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A democracia permanece distante da política de poder das Forças Armadas

Eduardo Mei, Héctor Luis Saint-Pierre, Suzeley Kalil Mathias e Samuel Alves Soares* 

 

Texto originalmente publicado em Jornal da Unesp

 

A eleição do atual presidente do Brasil impulsionou análises segundo uma suposta diferença polarizada dos atores. Em pouco tempo foram apontadas “alas”, aqui uma ideológica, acolá outra neoliberal privativista. Entre ambas existiria um grupo racional e técnico, catapultado a um patamar mágico e infenso aos ditames das baixezas do fazer político pouco nobre e mesquinho.

Nomes de próceres das alas ideológicas e liberalizantes são bem conhecidos. A terceira ala foi ocupada pela corporação militar, sem que despontasse um ideólogo específico. A parcela racional e técnica foi mostrada pela grande imprensa como exercendo a condição do equilíbrio racional, em especial para controlar o histrião presidencial e conter arroubos inerentes a um despreparado beócio.

As alas desfilariam ao embalo dos ritmos “preservados” de procedimentos democráticos. Parcela considerável da opinião pública e da grande imprensa adotou esses marcos de forma apressada e acrítica. É possível analisar os processos e fatos recentes sob outra perspectiva.

Um ponto de partida é questionar se a própria eleição corresponde a um estatuto básico democrático, dimensão já razoavelmente considerada. Há outra possibilidade analítica, contudo, ainda pouco explorada. Foi estabelecido, sem mais, que as instituições armadas emprestaram sua imagem pública para referendar a eleição de um ex-militar de baixo calão e mobiliar o governo para dotá-lo de uma refundação política, capaz de decidir e agir afastado da sordidez dos usuais mecanismos político-partidários.

A fábula foi sendo engabelada com a contribuição de figuras como um astrólogo-filósofo, um ex-chanceler embevecido, uma ministra dos Direitos Humanos aturdida e outros prestidigitadores disponíveis. A eles coube reverberar a luta renhida contra um fantasioso ‘marxismo cultural’ e alertar para as ‘hostes comunistas’ afoitas e à espreita para aniquilarem valores ocidentais considerados inarredáveis.

O ‘partido militar’

Esse movimento veio a calhar para preservar as instituições castrenses, que jamais abandonaram o mantra do anticomunismo, do antiesquerdismo, de posições claramente antidemocráticas. Mais do que uma concepção de Guerra Fria obsessivamente prorrogada, o que orienta o “partido militar” é uma autopercepção de constituírem um poder soberano, preparado para definir, a seu critério e com seus valores, os momentos em que a excepcionalidade pode ser convocada para dirimir questões da esfera política, uma decisão que se desdobra para a definir quem são os amigos e os inimigos.

Na história política brasileira os inimigos estão claramente demarcados pelas campanhas contra populações pobres, negros, militares de baixa hierarquia. Recentemente, determinaram de forma explícita no Manual de Operações de Garantia da Lei e da Ordem os movimentos sociais e quilombolas como perpetradores contra uma ordem que os próprios fardados consideram como seu desígnio estabelecer.

Por imposição dos fardados, com apoio e conluio de lideranças civis, o artigo 142 da Constituição Federal estabelece para as Forças Armadas a garantia da ordem. Uma ordem que em um país com desigualdades dilacerantes mantém no limbo parcela considerável da população, considerados indignos de direitos mínimos. É esse artigo que fornece argumentos para os que consideram que aquele exercício soberano está orientado para “garantir os poderes constitucionais” e contra eles insurgirem-se a seu bel-prazer e quando considerarem oportuno.

Mais que partícipes

A tintura mais recente nas fardas é o pretenso preparo para a gestão pública, algo que não é novo na história política, pois remonta ao período do Império, considerando o elevado número de governadores e interventores militares. Agora, entretanto, recebem a alcunha de modernos gestores titulados em cursos adeptos do gerencialismo. De concreto, revelam o despreparo para a administração pública, o que de resto não lhes compete.

As sinecuras são ainda outro fator a explicar a participação de milhares de militares no atual governo, desvelando que o exercício do poder também se alimenta de vantagens pecuniárias. Dispositivos previdenciários diferenciados, para toda a corporação, adicionados das benesses para os que mobíliam ministérios, autarquias e fundações as mais variadas.

A serventia do fantoche na Presidência é que permite reforçar a concepção de que cabe aos militares refrear seus mais criminosos impulsos, como se o descalabro que ceifa vidas e a condição de o país ser considerado um pária internacional fossem alheios ao aparato de força, cuja sina é investir contra a nação estarrecida. Ao revés, torna-se crescentemente claro que os militares são, para além de partícipes do governo, os mentores e o seu pilar central.

Demissões no alto escalão

E bem recentemente há um abalo, efetivo ou aparente, na relação entre o governo e as Forças Armadas. O ministro da Defesa é substituído, assim como os três comandantes das Forças. De fato, essa é uma situação muito inusual e os pormenores do caso serão conhecidos no futuro. Por ora, e seguindo a abordagem analítica aqui proposta, robustece o argumento de que as Forças, em especial o Exército pelo seu peso político, agem com muita desenvoltura, ou mais precisamente, com autonomia. Publica-se que o presidente definiu os nomes, porém as evidências atuais são pouco críveis que assim tenha sido.

O atual comandante do Exército, em entrevista largamente divulgada dias antes das mudanças na estrutura de comando das Forças, havia indicado a forma como a crise da Covid-19 tem sido conduzida na instituição. Apenas corroborou o que o próprio Exército apresentou no início da crise, em 2020. Em estudo elaborado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército, as tendências da pandemia e as formas mais eficazes para o seu enfrentamento estavam claramente indicadas no documento, convergente, por exemplo, às orientações da Organização Mundial da Saúde. Ficou disponível por poucos dias e foi retirado do site do referido Centro. Ao revés, o governo estabeleceu uma linha de ação muito diversa e os resultados da necropolítica foram sentidos em pouco tempo.

O comandante do Exército era justamente o general que conduzira ações na contramão daquelas definidas pelo governo , cujo ministro da Saúde era então um general da ativa. Por ora nota-se que as instituições militares, outra vez, tomam as decisões e reafirmam sua autonomia política. Reside neste ponto uma contradição profunda. Trata-se de um governo militar-bolsonarista, mas não significa que os militares detenham completo controle das ações. Os movimentos ultraconservadores e a extrema direita não possuem uma gênese exclusivamente militar, ainda que segmentos internos às corporações os reforcem.

O espólio militar é, portanto, muito grave. Para o interior das instituições militares parecem ter cumprido os protocolos mais eficazes para debelar a pandemia. Registre-se, entretanto, que ainda não há evidências suficientes para sustentar essa versão. De todo modo, caso confirmado, e com um Ministério da Saúde militarizado a conduzir de forma criminosa as ações relativas à segurança sanitária, caberia explicar o que levou a tratamento tão diferenciado para o chamado público interno e para a sociedade brasileira como um todo.

Imagem de afastamento da política

Estes eventos serviram para propagar um afastamento do governo ou, mais propriamente, uma forma de reafirmar que constituem uma instituição de Estado e não de governo. Recepcionar e difundir a visão de que as Forças Armadas estão apartadas de Bolsonaro é funcional para o projeto militar mais amplo, de permanência no poder, bem como de não serem responsabilizadas pelo desastre que o governo causou.

A política de poder é o que explica os movimentos das Forças Armadas, por vezes aparentemente contraditórios. Não houve retorno aos quartéis. É permanente esta condição, que na atual fase conjuga-se ao exercício do governo. O saldo final é duplamente assustador. Por um lado, a debilitação da Defesa, já que as armas se voltam para nacionais de específico espectro, os deserdados e os que lutam contra a ordem discriminatória estabelecida. Por outro, a terrível e inimaginável situação de milhares de mortos pela incúria na condução insana da política sanitária. A responsabilização da instituição militar há de vir, caso restem esperanças na justiça humana.

E a democracia permanece nostalgicamente distante enquanto o garrote autoritário é tensionado pela política de poder das Forças Armadas.

 

 

* Eduardo MeiHéctor Luis Saint-PierreSamuel Alves Soares e Suzeley Kalil são professores do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp (FCHS), câmpus de Franca, e pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes).

Imagem: Cerimônia aos generais promovidos. Por: Alan Santos/Flickr/Palácio do Planalto.

Arrumando a casa

Ana Penido*

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.

 

Existiam dois grandes problemas nas salas do Planalto. O primeiro, Ernesto Araújo. Sem nenhuma sustentação política, exceto o olavismo. Para setores importantes na base do governo, como as forças armadas e o agronegócio, o ex-ministro já poderia ter caído faz tempo.

O outro grande problema na sala não incomodava tanto o presidente, mas incomodava muito as forças armadas, e passou a perturbar também a turma da Faria Lima – o general Pazuello. Isso sem mencionar a insatisfação popular com a falta de vacinas, a fome, e as mortes se avolumando.

Fora da sala, ressurgiu um elefante: o STF julgou Lula inocente. O ódio ao Lula unifica de A a Z, e reaviva a natural aliança entre militares e Moro.

Bolsonaro reacomodou interesses, dando uma arrumada na casa, e militares iniciaram uma “Operação Limpa Lambança”. Voltarei a isso. Por enquanto, vejamos quais posições Bolsonarou ganhou:

  • Atender ao Centrão: será viabilizado através dos ministérios da Saúde e de Governo, e, principalmente, através da enorme margem para ementas parlamentares que ficou no orçamento aprovado. São concessões, mas a chave das nomeações fica na Casa Civil, na qual Bolsonaro manteve seu fiel general Ramos (que internamente, é mau visto). O Centrão não ganhará espaço no MD, na AGU e nem no Itamaraty. Atendeu parcialmente.
  • Atender a “Famiglia”: controlará o Ministério da Justiça (e as interlocuções com as Polícias Militares). Enquanto salvam o pescoço de quem gostam, seguirá o uso da Lei de Segurança Nacional, acelerará o PL contraterrorismo e ainda mantém a polêmica sobre a interpretação do artigo 142 viva.
  • Atender às Forças Armadas Brasileiras (ffaa) e entregar Pazuello: justiça seja feita, Bolsonaro tentou propor quarta estrela, ministério, alocação em outras pastas ou outras saídas honrosas para o colega, mas nada colou. Então, Bolsonaro resolveu mexer nas pastas de “dentro de casa”. No plano macro, dos diversos segmentos que sustentam o governo, o local onde é mais fácil para o presidente movimentar uma peça é o Ministério da Defesa, porque seria substituir alguém de um segmento por outro do mesmo segmento na base de composição política do governo (mesmo jogo no Itamaraty).
  • Atender ao seu núcleo político nas ffaa: Braga Netto, desde a intervenção militar no RJ, tem a ficha dos envolvimentos políticos das milícias. Pensa num rabo preso… Ramos, seu braço direito, segue no controle das nomeações e do governo. Chama a atenção que mudanças no GSI não foram sequer cogitadas (e que, enquanto o circo pegava fogo, o general Heleno estava com o desembargador Thompson Flores).
  • Atender os neofascistas: aqui, na realidade, ele só deu uma agitada por causa do 31 de março. Com militares ou sem militares, a turma adora a data, e Bolsonaro mostrou TIMING POLÍTICO. Além disso, eles vinham perdendo espaço no governo, e estavam insatisfeitos.

ISSO NÃO É UM GOLPE. Bolsonaro não tem apoio internacional para isso, não há grave situação de desestabilização interna (mesmo com mais de 317 mil mortos e o preço da cesta básica), não tem apoio da camada de cima (mesmo com a cartinha da Faria Lima, os estudos de cadeias de valor na área de energia e agronegócio, por exemplo, não apontam para perdas), e não tem da imprensa.

Como apontamos desde o início do governo, as ffaa estão contentes por voltar ao poder através de eleições. Mesmo em 1964 cuidaram de construir uma fachada normativa democrática. AS FFAA NÃO SERÃO AS PROTAGONISTAS DE UM AUTOGOLPE NO BRASIL, O QUE NÃO QUER DIZER QUE ELAS SEJAM MAIS DEMOCRÁTICAS QUE BOLSONARO.

Um cenário mais provável de golpe é, caso seja necessário e em outro momento, algo como a via Boliviana, com as polícias militares (PM) fazendo o trabalho sujo público e depois as ffaa vindo salvar a nação e arrumar a casa.

Daí a importância da carta dos governadores relatando incitação para motins, o desenrolar positivo das crises da PM na Bahia e da Guarda Municipal em Juiz de Fora, e as informações da inteligência da PM de SP que implicaram em uma mudança de residência do governador Doria.

Sem números exatos, são 411 mil PMs, 431 mil vigilantes armados, e as Guardas Municipais que, em 19 das 26 cidades onde existem, portam armas de fogo. Além disso, mesmo contra pareceres do Exército, as regras de comercialização de armas e munições vêm sendo flexibilizadas pelo presidente.

Essa é a variável principal que torna as eleições de 2022 distintas das anteriores.

“Operação Limpa Lambança”

Nos últimos tempos, as insatisfações militares vêm sendo depositadas no STF. Com a absolvição do Lula, a caserna em geral ficou indignada. Não estão insatisfeitos com Bolsonaro. As nomeações em pastas seguem, e as conquistas pra carreira também, única com aumento salarial em 2021.

Mas as ffaa estavam insatisfeitas com a exposição das suas entranhas que o Pesadelo na ativa e no Ministério da Saúde provocava. Tentaram fazer com que ele fosse pra reserva usando da sua coerção social, mas não funcionou, e Pazuello seguiu na ativa (graças à nossa legislação absurda, ele podia tomar essa decisão individualmente se quisesse). Bolsonaro gostava da fidelidade do seu general Ministro da Saúde, mas cedeu para que ele saísse. Entretanto, o que fazer com esse ENORME BODE QUE CONTINUOU NA SALA?

No final das contas, o bode virou boi de piranha, e enquanto isso, as ffaa ganham tempo para rearrumar a casa. O TIMING DAS MUDANÇAS PRAS FFAA também não é ruim.

De toda maneira, algumas cadeiras girariam com as promoções dos novos 4 estrelas em 31 de março e alguns comandantes completando dois anos nas tarefas, indo pra rotação. Essas provavelmente eram pautas sendo tratadas com o presidente, o ministro e as ffaa na última quarta, e entre o ministro e os comandantes na sexta.

Por que sobrou pro general Fernando Azevedo? O que mudou de sexta pra segunda? Vejamos:

  1. Interessa aos militares participar das boquinhas mil do governo, mas não interessa participar de intervenção para controlar motins policiais;
  2. Bolsonaro sentiu que as FFAA tentam novamente (dizemos novamente pois é presente em todas as declarações desde 2018 o mantra das instituições de Estado) o descolamento retórico (lockdowm interno, poucas mortes, Pujol caladinho diante do 31.03 e do Lula livre) e cobrou a fatura. Se querem ganhar tanto no governo, que fiquem com o ônus também, ainda mais em um momento de isolamento;
  3. Pelos dados disponíveis, Bolsonaro pediu o cargo. A nota em tom moderado mostra que Azevedo sabe que o governo “pode ser uma bosta, mas é deles”.

Um palpite: decretar estado de sítio não cola. Um autogolpe com as ffaa na cabeça também não. Uma alternativa soft ao estado de defesa, estado de sítio, intervenção federal e estado de calamidade pública parece estar sendo construída.

