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Dez Anos De Resistência Das Unidades De Defesa Das Mulheres (YPJ): um balanço da primeira década da guerrilha curda exclusivamente feminina em Rojava

Letícia Gimenez*

Criadas em 4 de abril de 2013 em Rojava, território autônomo no norte e leste da Síria instituído em 2012 após a Primavera Árabe, as Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ – sigla que advém de Yekîneyên Parastina Jin do Kurmanji, dialeto curdo) compõem uma guerrilha exclusivamente feminina de maioria étnica curda. As YPJ são um dos elementos internacionalmente mais famosos e reconhecidos da Revolução de Rojava, principalmente pela sua atuação no enfrentamento e consequente expulsão do Estado Islâmico na Guerra da Síria, libertando milhares de mulheres escravizadas em uma imensurável façanha da humanidade contra o extremismo. O presente texto busca refletir a trajetória e relevância das Unidades de Defesa das Mulheres – que completam sua primeira década de existência e resistência em 2023 – juntamente ao contexto atual enfrentado por Rojava, que se encontra diretamente ameaçada pela Turquia – país que realiza constantes ataques de drones, tendo invadido e ocupado militarmente partes do território autônomo desde 2016.

Em outubro de 2017, a cidade de Raqqa – localizada na Síria e considerada a capital do Estado Islâmico, onde milhares de mulheres yazidis foram escravizadas e sexualmente traficadas – foi liberada do grupo jihadista. A liberação ocorreu a partir de um anúncio histórico dedicado a todas as mulheres no mundo, sendo que a comandante da operação liderada pelas Forças Democráticas Sírias (SDF) era Rojda Felat, uma mulher curda e combatente das YPJ. As Unidades de Defesa das Mulheres são constituídas a partir dos objetivos de autodefesa e de libertação das mulheres, o que reflete suas dimensões ideologicamente revolucionárias. As YPJ podem ser entendidas como um Ator Não-Estatal Violento [1] paramilitar, insurgente, étnico-nacionalista, totalmente feminino e também feminista, tendo como lema Jin, Jiyan, Azadi! (“Mulher, Vida, Liberdade!”).

Nesse sentido, a guerra contra o Estado Islâmico é também uma guerra contra o sistema patriarcal, pois, ao derrotar o inimigo, destroem-se as imposições violentas às quais são submetidas as mulheres no projeto de sociedade e de Estado imposto pelo grupo. Em 2016, um banner em al-Qamishli, considerada capital de Rojava, declarava: “vamos derrotar os ataques do Estado Islâmico garantindo a liberdade das mulheres no Oriente Médio”. Portanto, ao enfrentá-lo militarmente, as guerrilheiras das YPJ buscaram e seguem buscando reconstruir a sociedade e as relações de gênero locais. Assim, é possível compreender os motivos que levaram ao “hype” ocidental em torno das guerrilheiras curdas, tendo em vista o caráter inovador do surgimento da guerrilha exclusivamente feminina no Oriente Médio, região amplamente vista como uma das mais violentas do mundo para mulheres. No entanto, é importante ressaltar que parte da fascinação midiática ocidental em relação às combatentes curdas se deu de forma distorcida, sexualizada e orientalista – debate presente neste artigo e monografia –, sendo elas posteriormente esquecidas e silenciadas pela mídia após a expulsão do Estado Islâmico.

No que concerne ao aspecto étnico-nacionalista das Unidades de Defesa das Mulheres, suas combatentes são voluntárias e majoritariamente curdas, embora não seja obrigatório pertencer ao grupo étnico, havendo também a presença de mulheres árabes, assírias, armênias, entre outras etnias da região, além de internacionalistas de diversos países. As YPJ não representam a primeira vez que as mulheres curdas se organizam na luta armada; pelo contrário, são apenas a continuidade histórica da resistência já praticada: em 1984 elas já integravam as Forças de Defesa Popular – a guerrilha mista do Partido dos Trabalhadores do Curdistão –, sendo em 1993 criadas as primeiras unidades de guerrilha exclusivamente femininas, conhecidas como YJA-Star.

A chamada “questão curda” permeia, então, o surgimento das YPJ e sua atuação, assim como a Revolução de Rojava como um todo. Em linhas gerais, os curdos, o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio, tiveram seu território violenta e colonialmente fragmentado em quatro partes com a criação de novos Estados no pós-Primeira Guerra Mundial, a partir da dissolução do Império Otomano. Assim, o Curdistão é um Estado-nação que não existe formalmente, pois suas fronteiras estão ocupadas pela Turquia, Síria, Irã e Iraque, em territórios cuja população é multiétnica, mas de maioria curda e que são respectivamente denominados como: Bakur (Curdistão Norte/turco), Rojava (Curdistão Oeste/sírio), Başûr (Curdistão Sul/iraquiano) e Rojhilat (Curdistão Leste/iraniano).

