nucleares, tornava-se claro que uma nova ameaça, de porte particularmente alarmante, despontava sobre a humanidade. De fato, foi em 1953 que o relógio chegou mais perto da meia noite, em decorrência dos testes das primeiras bombas de hidrogênio (cuja capacidade explosiva é mensurada na ordem de milhões de toneladas de explosivos convencionais, em uma ordem de grandeza de 100 a 1000 vezes maiores do que as bombas de Hiroshima e Nagasaki). Já os anos 1990 e o fim da Guerra Fria, trouxeram um hiato de esperança, decorrente de avanços no desarmamento nuclear e da perspectiva de uma menor hostilidade internacional, levando o relógio a se afastar do Fim.
Com o passar do tempo, o Bulletin of the Atomic Scientists expandiu sua agenda e passou a acompanhar outras questões também consideradas como grandes ameaças, incluindo armas biológicas e químicas e, de forma muito intensa nos últimos anos, os efeitos das mudanças climáticas, que poderiam ter um gigantesco impacto sobre as sociedades, incluindo um agravamento da desigualdade nos níveis de riqueza entre o Norte e o Sul do planeta, resultando em um empobrecimento de regiões que já enfrentam sérias restrições ao bem estar de suas populações, bem como um aumento no risco de conflitos por recursos naturais.
Neste aniversário de 70 anos do Doomsday Clock, o Comitê responsável por mover os ponteiros do relógio expressou seu pessimismo frente ao contexto global. Os dois principais vilões apontados pelo Comitê foram justamente os armamentos nucleares e as mudanças climáticas. Para a questão climática, apesar de algum esforço internacional no sentido de reduzir as emissões de carbono, principalmente através do Acordo de Paris, assinado no ano passado, as medidas adotadas ainda são insuficientes. Além disso, a postura política do novo presidente estadunidense Donald Trump, que já fez declarações negando a existência dessas mudanças climáticas, tem sido vista como alarmante pelos grupos atentos à questão, aumentando o pessimismo internacional de que políticas ambientais mais sustentáveis venham a ser implementadas.
Por sua vez, a questão nuclear mereceu destaque não apenas por uma estagnação nas medidas para o desarmamento, mas, sim, por uma deterioração do cenário internacional para o setor. A Rússia e os EUA, países que detêm os dois maiores arsenais nucleares do mundo, e que iniciaram um processo de modernização desses arsenais, apresentaram um nível crescente de tensão ao longo do último ano, algo que preocupa, mesmo que as chances de um conflito armado entre as duas potências sejam remotas. Também aqui a eleição de Trump entra no cômputo do Comitê, devido à sua postura aparentemente menos avessa ao emprego de explosivos nucleares do que a de seu antecessor.
Além disso, Trump indicou sua intenção de rever e possivelmente pôr fim ao acordo nuclear assinado com o Irã em 2015, o qual estabelecia restrições ao programa nuclear iraniano em troca da suspensão de sansões internacionais impostas ao país. A eliminação do acordo poderia levar o Irã, que tem cumprido todas as determinações de forma adequada, a retomar sua investida para a aquisição de armamentos nucleares.
Também a Coreia do Norte mereceu a atenção do Comitê do Bulletin of the Atomic Scientists em 2016. O país realizou dois testes nucleares, bem como inúmeros testes de mísseis, indicando avanços substanciais na sua capacidade técnica nos dois setores e sua intenção de dar continuidade ao desenvolvimento de armas de destruição em massa e veículos de entrega com alcance cada vez maior.
Mesmo diante desse cenário, o tom apocalíptico não deve ser levado longe demais. O Doomsday Clock é um símbolo do contexto, mas ele não significa que haverá um cataclismo nuclear a qualquer momento, ou que o mundo se tornará um grande deserto dentro de alguns anos. Seus ponteiros próximos à meio noite devem nos lembrar dos perigos que são reais e precisam ser tratados com seriedade, e também nos alertar de que a responsabilidade pelo futuro é compartilhada por todos os cidadãos e pertence a cada indivíduo: desde a responsabilidade de viver uma vida mais sustentável até a de acompanhar o que nossos representantes estão fazendo e reivindicar políticas melhores.