O deputado major Victor Hugo propôs na última quinta-feira (25) um PL para regulamentar o que seria decretar Mobilização Nacional. A iniciativa partiria do presidente, subsidiado por um comitê de 10 pessoas, que pela atual composição ministerial, contaria com 4 membros das ffaa e 1 delegado da PF.

A crise sanitária é, nesse sentido, uma oportunidade. Diferente do estado de sítio, o decreto de mobilização não precisaria ser aprovado pelo Congresso. No dia 11 de março, o Ministério da Defesa aprovou seu novo Manual de Planejamento para Mobilização Militar.

O Partido Militar segue hegemônico no governo, mesmo com as mudanças. Bolsonaro tem o apoio militar, aliás, o único partido que sustenta o seu governo. Mas acuado por outros setores, Bolsonaro poderia até pressionar por comprovações de fidelidade, declarações públicas.

As forças seguiriam o mantra retórico desde o início do governo. “Somos instituições de Estado”, mesmo comprometidos até o último fio de cabelo com o governo. Mas daí a uma ruptura entre fardados e governo, falta muito.

Pra entrar Braga Netto, seria provável que Pujol saísse, não é uma regra, ou tradição, mas existem egos e ele é mais antigo (a tradição deveria ser um ministro civil, mas aí nem vale a discussão nesse momento). Daí Bolsonaro matar dois coelhos com uma machadada.

Mas a saída dos demais comandantes em solidariedade é inédita desde o fim do regime dos generais e denota crise.

Braga Netto entra fragilizado, mas a escolha do seu nome aponta que Bolsonaro estica a corda, mas nem tanto, ou teria nomeado um ministro civil. A tendência seria a retomada da normalidade, e para isso, a escolha dos novos comandantes deveria recair sobre os mais antigos de cada força, mas a crise ainda é presente, e de desenlace incerto. Quanto se trata de Bolsonaro, o método é o caos.

Perguntas incômodas que a imprensar deveria fazer

  1. Se Pazuello incomodava tanto, por que Pujol não o convocou de volta? Por que permanecem militares no Ministério da Saúde? E no restante do governo, particularmente os da ativa?
  2. Se são técnicos, por que não adotaram para o governo as recomendações do documento do CEEx? Quem mandou tirar o documento do ar? Foram feitos novos documentos? O Exército adotou internamente as recomendações do documento, se configurando como uma ‘nação dentro da nação’? Isso não configura insubordinação ao presidente?
  3. Os militares cederam espaço para o centrão no governo? Além das cabeças dos ministérios e autarquias, como estão os corpos? Foi feito algum levantamento posterior ao do TCU, que já completa quase um ano?
  4. Quais as informações sobre as milícias cariocas que Braga Netto levantou enquanto interventor federal? Elas envolvem em alguma medida o presidente ou seus familiares?
  5. Como a troca do ministro da Defesa se articula com a troca no ministério da Justiça e Segurança Pública?
  6. Quais são os novos 4 estrelas das forças armadas? O que foi publicado no último mês no Diário Oficial da União? Que tal usar menos informantes em off, e noticiar mais o que de fato as Instituições estão fazendo?
  7. As manifestações favoráveis a um golpe militar ou ameaçando outros poderes feitas por militares da ativa em redes sociais tiveram algum objetivo? Houve alguma punição, mesmo que apenas internamente? E nas polícias? E as manifestações de rua, inclusive na porta de quartéis desde 2020, pedindo por golpe militar, tiveram algum desenlace, inclusive judicial?
  8. O que será feito diante da carta dos 16 governadores denunciando incitação à motins nos seus estados?
  9. No último mês, setores militares receberam menos incentivos do presidente? Houve mudança no salário, orçamento, regalias, nomeações ou outras questões que pudessem levar a uma insatisfação na caserna com o presidente?
  10. Nossa legislação protege a democracia brasileira da intromissão política das FFAA? Ela protege as próprias FFAA? O que acontece se um comandante não autorizar a ida de um subordinado para o governo? Isso já ocorreu?
  11. Pazuello pode ter se tornado o boi de piranha público, mas o que fazer com o enorme bode que continua na ativa e na sala do Alto Comando do Exército? De quem foi a ideia de promover o Pazuello, um Intendente, a 4 estrelas? Quem vetou?
  12. Qual a base de sustentação do presidente? Quem hegemoniza essa base de sustentação? As trocas ministeriais mudam essa situação ou apenas agitam a superfície?
  13. Quem serão os novos nomeados para o comando e para o Ministério?
  14. Para a demissão do ministro da defesa, qual foi a gota d’água? Pediu a cabeça de algum subordinado? Não topou um endurecimento? Não topou dar alguma declaração? Como quem tem a resposta pra essa pergunta é apenas o ex-ministro e o presidente, não vale a pena investir muito nela. As declarações de outros atores são especulações ou interpretações.
  15. Qual papel os militares devem ter no regime democrático brasileiro? Em que medida a atual situação do país é tributária dos 21 anos de ditadura? Outra condução da pauta sobre a Memória, Verdade e Justiça teria alterado esse cenário?

Síntese

A politização das ffaa é ruim para a política e para elas mesmas. Elas se mostram politizadas quando tuítam, quando compõem o governo, e quando saem dele, de forma discreta (Azevedo) ou estridente (Santos Cruz).

Agora é o exemplo perfeito: se saem, foi por insubordinação. Se ficam, são golpistas. A politização expõe as ffaa

A tragédia social em que vivemos é também responsabilidade das ffaa: cloroquina, privilégios diante dos demais trabalhadores brasileiros, desnacionalização na infraestrutura, ministro da ciência que destrói universidades, Almirante que permite apagão, etc, etc…

Com o Bode isso era mais nítido. Transformar ele em boi de piranha não resolve o problema. Se, de fato, as ffaa querem limpar a sua barra, têm que desembarcar em peso do governo, aos milhares, assim como o ocuparam.

Não acho que isso vá ocorrer. Terão que ser tirados, com eleições e medidas legislativas.

Bolsonaro manterá sempre a ameaça de golpe/endurecimento. Ter medo disso não adianta. Há que se antecipar cenários, travar a batalha das ideias e, essencialmente, dialogar com a população sobre as razões da tragédia em que nos encontramos.

NOSSOS MORTOS, DE ONTEM E DE HOJE, NENHUM MINUTO DE SILÊNCIO, MAS TODA UMA VIDA DE LUTA.

* Ana Penido é pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (GEDES – UNESP) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Imagem: Novos comandantes das forças armadas. Por: Marcos Corrêa/ Flickr/ Palácio do Planalto.

As escolas cívico-militares

Ana Penido e Suzeley Kalil Mathias*

Texto publicado originalmente do blog A terra é redonda

 

O objetivo deste texto é tecer algumas considerações sobre o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído pelo Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. O PECIM constitui a materialização das promessas de campanha de Bolsonaro, cujo sucinto Programa (um power point, na verdade) indicava de maneira vaga que a educação precisava de “novos conteúdos e métodos, sem doutrinação e sexualização precoces”, objetivando reverter os “péssimos resultados” diante dos “investimentos adequados”.

Para lograr este objetivo, dividimos o texto em curtos tópicos, dedicados a cada uma das ‘promessas’ contidas no PECIM, além dessa introdução, na qual se localiza o tema e sua problemática, e as considerações finais, quando resumimos nossas impressões. As fontes do trabalho são fundamentalmente a legislação disponível e material jornalístico, confrontados com algumas parcas análises sobre o processo de militarização do ensino brasileiro,[i] aqui representado pelo PECIM.

A educação no Brasil é regulada pela Constituição Federal e pela Lei 9394/1996, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A Constituição indica a educação como direito de todos e dever do Estado (art. 205), determinando, entre outros quesitos “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Art. 206-VI). Sobre este aspecto, a LDB estabelece que:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Grifamos ‘sistemas de ensino’ para determinar do que estamos falando. São regulados pela LDB (Art. 8), três sistemas de ensino: o sistema federal, os sistemas dos Estados e do Distrito Federal e os sistemas municipais. Além desses, e que todos nós conhecemos, se somam outros três sistemas expressamente excluídos da alçada da LDB (Art. 83), o da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, cada um com sua própria lei de ensino. Uma rápida consulta às respectivas leis, mostra que nenhum dos sistemas de ensino militar menciona “gestão democrática”. A isso voltaremos.

Ter seu próprio sistema de ensino foi uma prerrogativa que os militares garantiram para si mesmos ainda durante o Congresso Constituinte de 1988, reflexo de tantos anos de poder das corporações. As escolas militares têm outros métodos de ensino, outro material pedagógico, outro currículo, etc. E, principalmente, têm um objetivo diferente da emancipação através do conhecimento: seu objetivo é a disciplina necessária à guerra, que pode ser resumida pela doutrina dos três Ds: “não duvidar, não divergir, não discutir” (Rattembach, 1972). Em outras palavras, se o trabalho pedagógico exige disciplina, esta é um meio “consciente e interativo” na educação civil, enquanto que nas escolas militares a disciplina funciona como “um fim em si mesmo” (Alves; Toschi, 2019, p. 640).

Deve-se ter em conta também que o projeto de militarizar o ensino no Brasil não é novo. Pelo contrário, vários especialistas mostram que pelo menos desde a proclamação da República, as forças armadas fornecem projetos tanto de conteúdo (a introdução de disciplinas como educação física é o exemplo mais conhecido) e método (Ribeiro; Rubini, 2019), quanto de modelos administrativos (Mathias, 2003). Acrescente-se que o neoliberalismo e o conservadorismo em ascensão no mundo e especialmente no Brasil, combinado com o aumento da violência e da criminalidade é terreno fertilizado para o avanço de respostas mecânicas das autoridades (Martins, 2019), como o é a militarização das escolas.

Ditas essas breves palavras sobre as escolas para militares, encaminhamo-nos para o objeto desse curto artigo: o projeto das escolas cívico-militares. Como informado, por meio do decreto no 10.004, instituiu-se o Programa Nacional das Escolas Cívico-militares (PECIM). Embora o documento afirme que a adesão dos entes federativos ao PECIM seja voluntário, já no discurso de lançamento do projeto, Bolsonaro afirmou que é preciso impor a militarização às comunidades, pois pais que não aceitam a militarização seriam ‘irresponsáveis’, não sabem o que é melhor para seus filhos.[ii]

Outro elemento que cabe destacar deste mesmo discurso é sobre a novidade do PECIM, alardeada pelo MEC e pela propaganda oficial, mas ausente da fala presidencial que, ao contrário, mostra que o PECIM está lastreado nos projetos de ‘militarização’ das escolas públicas promovidas nos diferentes entes federativos por projetos de parceria com as secretarias de segurança pública, com o emprego das polícias militares e corpos de bombeiros. Assim, a única novidade do PECIM, como admite Bolsonaro, porque exalta as escolas sob gestão das PMs, é a inclusão de membros reformados das forças armadas para aturem nas escolas.

A primeira escola civil militarizada (gestão da PMGO) foi inaugurada em 1998 – apenas dois anos depois da LDB –, em Goiânia (GO), espalhando-se por 22 estados brasileiros de modo acelerado, chegando a 120 escolas em 2018, 55 das quais em Goiás. Com vinte anos de experiência, houve tempo mais que suficiente para que tais escolas mostrassem se e quanto são melhores que escolas públicas civis. No entanto, o que especialistas têm indicado é que as escolas civis militarizadas cumprem suas promessas apenas na aparência, repetindo experiências do passado (Ribeiro, Rubini, 2019, 762), além de confrontarem preceitos legais, inclusive constitucionais (Martins, 2019, 697). Conforme aponta a experiência do Amapá, “(…) a novidade do modelo aqui analisado só se sustenta do ponto de vista do arranjo institucional que transferiu a gestão da escola pública civil para [policiais] militares, constituindo-se assim, um modelo híbrido. Do ponto de vista da Pedagogia não há qualquer novidade (…) (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 763). Nosso objetivo aqui não é estudar tais experiências estaduais. No entanto, com o fito de apresentar melhor o próprio PECIM, utilizaremos as avaliações disponíveis sobre as experiências das escolas civis militarizadas.

Segundo o portal do MEC, 15 estados e o Distrito Federal, e 600 prefeituras manifestaram interesse em participar do PECIM. Analisadas as demandas, foram escolhidas 54 para a chamada “edição piloto”. Dessas escolas, metade delas terão participação de membros das forças armadas, concentradas em 12 estados (Acre, Amapá, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins); nas outras 27, serão as corporações policiais (PM e Bombeiros) que cederão seus soldados e o governo federal repassará os recursos.[iii]Pode-se notar, portanto, que diferentemente do prometido, é bem pouco distinta a ‘nova’ escola cívico-militar daquelas implementadas por iniciativa dos próprios governos estaduais.

Considerando, portanto, esta introdução ao tema, elencamos algumas outras questões – o que chamamos antes ‘promessas’ – que imputamos muito importantes na concepção e implantação do PECIM:

O PECIM parte de um diagnostico equivocado da realidade

Desde antes de chegar à Presidência da República, Bolsonaro e sua equipe afirmavam, relativamente à educação, que o principal problema era a “doutrinação nas escolas”, que afastariam o estudante do civismo necessário à cidadania – daí o grande apoio que grupos como o “Escola sem Partido” deram à campanha do capitão. A falta de civismo alimentava ainda mais a violência do entorno, especialmente nas escolas da periferia, expostas ao tráfico de drogas, gerando indisciplina e trazendo o crime para o interior das escolas. A falta de segurança, portanto, é apresentada como a grande justificativa para a criação das Escolas Cívico Militares (ECIM). Embora muito explorada pela mídia, os poucos estudos existentes não revelam uma relação causal entre militarização da escola e redução da violência. Por exemplo, para Alves e Toschi (2019, p. 642),

[A]pesar de Goiás estar no topo do processo de militarização das escolas públicas, possuindo, em abril de 2019, 54 escolas sob a responsabilidade da Polícia Militar (PM), com 61 mil alunos (…) lamentavelmente, o estado ainda figura nas páginas policiais como um estado com altos índices de violência, amargando dois assassinatos de coordenadores de escolas estaduais no curto espaço de quatro meses (abril e agosto de 2019) (…)

Pode-se dizer que a promessa da escola militar não é reduzir a violência na comunidade na qual a escola se encontra, mas permitir um ambiente escolar alheio à violência juvenil, organizando-o de forma a construir um futuro cidadão ‘de bem’. Todavia, se a imposição da ordem acontece apenas no interior das escolas, o que ela faz é escamotear e até alimentar maior violência contra os próprios estudantes, que precisam viver em dois mundos repressivos sem poder expressar-se. Isso, no melhor dos casos, criará um cidadão ordeiro, mas também desajustado.