A partir da vivência de um século frente às consequências da limpeza étnica, assimilação cultural, genocídio e divisão de seu território, parte do movimento curdo, representado pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e em uma virada pós-nacionalista na década de 1990, teorizou o Confederalismo Democrático. A proposta do Confederalismo Democrático abandona o ideal de criação de um Estado curdo, baseando-se em um sistema de organização social de democracia radical, caracterizado como decolonial e alternativo ao Estado, tendo sido implementado em 2012 no Curdistão sírio (Rojava) em meio à Guerra da Síria e oficializado através da Carta de Contrato Social, análoga à uma constituição. Por se tratar de uma revolução multiétnica, ecológica e feminista no século XXI, Rojava traz renovadas possibilidades para construção de novos mundos, em especial que não reproduzam a violência colonial constitutiva do Estado-nação – lição importantíssima aprendida pelos curdos através de sua própria história.

No entanto, o território autônomo no norte e leste da Síria encontra-se seriamente ameaçado por constantes ataques de drone turcos, além da invasão e ocupação militar de algumas de suas cidades, como Afrin e Serekaniye. Atualmente, a população curda resiste a violações diárias. Em sua grande maioria, a ocupação dessas regiões culminou em processos migratórios, com boa parte da população abandonando sua terra natal e se deslocando forçadamente para cidades próximas. No dia 22 de julho de 2022, um drone turco atingiu seu alvo numa estrada entre Al-Qamishli e Al-Malkiyah: um carro que transportava três mulheres combatentes das YPJ. Elas estavam saindo de um evento chamado “Fórum da Revolução das Mulheres” em decorrência do aniversário da revolução, que é reconhecidamente antipatriarcal e tem como um dos seus pilares ideológicos a igualdade de gênero. Apenas no primeiro semestre de 2022, a Turquia realizou 38 ataques de drone à Rojava, contabilizando 27 mortos e 74 feridos.

Também são comuns casos como o de Barin Kobani, integrante das YPJ assassinada em Afrin no início da invasão turca denominada “Operação Ramo de Oliveira”, em janeiro de 2018, por rebeldes apoiados e financiados pela Turquia que “brincaram com seu cadáver e o retalharam” enquanto câmeras filmavam. Assim como o caso de Amara Renas, também combatente das YPJ, executada por rebeldes que gritavam “Allahu Akbar!” em cima de seu corpo mutilado em um vídeo que foi posteriormente divulgado em redes sociais. A Operação Ramo de Oliveira foi iniciada em 20 de janeiro de 2018 pela Turquia em Afrin e, desde então, as mulheres curdas – incluindo as combatentes das YPJ – têm sido alvos de sequestros, estupros, torturas, execuções e mutilações, muitas vezes com divulgação de imagens e vídeos nas redes sociais.

Além dos ataques de drone, a Turquia utiliza-se de mercenários, incluindo ex-combatentes do Estado Islâmico, e atua sob a justificativa de combate ao terrorismo – mesmo que a suposta ameaça representada pelo território autônomo não esteja no território nacional turco, sendo externa e apenas fronteiriça. Afrin, que tem como patrimônio cultural suas oliveiras, é uma região de grande relevância econômica pela produção de azeite a partir destas árvores. No entanto, desde o início da ocupação, o bioma local tem sido extensivamente devastado, com o corte de milhares de oliveiras. Ou seja, a Operação Ramo de Oliveira traz em seu próprio nome, de maneira bastante irônica, a violência contra a terra, elemento tão importante para povos originários como os curdos. Desse modo, a ocupação atua de forma sistemática a dizimar os três pilares do Confederalismo Democrático: democracia radical, libertação das mulheres e ecologia.

Sendo assim, as guerrilheiras curdas, como as combatentes das YPJ ficaram conhecidas, não são um mero tabloide geopolítico orientalista e sexualizado, são mulheres que ativamente se armaram ideológica e militarmente contra o patriarcado e o Estado. Ao completarem sua primeira década em 2023, as Unidades de Defesa das Mulheres reafirmam que sua luta persiste, agora atuando frente à ocupação turca e aos resquícios do Estado Islâmico, que além dos ex-combatentes contratados pela Turquia, possui células secretas ainda ativas em campos de refugiados. Portanto, é preciso manter firme oposição ao silenciamento internacional e ao ditado popular que afirma que “os curdos não têm amigos, só as montanhas” e, como um verdadeiro internacionalista, colocar-se à disposição de aprender em conjunto a eles, defendendo sua revolução, sua terra e suas mulheres.