Raquel Gontijo é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), pesquisadora do GEDES, e professora de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).
Imagem: Clocked. By Laineys Repertoire.

Os primeiros dias de Trump e a questão israelense: Netanyahu está satisfeito?

O Primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o Ministro da Defesa, Avigdor Lieberman, aprovaram na terça-feira (24/01) a construção e planejamento de cerca de 2.500 novas unidades habitacionais na Cisjordânia, os chamados assentamentos. Em termos globais, foram aprovadas a comercialização de terrenos para a construção imediata de 909 novas casas, bem como a aceleração do planejamento nos comitês responsáveis para mais 1.642 casas.
De acordo com um comunicado de imprensa do Ministério da Defesa, a maioria das unidades está localizada dentro de blocos de assentamentos, enquanto cerca de 100 delas estão localizadas no assentamento de Beit El – que é apoiado pelo embaixador estadunidense em Israel e amigo pessoal de Donald Trump, David Friedman – e outros em Migron. No entanto, ao observarmos os locais planejados podemos perceber que a previsão de construção se estende para além dos atuais blocos de assentamentos.
Desde a eleição de Trump em novembro de 2016, os colonos e apoiadores da política de assentamentos em Israel (principalmente a direita política, representada pelo partido Likud) têm comemorado, esperando que a nova política externa de Trump apoie a continuação dos assentamentos e futura anexação total dos territórios ocupados. Todavia, uma hora após a divulgação do boletim de imprensa diário da Casa Branca nos Estados Unidos, quando parecia que a decisão de Israel de planejar e construir 2.500 novas unidades de moradia nos assentamentos seria ignorada, um repórter perguntou ao porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, qual a resposta da administração Trump a esse movimento. Para a infelicidade e decepção dos colonos, que estavam em euforia, Spicer não congratulou a construção dos assentamentos. No entanto, o porta-voz também não condenou tal decisão. Ele respondeu apenas que o presidente Donald Trump irá discutir a questão da construção de assentamentos com o Primeiro-ministro Netanyahu em sua reunião em Washington no próximo mês.
Poucos dias depois de Trump assumir o cargo, a impressão de que o presidente e seu povo percebem a questão Israel-Palestina como uma das mais sensíveis em sua agenda está se tornando clara. Nos dois briefings que Spicer realizou desde que Trump tomou posse no dia 20 de janeiro, ele foi questionado seis vezes sobre questões envolvendo o processo de paz entre israelenses e palestinos. Em cada caso, Spicer deu respostas lacônicas e fez tudo o que pôde para seguir com a exposição e avançar para o próximo tópico.
Questões envolvendo a temática Israel-Palestina também estiveram presentes em audiências de confirmação da seleção de Trump para o Secretário de Estado, Rex Tillerson, o Secretário de Defesa, James Mattis, e o próximo embaixador da ONU, Nikki Haley. Contrariamente aos discursos que ouvimos durante a campanha e como já havíamos abordado aqui no Eris, nenhum deles falava como um eleitor da direita religiosa israelense, nem mesmo como um eleitor de direita do Likud. Mattis disse que para ele a capital de Israel é Tel Aviv, Tillerson pontuou com uma afirmação fraca que a Resolução 2334 da ONU – que condena os assentamentos israelenses na Cisjordânia e exige o fim deles – não era "útil", e Haley adotou a solução de dois Estados e disse que apoia a política bipartidária de longa data que se opõe à construção de assentamentos.
Isso não quer dizer que não houve mudança na Casa Branca em relação aos assentamentos e à questão Israel-Palestina. Com Barack Obama, a decisão de construir 2.500 unidades habitacionais nos assentamentos teria levado a condenações públicas mais duras, o que não houve com Trump. Mas a realidade é que, ao contrário do entusiasmo inicial dos israelenses pró-assentamentos, Trump não vai brigar diretamente para que eles existam e aumentem.