O PECIM é enganoso especialmente com os professores

Quando professores ouvem falar em escolas cívico-militares, de imediato os profissionais da educação, em especial as professoras do ensino fundamental, pensam em seus pares dos colégios militares. Naquele ambiente, a remuneração é mais alta e é paga em dia, os profissionais têm um plano de carreira e condições de trabalho melhores, não precisando dobrar ou às vezes triplicar a jornada de trabalho para obter uma renda mensal digna. Diante desse cenário material para o exercício docente, sabemos que alguns professores até relevariam os constantes relatos de assédio moral e censura dos profissionais concursados nas escolas militares, em busca de melhorias na remuneração. Entretanto, o PECIM não altera nenhuma das características materiais da profissão e, como informa o MEC, sequer a verba reservada para o projeto – R$ 54 milhões – será aplicada para melhorar materialmente a realidade escolar, pois a maior parte desse montante irá para o pagamento do pessoal militar que atuará nas escolas.[iv]

Outra crença alimentada entre os professores é que as ECIM serão muito mais seguras, inclusive no seu entorno, pela presença dos policiais, bombeiros e militares que ali atuarão. Mais uma vez, é um engano. Conforme estabelece o próprio decreto, os militares atuarão na gestão administrativa, didático-pedagógica e educacional, e não na segurança da escola. Ademais, como mencionamos acima, militarizar as escolas não leva necessariamente à redução da violência em seu entorno.

O PECIM ilude a comunidade, especialmente a família

É conhecida a crescente dificuldade de envolvimento da comunidade escolar na rotina da escola, e que essa é uma questão que não se resolve apenas culpando uma pretensa “falta de vontade” de uns ou de outros. O projeto ilude a família ao oferecer a ideia de que questões muito complexas do ambiente escolar serão resolvidas por meio da militarização.

Dois exemplos devem bastar para mostrar este engodo. O primeiro deles, a temática das drogas. Para muitos pais, preocupados, a escola militarizada será capaz de “salvar o filho do mundo das drogas”. No entanto, um corte de cabelo curto e a proibição de usar brinco não farão isso, daí o engodo. São necessárias políticas públicas de saúde, educação, e trabalho que permitam ao jovem uma compreensão crítica sobre a própria realidade que o cerca, permitindo que ele tome decisões informadas inclusive sobre drogas, que é um tema de saúde a ser tratado no ambiente escolar, e não de segurança pública. Outro exemplo é a questão LGBT. Para muitos militares, a orientação sexual e o feminismo destroem as famílias, e ambos são culpados pelo esfacelamento moral da sociedade. Será mesmo? Impedir que as/os jovens expressem a sua sexualidade só faz com que eles a pratiquem de forma desinformada ou escondida, o que os expõe a toda natureza de vulnerabilidades, particularmente psicológicas e sexuais.

Cabe lembrar que, diferente das escolas em geral, os colégios militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola, diferente das escolas territorializadas, que funcionam nos diversos bairros da cidade. Estudos preliminares com as escolas civis militarizadas revelam que estas têm passado por um processo semelhante, se ‘elitizando’ (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 753) porque, além de cobrarem mensalidades, reservam vagas para os filhos de policiais, bombeiros e professores de escolas semelhantes, o que reforça a ideia de homogeneidade.

Os colégios militares são os melhores, portanto, devem ser o exemplo

Eis outra falácia. Para quem frequenta o ambiente escolar, sabe que a grande questão que diferencia o ensino da escola pública em geral, do ensino nos institutos federais e escolas de aplicação é o investimento por aluno. O investimento por aluno dos colégios militares é quase três vezes maior que o do ensino público civil. Ainda assim, têm resultados inferiores aos institutos federais, que também recebem mais verbas. Em outros termos, se fosse para tomar alguma escola como exemplo, seriam os institutos federais. Segundo os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), avaliando as áreas de Ciência, Leitura e Matemática, se considerássemos apenas os resultados da Rede Federal, o país ocuparia a 11a posição entre 70 países em Ciência, a 2a posição em Leitura, e superaria a média do Brasil em mais de 100 pontos.

Sobre investimentos, pesquisa realizada periodicamente pela OCDE que no ano de 2019 compilou dados de 36 países, mostra que o investimento em educação no Brasil é maior que a média do apurado (4,2% contra a média de 3,2%). Embora mencionando outra fonte, a ONU, o programa eleitoral do então candidato à presidência pelo PSL, confirma este dado. No entanto, esquece de ler o restante da pesquisa, pois esta contraria os dados: conforme indica a OCDE, o Brasil investe muito menos em educação por aluno, sendo 56% menor no ensino fundamental e aproximadamente 64% no ensino médio. A diferença é melhor visualizada na tabela abaixo:

Gasto por aluno por nível de ensino (em US$)[v]

Fonte: Confecção própria com base nos dados de G1, 10 de setembro de 2019.

Soma-se a isso que a experiência mais próxima ao projeto do atual governo, as escolas civis militarizadas, não apresentam maiores índices de aproveitamento nas avaliações, embora, como mencionamos, existam há mais de 20 anos. Pelo contrário, a própria ONU expressou preocupação com o avanço destas experiências no Brasil.[vi] Na verdade, o único exemplo fornecido pelas escolas civis militarizadas, e não apenas as públicas, é de ser um ótimo negócio. Tais escolas “(…) representam uma mescla de interesses públicos e privados, entre os interesses das secretarias de educação e de segurança pública que atuam sobre a escola pública.” (Alves; Toschi, 2019, p. 641).

O projeto desvia recursos da educação para o Ministério da Defesa

De fato, essa não é uma novidade. Tem sido comum, infelizmente, o desvio dos recursos destinados constitucionalmente para a educação. Nesse caso, ocorre o mesmo. Recursos do Ministério da Educação são descentralizados para o Ministério da Defesa para o pagamento dos militares da reserva contratados. O decreto deixa claro que os militares não são profissionais da educação. Eles mantêm seus vencimentos como militares da reserva e acrescentam a eles o adicional pelo PECIM. Em um país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. Além disso, é comum ter nos quadros escolares um alto número de profissionais contratados, e não concursados. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, ou como melhorar a carreira, com a consequente elevação salarial, dos profissionais da educação, já muito defasada em relação as demais.

Conforme divulgado pelo MEC, entre os critérios utilizados para excluir estados e municípios do processo de adesão ao PECIM estavam aqueles “(…) com número baixo ou sem militares da reserva residindo na cidade”.[vii] Ora, se a proposta do PECIM é melhorar a educação, especialmente nas violentas periferias, como explicar que esta ou aquela localidade, a despeito de responder positivamente a todos os critérios de adesão seja eliminada do programa apenas por não ter militares residentes? Assim, o próprio governo admite que o maior montante do dinheiro está vinculado ao pagamento de militares e policiais que participarão do projeto.

Pode-se visualizar melhor como as verbas são usadas para dar salário a quem já tem por meio dos números disponibilizados pelo próprio MEC, mas não sem resistência. Via Lei de Acesso a Informação, o MEC foi obrigado a detalhar a aplicação dos recursos da etapa piloto. Em resposta, informou-se que a maior parte deles tem como destino o pagamento dos militares que atuarão nessas escolas[viii].

Pelo projeto, cada escola de 1000 alunos receberá 18 oficiais da reserva para atuarem como docentes e eles (e somente eles) receberão um adicional de 30% sobre seus vencimentos e mais décimo-terceiro, férias, transporte e alimentação. Levando-se em consideração que o soldo-base (salário) de um militar na fase intermediária da carreira (capitães e majores) gira em torno de R$ 9.200,00 a R$ 11.200,00, sem contar os adicionais e gratificações, podemos fazer uma conta simples e chegar aos seguintes números: cada “oficial-professor” receberá, na média, em torno de R$ 3.000,00 a mais por mês– salário superior ao da maioria absoluta dos trabalhadores da redes estaduais do país[ix] – e custará aos cofres públicos cerca de R$ 45.000,00 por ano.

Considerando-se a duração projetada para o PECIM, ainda que mantendo o tamanho atual, devemos multiplicar por 18, o que representa um gasto de R$ 810.000,00 por escola, só em pagamento dos militares que atuarão nessas escolas em desvio de função – não serão empregados nem na defesa (caso dos militares) e nem em segurança (caso dos policiais e bombeiros). Tomando o orçamento do projeto, retirando o pagamento de pessoal, restaria, em média, R$ 200 mil por ano para a própria escola gastar. Para uma unidade escolar com mil alunos, o saldo final é muito pequeno, talvez suficiente para uma reforma em quadra esportiva, por exemplo. E detalhe: mesmo com a pandemia e as escolas paralisadas, muitos desses militares foram contratados no ano passado e estão recebendo normalmente.

Então, para que servem as escolas cívico-militares?

Em primeiro lugar, elas servem para fazer proselitismo político e alimentar uma base conservadora, inclusive alguns neofascistas, que elegeram o presidente em virtude da sua disposição em usar a força, inclusive das armas, para resolver todo e qualquer problema. Em segundo lugar, elas passam uma mensagem de patriotismo, como se este pudesse ser garantido pela maquiagem verde amarela nas escolas. Esta foi a mesma pretensão quando, em 1969, o regime burocrático-autoritário (1964-1985) introduziu as disciplinas de Moral e Cívica (ensino fundamental), Organização Social e Política do Brasil, OSPB (ensino fundamental e médio) e Estudos dos Problemas Brasileiros, EPB (ensino superior), tornando-as obrigatórias para todos os níveis. Mesmo controlando os conteúdos dessas disciplinas – também elas foram uma forma de empregar militares da reserva, especialmente coronéis, que preparam conteúdos e escreviam apostilas e livros didáticos (Mathias, 2004, p. 170) –, em pouco tempo o próprio governo passou criticá-las, afirmando que não cumpriam os objetivos de forjar o cidadão patriótico que desejavam. De fato, como o cultivo artificial de símbolos e bandeiras nacionais pode tornar um jovem mais amante de sua pátria? É possível dizer que a geração dos anos 1990 é mais patriota que a dos anos 2000?

Em terceiro lugar, as escolas cívico-militares normalizam a militarização da educação, em seus aspectos éticos, políticos, morais, financeiros. Trata-se de uma espécie de amostra, um laboratório daquilo que está por vir. Trata-se de um projeto de militarização da vida (do individuo como um todo, compreendendo os aspectos sociais, políticos, econômicos, etc.) já em curso no Brasil. Da mesma forma que não se cria o cidadão patriota por imposição, a ‘paz dos quartéis’ imposta à sociedade como um todo tende, como mostrou a História, a vir acompanhada do esgarçamento crescente da solidariedade social, desorganizando de tal forma as relações sociais que a única ordem que prevalecerá ao final é a ‘paz dos cemitérios’.

Em quarto lugar, as ECIM, embora sustentem que sua implantação depende de consulta e sinal positivo da comunidade que a receberá, é uma forma dissimulada de cumprir a lei, que estabelece que as escolas públicas devem ter gestão democrática. Isso implica na não imposição de regras alheias àquela comunidade de estudantes. Implica que todo o corpo de funcionários, professores e responsáveis pelos estudantes, e até esses mesmos, sejam não apenas ouvidos, mas participem do planejamento pedagógico e gestão administrativa das escolas. O PECIM, como as escolas militarizadas antes dele confirmam, afasta esta possibilidade, pois submete inclusive as direções e coordenações das escolas aos preceitos trazidos pelos militares, que passam a tutelar a gestão escolar. A consulta à comunidade, realizada apenas no início do processo, é, portanto, um simulacro da necessária, inclusive porque determinada pela Lei, gestão democrática das escolas.

Por último, mas não menos importante, as ECIM são a forma que o presidente Jair Bolsonaro encontrou para manter fiel, principalmente por meio de benefícios financeiros, o núcleo mais tradicional de sua base eleitoral, composta por policiais militares, bombeiros e membros das forças armadas, em especial das patentes mais baixas. A seleção dos profissionais a serem contratados é feita pelos próprios militares, baseada em critérios como camaradagem, lealdade, honra… Ou seja, atributos bonitos para justificar a escolha dos apadrinhados políticos comprometidos com a sustentação do governo. O objetivo aqui nem é tão oculto: em uma situação de insatisfação do povo com o presidente, esses profissionais da segurança dificilmente ficarão contra quem garantiu o seu “extra”.

Considerações Finais

Em resumo, as escolas cívico-militares são caras, mas não o são porque investem na comunidade escolar, valorizando novos métodos pedagógicos e seus profissionais. Elas são caras e, como provavelmente veremos no futuro, tão ineficientes quanto as escolas civis militarizadas que já se espalharam pelo Brasil a partir das diversas métricas educacionais apresentadas ao longo do texto, servindo exclusivamente para desestruturar ainda mais a educação pública no Brasil.

A principal conclusão que chegamos desse debruçar sobre o PECIM não é, todavia, sobre a não novidade do projeto, mas sim que o principal projeto para a educação do governo Bolsonaro é, na prática, um “programa de transferência de renda” para militares da reserva. Mais que governar para a própria base que o elegeu, o presidente remunera essa base. E o principal, não é uma base qualquer, é uma base ARMADA.

*Ana Amélia Penido Oliveira é pesquisadora de pós doutorado no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp e do Gedes. Suzeley Kalil Mathias é professora do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp-Franca e pesquisadora do Gedes.

Imagem: Inauguração de escola cívico-militar no Rio de Janeiro. Por Palácio do Planalto.

Referências


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BRASIL (1996). Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l9394.htm>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.

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BRASIL (2012). Lei 12.705, de 08 de agosto de 2012. Dispões sobre os requisitos de ingresso nos cursos de formação do Exército. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12705.htm>. Consultado em 04 de março de 2021.

BRASIL (2019). Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. Institui o Programa de Escolas Cívico-Militares (PECIM). Diário Oficial da União – Seção 1 – 6/9/2019, Página 1 (Publicação Original). Disponível em <https://www2.camara.leg.br/ legin/fed/decret/2019/decreto-10004-5-setembro-2019-789086-norma-pe.html>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.

MARTINS, A. A. (2019). Sobre os dias atuais: neoconservadorismo, escola cívico-militares e o simulacro da gestão democrática. RBPAE 35 (3): 689-699, set-dez.

MATHIAS, S. KALIL (2003). A militarização da burocracia: a participação militar na administração das Comunicações e da Educação, 1963-1990. São Paulo, Ed. Unesp/Fapesp.

RATTENBACH, B. (1972). El sistema social-militar en la sociedad moderna. Buenos Aires, Pleamar.

RIBEIRO, A. C.; RUBINI, P. S. (2019). Do Oiapoque ao Chuí – As escolas civis militarizadas: a experiência do extremo norte do Brasil e o neoconservadorismo da sociedade brasileira. RBPAE 35 (3): 745-765, set.-dez. [DOI: 10.21573/vol35n32019.95997].

 

Notas


[i] Sugerimos a leitura do levantamento feito por Alves e Toschi (2019), o qual mostra que os estudos da militarização do ensino não são novos, mas são numericamente pouco significativos diante do avanço do processo de criação de ‘parcerias’ entre as escolas públicas e as instituições militares.

[ii]Por didático, vale reproduzir a fala do presidente: “E temos aqui a presença física do nosso governador do DF, o Ibaneis. Parabéns, governador, por esta proposta. Vi que alguns bairros tiveram votação e não aceitaram, me desculpa, não tem que aceitar não, tem que impor. Se aquela garotada não sabe… está na quinta série, está na nona série e na prova do Pisa ele não sabe uma regra de três simples, não sabe interpretar um texto, não responde uma pergunta básica de ciências, me desculpa, não tem que perguntar para o pai irresponsável, nessa questão, se ele quer ou não uma escola com uma, de certa forma,  militarização, tem que impor, tem que mudar. Porque nós não queremos que essa garotada cresça e vá ser, no futuro, um dependente, até morrer, de programas sociais do governo.” Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bol sonaro-durante-cerimonia-de-lancamento-do-programa-nacional-de-escolas-civico-militares-pecim>

[iii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.

[iv] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.

[v] Disponível em: <G1: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, consultado em 04/03/21.