[1] Conceito traduzido de Violent Non-State Actors, os Atores Não-Estatais Violentos são muito diversos e variam em sua motivação, objetivos e estrutura. No geral, consideram-se Atores Não-Estatais Violentos: chefes militares, milícias, grupos étnicos e tribais, insurgências, grupos paramilitares, organizações terroristas, organizações de tráfico de drogas e grupos criminosos/gangues (Williams, 2008).

* Letícia Gimenez é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar em Estudos Curdos (NUPIEC), do Núcleo de Estudos de Gênero (Iaras-GEDES) e do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI).

Imagem: Btaalhão de mulheres do YPJ. Por Jakob Reimann/Wikimedia Commons.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CRUZ, Caio Nunes da. A estratégia do Confederalismo Democrático: um estudo dos escritos de prisão de Abdullah Öcalan (1999 – 2005). Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2022. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/235266. Acesso em: 23 set.. 2023.

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WILLIAMS, Phil. Violent Non-state Actors and National and International Security. International Relations And Security Network: Zurich, 2008.

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Dia Internacional da Mulher Africana: rompendo silêncios e fortalecendo resistências

Maria Eduarda Kobayashi Rossi*

Lorena dos Santos Roberts**

Kimberly Alves Digolin***

 

No dia 31 de julho é celebrado o Dia Internacional da Mulher Africana. A data foi criada em alusão à Conferência das Mulheres Africanas, que ocorreu em 1962, na cidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia. Nessa data também foi criada a Organização das Mulheres Pan Africanas (PAWO[1]), um movimento transnacional de mulheres que objetiva contribuir para a promoção da igualdade de gênero, lutando pelo fim do colonialismo, das diversas discriminações e das injustiças sociais sobre as mulheres. Neste texto, discorreremos sobre o fortalecimento dos feminismos no continente africano e sua relação com a expansão do movimento pan-africanista. Em seguida, abordaremos o papel das mulheres nos processos de paz, bem como os desafios enfrentados por elas nas sociedades contemporâneas. De modo complementar, trataremos do apagamento da África nas Relações Internacionais e, por fim, apresentaremos alguns exemplos dos movimentos em prol dos direitos das mulheres no continente.

A campanha deste ano, em comemoração aos 60 anos da PAWO, convida a comunidade regional e internacional a uma reflexão acerca da participação feminina no desenvolvimento social e econômico, acrescentando temas como a insegurança alimentar e a violência nas sociedades contemporâneas (UNIÃO AFRICANA, 2022a). Almeja-se, também, debater sobre os avanços e retrocessos dos esforços para a equidade de gênero no continente, principalmente por meio da discussão sobre o recente relatório publicado pela organização e intitulado The African Women’s Decade: Grassroots Approach to Gender Equality and Women’s Empowerment (UNIÃO AFRICANA, 2022b), o qual foi elaborado como um esforço de coordenação das atividades e objetivos, para impulsionar a implementação de políticas públicas e programas destinados ao alcance da equidade de gênero e empoderamento das mulheres[2].

É importante ressaltar que a origem da PAWO, bem como o fortalecimento dos feminismos em África, está alinhada à expansão do movimento pan-africanista no continente (SANTOS, 2021). Este movimento tem como missão promover a união dos povos africanos para conquistar não apenas a independência formal com o processo de descolonização, mas também a libertação das amarras do colonialismo e das consequências destrutivas e predatórias que ele traz às sociedades africanas (BELLUCCI, 2010; HARRIS, ZEIGHDOUR, 2010). Um dos grandes marcos desse movimento é a criação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, que precedeu a criação da União Africana na Conferência de Durban, no ano de 2002.

Conforme a cronologia organizada por Blenda Santos (2021b), é possível perceber que, embora a participação e a representação das mulheres nos processos políticos tenham aumentado com o passar do tempo, as suas resistências e ativismos sempre estiveram presentes, exercendo papéis essenciais nos processos de (re)construção da paz. A importância de incluir as mulheres nesses processos políticos está associada ao fato de que as crises em África não estão baseadas apenas em aspectos militares ou elementos transitórios. São resultantes também, e talvez principalmente, de questões estruturais políticas, econômicas e socioculturais. Sob essa perspectiva, a inclusão das mulheres promove mais atenção a aspectos que costumam ser ignorados nos processos de paz, tendo em vista a reprodução das hierarquias de gênero no microcosmo comunitário, a qual promove impactos distintos entre homens e mulheres que presenciam uma mesma situação de crise. A participação das mulheres locais reforça um olhar crítico sobre o bem-estar social, que não apenas amplia o debate sobre as raízes das crises, mas também sobre os meios necessários para garantir respostas mais abrangentes e sustentáveis.