A Casa Branca de Trump não acha que os assentamentos sejam legais, do ponto de vista do direito internacional, mas prefere discutir o assunto através de canais privados. A margem de manobra de Netanyahu em Washington sobre a Questão Palestina, sem dúvida, cresceu, mas está longe de ser a bonança que o lobby de colonos em Jerusalém estava sonhando. Com isso não é certo que sonhos de anexação sejam práticos. Pelo menos não neste momento.
O gabinete do Primeiro-ministro em Israel se recusou a responder na terça-feira (24/01) se Netanyahu tinha informado Trump da decisão de aprovar essa construção maciça nos assentamentos. No dia anterior (23/01), em uma reunião da facção do Likud na Knesset (parlamento), Netanyahu sublinhou aos parlamentares do Likud que um erro em relação ao Trump no próximo período poderia causar danos a Israel. Ele falou dos estreitos laços de confiança que ele e Trump têm um com o outro e advertiu contra ações impensadas que poderiam levar o relacionamento em uma direção negativa.
Depois de tais declarações, é difícil acreditar que Netanyahu surpreendeu o presidente estadunidense. Pode-se supor que ele explicou a Trump sua situação política em termos de pressão da direita e pediu alguma margem de manobra. Desta vez, ele conseguiu. Mas a margem de manobra não é ilimitada.
Em menos de duas semanas, quando Netanyahu chegar à Casa Branca, Trump estará esperando para ouvir como e o que Netanyahu pretende fazer para ajudá-lo a realizar o que ele chamou de "o negócio final" para acabar com a "guerra interminável" entre Israel e a Palestina.
Karina Stange Calandrin é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: White House. By Karen Neoh.

ERIS No. 14 – Dezembro / 2016

Artigos:
Trump e a segurança latino-americana: algo de novo no front?
Matheus Oliveira Pereira
Os "quatro Ds" de Jungamann e a exportação de armamentos no Brasil
Jonathan de Araujo de Assis
Os setenta anos do Unicef e a estreita relação entre crianças e conflito armados
Giovanna Ayres Arantes de Paiva
2016: Crise, polarização e a volta da História
Lívia Peres Milani
Acesse aqui todos os artigos.

2016: Crise, polarização e a volta da História

Em 2016 completaram-se 25 anos da queda da URSS e do fim definitivo da Guerra Fria. Contudo, o contexto internacional contemporâneo não poderia ser mais distante do previsto naquele momento. O início da década de 1990 foi um período de otimismo e mesmo euforia no cenário internacional, marcado por prospecções de expansão da democracia liberal e de maior cooperação entre os Estados. A derrota do socialismo real levou a um raciocínio de que a ordem internacional liberal se tornaria hegemônica e garantiria maiores possibilidades de cooperação internacional. Com o inimigo soviético derrotado, os Estados Unidos e a União Europeia começaram a voltar-se para as “novas ameaças” de caráter não estatal e não foram poucos os que anunciaram o desaparecimento da geopolítica. Uma das grandes narrativas da época, apresentada por Francis Fukuyama, previa o “fim da história”, entendida como a disputa entre modelos de organização social. Para Fukuyama, seria o início de um período de hegemonia liberal e que se distanciaria da disputa entre ideologias que marcou a Guerra Fria.
Um quarto de século depois, fica claro que tais previsões não se materializaram. Na verdade, mesmo naquele momento, o otimismo e a visão sobre a hegemonia liberal já eram fortemente contestados, o que se fortaleceu ao decorrer dos anos. Atualmente, seja no campo das disputas políticas internas, seja no que se refere às internacionais, não há dúvida de que a história e a geopolítica permaneceram. No plano externo, as tensões entre Rússia e Estados Unidos recrudesceram em 2016, ampliando uma tendência já clara desde o conflito na Ossétia do Sul em 2008 e da anexação da Crimeia em 2014. Esse ponto fortaleceu uma narrativa de “nova guerra fria”, através da qual alguns analistas parecem querer explicar o presente com lentes do passado. Embora a rivalidade entre Rússia e EUA tenha reaparecido, já não domina o sistema. Não há uma bipolaridade na qual os EUA e a Rússia são as únicas grandes potências, já que a China é, em muitos sentidos, um rival com maior capacidade de se contrapor aos EUA do que a Rússia. A China tem crescido economicamente de maneira importante, descolando-se das outras potências que apresentaram índices mais tímidos e tendo se tornado a maior economia do mundo. O país também aumentou sua capacidade de projeção internacional, assim como sua capacidade militar e tem investido fortemente em desenvolvimento tecnológico.