[vi] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/02/escolas-militares-e-colegios-civis-com-mesmo-perfil-tem-desempenho-similar.shtml>. Consultado em 03/03/21.

[vii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/content/index.php?option=com_content&view=article&id =85371:mec-capacita-policiais-e-bombeiros-para-atuacao-nas-escolas-civico-militares&catid=12&Itemid=86>

[viii]http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares

[ix] Segundo a mesma pesquisa da OCDE, “(…) o salário médio dos professores no Brasil é menor do que na maioria dos países da OCDE, e que também é ao menos 13% menor do que o salário médio dos trabalhadores brasileiros com ensino superior.” Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, grifos no original. Consultado em 04/03/21.

Forças Armadas no governo Bolsonaro – Parte II

Ana Penido, Jorge M. Oliveira Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias

 

Este texto é uma atualização do artigo publicado – Forças Armadas no Governo Bolsonaro – pelos autores no Portal do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele será referenciado algumas vezes ao longo do texto.

 

No dia 19 de abril, dia do Exército brasileiro, o Brasil viveu mais um ato de sua tragédia. Em cidades por todo o país, manifestantes apoiadores do governo Bolsonaro saíram às ruas contra as medidas de isolamento social diante da pandemia adotadas pelo Ministério da Saúde e por prefeitos e governadores. Alegavam se sentir lesados em seu direito de ir e vir. Contraditórios, exigiam em sua luta pela liberdade uma intervenção militar com Bolsonaro a frente e a edição de um novo Ato Institucional no 5, nos moldes da norma adotada durante o regime burocrático-autoritário no Brasil. A cereja do bolo foi a presença do próprio presidente  na manifestação ocorrida em frente ao Quartel Geral do Exército; e a promoção, via Twitter, de vídeo em que aparece discursando tendo como fundo de tela faixas clamando pela intervenção.

Gerson Camarotti aponta que, entre integrantes da chamada “ala militar” do governo, o sentimento era de mal-estar com a participação do presidente no ato, seja pela emergência sanitária que sugere evitar aglomerações, seja em virtude do local escolhido, uma vez que, como uma zona de segurança nacional, o trânsito nesse local deveria ser restrito. Não houve comentários quanto ao conteúdo antidemocrático da ação. Os maus humores também estariam associados ao local escolhido para a manifestação. Um dos oficiais ouvidos pela reportagem do Estadão dizia: “se a manifestação tivesse sido na Esplanada, na Praça dos Três Poderes ou em qualquer outro lugar seria mais do mesmo […]. Mas em frente ao QG, no dia do Exército, tem uma simbologia dupla muito forte. Não foi bom porque as Forças Armadas estão cuidando apenas das suas missões constitucionais, sem interferir em questões políticas”. O agravante da participação presidencial não passou despercebido. Melindrosos quanto às críticas ao comandante constitucional das Forças Armadas, as palavras utilizadas foram: “provocação”, “desnecessária” e “fora de hora”.

Mas foi o general da reserva e ex-ministro do governo Bolsonaro, Carlos Alberto Santos Cruz, quem deu um rosto a esse discurso. Em comentários sobre os atos, primeiro via Twitter e posteriormente em entrevista ao UOL, Santos Cruz reforçou a ideia de que, enquanto instituição, as Forças Armadas não representam governo algum. Referindo-se à participação de Bolsonaro no ato, Santos Cruz reforçou que os clamores por intervenção militar não tinham representação institucional [das Forças]. Perguntado se a participação das Forças Armadas no governo Bolsonaro não poderia manchar a credibilidade da instituição, Santos Cruz rebateu: “O que eu vejo é que não existe essa, vamos dizer assim, essa marcha junto com o governo. […] Não é um alinhamento de governo. O Exército não é partidário. Não é de governo”.

O esforço em desconectar a imagem dos militares à do governo não é novo. Mesmo antes do início efetivo do governo Bolsonaro, a preocupação com o alto número de militares nos quadros governamentais e as consequências disso para a imagem das forças já era latente entre membros do alto escalão castrense. É o caso, por exemplo, da insistência de Villas Bôas, ainda em novembro de 2018, em ressaltar que, mesmo com elevado número de fardados no governo, não se tratava de um governo de militares.

A cada dia que passa, essa narrativa cai por terra. Ainda em abril de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão reconhecia: “se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas”. Desde então, cresceu muitíssimo em relevância a participação do partido militar[1] no governo, que passou a ser seu principal pilar de sustentação política quantitativa e qualitativamente. Com isso, os apontamentos de Rodrigues feitos em artigo também veiculado pelo Eris se confirmaram, trata-se de um governo militarizado. Isso fez com que o tom de parte da imprensa também se modificasse, como no histórico editorial do Estadão de 21 de abril. “Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele”.

As FFAA parecem entender parcialmente a encalacrada a que foram arrastadas pelo partido militar, e começam algumas discretas manobras de distanciamento no intuito de estabelecer um cordão sanitário entre governo e as Forças. Se de início os fardados pretendiam-se como poder moderador, hoje é certo que se vêm assoberbados com preocupações sobre a própria fiabilidade da instituição. O Exército mantém sua preponderância, embora a participação da Marinha venha crescendo. Enfim, Mourão estava correto.

Em estudo recente publicado pelo instituto Tricontinental discutíamos a névoa que pairou sobre aspirações, ressentimentos e incursões políticas das forças castrenses no Brasil durante os últimos anos. Dizíamos então que o período de relativa equidistância vigente durante os dois mandatos de Lula da Silva ajudou a construir uma falsa imagem de distanciamento dos militares da política.

Em coluna recente na Folha de São Paulo, Janio de Freitas pontuava “historicamente, nenhum outro segmento feriu tanto a disciplina, e com tamanha gravidade, quanto os militares”. Com efeito, não faltam em nossa história exemplos em que o peso da “mão amiga” se fez sentir. Para nos atermos aos mais recentes: a saída de José Viegas do ministério da Defesa após confronto com comandante do Exército; o antagonismo à presidenta Dilma Rousseff no marco da criação da Comissão Nacional da Verdade; a restauração e retorno ao controle militar do Gabinete de Segurança Institucional sob Michel Temer; e com especial menção, a pressão do então comandante do Exército, general Villas Boas, ao Supremo Tribunal Federal no marco do julgamento do habeas corpus de Lula.

Podemos dizer que ao subir no palanque, as Forças Armadas assumiram posição de vidraça, sujeitando-se às pedras. Temos então um cenário em que não é a atuação política dos militares a novidade desta quadratura histórica, mas sim a preocupação que o governo da vez traga à Instituição revezes de credibilidade.

Por outro lado, é incorreta (ao menos quanto a forma) a pergunta que um conjunto de analistas tem se colocado: “até quando as FFAA irão com Bolsonaro? Até quando segurarão a mão dele?” Dizemos incorreta pois é irreal pensar que o principal partido do governo, detentor dos principais cargos, vá sair do governo, nos moldes do visto com Luiz Henrique Mandetta, Osmar Terra ou outros. Em outras palavras, não acreditamos que as FFAA deixarão o governo, muito menos em plena pandemia. Da mesma maneira, pode-se afirmar que o partido militar não deu um golpe, ele entrou como parte do jogo, e se orgulham disso, terem voltado ao centro da política através da democracia. Nesse sentido, se seguirão com Bolsonaro, é uma questão que diz menos respeito as FFAA e sim às ferramentas democráticas de afastamento do presidente, baseadas no legislativo, no judiciário e na pressão popular.

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, Kalil Mathias provoca: “as brigas palacianas são apenas pela forma, não pelo conteúdo”. Assim, mesmo que a preocupação com as manchas à imagem da instituição seja latente, mantêm-se as conveniências de permanecer no poder contando com uma figura “messiânica” e utilizando-se de seu apoio popular. São muitos os pontos de comunhão na agenda política: 1) uma nítida agenda moralizante, calcada numa vocação salvacionista auto-outorgada; 2) congruência na visão econômica e gerencialista, não mais pautada pelo nacional-desenvolvimentismo modernizante de Geisel[2]; 3) uma dimensão de crenças, baseada na negação à esquerda, as pautas consideradas identitárias, e a um patriotismo baseado no culto aos símbolos nacionais.

Vale mencionar um quarto aspecto intrigante da relação entre o partido militar e governo: a condução atabalhoada da política externa brasileira. Por sua função precípua, qual seja, a defesa do país contra ameaças externas, espera-se dos militares uma atenção especial às relações internacionais. Entretanto, apesar de algumas ações para amortecer impulsos olavistas do governo – como a fala conciliatória de Mourão no episódio “Dudu Bananinha”, em que Eduardo Bolsonaro acusou a China de ter sido criminosa quanto ao tratamento do Covid-19 – não temos por parte dos militares um posicionamento explícito em assuntos de política externa. Visto estarem se manifestando tanto, e sobre tantos assuntos, o silêncio da ala militar é ensurdecedor nesse tema.

Temos, portanto, um cenário dúbio, mas complementar. Por um lado, o partido fardado circunda a Presidência, vendendo-se como polo racional e como alternativa aceitável num eventual impeachment de Bolsonaro. Por outro, permanecem no governo pelo cálculo de que Bolsonaro possui os votos que eles não tem para a condução de um projeto com o qual mais concordam que discordam. As cicatrizes e o ônus adquirido com o golpe de 64 fez com agissem sorrateiramente. Hoje, a atuação partidarizada é levada a cabo em paralelo o um esforço discursivo de separação institucional entre governo e FFAA. Nesse processo, revezam-se em carcereiros e prisioneiros.

Por fim, é absurdo que em meio a uma pandemia, com milhares de mortos no mundo inteiro e o crescimento rápido dos índices de óbitos no Brasil, superando o número de brasileiros mortos na Segunda Guerra, essa seja a nossa preocupação. Esperamos, com a esperança dos pessimistas, que o governo Bolsonaro seja findado e que a democracia se imponha antes de chegarmos no fundo do abismo.

 

Créditos da imagem: Marcos Corrêa/PR. Solenidade de transmissão do cargo de Comandante Militar do Sul. Porto Alegre- RS, 30/04/2020.

O exército futurista da Rússia: soldados ciborgues

                     Jonas de Paula Vieira, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadal Paulista (UNESP), campus de Franca

 

Historicamente, as grandes potências têm investido no desenvolvimento de novas tecnologias militares para obter vantagens estratégicas em relação aos seus rivais. Assim, por exemplo, foram criados contemporaneamente os armamentos nucleares, as armas ultrassônicas (AUS), as bombas EMPs (Electronic Magnetic Pulse) os caças de quinta geração, os drones, além dos modernos sistemas de monitoramento e localização (GPS, Strelets), entre uma diversidade de tecnologias mais ou menos significativas militarmente. Na ordem global atual, essas inovações têm sido lideradas, principalmente, pelos Estados Unidos e pela Rússia que apresentam níveis semelhantes de poderio militar, tal qual a China, que tem se destacado nos últimos anos nos setores espacial e aeroespacial. Todavia, o Estado russo está desenvolvendo uma tecnologia que poderia lhe dar uma relativa vantagem em relação ao seu principal rival, os Estados Unidos, pelo menos no que condiz à infantaria, já que por meio de seu projeto Rátnik (“Guerreiro” em português) está conseguindo transformar o seu soldado em um verdadeiro ciborgue, como se tivesse saído de um filme de ficção científica.

Para seu criador, Manfred Clynes, o termo ciborgue foi cunhado em 1960 e é uma contração de organismo cibernético – pois em inglês cyborg consiste da junção das palavras cybernetic organism –  que significa a incorporação de estruturas robóticas em um organismo biológico, sem que ele sofra modificações da sua hereditariedade. Clynes era engenheiro biomédico e levantou a hipótese de desenvolver um organismo modificado, parte máquina e parte humana, que potencializasse as chances de exploração do espaço sideral. O ciborgue seria a solução das limitações humanas, já que sofreria melhorias bioquímicas, psicológicas e físicas, proporcionadas por suas partes eletrônicas e assim, o homem estaria “livre” de suas limitações e uma nova era evolucionista começaria.

Por outro lado, Donna Haraway, filósofa e teórica do “ciberfeminisno”, discorda do conceito defendido por Clynes , porém dá uma definição crucial do termo ciborgue em seu ensaio “Manifesto Ciborgue”: “um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (Haraway, 1991, p. 36). Para ela, a ideia de ciborgue alude a um corpo-máquina de alta performance, no qual habita um humano, sendo toda a sociedade ciborgue, pois a vida atual provoca uma tênue relação entre tecnologia e pessoas, tornando-se impossível diferenciar onde termina o humano e começa o artificial. Já as definições mais modernas de Chris Gray e Figueroa-Sarriera de 1995, incluem todo o tipo de intervenção tecnológica no corpo humano, seja o uso de medicamentos ou psicotrópicos, seja a interconectividade do homem com instrumentos de mecânica, informática ou eletrônica.

As definições dos autores apresentam oscilações quanto ao conceito do que é ciborgue, porém, concordam que o amálgama entre corpo biológico e máquina potencializa as capacidades sensoriais e cognitivas, além da resistência e da durabilidade da espécie humana. O homem se torna capaz de dar grandes saltos evolutivos em um curto prazo de tempo e de romper barreiras biológicas intransponíveis, como deter uma superforça proveniente de exoesqueletos ou usar um simples marca-passo que regula os batimentos cardíacos de seu usuário, postergando sua vida.

O Estado russo se inspirou na terminologia da palavra ciborgue e procurou criar um exército de “humanos-máquina”. Assim, impulsou a concepção do projeto Rátnik em meados de 2011. O audacioso projeto é dividido em três etapas: Rátnik-1, Ratnik-2 e Rátnik-3. Os dois primeiros apresentam armadura corporal modernizada, visão noturna/térmica, um moderno sistema de comunicação via voz e vídeo (Strelets), muito inspirado no sistema de combate francês FELIN, dentre outros equipamentos. Vale destacar que o Rátnik-2 apresenta um sistema de camuflagem inteligente, que muda conforme o ambiente de combate do soldado, além do  traje que suporta temperaturas entre -30ºC e 50ºC.  Os trajes Rátnik começaram a ser entregues às Forças Armadas Russas ainda em 2015, e vestem as tropas das forças especiais (Spetsnaz), os fuzileiros da Frota do Pacífico e os snipers da base militar russa na Armênia, e posteriormente, os soldados russos que combatiam na guerra civil da Síria. Segundo o governo, até 2020 todos os combatentes estarão equipados com o traje. O Tenente General Andrey Grigoriev, chefe da Advanced Research Foundation (ARF) responsável pelo projeto Rátnik, disse em uma entrevista em 2018 à rede de televisão estatal russa, RIA Novosti, como seria o campo de batalha do futuro: “Eu vejo uma grande robotização, de fato, a guerra do futuro envolverá operadores e máquinas, e não soldados atirando uns nos outros no campo de batalha”.

O principal avanço que a Rússia vem dando para a concretização de seu exército ciborgue, se dá pela terceira etapa do projeto Rátnik, no qual o traje será composto por dois exoesqueletos: um exoesqueleto ativo, cujas dobradiças são equipadas com movimentações hidráulicas e elétricas e um exoesqueleto passivo, servindo unicamente para reduzir a carga sobre as articulações e proteger os usuários de choques balísticos. Somado a isso, o traje apresentaria um tecido invisível à imagem infravermelha com camuflagem inteligente e um capacete com HUD (head up display) exibindo informações sobre o traje, o ambiente, as horas e o tipo de armamento e vestimenta do inimigo. O exoesqueleto daria características sobre-humanas para os soldados que o usarem, pois também terá um sistema com a função de estancar o sangramento de seus combatentes feridos, munindo-os de uma vantagem substancial no campo de batalha, além de potencializar o tempo de marcha dos soldados em campo de batalha.