No entanto, as mulheres em África convivem com uma sobreposição de violências, não apenas oriundas das divisões de gênero, mas também baseadas em termos culturais e de nacionalidade. Isso porque, em um sistema internacional marcado por hierarquias, a África ainda é largamente considerada um território a ser tutelado. Em outras palavras, em meio a uma lógica binária que coloca os Estados Unidos e a Europa como centros desenvolvidos e democráticos, a caracterização da África, muitas vezes, é estabelecida como o contraponto atrasado, bárbaro e incapaz.

Dentro desse estereótipo, as intervenções externas são frequentemente legitimadas sob a alcunha de uma ação humanitária em prol da democracia e da liberdade em África; um dever dos países entendidos como mais desenvolvidos em garantir a paz e a segurança internacional. Entretanto, conforme vimos anteriormente, essas ações não costumam levar em consideração as demandas locais, muitas vezes mascarando as verdadeiras raízes dos problemas ou, ainda, acrescentando elementos que dificultam uma solução duradoura e sustentável para as crises.

Ademais, essas ações externas frequentemente reforçam a marginalização das mulheres africanas em relação aos processos políticos de (re)construção da paz. Tal fato pode ser percebido tanto pela estereotipificação das mulheres africanas – as quais são sexualizadas e subalternizadas –, quanto pela marginalização dos feminismos africanos[3]. Segundo Oyěyùmí (2004), a “hegemonia cultural euro-americana” promove uma racialização do conhecimento que desconsidera, inferioriza e/ou generaliza as realidades em África e, de modo ainda mais acentuado, as experiências das mulheres africanas. Em suma, o que se nota é um conjunto de violências que, embora se sobreponham, originam-se em uma mesma visão hierárquica da divisão de poder, que busca silenciar a história da África e subtrair a participação ativa das mulheres africanas na tomada de decisão política.

Em meio a essa conjuntura, existem diversos movimentos ativos em África que buscam lutar contra a sub-representação feminina nos espaços políticos e decisórios. Durante os anos 1980, diversas teóricas africanas, bem como mulheres negras e indígenas imigrantes no Ocidente, impulsionaram o questionamento dentro do movimento feminista, trazendo para debate questões referentes não apenas às diferenças entre mulheres e homens, mas também entre as mulheres que não se enquadravam no padrão ocidental; ou seja, mulheres de diferentes raças/etnias, religiões, classe social, orientação sexual e geração (SILVA, 2018).

Silva (2018) demonstra que foi no contexto das independências dos países africanos, além do processo de modernização e construção da identidade nacional, que se verificou o fortalecimento de movimentos de emancipação das mulheres africanas. Concomitantemente, percebe-se o aumento no número de trabalhos que traziam como principais temas: colonialismo, masculinidades, casamentos e relações de parentesco, associação de mulheres e lutas nacionalistas, reconfiguração de papéis de gênero, entre outros. De modo geral, as independências dos países africanos deram espaço para uma rearticulação da sociedade civil, trazendo como consequência o surgimento de novos movimentos sociais que desafiam as estruturas e as especificidades das sociedades africanas.

Segundo Casimiro (2014, p. 75-76, apud GASPARETTO, 2017, p. 8) os movimentos de mulheres e feminismos africanos surgem a partir de quatro frentes: “1) o movimento endógeno de mulheres nas sociedades africanas; 2) a resistência anticolonial; 3) os movimentos de libertação nacional; e 4) os grupos de mulheres profissionais e acadêmicas, com independência econômica”.

A emergência desses movimentos de mulheres foi fundamental na inserção da mulher africana nos debates teóricos, enfatizando a necessidade de um olhar minucioso de suas realidades, bem como questionando suas culturas e tradições sem desmerecê-las, mas sim buscando entender o lugar que a mulher ocupa nessas estruturas.

Esses movimentos questionaram os paradigmas de desenvolvimento conservadores e conformistas, confrontando-os com o resgate da história das mulheres sem cair nos erros da corrente central da historiografia africana, que desconsidera as especificidades das experiências e as diversidades das mulheres desses países (CASIMIRO, 2014 apud Gasparetto, 2017, p. 389).

Entre os movimentos em prol da equidade de gênero e dos direitos das mulheres em África, alguns se destacam. O MULEIDE é uma organização não-governamental moçambicana, criada em 1991, com o objetivo de combater a violência baseada no gênero e eliminar o desequilíbrio de oportunidades de acesso ao progresso socioeconômico entre homens e mulheres. O principal grupo alvo desta organização são as mulheres em situações de vulnerabilidade, mas também trabalha com homens vítimas de violências baseadas no gênero e crianças que são vítimas de violência sexual e de outros problemas sociais.