Além disso, a disputa entre modelos de organização social deixou de existir nos moldes da Guerra Fria e não houve um retorno do ideal comunista. O ano de 2016 foi marcado pela polarização política em âmbito mundial, por um avanço importante de partidos de extrema direita e pelo fortalecimento de uma narrativa anti-globalização e anti-imigração. Nesse contexto, os partidos e lideranças de esquerda tiveram participação bem mais tímida. Felizmente, tanto a direita quanto a esquerda contemporânea não questionam a democracia representativa e buscam chegar ao poder por meio do voto popular.
A tendência de polarização atingiu o centro do sistema internacional e dominou as eleições nos Estados Unidos. Em ambos os partidos surgiram figuras contrastantes, ambos outsiders da elite política, que se destacaram: Bernie Sanders e Donald Trump. O último tornou-se o candidato dos republicanos e de forma inesperada tornou-se o presidente eleito dos EUA. O discurso de Trump rompe com o politicamente correto, questiona o livre-comércio e os benefícios da globalização, mas principalmente aponta o outro como o problema. Não é fator menor Trump ter se apoiado em um discurso de trazer empregos de volta aos EUA, questionando os benefícios da internacionalização econômica. Assim, ganhou o discurso anti-globalização e o neoliberalismo como o conhecemos entra em crise, já que novas narrativas, novas lideranças e novos projetos políticos são demandados por diferentes grupos sociais no centro do sistema internacional.
O período de crise abriu um momento de polarização, mas forças progressistas perderam espaço em 2016 e o debate político deslocou-se à direita. O conservadorismo e o ódio ganharam espaço no ano que termina, fortalecidos por medos e anseios legítimos e pela falta de respostas por parte das forças progressistas. Assim, a expectativa é de instabilidade e as perspectivas de mudanças não dão maiores esperanças. Contudo, de pouco serve negar que as tendências à direita tem conseguido gerar importante mobilização popular. O que as forças progressistas necessitam é de um novo projeto para se contrapor e apresentar possibilidades de mudanças. Há necessidade de repensar a forma de comunicação, entender os anseios e expectativas das massas e dirigir-se a elas. Há que se reconhecer que a história não tem fim: sempre há pluralidade e discordância e é necessário compreensão em relação ao que pensa diferente. Afinal, um mundo de uma única narrativa é um mundo onde o contraditório é silenciado.
Lívia Peres Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Rèveillon 2013 By: Leandro Neumann Ciuffo

Os setenta anos do Unicef e a estreita relação entre crianças e conflitos armados

No dia 11 de dezembro, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) completou setenta anos. Esse órgão da ONU foi criado em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de prestar assistência emergencial às crianças que sofreram os impactos do conflito armado – como fome, doenças e falta de estrutura familiar. O aniversário do Unicef nos lembra que, mesmo setenta anos depois, ainda presenciamos um contexto de conflitos armados no qual as crianças têm que conviver com a violência.
A relação entre crianças e conflitos armados é estreita e muito anterior à Segunda Guerra. Em diferentes fases da história como na sociedade espartana, nas Cruzadas da Idade Média, na Guerra Civil Americana, na Guerra do Paraguai e na Primeira Guerra Mundial, já havia relatos de criança envolvidas diretamente nas hostilidades ou que enfrentavam as consequências da violência. Entretanto, somente no século XX – sobretudo após a publicação de documentos relevantes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre os Direitos da Criança(1989) – o tema ganhou maior repercussão internacional e o Unicef destacou-se como um órgão dedicado ao bem-estar das crianças.