Enquanto os russos pretendem equipar suas Forças Armadas até 2027 com a etapa mais avançada do traje, os Estados Unidos vêm acumulando alguns fracassos na criação de trajes similares, como é o caso do projeto TALOS (Tactical Assault Light Opeartor Suit) ou “iron man”, que tinha a mesma proposta do Rátnik -3, porém foi descartado pela dificuldade em adequá-lo a um ambiente de combate real. Além do projeto TALOS, os Estados Unidos junto com a empresa estadunidense Lockheed Martin vêm desenvolvendo em estágio embrionário um novo exoesqueleto para os soldados, chamado de ONYX. Porém, segundo o próprio Pentágono, ainda está muito longe de ser empregado em campo de batalha.

Tais situações sinalizam, por enquanto, vantagem estratégica para a Rússia em combate de solo perante os Estados Unidos. A competição estratégica entre os Estados russo e estadunidense remonta à Guerra Fria, seja no âmbito espacial, cultural, tecnológico ou armamentista, com destaque para as ogivas nucleares de ambos os lados. Os dois países  tiveram um acirramento militar muito forte, quase equiparáveis, todavia, a introdução dos ciborgues nas forças armadas russas demonstra uma clara vantagem russa sobre o seu rival estratégico, o que se torna benéfico para o país, pois apesar de ter uma defasagem marítima em comparação aos Estados Unidos consegue se lançar como propulsor de uma tecnologia quase que ficcional e assim, coloca em xeque o domínio estadunidense em guerra terrestre.

A primazia de desenvolvimento do Estado russo sobre essa nova tecnologia também é capaz de beneficiá-lo do ponto de vista econômico, já que ele pode vender os trajes ciborgues para parceiros estratégicos, tornando-os dependentes de sua tecnologia e assim maximizar seu poder em suas zonas de influência, procurando mitigar a influência estadunidense, ou despertar o interesse de seus parceiros para investirem no desenvolvimento do traje, logo, diminuindo os custos de sua produção. Ademais, a Rússia é uma grande especialista em guerra híbrida, assim como os Estados Unidos, porém com a concretização da última etapa de seu projeto, ela poderia obter vantagens substanciais no combate a grupos terroristas, contra insurgentes e guerrilheiros, ou seja, combates irregulares, já que poderá aplicar todo o seu conhecimento adquirido em táticas de guerra híbrida com a nova tecnologia desenvolvida.

Desse modo, o Estado russo encontrou o armamento amalgamador da guerra híbrida, o soldado híbrido, metade máquina e metade humano, adequado ao novo ambiente de combate que caracteriza o século XXI. No qual, vem como uma resposta ao árduo processo de revitalização das forças armadas russas, que passaram por um momento de encolhimento e defasagem no pós-Guerra Fria. Assim, o ciborgue pode ser uma das tecnologias bélicas responsáveis por recuperar o status e prestígio que a Rússia apresentava no sistema internacional antes do esfacelamento da União Soviética.

 

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Créditos da Imagem: The Johns Hopkins University Applied Physics Laboratory (JHU/APL)/ Public Domain

“Temos Forças Armadas para defender os interesses dos EUA”, aponta pesquisador

Para Héctor Luís Saint-Pierre, é um paradoxo militares apoiarem a desregulação da economia e a entrega de patrimônios

*Entrevista concedida à Ana Penido, pesquisadora do Instituto Tricontinental

Brasil de Fato | São Paulo (SP) 26 de Outubro de 2019 às 10:16

Com a ampla participação de militares no governo de Jair Bolsonaro, há mais interesse em compreender quais ideias carregam essa categoria especial de servidores públicos. “O sentimento de pertença à corporação militar parece superar o sentimento nacional e até o ‘patriótico’, do qual se consideram guardiões”, aponta Héctor Luís Saint-Pierre, coordenador executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador argentino avalia também a política de Defesa e diplomacia encampada pelo atual governo a partir de uma composição eminentemente militar. Ele relembra que a liderança regional exercida pelo Brasil durante o “governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi deliberadamente abandonada”. “Quem imaginava que, pelo comprometimento dos militares com o governo Bolsonaro, prevaleceriam os valores nacionais e a defesa da soberania, pode constatar o abandono desses valores (…). Assim, poder-se-ia concluir paradoxalmente que temos Forças Armadas para defender os interesses norte-americanos, entre os quais, a desregulação da economia nacional e a apropriação das riquezas brasileiras”, avalia. Confira, a seguir, a entrevista:

 

Brasil de Fato – Seria possível afirmar que, guardado espaço para algumas heterogeneidades, existe um fio condutor do pensamento dos militares brasileiros?

Hector Saint Pierre – A corporação militar não é monolítica, como pareceriam indicar seus uniformes. Apesar de se apresentem para fora sempre unidos e subordinados a uma sólida estrutura hierárquica, internamente existem posicionamentos nem sempre coincidentes, como ficou evidenciado historicamente em movimentos que contestaram algum aspecto das decisões da cúpula militar. Assim ocorreu na Marinha com a Revolta da Chibata em 1910; no Exército, com o movimento tenentista na década de 1920; os expurgos na era Vargas; e, particularmente, na notável repressão interna às três forças durante o golpe de 1964, com prisões, desaparições, tortura e morte de muitos militares, como ficou denunciado pela Comissão da Verdade. Cada período histórico está caracterizado por uma direção da corporação definida por algum grupo hegemônico, oscilando entre o nacionalismo e o liberalismo (por não dizer entreguismo), entre a procura de uma autonomia política que busque a liberdade de ação estratégica de maneira não confrontativa até o alinhamento automático.

Se há algum fio condutor que tem resistido às mudanças de posições dos militares com relação à política são os valores corporativos que se mantém por cima de qualquer outro. O sentimento de pertença à corporação militar parece superar o sentimento nacional e até o “patriótico”, do qual se consideram guardiões. Em geral, o militar confia mais no militar de outro país do que nos civis do seu próprio. Sem resistir à generalização, poderíamos dizer que a maioria adere a valores positivistas, como o pânico da História e da mudança, a ideia contraditória de “ordem e progresso”, valores tradicionais de família e sociedade e um anticomunismo doentio que associam com qualquer crítica ao status quo burguês. Do ponto de vista político institucional, se consideram um quarto poder moderador, aquele poder vigilante capaz de intervir no jogo político sempre que a (nunca definida) “pátria” corra perigo. Consideram-se a reserva moral da nação e dos valores ocidentais o que, para eles, legitimaria intervir no quadro político sempre que considerem oportuno, como manifestou mais de uma vez, ainda na ativa, o general e atual vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão.

 

Em seu artigo “Racionalidades e Estratégicas”, você elenca categorias para entender o pensamento militar. Destacamos três dimensões: a autonomia das Forças Armadas diante do Estado e sua relação com a democracia; percepções de hegemonia regional; e conceitos como o de inimigo, provenientes de uma determinada forma de se ver as dinâmicas de guerra e paz. O que vem ocorrendo no Brasil hoje, na política de Defesa, confirma o defendido no artigo?

Nesse artigo, meu objetivo é desenhar um modelo de análise diagramado sobre variáveis que permitiriam analisar ou comparar concepções de Grande Estratégia, que se trata de um plano de defesa a partir do mais alto comando da nação. Esse planejamento pode ser definido pelo Executivo, mas deve ser aprovado pelo Legislativo como uma política de Estado que supere a duração de um governo. Ante uma ameaça que indique a aplicação desse planejamento, o Executivo assume a condução e a responsabilidade das ações. Nessa Grande Estratégia, as Forças Armadas são apenas um dos componentes, o essencial, mas não o único nem necessariamente o mais relevante dependendo do caso.

Com a transição de uma ditadura militar para um governo democrático, no qual se espera a estrita subordinação daqueles ao poder político legítimo, deveria ser possível constatar concomitantemente uma mudança na concepção estratégica do Estado.

Nesse artigo, trato como Concepção Estratégica Oficial (CEO) uma concepção cujas variáveis obedeciam ao período da ditadura militar e como Concepção Estratégica Alternativa (CEA) um estado de coisas ideal que eu imaginava que deveria refletir as condições de defesa de um sistema democrático. Se tivesse havido uma transição à democracia no Brasil estaríamos perto da CEA. A partir dessa comparação seria possível corroborar se de fato a mudança política de sistema foi acompanhada por um acomodamento da forma da força, do emprego e missões do monopólio legítimo da violência, isto é, deveria se contatar uma mudança na concepção estratégica do Estado.

Porém, diferentemente de outros países como Argentina, onde a transição foi por colapso, ou Chile e Uruguai, onde foi pactuada, o Brasil teve uma transição lenta, gradual e segura, concedida pelos militares, que mantiveram estrita vigilância para manter vigente a CEO.

Hoje, os militares continuam a exercer uma função tutelar sobre o Brasil, menos pelos militares retirados ou da ativa que povoam a casa de governo, do que pela pressão velada que exercem sobre a sociedade, os políticos e as instituições, seja por “assessorias” injustificadas ou ameaçadores tuítes limítrofes com a ilegalidade. A Defesa nunca deixou de ser uma caixa fechada para a sociedade e se preservou como monopólio das Forças Armadas. É verdade que desde os últimos anos do governo Fernando Henrique Cardoso e mais especialmente durante os governos petistas houve uma tímida intenção de democratizar o tema. Mas essa timidez foi entendida como debilidade pelos militares que endureceram ainda mais sua posição. Não há democracia sem estrita subordinação militar ao controle civil, sem uma efetiva condução política civil da Defesa, sem uma ativa participação da sociedade na discussão sobre a Defesa Nacional, sem mando civil e obediência militar. Definitivamente, as Forças Armadas brasileiras conquistaram uma autonomia e prerrogativas incompatíveis com o sistema democrático.

 

E em relação à política externa?

Supõe-se que – numa concepção alternativa, isto é, democrática – essa forma de inserção internacional deveria resultar de um debate com a sociedade, buscando a cooperação regional, que garanta a liberdade de ação estratégica e a autonomia da decisão. Poder-se-ia dizer que tanto as Forças Armadas quanto o Itamaraty sempre procuraram uma relativa liberdade de ação estratégica e certa autonomia da decisão, respectivamente, na sua área de interesse, mas sempre de forma não confrontativa com os Estados Unidos. Não obstante isso, desde 2009, pode ser notada nas Forças Armadas a procura de uma aproximação com os Estados Unidos, a qual foi ficando mais clara durante o governo de Michel Temer. De forma inédita, um general brasileiro é promovido ao sub-comando de Cooperação Regional do Exército do Comando Sul dos USA.

Durante a campanha presidencial de 2018, o então candidato Bolsonaro enquadrou-se frente à bandeira dos Estados Unidos num gesto vergonhoso para qualquer pretensão soberana. Já presidente, Bolsonaro ofereceu ao governo dos Estados Unidos uma relação servil para os interesses americanos e uma aliança militar com o governo de Donald Trump que vive antagonizando com quase todo o mundo. Este alinhamento automático à estratégia dos Estados Unidos engessa a política externa brasileira aos interesses da superpotência, transformando a oportunidade apresentada pelo rearranjo de forças mundiais que está mudando a polaridade global em uma desgraça.

No lugar de aproveitar o estremecimento global pelo acomodamento das estaturas estratégicas das três grandes potências [Estados Unidos, China e Rússia] e se manter à margem, o Brasil abraça a superpotência decadente se condenando a realizar apenas os negócios que ela lhe permita. Quem imaginava que, pelo comprometimento dos militares com o governo Bolsonaro, prevaleceriam os valores nacionais e a defesa da soberania, pode constatar o abandono desses valores e a entrega da soberania por questões meramente ideológicas e até místicas. Assim, poder-se-ia concluir paradoxalmente que temos Forças Armadas para defender os interesses norte-americanos, entre os quais, a desregulação da economia nacional e a apropriação das riquezas brasileiras. A liderança regional concedida e reconhecida pelos países de América do Sul ao Brasil durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi deliberadamente abandonada e, no seu lugar, os Estados Unidos parecem propor para o Brasil ser seu bastante procurador na região, colocando o sangue do soldado brasileiro como lubrificante dos seus interesses.

 

Percebemos críticas, na sua obra, sobre a apropriação de conceitos estadunidenses e europeus para pensar a realidade latino-americana. Em outros termos, fica evidente a afirmação de que o pensamento militar brasileiro não é tão brasileiro assim, e que isso é um problema. Por que acha que isso ocorre?

A colonização não é um fenômeno meramente econômico, ele também é político, social, cultural e epistêmico [intelectual]. A colonização epistêmica nos impõe óculos para ver a realidade como o colonizador quer que vejamos, esses óculos são os conceitos e as teorias que muitas vezes se assumem acriticamente. Aqueles acadêmicos do mainstream que definem o digno de ser pensado, publicado e lido são tomados “pelas colônias” como referências de objetividade e cientificidade. Porém, a maioria deles são ou foram ou serão funcionários do Estado (diferentemente do Brasil, noutros países os acadêmicos e não os militares são consultados) e pensam o melhor para seu país, que é um Estado colonizador. O que é condenável é que nossos acadêmicos defendam, na colônia, o que o colonizador defende como bom para a metrópole. As teorias e os conceitos não são neutros, eles são valorativos. Por exemplo, “Guerra de baixa intensidade” é conceito estabelecido pelos

Estados Unidos para se referir a guerras nas quais se aplica parte pouco expressiva da sua capacidade bélica. Mas as guerras são travadas entre dois beligerantes e a definição dela ou compreende os dois ou terá duas definições dependendo de que lado da disputa se encontre. Na Guerra da Nicarágua, definida pelos Estados Unidos como de “baixa intensidade”, para os nicaraguenses foi uma guerra total.

Se esta situação é séria para os acadêmicos, quando consideramos o colonialismo entre os militares, ela é dramática. Há uma tendência à uniformização das Forças Armadas do mundo condicionada pelo que passou a ser chamado de “o arsenal mundial”. O armamento – fundamentalmente condicionado pelos sistemas de armamento, pelo alto nível de complexidade e sofisticação, que exige a existência de uma economia intensiva – é produzido por poucos países. Quando um país não tem condições de aplicar capital intensivo à produção de artefatos bélicos, como são a maioria dos países, particularmente do Sul global, ele deve recorrer às matrizes do arsenal global para adquirir os sistemas de armas. Mas junto com os sistemas de armas também se compra a organização militar adequada a esse sistema, uma doutrina militar, uma doutrina de emprego imposta pelo sistema, treinamento e também o inimigo. Quem define contra quem se pode empregar esses sistemas de armas é o vendedor, logo, é ele quem define o inimigo.

Note-se que a definição do inimigo não significa apenas a indicação daquele contra quem apontarei meu armamento, mas também aquele de quem não poderei comprar, ainda que tenha preços competitivos, assim como a quem não poderei vender minha soja (o caso dos barcos carregados de soja, retidos no porto de Paranaguá, é um exemplo claro de como se pode ir contra os interesses nacionais pela pressão ideológica garantida pela dependência estratégica). O paradoxal disto é que o armamento que deveria garantir a soberania, a autonomia da decisão política, pelo contrário, a compromete. Do mesmo modo, o militar, sujeito ativo da liberdade estratégica, pela dependência instrumental e doutrinária é agente da subordinação estratégica.