Em mesma medida, o FÓRUM MULHER é uma rede de organizações não-governamentais de direito privado e sem fins lucrativos, fundada em 1993, a partir de uma perspectiva feminista. Seu principal objetivo é mediar a relação entre sociedade civil e o Estado no que diz respeito à formulação e aplicação de políticas governamentais, bem como o fortalecimento de organizações que lutam pela garantia dos direitos das mulheres. Esta organização busca promover transformações nas práticas socioculturais que inferiorizam as mulheres, tendo como denominador comum o respeito pelos direitos humanos e a melhoria da posição da mulher na sociedade.

Por fim, podemos destacar o trabalho desenvolvido pelo MULHERES EM MOVIMENTO. Trata-se de uma estratégia regional da CARE, lançada em 2016, que tem como objetivo emancipar econômica e socialmente mulheres e meninas na África Ocidental por meio de grupos de poupança, de tal modo que elas se tornem sujeitos mais ativos na sociedade fazendo valer seus direitos básicos e impulsionando a transformação social nos níveis familiar, comunitário e social.

Tais movimentos têm se mostrado necessários para a garantia dos direitos das mulheres, bem como para a sua emancipação e inserção nas diversas esferas da sociedade. O Dia Internacional da Mulher Africana ajuda a trazer visibilidade a esses movimentos e impulsionar o engajamento coletivo para concretizar o objetivo comum a todos os projetos aqui apontados: garantir o fim das violências contra as mulheres e a elaboração de políticas eficazes que promovam a equidade social. Em suma, a data cumpre um importante papel para evitar o apagamento da história das mulheres em África, bem como destacar a luta coletiva contra o silenciamento dessas mulheres em meio a estruturas hierárquicas marcadas pela desigualdade e pela violência.

 

* Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do GEDES e bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3). Contato: eduarda.kobayashi@unesp.br

** Lorena dos Santos Roberts é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo de Gênero Iaras-Gedes. Contato: lorena.roberts@unesp.br

***Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista, mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: kimberly.alves.digolin@gmail.com

Imagem: Rede de Mulheres Líderes Africanas. Por: ONU Mulheres/ Flickr.

Notas:

[1] A sigla refere-se ao termo “Pan-African Women’s Organization”.

[2] Vale pontuar que muitos dos projetos são financiados pelo Fundo da União Africana para a Mulher Africana, o qual é essencial para a implementação das propostas previstas nos planos estratégicos da União Africana, principalmente para o alcance dos objetivos previstos na Agenda 2063: A África que queremos (UNIÃO AFRICANA, 2015).

[3] Para mais informações, recomendamos a seguinte leitura: GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Zahar. 2021.

Referências bibliográficas

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Recomendações

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Ted Talks: To change the world, change your illusions, por Minna Salami . Disponível em: <https://youtu.be/PiVB5niLrWg>. Acesso em 26 de julho de 2022.

Revista: Feminist Africa Issue. Disponível em: <https://feministafrica.net/>. Acesso em 26 de julho de 2022.

Onde estão as mulheres no conflito Ucrânia-Rússia? Exercendo uma curiosidade feminista na análise das Relações Internacionais

 Gabriela Aparecida de Oliveira*

Danielle Amaral Makio**

Helena Salim de Castro***

 

Desde o dia 24 de fevereiro, a Ucrânia tem sofrido com ataques russos a seu território e população. Motivações geopolíticas, econômicas, ideológicas e identitárias se entrelaçam criando um cenário complexo e incerto, cujos efeitos têm sido sentidos sobretudo pela população civil ucraniana. Até o momento de publicação deste texto, o observatório Global Conflict Tracker do Council on Foreign Relations contabilizava 2.685 vítimas civis do conflito, além de mais de 4,1 milhões de refugiados – em sua grande maioria mulheres e crianças, uma vez que homens entre 18 e 60 anos foram proibidos de deixar o país.

A maior vulnerabilidade de mulheres e crianças em cenários de guerra está longe de ser uma novidade. Ao olhar o conflito Rússia-Ucrânia a partir de uma lente feminista, é possível, entretanto, identificar os fatores políticos e econômicos que levam a uma maior exposição desse grupo a violências, além de identificar outros papéis que as mulheres ucranianas vêm desempenhando, voluntária ou involuntariamente, na guerra. Nesse sentido, nossa análise se guia por meio de uma pergunta que parece, em um primeiro momento, despretensiosa: onde estão as mulheres na guerra russo-ucraniana?