De fato, muitos avanços foram conquistados desde 1946. O Unicef produziu diversos relatórios apresentando dados sobre as condições nas quais as crianças vivem e denunciando os principais problemas que elas enfrentam em todo o mundo. O órgão também desempenha a função de pressionar os Estados-membros da ONU a reiterar o compromisso com os direitos da criança. O Unicef ainda ampliou seu escopo de atuação e passou a abarcar – além da proteção da criança em conflitos armados – questões como sobrevivência e desenvolvimento infantil, educação básica e igualdade de gênero, crianças com HIV/AIDS, erradicação da pobreza extrema e fome, ensino primário universal, promoção da igualdade entre sexos, autonomia da mulher e saúde materna. Portanto, houve iniciativas para acompanhar a condição de vida das crianças e cobrar maior comprometimento dos Estados com a proteção da infância.
Porém, quando focamos mais em termos práticos, vemos que a violência gerada pelos conflitos armados continua atingindo as crianças de forma preocupante. Os danos aos quais as crianças estão expostas em um conflito são diversos: elas são utilizadas como soldados; perdem familiares e ficam desamparadas; sofrem com as instabilidades políticas e econômicas dos governos locais que, muitas vezes, não conseguem fornecer às crianças seus direitos mais básicos; sofrem com a violência deliberada que não poupa civis; são vítimas de abusos sexuais, físicos e psicológicos.
Na conjuntura atual, a proteção de crianças em conflitos armados é um assunto especialmente necessário e o trabalho do Unicef é ainda mais desafiador: o órgão tem que acompanhar uma pluralidade de conflitos armados intra ou inter estatais que se proliferam nas mais diferentes regiões do mundo e que envolvem atores estatais e não-estatais. Além disso, há uma preocupação não somente com a recuperação de crianças no pós-guerra, mas também com a proteção das crianças durante os conflitos armados. No leste de Aleppo, por exemplo, estima-se que 40% da população é formada por crianças. Quando ocorre um bombardeio em um local assim é quase inevitável que as crianças estejam entre as vítimas. Mesmo quando os ataques cessam, as crianças que sobrevivem deparam-se com a falta de infra-estrutura, perda de familiares e danos físicos e psicológicos. Ou seja, toda uma geração de crianças acaba sendo afetada pela ausência de condições básicas para seu pleno desenvolvimento. Quando as famílias que vivem em zonas de conflito tentam buscar melhores condições em outros países, as crianças também se encontram em situação vulnerável, pois ficam expostas a rotas de imigração perigosas.
O caso do menino sírio, Aylan Kurdi, que foi encontrado morto em uma praia da Turquia é um exemplo das dificuldades que as crianças enfrentam nessas situações. A imagem da Aylan repercutiu na mídia e despertou a atenção para os perigos que os refugiados enfrentam ao tentar deixar as áreas de guerra. Mais recentemente, outra imagem também de um menino sírio se espalhou pelo mundo: a foto mostra Omran Daqneesh coberto de sangue e poeira, após ser resgatado dos escombros de um bombardeio em Aleppo. Apesar de tais imagens chocarem a sociedade internacional, sabemos que essas não serão as últimas fotos de crianças em meio a catástrofes humanitárias.
Atualmente, o Unicef tem o papel de acompanhar as condições em que as crianças se encontram em meio aos conflitos, articular modos de protegê-las e registrar os abusos a que estão expostas. O fato de já existir uma legislação que protege as crianças durante as hostilidades – diferentemente do contexto da Segunda Guerra, em que essa proteção não era assegurada formalmente – faz com que exista uma pressão internacional mais forte para que elas sejam poupadas e protegidas. Assim como a Segunda Guerra foi um marco para a proteção dos direitos da criança, pois somente após esse conflito conferiu-se maior atenção à situação das crianças, os conflitos armados atuais também podem ser um símbolo da necessidade de repensar estratégias de apoio às crianças em contextos de guerras, de reforçar a fiscalização dos direitos que estão sendo infringidos constantemente e de incentivar a continuidade do trabalho do Unicef.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Menino com AK-47. By: Kevin Lafferty.