Hoje, contamos com um instrumento da força típico da Segunda Guerra com uma ideologia estratégica da Guerra Fria. Os militares, que foram historicamente associados ao desenvolvimento, hoje parecem ser a garantia da dependência. A entrega da Embraer, vanguarda da pesquisa e desenvolvimento nacional, foi entregue sob seu olhar atento. O mesmo poderia ser dito da Petrobras ou da Base de Alcântara. Os militares temem pensar fora da caixa.

 

Bolsonaro dá grande valor à batalha das ideias e das narrativas sobre a História, daí sua grande investida contra as universidades e a pesquisa brasileira, com importantes cortes orçamentários. Os cortes também ocorreram na área de Defesa, mesmo com a presença dos militares no governo. Quais as principais ameaças que se apresentam para aqueles que produzem ciência nas áreas relacionadas às questões militares e de Defesa?

A comunidade acadêmica dedicada, hoje, aos temas da Paz, da Defesa, da Estratégia, dos Militares e da Guerra foi invadida por militares. A chamada “comunidade epistêmica da Defesa” não é a mesma de 30 anos atrás. Naquele momento, pretendíamos disputar o monopólio da reflexão sobre temas que estava exclusivamente tratada em mãos dos militares. Hoje, constatamos tristemente que não conseguimos quebrar esse monopólio, mas, em contrapartida, os militares conseguiram não apenas quebrar o nosso monopólio da reflexão científica como conseguiram completar sua estratégia de ocupar o Ministério da Educação, a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], assim como se apropriar de parte do orçamento destinado à educação e à pesquisa científica.

Ao mesmo tempo em que as universidades públicas estão sendo sucateadas, sem capacidade de renovação geracional por falta de contratação, as academias militares abriram pós-graduações em áreas não específicas para a função militar, como Relações Internacionais, e contaram com verba para abrir numerosos concursos. Qual a lógica dos militares abrirem pós-graduações sendo que há, e muito boas, nas universidades públicas? Será para oferecer títulos para seus oficiais? Não precisariam: o ministro da Educação do governo Temer decretou (sim, assim mesmo) que as ciências militares são uma ciência. Por essa medida, os oficiais que estudam as “ciências militares” (que são ciências dirigidas a melhorar sua performance nas missões precípuas, e não para realizar pesquisa científica) são agraciados com o título de doutor e podem disputar com aqueles que fizeram opção de vida pela ciência. Será que querem reduzir as teorias científicas a “versões”, como fazem com a História?

Entre a arrogância e o paternalismo: a tutela militar sobre instituições do Estado brasileiro. Entrevista especial com Ana Penido

Vivemos um regime democrático no Brasil e por isso podemos afirmar que se vive num regime de liberdade e igualdade. Correto? Errado. A professora Ana Penido, que pesquisa a formação e atuação de militares no país, revela que a noção que se tem de democracia é, na prática, muito mais restrita e tem influência do modo como os militares compreendem o conceito. “É um conceito restrito de democracia, baseado em seus aspectos formais, ou seja, a realização de eleições, organização partidária, etc. Infelizmente, essa concepção de democracia limitada também é presente na sociedade”, aponta. Para ela, o conceito pleno de democracia é outro, que “prevê o conflito de ideias, manifestações públicas e outras coisas que, no ponto de vista deles, são geradoras de instabilidade”. E, num governo como o de Jair Bolsonaro, em que a presença militar é maior, essas perspectivas se acentuam. Assim, Ana chama atenção para como, na prática, se configura – e até se reforça – uma espécie de tutela militar sobre as demais instituições de um Estado democrático. “Os militares mantêm uma tutela sobre as instituições do Estado brasileiro, e se organizam como corporação, para quem, à exceção do momento de disputa de recursos orçamentários, a relação cotidiana com civis varia entre a arrogância de quem se acha melhor e o paternalismo de quem acha que deve proteger os fracos”, sintetiza. Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora ainda destaca a importância de se compreender como essas ideias são gestadas na “caserna”, desde a educação básica das forças armadas. “É plantada na escola e depois amadurece durante a carreira a ideia de que eles são mais responsáveis pelo destino da nação, mais patriotas, mais nacionalistas, que o povo brasileiro em geral”, aponta. Mas são lógicas que diferem das do passado, como as que formaram os militares que estiveram no comando do país durante a ditadura. “Atualmente, é preciso ressaltar que educação é uma dimensão do processo de profissionalização, e os militares são muito cuidadosos com essa parte, pois é a que garante sua reprodução técnica e simbólica enquanto corporação”, define. Ao longo da entrevista, Ana também analisa vários pontos, como as concepções de relações internacionais que se dão nas academias. Segundo ela, são ideias que estão além da grade curricular ou da emenda de disciplinas. Estão no entremeio do que chama de “currículo oculto”. “Quando se observa essa parte, fica nítida uma visão tradicional de geopolítica, que caracteriza o momento atual como uma nova guerra fria entre China e Estados Unidos, e a tarefa brasileira de se aliar ao seu grande irmão do ocidente”, exemplifica. Além de detalhar como ocorre a formação de militaresAna observa como essas ideias chegam a outras áreas do governo de Jair Bolsonaro, como a ideia das escolas com gestão cívico-militares. “Se fosse para adotar a ideia de “escolas modelo”, algo bastante discutível, o padrão a ser seguido seria das escolas federais ou das escolas de aplicação das Universidades, quase extintas”, critica. E dispara: “o projeto vende uma ideia de moralização das escolas através da disciplina. Acredito que deveria ser óbvio que um corte de cabelo curto não é o que vai “salvar a nossa juventude das drogas”, seja lá o que isso significa.

 

Ana Amélia Penido Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, possui mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é pesquisadora do Instituto Tricontinental e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Entre as suas publicações, destacamos “As mudanças na guerra e na formação dos guerreiros” (In: Poder Aeroespacial e Estudos Interdisciplinares de Segurança e Defesa, 2014, Rio de Janeiro) e “Uma educação militar para a defesa do Brasil” (In: V Encontro Pedagógico do Ensino Superior Militar, 2013, Resende. Anais do V EPESM, 2013).

IHU On-Line – Como avalia a relação entre civis, militares e Estado no Brasil hoje?

Ana Penido – Essa pergunta origina muitas teses de doutorado. Resumidamente, acredito que os militares mantêm uma tutela sobre as instituições do Estado brasileiro, e se organizam como corporação, para quem, à exceção do momento de disputa de recursos orçamentários, a relação cotidiana com civis varia entre a arrogância de quem se acha melhor e o paternalismo de quem acha que deve proteger os fracos.

IHU On-Line – Qual projeto de país está presente hoje no ideário das forças armadas?

Ana Penido – Não acho que exista essa visão geral hoje, e nem acho que deveria existir. Existem algumas questões mais específicas, já formuladas há décadas e que vez ou outra são requentadas como se fossem um projeto, como a formulação de que pelo nosso tamanho, riquezas e população somos “fadados” a ser grandes. Ou que é necessário povoar a Amazônia, como se ela não fosse já povoada, ou mesmo que falta coesão nacional. Na época do regime burocrático-autoritário, eles até tiveram projetos de governo, como fica nítido nas formulações do [Ernesto] Geisel sobre empresas nacionais e grandes projetos, como o Proálcool e o Nuclear. Existem também iniciativas de construção de cenários estratégicos de longo prazo, o que facilita no planejamento.

Um projeto de país é algo de outra envergadura, é uma tarefa eminentemente política, algo que não cabe a uma força armada profissional, e sim aos partidos políticos e movimentos/grupos sociais. Pensar um projeto nacional é fundamental para resolver o que alguns pensadores vêm chamando de crise de destino. Mas um projeto só existe fruto do conflito de ideias com outros setores da sociedade, capaz de ir produzindo sínteses, diferente da afirmação cristalina de objetivos nacionais permanentes. Ele é também fruto da correlação de forças, ou seja, de quais segmentos de fato estão se colocando para construir o Brasil, e não pegar o que for possível para benefício próprio, muitas vezes morando inclusive fora do país. Além disso, na democracia, é importante que os grupos submetam seus projetos ao escrutínio coletivo, o que só é possível por meio dos partidos políticos.

IHU On-Line – Como compreender a formação do militar brasileiro ao longo da história? E, atualmente, de que forma as academias articulam profissionalização e educação na educação militar?

Ana Penido – Quanto a esse aspecto mais histórico, na minha dissertação, elenquei algumas variáveis que conformariam o que chamei de ‘profissionalização à brasileira’. As transcrevo aqui rapidamente, sem me aprofundar muito, lembrando que é uma perspectiva temporal, que vem desde o século XIX.

1. Ocorreu por iniciativa militar e enfrentou a resistência de civis;

2. forte retórica anticomunista;

3. Forças Armadas – FFAA profissionais antes de outras burocracias de Estado;

4. enfrentou uma baixa cultura política e desinteresse pela defesa;

5. adotou o regime escolar de internato;

6. não contou com uma elite civil com preocupações nacionais;

7. ocorreu junto com muitas intervenções militares na política;

8. sofreu forte influência externa, por ordem de ocorrência, sendo que as duas últimas ocorreram em algum período de forma concomitante – Portugal (fomos colônia), Alemanha (pré-guerra), França (pós-missão francesa) e Estados Unidos;

9. enfrentou a polêmica conteudismo X praticismo, reflexos do positivismo – ou, como alguns estudiosos chamam, colocou em lados opostos ‘intelectuais’ X ‘tarimbeiros’;

10. funcionou como força modernizadora, inclusive da base econômica;

11. fortemente baseada no personalismo;

12. formação para múltiplas possibilidades de emprego externas e internas;

13. contou com elevada autonomia, com militares definindo as próprias diretrizes e sem participação civil;

14. baixa valorização docente;

15. conviveu com um conflitante sentimento de inferioridade militar (orfandade) X sentimento de superioridade militar sobre civis (salvaguarda nacional).

Atualmente, é preciso ressaltar que educação é uma dimensão do processo de profissionalização, e os militares são muito cuidadosos com essa parte, pois é a que garante sua reprodução técnica e simbólica enquanto corporação. O novo e o velho convivem. Por exemplo, eles se modernizaram muito do ponto de vista tecnológico, assim como correram atrás de serem reconhecidos a partir das regras da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, mas muitos pontos que abordei historicamente permanecem, como uma forte retórica anticomunista (hoje modernizada para Foro de São Paulo ou petistas ou outro inimigo interno de ocasião) e um sentimento de superioridade em relação ao mundo civil.

IHU On-Line – Como se dá a formação política e de relações internacionais nas academias militares?

Ana Penido – Conheço mais a partir das emendas das disciplinas, mas me parecem ter as questões teóricas tracionais da área, com um foco na formação e instituições do Estado no caso da disciplina de ciência política e nas normativas e organismos internacionais, incluindo os direitos humanos, no caso da disciplina de relações internacionais. Eles também têm ampliado o estudo de idiomas, em virtude do relevo que as missões de paz ganharam. Pessoalmente, em alguns momentos me lembrava das minhas aulas de religião obrigatórias no Ensino Médio, o que, independente da minha fé, me parecia pouco aplicável na época.

A questão aqui não está no currículo explícito, mas no oculto, por isso falar em formação num sentido mais amplo, e não apenas no ensino de conteúdos. Quando se observa essa parte, fica nítida uma visão tradicional de geopolítica, que caracteriza o momento atual como uma nova guerra fria entre China e Estados Unidos, e a tarefa brasileira de se aliar ao seu grande irmão do ocidente. Da mesma maneira, se percebe a perpetuação da visão tutelar das FFAA sobre o Estado brasileiro, embora seja ponderável se essa visão é factível. Há autores que pensam em poder moderador, numa função tutelar, em partido político militar ou mesmo em protagonistas não explícitos. Em todas essas formulações, aponta-se como as forças armadas brasileiras participam ativamente da política.

IHU On-Line – Que conceito de democracia e cidadania emergem do ideário dos militares hoje?

Ana Penido – Acredito que posso falar melhor sobre o conceito de democracia. Embora isso sempre esteja nos discursos, é um conceito restrito de democracia, baseado em seus aspectos formais, ou seja, a realização de eleições, organização partidária etc. Infelizmente, essa concepção de democracia limitada também é presente na sociedade. O sentido lato da formulação do Rousseau tratava da participação social como coração da democracia, como um meio para o desenvolvimento das potencialidades humanas, individual e coletivamente, combatendo uma visão elitista em que apenas uma parte da sociedade está qualificada para decidir por todos. Infelizmente, essa visão é pouco resgatada. É preciso lembrar que democracia prevê o conflito de ideias, manifestações públicas e outras coisas que, no ponto de vista deles, são geradoras de instabilidade, e, de forma geral, militares gostam dos cenários o mais previsíveis possível.

A visão de cidadania, que sustenta esta democracia, também é elitista. A cidadania é determinada pelo mérito, com uma visão de que quem alcança maiores postos, por mérito e estudos próprios, seria um cidadão melhor preparado para o exercício da cidadania, especialmente da cidadania política.

IHU On-Line – A senhora pesquisou a Academia Militar das Agulhas Negras – Aman. O que mais a surpreendeu nesse trabalho? Como, a partir daquela sua experiência, compreende os movimentos dos militares de hoje?

Ana Penido – O que mais me surpreendeu foi, como disse, a mistura do novo com o velho, do moderno e científico com concepções até quase místicas, como a do anticomunismo. Acho que tanto a ida de muitos militares para o governo, assim como a mais recente tentativa de afastamento da instituição militar do governo podem ser vistas a partir daí. Nas escolas, são formados fortes laços de solidariedade, que continuam por toda a vida, ainda que o presidente tenha saído da caserna. Alguns dos seus colegas de turma se tornaram seus subordinados de governo. Isso é coerente com a ideia de que a família militar está acima de tudo.

Por outro lado, se fala muito em profissionalização no Exército, o que se inicia na Aman, e o básico para isso é não ter uma instituição politizada, por isso vêm ocorrendo tentativas de se mostrarem como algo distinto do governo. Eles se consideram bons profissionais, e julgam que eram mal aproveitados pelos governos anteriores. Entretanto, temos que refletir, pois se a Aman estiver formando bons gestores públicos, temos aí um problema, pois o que ela precisa formar são bons profissionais para a defesa nacional. Por fim, e talvez o mais importante, é plantada na escola e depois amadurece durante a carreira a ideia de que eles são mais responsáveis pelo destino da nação, mais patriotas, mais nacionalistas, que o povo brasileiro em geral. Essa ideia é incoerente quando se pensa a guerra moderna, além de estar na fonte dos nossos problemas de relação civil-militar.

IHU On-Line – Como avalia essa proposta da gestão civil/militar em escolas públicas? Quais os limites e as potencialidades desse projeto?