Como sugere Cynthia Enloe (2014), refletir sobre os lugares ocupados pelas mulheres na política internacional nos leva a uma análise mais precisa de vários fenômenos, tais como a guerra. Há uma literatura (ELSHTAIN, 1995; COHN, 2013; GOLDSTEIN, 2001) que se propõe a discutir os papéis desempenhados pelas mulheres nas guerras modernas e contemporâneas, em resposta às abordagens tradicionais que reduzem a guerra a uma atividade essencialmente masculina. Elshtain (2009) diz que muito do nosso imaginário sobre mulheres, homens e guerra encontra-se moldado por dois arquétipos: o das “belas almas” e a dos “guerreiros justos”. O primeiro, associado às mulheres, exalta sua suposta natureza não-beligerante e sua necessidade de ser protegida; ao passo que o segundo se refere aos homens, seres “naturalmente” propensos à guerra. Embora, em termos históricos, a maioria das mulheres tenha de fato se mantido longe dos campos de batalha, elas atuaram de outras formas, que têm sido recuperadas por meio de uma análise de suas memórias e testemunhos.

As narrativas sobre as mulheres e a guerra se desenvolveram ao ponto de incluírem mulheres soldado, pacificadoras e ativistas pelos direitos humanos, resultado dos esforços feministas[1] para preencher esses silêncios. Entretanto, na academia e em meios midiáticos, ainda predomina uma sub-representação feminina quando o assunto é a guerra. A mídia hegemônica e seus analistas de política internacional, muitos deles homens brancos privilegiados dentro da geopolítica do conhecimento[2], tendem a priorizar discussões acerca das batalhas e das negociações entre os governos envolvidos nos conflitos. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia não é diferente: as vozes femininas constituem menos de um quarto (23%) do total de especialistas, protagonistas ou fontes citadas nas notícias digitais globais. Um dos motivos para que as mulheres – principalmente aquelas que se autodeclaram feministas – sejam deixadas de lado é que elas supostamente representam interesses específicos e pouco relevantes para compreender o “quadro geral” das guerras (ENLOE, 2014).

No entanto, conforme analisa Enloe (2014, p. 6), temos muito a ganhar ao exercer uma “curiosidade de gênero” sobre a política internacional, pois é por meio dela que podemos “descobrir exatamente como este mundo opera”. E essa “descoberta” só se torna possível na medida em que investigamos o poder: quais são suas formas, quem o exerce e como alguns exercícios de poder foram camuflados ao ponto de não se parecerem com o poder” (ENLOE, 2014, pp. 8-9). Nesse sentido, uma pergunta a se fazer é: quais narrativas sobre o conflito russo-ucraniano têm ganhado legitimidade e destaque na mídia?

Em entrevista recente para o Stance Podcast em que são abordadas narrativas marginalizadas sobre o conflito Rússia-Ucrânia, Enloe (2022) diz que no início de toda guerra há uma tendência em se classificar os envolvidos nas categorias de combatente, vítima ou vilão, em uma tentativa de simplificar a realidade. Dado isso, ela identifica duas representações sobre as mulheres ucranianas que têm predominado na mídia hegemônica e ocidental: a de vítimas e a de combatentes. São categorizações simplistas que impedem uma compreensão mais ampla acerca da atuação destas mulheres e que perdem de vista o fato de muitos papéis coexistirem entre si – como no caso de mulheres combatentes que foram vítimas de abusos sexuais perpetrados por seus próprios colegas.

A imagem das mulheres como vítimas é facilmente difundida, pois elas – juntamente com as crianças – são, de fato, as mais afetadas em contextos de guerra. No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, desde o início dos ataques russos, a ONU Mulheres alerta para uma escalada de violência contra esse grupo. Segundo a Agência, mulheres e meninas têm vivenciado diversas formas de violência ao saírem ou permanecerem no país. Existem histórias de violações dirigidas a mulheres mais velhas, que encontraram dificuldade em deixar a Ucrânia ou que optaram deliberadamente por se manterem no país. Ademais, grupos ucranianos de direitos humanos têm denunciado que tropas russas estariam utilizando do estupro de mulheres como “arma de guerra”, e grupos feministas têm explicitado o caráter misógino de discursos de Vladmir Putin a respeito da Ucrânia, os quais estariam reproduzindo a “cultura do estupro”.

A discussão do estupro como arma de guerra[3] impulsiona análises sobre o emprego simbólico-étnico da violência sexual. Esse tipo de violação, dirigido majoritariamente às mulheres, serviria como uma forma, direta e indireta, de subjugar e humilhar determinados grupos sociais, culturais e/ou étnicos. A violência contra as mulheres, assim, além de afetá-las individualmente, gera impactos nas comunidades como um todo, influindo sobre sua coesão social, segurança e resiliência.