Ana Penido – Avalio que o projeto é na verdade uma forma do presidente falar com a própria base, sem resolver a questão da educação, que vem sendo mal avaliada e sofrendo cortes orçamentários, não só a nível universitário. Em primeiro lugar, as escolas militares em nível de ensino médio, que é a quem o projeto se destina, apresentam melhores resultados que as escolas comuns, pois têm um valor investido por aluno muito superior à média das escolas públicas. A educação nas escolas federais também recebe mais recursos, e tem resultados ainda melhores que a rede militar, ou seja, se fosse para adotar a ideia de “escolas modelo”, algo bastante discutível, o padrão a ser seguido seria das escolas federais ou das escolas de aplicação das Universidades, quase extintas. Cabe pontuar que até o salário dos professores é diferente, o que faz com que tenham mais disposição para atividades no contraturno escolar.

Outra questão é o desvio de recursos da área da educação para área da defesa, o que não resolve o problema orçamentário nem de uma área e nem de outra. Um terceiro ponto é a previsão de contratar soldados. Num país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, e não conseguir um “extra” para quem mantiver a fidelidade política de quem já tem.

Uma quarta questão é a relação da escola com a comunidade. Diferente das escolas em geral, as militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola. Por fim, talvez o mais cruel, o projeto vende uma ideia de moralização das escolas através da disciplina. Acredito que deveria ser óbvio que um corte de cabelo curto não é o que vai “salvar a nossa juventude das drogas”, seja lá o que isso significa.

IHU On-Line – Durante parte do regime militar, uma das marcas do governo foi o nacionalismo e o projeto de desenvolvimentismo, numa valorização do Estado. Como essas duas marcas aparecem – ou desaparecem – nos militares de hoje?

Ana Penido – A esse respeito, recomendo que as pessoas leiam a entrevista do Geisel publicada pelo CPDOC . É nítida uma visão de modelo de desenvolvimento, em especial ao se observar a discussão sobre o petróleo. A ideia de desenvolvimentismo estava ligada à de segurança nacional, ou, em outros termos, de conseguirmos, enquanto país, provermos autonomamente os recursos mais estratégicos para a nossa própria defesa, não ficando dependentes de elementos como os combustíveis. Essa ideia raramente me parece presente. Hoje a maioria dos oficiais tem afinidade de leitura com a Fundação Getulio Vargas ou com a Globonews, e adotaram, portanto, o neoliberalismo econômico, como pôde ser visto no episódio da venda da Embraer.

Com relação ao nacionalismo, essa é uma discussão bastante complexa. Me parece que, muitas vezes, é um nacionalismo focado na questão do território e no domínio das fronteiras. Por outras vezes, me parece um nacionalismo declaratório, sem substância. Essa questão mereceria uma investigação aprofundada, mas um ponto que eu levantaria é a formação pautada pela adoção de doutrinas e equipamentos de outros países. Isso pois, para mim, e impossível pensar em nacionalismo sem pensar em uma inserção autônoma do nosso país no mundo, em ciência e tecnologia nacional, em desenvolvimento autóctone. Qual o sentido, por exemplo, de ter um submarino nuclear que vai fazer a segurança da Shell? Problema parecido sofre o conceito de soberania. Para resolver isso, precisaríamos avançar muito coletivamente como povo, amadurecendo nossas raízes, e deixando de buscar ser o que os outros são ou pior, o que querem que nós sejamos.

IHU On-Line – Como a experiência das forças armadas brasileiras no Haiti incide na formação e atuação dos militares brasileiros? Na sua avaliação, qual o saldo da participação brasileira nessa operação?

Ana Penido – A experiência no Haiti preparou os militares para atuarem em ambientes urbanos, com conflitos e pobreza. Se tornou também uma fonte de prestígio e de recursos para indivíduos e para as FFAA. Era a “guerra possível” para um país com o peso internacional do Brasil, que desejava uma cadeira no Conselho de Segurança na ONU, mas na verdade, se tornaram uma fonte de prestígio e recursos para as FFAA e para indivíduos. É um cenário similar às missões de Garantia da Lei e da Ordem que ocorreram nas comunidades do Rio de Janeiro e na mais recente intervenção federal. Como o próprio Villas Bôas já apontou, não adiantam, pois assim que os instrumentos de força e coerção social são desmobilizados, a situação volta à sua gravidade.

Na verdade, a questão mais importante para mim a esse respeito é que precisamos entender que nem todos os problemas são resolvidos através da securitização dos temas e do emprego da força. Por aqui, os militares são usados para combater as drogas, mosquitos, a pobreza, a seca, enfim, um conjunto de questões que não são resolvidas através da força, e sim de políticas públicas como saúde, segurança etc. Talvez caiba uma discussão sobre os batalhões de engenharia, mas isso seria outra discussão. No geral, elas já sabiam doutrinariamente atuar contra o inimigo interno, e nesse sentido o Haiti não faz sentido teórico, embora ofereça prática. Por outro lado, aprenderam a importância de idiomas e cresceram em capacidade para interagir com forças de outros países.

IHU On-Line – Qual o perfil dos jovens que ingressam nas forças armadas? Em que medida esses jovens militares se identificam com o ideário dos evangélicos, especialmente em relação ao governo Bolsonaro?

Ana Penido – Eu fiz esse estudo mais específico para o Exército, mas o professor Celso Castro estava fazendo também para a Marinha. Desconheço pesquisas sobre a Aeronáutica. Assim como no restante da sociedade, ocorreu uma queda no número dos cadetes católicos e um crescimento dos cadetes evangélicos, que já chegam a um terço daqueles que ingressam na Aman. É preciso ponderar que uma parte desses resultados tem relação com a representação do estado do Rio de Janeiro (notoriamente evangélicos) entre os cadetes que ingressam.

Não sei avaliar se a questão religiosa é a que mais pesa na identificação dos cadetes com o presidente. Acredito que não, seja porque o presidente trabalha a questão religiosa muito mais enquanto marketing político do que enquanto fé, seja porque o ethos militar, produto do espírito de corpo, é mais forte do que a questão religiosa, que por vezes tem origens familiares.

Mas isso me suscita um outro debate mais grave. Nosso ecletismo religioso sempre fez com que entre as hipóteses de conflito dentro do Brasil e do Brasil com outros Estados, diferente de muitas nações, as guerras religiosas não estivessem no cenário. Com o alinhamento automático do Brasil aos Estados Unidos e mesmo a Israel, combinado com o crescimento de um neopentecostalismo mais radical, inclusive entre os militares, me pergunto se essa hipótese não é mais assim tão descartável.

IHU On-Line – Levar militares para rua é uma forma viável de combater o crime organizado? Por quê?

Ana Penido – É inegável a existência de uma crise na área da segurança pública, representada pelo assustador dado de que apenas 8% dos crimes cometidos é elucidado. Assim como no caso das forças armadas, a influência francesa e estadunidense é perceptível. Temos duas polícias, uma militarinspirada nas forças armadas, e outra civil, de base política-jurídica, e ambas têm dificuldades para se entender, compartilhando uma tradição de investigações baseadas em provas testemunhais e não em provas técnicas. E a violência “à brasileira” é um misto de procedimentos arcaicos e modernos, ou seja, métodos e equipamentos para investigações ultramodernos são combinados não raras vezes com violações dos direitos humanos fundamentais, como a tortura.

É forte o sentimento de ineficiência, e parte da população escolhe mais violência como forma de combater a violência, mas não se resolve a crise com a equação mais armamento, mais polícia, mais prisão e maiores penas. Na realidade, as respostas à esquerda (apenas com a mudança estrutural da desigualdade) e à direita (apenas com endurecimento penal) são insuficientes para resolver a violência e a crise na segurança pública.

Diante desse cenário, as forças armadas, em especial o exército brasileiro, vem a cada dia sendo mais intensamente empregado em questões de segurança pública, embora hoje a polícia militar tenha o contingente três vezes superior ao das forças. Essa atuação é prevista constitucionalmente, como Instrumento de Garantia da Lei e da Ordem, embora não necessariamente legítima. As polícias e as forças armadas podem empregar a força, mas as corporações têm (ou deveriam ter) objetivos, doutrinas, armamentos e instrução absolutamente distintos. Em síntese, as polícias devem se preocupar com os cidadãos, enquanto as forças armadas devem defender o país. A ideia de inimigo interno, combinada com a de guerra ao terror, é explosiva e equivocada.

É importante deixar claro que o não emprego das FFAA nos conflitos não significaria que a questão da violência estaria resolvida. Mas a entrada do exército no conflito também não diminui os índices de violência (e nem poderia), e ocorrem vários efeitos colaterais do processo de ‘policialização’ das forças armadas, a saber: muda a escala de importância das atribuições das forças armadas que vão gradualmente sendo desprofissionalizadas; o Exército se torna força auxiliar da polícia, os militares passam a ser empregados no conflito violento contra compatriotas; as instituições se fragilizam e ficam mais suscetíveis a discursos demagógicos; ocorrem reformulações doutrinárias; recursos antes destinados à defesa são realocados para a segurança; cresce a tutela militar sobre o poder civil e o consequente autoritarismo político, enfim, um conjunto de questões que coloca em risco a democracia e a soberania brasileiras.

No entanto, é possível pontuar três questões que melhorariam a atuação da polícia, a saber: investimento na profissionalização, com ensino em acordo com as diretrizes dos direitos humanos; melhorias na gestão, com o aumento do controle social; e ampliação da utilização da tecnologia. Também é possível discutir a necessidade de criação de uma guarda nacional, uma vez que a força nacional de segurança pública é frágil institucionalmente. Às forças armadas cabe, prioritariamente, a defesa da nação diante de ameaças externas.

IHU On-Line – Que leitura a senhora faz dos militares que integram o governo de Jair Bolsonaro? Quem são eles? Que papel assumem e como se deu a formação deles?

Ana Penido – Repensei algumas coisas depois da demissão do general Santos Cruz, diga-se de passagem, nosso único militar com experiência de guerra, e que não contou com o apoio dos seus pares no governo. Eu acreditava que eles tinham entrado em massa com a ideia de moralizar o governo e tutelar o presidente. Passados os primeiros meses, viram que nem uma coisa nem outra é possível. Os militares não são a força dirigente do governo Bolsonaro. Quando pressionado, o presidente sempre fica com a “famiglia”.

Acredito que os que ficaram, espalhados em funções-chave diversas do governo, em especial os da reserva, são os que têm afinidade ideológica com o governo, alguns tendo inclusive se formado juntos, ainda durante o regime militar, e não são apenas “técnicos querendo prestar serviços à nação”. Ganharam relevo ambições pessoais, sejam elas políticas, de status ou financeiras. E acrescentaria, o fato de tantos militares estarem no governo não fez com que a área de defesa fosse valorizada enquanto política pública.

IHU On-Line – Como os militares de hoje compreendem a soberania nacional a partir do caso da Amazônia? Podemos afirmar que a pauta da Amazônia é ainda uma das poucas que traz unidade entre os militares e o restante do Governo Bolsonaro?

Ana Penido – Não sei dizer se é uma das poucas, mas é sim uma pauta que traz unidade ao governo, afinal, nada melhor para trazer unidade que um inimigo, e com os meses, o argumento “a culpa é do PT” vai perdendo força, pois são esperados resultados. No mais, a discussão parece a mesma de décadas atrás. Muitas falas sobre a importância de “povoar” a região, integrar com obras de infraestrutura (pontes, hidrelétricas…), a dureza da nossa legislação ambiental, a necessidade de desenvolver economicamente para combater os crimes, de explorar, inclusive os minerais das terras indígenas, de combater as ONGs que fazem biopirataria e levam os índios a acreditar que eles podem ser uma nação, críticas à demarcação de terras indígenas nas áreas de fronteira, em especial no corredor Triplo A. De novidade, a preocupação com a fragmentação interna da Venezuela; com a expansão chinesa via Guiana e Suriname; e com o sínodo do Vaticano.

Concordo com alguns elementos, discordo de outros, mas, principalmente, acho triste constatar que damos as mesmas respostas a questões identificadas décadas atrás, sendo que algumas dessas respostas foram tentadas e não ofereceram bons resultados. É óbvio o interesse externo sobre a Amazônia. Mas no meu entendimento, ela deve servir, em primeiro lugar, para proporcionar uma vida boa para o povo que nela habita. Tenho um artigo sobre isso chamando a necessidade para mantermos, como se diz no interior, um olho no gato e o outro na cumbuca.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ana Penido – Precisamos delimitar e definir melhor em que nossas forças armadas devem ser empregadas, o que tem relação com a grande estratégia brasileira. Sem clareza nas tarefas, é difícil fiscalizar seu desempenho, controlar o orçamento, evitar a autonomia, perceber se as atividades-meio têm levado a resultados concretos nas atividades-fim, se a formação está adequada, entre outras questões. No mundo atual, a tendência é a especialização do trabalho, e não fazer um pouquinho de um bocado de coisas.

Uma segunda questão que acredito que deve ser objeto de atenção de todo o povo brasileiro é a possibilidade de as forças armadas perderem o monopólio da violência estatal, seja para as milícias (forças paramilitares) organizadas, seja para o aumento do poder de fogo das polícias militares. No caso das primeiras (diga-se de passagem, fora da preocupação do ministro da justiça Sérgio Moro), está pouco claro seu grau de influência no poder público, com a possibilidade de terem inclusive se infiltrado nas forças armadas. No segundo caso, o crescimento do poder de fogo dos equipamentos, o tamanho do efetivo, e até mesmo propostas como a do governador do Rio de criar o cargo de general nas polícias acendem um botão de alerta. Para quem acha que com as forças armadas, com hierarquia e disciplina está ruim, acreditem, é muito, mas muito pior sem elas.

Por fim, cabe o alerta que todo cientista político faz sobre essa participação no governo e as possibilidades de quebra de hierarquia. “Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pela outra”, e a história militar do nosso presidente é a comprovação disso.

 

Por: João Vitor Santos | 07 Outubro 2019

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS

A criação de uma Guarda Nacional no México: militarização da segurança pública e autonomia dos militares

João Estevam dos Santos

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação

San Tiago Dantas, bolsista CAPES e pesquisador do Gedes.

 

No dia 28 de fevereiro de 2019, o congresso mexicano aprovou a lei que deu aval à criação de uma Guarda Nacional, com jurisdição federal. A nova força seria composta por 60.000 efetivos, vindos da Polícia Federal (18.000), Polícia Militar (35.000) e da Polícia Naval (8.000) – sendo que os dois últimos corpos policiais são subordinados, respectivamente, à Secretaria de Defesa Nacional, responsável pelo Exército e pela Força Aérea e à Secretaria da Marinha, que comanda a Marinha do México. Por sua vez, a Guarda Nacional está sob controle da Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã, órgão criado em 2018 pelo novo governo e que é responsável por tarefas de segurança pública, ao invés da Secretaria de Defesa Nacional.

lei aprovada também definiu os objetivos e a estrutura da Guarda Nacional. O objetivo central definido para essa força foi a investigação e combate a delitos cometidos em localidades sob jurisdição do governo federal. Essa força pode ser considerada uma instituição “híbrida”, uma vez que, apesar de estar subordinada a uma secretaria civil, seus integrantes são em sua maioria militares e sua estrutura é análoga à do Exército. Além disso, o Comandante escolhido pelo presidente foi um militar da ativa, com patente de general.

O projeto de criação de uma Guarda Nacional foi idealizada pelo presidente eleito do México em 2018, Andrés Manuel López Obrador (cujo partido é o MORENA) e foi incorporado no seu Plano Nacional de Paz e Segurança 2018-2024. Essa medida constituía uma de suas principais apostas para a reformulação do combate ao crime organizado, sobretudo ao narcotráfico. Segundo aquele documento, a criação de uma Guarda Nacional seria uma alternativa à utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública – medida criticada por López Obrador quando ainda era candidato. No dia 30 de junho de 2019, foi anunciada a entrada em funcionamento da Guarda Nacional. Efetivamente, a nova força é composta por 70.000 integrantes, empregados nas 150 regiões mais violentas do país e com o objetivo de chegar a 82.000 integrantes até o final do ano e a 150.000 até 2023. A nova força também foi designada para substituir a Polícia Federal (devido aos seus altos índices de corrupção e de ineficiência).

A criação de um corpo intermediário de segurança gerou novos insumos a dois debates de grande importância no México: a militarização da segurança pública e as relações civis-militares. No que tange ao primeiro tema, as Forças Armadas mexicanas possuem um papel histórico no provimento da segurança interna e no combate ao narcotráfico. Entretanto, esse fato começou a intensificar-se a partir sobretudo dos anos 2000, com o fortalecimento dos cartéis mexicanos. Porém, foi a partir de 2006, no governo de Felipe Calderón (2006-2012) que houve uma escalada ainda maior do emprego de militares na segurança interna do país, com o presidente tendo declarado oficialmente guerra às drogas e empregado mais de 45.000 militares no combate ao narcotráfico. Dessa maneira, nas décadas de 2000 e de 2010 o número de militares empregados em missões antinarcóticos cresceu de 30.991 em 2000 para em torno de 52.000 em 2018.

Apesar de algumas mudanças no governo Peña Nieto, os militares permaneceram nas ruas, fazendo com que uma medida declarada como temporária em 2006 se estendesse por 13 anos. Apesar disso, os resultados apresentados têm sido bastante insatisfatórios. Entre 2006 e 2018 houve 225.790 homicídios; número de homicídios em 2017 foi o mais alto desde 1997 e atualmente existem mais de 27.000 pessoas desaparecidas.

No referente a questão das relações civis-militares, as Forças Armadas no país desfrutam, historicamente, de uma autonomia. Essa autonomia consolidou-se durante o regime do Partido Revolucionário Institucional (PRI) ao longo da maior parte do século XX e continuou mesmo após o fim da hegemonia do partido em 2000, com a vitória do presidente Vicente Fox. Desse modo, não houve uma reforma institucional nas Forças Armadas que as subordinassem plenamente ao setor civil como ocorreu em outros países da América Latina. A estrutura de comando dos militares permaneceu intacta, com estes estando subordinados à Secretaria de Defesa Nacional (no caso do Exército e da Força Aérea) e à Secretaria da Marinha, duas instituições independentes, subordinadas apenas à Presidência da República. Traço indicador dessa autonomia ainda existente, o setor militar tem se agrupado enquanto estamento a fim de influenciar decisões políticas, como foi o caso da forte influência dos militares na aprovação da Lei de Segurança Interior pelo Congresso em 2017, que concedia maiores poderes para as Forças Armadas desenharem e implementarem políticas de segurança. Entretanto, essa lei foi anulada pela Suprema Corte de Justiça porque muitos pontos contidos nela eram incompatíveis com a Constituição do país.

Assim, no que se refere à primeira questão, embora a criação de uma força intermediária seja utilizada por países que buscaram estabelecer algum grau de diferença entre segurança interna e defesa, como Argentina (Gendarmería) e Chile (Carabineros), a incorporação de militares como mais da metade de seu contingente não permite deixar de falar sobre militarização de segurança pública e de desvio de funções por parte dos militares. Apesar do novo treinamento que receberão enquanto membros da Guarda Nacional, é sabido que os objetivos, as doutrinas e o treinamento das instituições militares diferenciam-se bastante daqueles encontrados em forças de segurança civis. Além disso, a utilização de militares em uma força intermediária e “híbrida”, com estrutura análoga às das Forças Armadas e comandadas por um general do Exército demonstram que, ao invés de ser uma iniciativa para desmilitarização do combate a delitos e a organizações criminosas, a criação da Guarda Nacional parece consolidar a institucionalização do uso de militares em funções policiais.

Cabe destacar que as forças militares de um país são treinadas com o objetivo de neutralizar qualquer agente que ameace subverter a ordem normativa interna daquela sociedade – o “inimigo”. No entanto, no caso do crime organizado e de outras atividades ilícitas, não se trata de uma subversão da ordem interna, mas de agentes que auferem ganhos à margem dela – nesse caso, são considerados “delinquentes”. A criação de um corpo de segurança que conta com a presença de militares que possuem doutrinas e estratégias próprias (ainda que submetidos a um novo tipo de treinamento – mas por um tempo relativamente curto) e treinados para liquidar “o inimigo” não faz com que o problema da militarização da segurança pública seja superado. E isso ocorre justamente porque não há uma compatibilização entre dois tipos de forças coercitivas (militares e policiais), visto que elas próprias possuem razões de ser diferentes.

Assim, o que se tem visto no caso de alguns países latino-americanos, como a Colômbia, é a transformação das Forças Armadas, mediante renovação doutrinária e reestruturação organizacional para permitir uma melhor participação em tarefas de segurança pública. Também há a possibilidade de realizar uma reestruturação dos corpos policiais para uma atuação mais intensa no combate a grupos criminosos, que contam com armamentos pesados e grande capacidade de organização. No entanto, no caso mexicano, a criação da Guarda Nacional não resolve nem um problema nem o outro.

Apesar dessas críticas à criação do novo corpo armado, esta representa uma mudança significativa e uma busca por tentar solucionar a desprofissionalização das Forças Armadas, que passaram por um processo de reestruturação organizacional durante o governo de Calderón para melhor adequar-se ao combate ao crime organizado. Dessa maneira, pode-se dizer que há uma “suavização” do problema do emprego dos militares em atividades de segurança pública, dado que as Forças Armadas enquanto instituições não continuarão a ter esse papel no longo prazo, mas apenas uma parcela das forças.

No que se refere às relações civis-militares, a criação da Guarda Nacional parece perpetuar uma situação histórica de autonomia das instituições militares no processo decisório. A nomeação de um militar, ainda que subordinado à Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã, permite ver que o setor militar ainda possui grande capacidade de influência nos processos de tomada de decisão na área de segurança. Aliado a isso, a falta de perspectivas de uma reforma na estrutura das Forças Armadas, a fim de subordiná-las ao poder civil, bem como a falta de modificações no sistema doutrinário ou nos tipos de missões delegados às Forças Armadas corrobora a percepção de que, ao invés de uma mudança radical na política de segurança mexicana, a criação de uma Guarda Nacional apenas reforçará o mesmo tipo de interação entre Forças Armadas e poder civil. Além disso, é importante mencionar que a continuação da presença de militares em tarefas de segurança pública – ainda que em um corpo de segurança diferente das Forças Armadas – perpetua o seu prestígio ante o governo que  tem sido usado desde a década de 1990 e reforçado a partir dos governos Fox e Calderón para garantir a sua autonomia.

 

Imagem: Desfile Comemorativo da Independência mexicana |  Presidencia de la República Mexicana.

Memória e verdade: sobre a necessidade de manter acesa a história da resistência ao autoritarismo

Os ataques de Jair Bolsonaro à memória dos presos políticos, torturados e executados pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985) devem ser interpretados como um assalto à democracia brasileira. Seria ingênuo afirmar que as manifestações raivosas e mentirosas do presidente quanto à memória de Fernando Santa Cruz são o ápice de uma comunicação verborrágica e que demonstra o desafeto de Bolsonaro às instituições democráticas. A carreira política do capitão da reserva do Exército brasileiro foi erigida sobre declarações e posicionamentos violentos e inverossímeis; não é inusitado antever a recorrência de falas virulentas. Listamos a seguir alguns dos episódios indignantes de louvor do atual presidente da República ao autoritarismo.

O atual chefe do Executivo constantemente se apresentou como uma personagem afeita à ditadura militar brasileira. Antes de assumir a presidência em 2019, Jair Bolsonaro afirmou que a ditadura brasileira deveria ter executado um número maior de seus oponentes políticosostentou imagens repugnantes de chacota à busca de ossadas dos combatentes da Guerrilha do Araguaia, e celebrou solitariamente o golpe de 1º de abril de 1964 em frente ao Ministério da Defesa, no ano de 2013.  Durante o rito do impeachment, o voto de Bolsonaro foi precedido de louvores ao reconhecido torturador da ditadura militarCarlos Alberto Brilhante Ustra, responsável, dentre outras dezenas de vítimas, pela tortura da presidenta Dilma Rousseff.

Marca de sua campanha, a falta de compromisso com a memória e a verdade histórica também se fez presente ao zombar da tortura e execução do jornalista Vladimir Herzog 1975, na sede do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na cidade de São Paulo. Na ocasião, Bolsonaro afirmou: “suicídio acontece, pessoal pratica suicídio”. Os fatos contrariam as alegações de Bolsonaro. O Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de investigação e responsabilização dos torturadores de Herzog. Após ser empossado presidente da República, a postura de Bolsonaro permaneceu inalterada. Ao final do mês de março, determinou que o Ministério da Defesa realizasse celebrações nas unidades militares em referência ao início da ditadura militar. O 31 de março havia sido retirado do calendário oficial de comemorações das forças armadas em 2011, no governo Rousseff – mais de duas décadas após o fim do regime. Em julho, contrariou a história da repressão no país, e mesmo documentos oficiais do Estado, ao negar a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão e a execução de Fernando Santa Cruz. As declarações foram acompanhadas de caracterizações pejorativas das vítimas, atribuindo-lhes a participação em movimentos da resistência armada à ditadura brasileira. Quando questionado acerca da inverossimilhança das declarações, o chefe do Executivo afirmou que os documentos históricos em relação aos mortos durante a ditadura militar são “balela”.

A comunicação verborrágica – que revela a covardia de enfrentar a verdade – também resulta em políticas materiais. Um decreto assinado por Bolsonaro e pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, determinou a alteração de 4 dos 7 membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A nova composição da comissão responsável por investigar crimes da ditadura passa a contar com militares e filiados do Partido Social Liberal (PSL). Em agravo, entre os novos integrantes há defensores do período autoritário, como o deputado federal, Filipe Barros (PSL-PR).

O revigoramento das narrativas estapafúrdias sobre a ditadura militar no Brasil pode ser parcialmente atribuído à incapacidade em investigar os crimes do regime autoritário e responsabilizar seus autores. O empenho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) permitiu desnudar parte das violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Instituída durante o governo Rousseff a partir da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, a CNV teve como objetivos centrais a efetivação do direito à memória e à verdade histórica e a reconciliação nacional.

A proposta de uma comissão que investigasse os crimes da ditadura remonta ao ano de 2004, quando o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a organização do Arquivo da Intolerância, cuja função era tornar público o acesso documentos referentes a torturas, prisões e desaparecimentos ocorridos durante o regime militar e que estivessem sob a tutela do Estado brasileiro. Entretanto, o decreto 4.553 assinado na última semana do governo de Fernando Henrique Cardoso, aumentou o prazo de duração da classificação de documentos ultrassecretos para 50 anos renováveis indefinidamente, “de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”. A conjuntura política à época, somada ao debate público que surgiu sobre o tema e às barreiras impostas pelas forças armadas, postergaram a efetivação do projeto do presidente Lula (SAINT-PIERRE; WINAND, 2007, p. 69).

A comissão atuou durante o governo Rousseff, em meio a debates relacionados à revisão da Lei da Anistia brasileira (1979) e ao aniversário de 50 anos do golpe de 1964. Temas sensíveis trabalhados pela Comissão, como a execução dos componentes da Guerrilha do Araguaia e a participação brasileira na Operação Condor, estiveram entre os debates da CNV e foram divulgados pelos principais veículos de comunicação do país à época. A operacionalização da CNV, contudo, foi seguidas vezes obstaculizada pelas forças armadas brasileiras, interessadas em evitar o acesso e a divulgação de documentos que comprovassem sua responsabilidade na repressão violenta (WINAND; BIGATÃO, 2014).

Após mais de dois anos de extensivos trabalhos de pesquisa documental e coleta de depoimentos, a Comissão publicou em três volumes seu relatório final, entregando-o em 10 de dezembro de 2014. De lá para cá, mesmo as aparentemente incontestáveis e exequíveis recomendações ali permaneceram. Apesar dos esforços de investigação e identificação dos responsáveis conduzidos pela CNV, seu empenho não ecoou entre representantes políticos e seu eleitorado. A onda autoritária contemporânea no Brasil aderiu a narrativas deturpadas sobre o período ditatorial.

Os projetos brasileiros para a conservação da memória e para a garantia do direito à verdade em relação à ditadura militar permanecem tímidos diante da ação de outros Estados para a preservação da história de regimes autoritários. Em outros países sul-americanos, assim como nos países que outrora foram ocupados pelo fascismo e o nazismo na Europa, a marca indelével da violência de regimes autoritários é reavivada no cotidiano como sinal de respeito às vítimas do passado e lembrete às novas gerações. Para além das comissões da verdade instaladas ainda na década de 1980, Argentina, Chile e Uruguai, sediam edificações destinadas à preservação da história dos regimes autoritários. Um olhar para essas experiências internacionais pode contribuir para aventarmos iniciativas de preservação da verdade no Brasil.

No Chile, o Parque por La Paz Villa Grimaldi, resignificou um centro de sequestro, tortura e extermínio gerido pela Dirección de Inteligencia Nacional. Na cidade de Santiago, o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos garante visibilidade às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1973 e 1990 e tem como missão estimular debates para que as atrocidades da ditadura de Pinochet não se repitam. Na Argentina, o Archivo Provincial de la Memoria, na cidade de Córdoba, é apenas um dos monumentos de preservação da história recente de autoritarismo e violência. Em Buenos Aires, o Parque de la Memoria recorda “as vítimas do terrorismo de Estado”; enquanto o Museo de la Memoria de Rosário mantém vívida a memória das crianças sequestradas pelo Estado argentino. Em Montevideo, no Uruguai, o Centro Cultural Museo de la Memoria possui uma exposição permanente com objetos, fotografias e documentos que retratam as prisões, a resistência popular e o exílio.

Que seja inequívoco: a defesa dos valores democráticos demanda posturas intransigentes diante da ressaca do autoritarismo. Hoje, esse movimento requer um inabalável apreço pela verdade e um profundo respeito pela memória daqueles que, lutando pelo retorno da democracia e da liberdade, foram aprisionados, torturados ou executados pela ditadura. O resguardo da verdade histórica contribui para a identificação dos arroubos autoritários e de suas manifestações violentas no presente e evita o seu ressurgimento erigido com base em narrativas distorcidas.

 

Referências Bibliográficas:

SAINT-PIERRE, Héctor Luis; WINAND, Érica. O legado da transição na agenda democrática para a Defesa: Os casos brasileiro e argentino. IN: Controle civil sobre os militares e política de defesa na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguay. Org: Héctor Luis Saint-Pierre. São Paulo: Editora UNESP: Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNESP, Unicamp, e PUC-SP, 2007.

WINAND, Érica Cristina A.; BIGATÃO, Juliana P. A política brasileira para os direitos humanos e sua inserção nos jornais: a criação da Comissão Nacional da Verdade. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. v. 2, n. 2. 2014. p. 41-52.

 

Leonardo De Paula e Laura Donadelli são pesquisadores do GEDES e, respectivamente, mestrando e doutoranda pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

 

Imagem: Comissão Nacional da Verdade. Por: Júlia Lima/ PNUD Brasil.