No entanto, como ressalta Meger (2016), a perpetração de práticas de violência sexual e outras violências baseadas em gênero muitas vezes está vinculada a dinâmicas e interesses político-econômicos – a uma economia política que ronda o conflito. No caso aqui analisado, nos chamam atenção as denúncias de que mulheres e crianças que cruzam as fronteiras em busca de refúgio estariam vulneráveis a abusos e a serem vítimas de tráfico. Algumas denúncias apontam para casos de mulheres abordadas por grupos criminosos envolvidos com o tráfico de pessoas. Eles tentam aliciá-las para a prostituição ou para trabalhos forçados através de um discurso em que prometem abrigo e segurança, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade de seus alvos para obterem recursos econômicos. Defensores de direitos humanos, que estão trabalhando para que ucranianas e ucranianos se desloquem dos epicentros do conflito, têm relatado a atuação desses criminosos principalmente em estações de trem.

Outro exemplo que lança luz para essa “economia da violência” é o caso, denunciado em reportagem de uma revista feminista, da existência de uma “pornificação” da guerra. Imagens de violências sexuais contra mulheres e crianças traficadas são exibidas em websites mantidos por uma indústria pornográfica que tem lucrado com as visualizações. Nesse sentido, os casos de violência sexual devem ser investigados como práticas pertencentes a uma dinâmica político-econômica que conecta indivíduos e interesses transnacionais. É importante ressaltar que essas violências, por sua vez, não necessariamente acabam com o encerramento formal da guerra.

Em tempo, a segunda imagem das mulheres ucranianas que impera na mídia é a das combatentes. Elas representam cerca de 15% do efetivo militar do país, que tem um dos maiores exércitos da Europa. Milhares delas têm se alistado para participar da guerra incentivadas por discursos do presidente Volodymyr Zelensky. Nas duas primeiras semanas do conflito, várias imagens e vídeos de mulheres treinando para o combate e se opondo a soldados russos armados foram divulgadas nas redes sociais. No dia 15 de março, a CNN reportou que, depois de deixar seus pais e filhos na fronteira com a Polônia, algumas delas voltaram ao país para lutar. São comuns os relatos que exaltam a bravura, a independência e a determinação das ucranianas, vistas como um símbolo de resistência frente a uma Rússia opressora.

A narrativa sobre mulheres ucranianas extremamente independentes foi construída historicamente. Com base em fatores geográficos, tenta-se explicar o temperamento “distinto” destas mulheres no folclore do país. Assim, cria-se um discurso no qual é comum a figura da mulher solteira, quase sempre viúva, que pode sobreviver e prosperar sem um homem. Não obstante a repercussão “positiva” da imagem da mulher ucraniana combatente, ela continua sendo secundária. Como afirmou uma ucraniana à CNN, “as duas coisas mais importantes que uma mulher ucraniana precisa saber é como fazer borscht [sopa de beterraba] e coquetéis molotov”. Ou seja, ela ainda deve lidar com expectativas de gênero que a restringem a determinados papéis na guerra, tais como cozinhar e produzir explosivos para os homens, esses sim, vistos como “heróis” da nação. Se, por um lado, há mulheres que escolhem deliberadamente participar dos combates, outras têm encontrado dificuldades em se desvencilhar do serviço militar e sair do país: é o caso de mulheres trans que ainda não são reconhecidas legalmente pelo gênero feminino por causa de uma série de entraves burocráticos do governo que atrasam esse processo.

Para além da presença das mulheres em situações de vulnerabilidade e como combatentes no conflito, elas também estão trabalhando como voluntárias, serviço no qual são maioria, e agentes de fronteira, gerenciando o fluxo de pessoas e atuando na recepção dos refugiados – como ocorre na Moldávia. Da mesma maneira, muitas estão ainda dentro da Ucrânia prestando serviços humanitários como médicas e psicólogas, e nas linhas de frente dos confrontos para proteger os civis.

Ademais, as mulheres têm desempenhado um papel crucial para a denúncia de crimes de guerra à comunidade internacional e aos órgãos do governo ucraniano. Um coletivo de mais de 120 mulheres ucranianas chamado Dattalion, juntamente com mulheres não organizadas, têm tirado fotos e gravado vídeos das áreas de tensão para capturar execuções e bombardeios, divulgando as imagens em um banco de dados para amplo acesso. Na mesma linha, grupos feministas na Ucrânia, na Rússia, em Belarus e outros países têm feito campanhas anti-guerra nas ruas . Feministas russas auto-organizadas, além de pessoas LGBTQIA+, por exemplo, têm protestado através de pôsteres, performances e grafites em locais públicos, e usado o Telegram para mobilizar apoiadores. Contudo, elas têm sofrido represálias e sido detidas pelo governo russo. Segundo a Anistia Internacional, uma delas pode ficar na prisão por até dez anos somente por ter colocado cartazes com slogans anti-guerra em supermercados.

Por fim, outro papel pouco visível é o das mulheres voluntárias que costuram uniformes militares, redes que são usadas para camuflar o equipamento militar ucraniano nas imagens de satélite russas e capas verdes para cobrir snipers. Os pacotes com as encomendas são enviados a soldados ucranianos junto de doces e pó de café como uma forma de demonstrar seu apoio à “luta pela liberdade” do país. Assim, podemos identificar posicionamentos de mulheres que vão do “direito de lutar” – caso das combatentes ucranianas – à “abominação da guerra” – feministas antibelicistas -, sendo que ambos podem ser vistos como posicionamentos feministas. Apesar de parecer contraditório, há mulheres que podem sustentar essas duas posições ao mesmo tempo, como afirma Elshtain (1995).

Existem, portanto, diversas narrativas construídas sobre as mulheres, e homens, na guerra. Quando divulgadas pela grande mídia, elas são categorizadas como menos importantes e tendem a reproduzir estereótipos de gênero. A partir disso, nos perguntamos: Quem tem (re)produzido essas narrativas? E tendo em vista quais objetivos? O aprofundamento nessas questões, bem como em outras reflexões acerca dos diversos aspectos político-econômicos em torno da violência específica sobre as mulheres, como o estupro e o tráfico para a prostituição forçada, permite exercemos uma “curiosidade de gênero” sobre o conflito russo-ucraniano – e outros cenários de guerra e conflito armado. Essa “curiosidade” não tem um fim em si mesma, mas contribui para romper com os estereótipos sobre masculinidades e feminilidades e investigar os elementos que estruturam a violência. As mulheres estão nos diversos espaços e posições, sendo impactadas de formas particulares pela guerra. Assim, elas também devem ser chamadas para pensar nas possibilidades de encerramento dessa guerra e, principalmente, de enfrentamento das violências, que muitas vezes podem se prolongar mesmo após a paz acordada.

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Ilustrações de mulheres. Por: UN Women.

Referências

COHN, Carol (Ed.). Women and wars: Contested histories, uncertain futures. John Wiley & Sons, 2013.

ELSHTAIN, Jean Bethke. On beautiful souls, just warriors and feminist consciousness. In: Women’s Studies International Forum. Pergamon, 1982. p. 341-348.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Women and war. University of Chicago Press, 1995.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases. In: Bananas, Beaches and Bases. University of California Press, 2014.

GOLDSTEIN, Joshua S. War and gender: How gender shapes the war system and vice versa. Cambridge University Press, 2003.

MEGER, Sara. Rape Loot Pillage. The Political Economy of Sexual Violence in Armed Conflict. New York: Oxford University Press, 2016. ISBN: 9780190277666

MIGNOLO, Walter D. A geopolítica do conhecimento e a diferença colonial. Revista lusófona de educação, v. 48, n. 48, 2020. 

[1] O discurso feminista sobre a emancipação das mulheres inspirou, por exemplo, as últimas resoluções da Agenda Mulheres, Paz e Segurança das Nações Unidas (como a Resolução 2122, de 2013), que discorrem sobre o potencial de agência das mulheres em conflitos. Se nas primeiras resolução elas eram vistas como tão e somente vítimas a serem protegidas, elas passam a ser gradualmente concebidas como agentes cruciais para o processo de recuperação e manutenção da paz de suas comunidades no pós-conflito. No entanto, a Agenda continua a relacionar, ainda que não explicitamente, as mulheres à paz e os homens à guerra.

[2] A “geopolítica do conhecimento” é uma expressão usada por Walter Mignolo (2020) para refletir sobre as disparidades de poder existentes entre os produtores de conhecimento do Norte e do Sul global. Serve para denunciar o caráter eurocêntrico da ciência que se pretende “neutra” e “universal”, e que promove a marginalização de outros saberes, dentre eles, aqueles de mulheres, pessoas não-brancas e LGBTQIA+s.

[3] A discussão do “estupro como uma arma de guerra”, já trabalhada por autoras feministas, ganhou destaque na política e no direito internacional nos anos 1990 – no contexto das discussões do Tribunais Penais para a antiga Iusgoslávia e Ruanda – e viria a superar as reflexões desse tipo de violência como um produto inevitável dos conflitos. Como consequência, os crimes de violência sexual, cometidos em cenários de conflito e guerra, foram incluídos, posteriormente, no Estatuto de Roma, que constitui as bases legais do Tribunal Penal Internacional (MEGER, 2016).