Dicionário de Gênero e Segurança

FEMINISMO NEGRO

Beatriz Vieira Rauber
Lívia Peres Milani
Maria Eduarda Kobayashi RossI

23 de julho de 2022

O feminismo negro[i], enquanto perspectiva teórica, originou-se na década de 1970 nos Estados Unidos da América devido à inquietação das mulheres negras, cujas demandas não eram contempladas pelos discursos e práticas do feminismo liberal. Neste contexto, já haviam ocorrido e estavam se fortalecendo, no país, diversos movimentos contra a segregação racial. Um dos mais conhecidos é o caso de Rosa Parks, que em 1955 recusa-se a ceder seu assento no ônibus para uma pessoa branca, impulsionando uma série de protestos. Como pioneiras dessa vertente, podemos destacar Angela Davis,  bell hooks[ii], Sjourner Truth e Patrícia Hill Collins. No Brasil, esses debates ganham força dez anos mais tarde e têm como principais vozes Conceição Evaristo, Lélia González[iii] e Sueli Carneiro. 

Para além da inserção de um olhar de classe, trazido pelo feminismo marxista, as feministas negras clamam pela inclusão da categoria “raça” nas reflexões sobre as desigualdades de gênero e na luta feminista, e buscam trazer a voz e a demanda das mulheres que estão localizadas nas margens[iv] da sociedade (HOOKS, 2018, 2020). Logo, nessa perspectiva, a raça é entendida como um elemento capaz de estruturar a hierarquia social e segregar alguns corpos de determinados espaços como, por exemplo, no mercado de trabalho. 

Em vista disso, o feminismo negro objetiva tornar evidentes os caminhos de encontro entre o racismo e o sexismo, buscando maior compreensão do papel da raça na produção de desigualdades sociais, que também são reproduzidas no movimento feminista[v] (HOOKS, 2019, 2020; HILL COLLINS, 2016;  GONZÁLEZ, 2021). Segundo bell hooks, o feminismo pode ser entendido como a luta pelo fim das opressões sexistas que atingem toda a sociedade, não apenas as mulheres. Nesse sentido, para que a transformação social ocorra, a luta feminista deve estar conectada com a luta antirracista, almejando combater o racismo estrutural que está interligado com outras formas de opressão. Nas palavras da autora, a luta feminista deve “ser solidariamente alicerçada no reconhecimento da necessidade de erradicar os fundamentos e as causas culturais do sexismo e de outras formas de opressão social” (HOOKS, 2020, p. 66). 

É importante marcar que o gênero, nessa vertente, é um conceito que vai ser adaptado no decorrer da evolução dessa perspectiva teórica feminista ao incluir a ideia de interseccionalidade. Em um primeiro momento, na formação tanto do movimento feminista negro quanto da teoria do feminismo negro, o gênero estava mais fortemente associado à ideia de sexo biológico, mas tendo o entendimento que ele não é o único determinante das violências sociais, uma vez que essa dicotomia de gênero vai se juntar com a dupla classe e raça. Com a evolução do pensamento feminista negro e dos movimentos de reivindicações sociais levanta-se o termo interseccionalidade. O conceito de interseccionalidade, criado por Kimberlé Crenshaw (1989), nos faz enxergar um sistema de opressão baseado na interação (e não simplesmente numa sobreposição) de raça, gênero e classe. Expõe-se assim, a necessidade de reconhecer que esses elementos vão além de pontos binários que distinguiram por, exemplo, ricos e pobres, e passa a encorpar relações entre as opressões que afetam os indivíduos de maneiras distintas. Com esse entendimento, o gênero passa a remeter a algo além do masculino e feminino, ele passa a ser auto determinado pelos agentes, ainda que em sua essência siga oprimido pela concepção tradicional de binariedade.  

Como pontos centrais da vertente do feminismo negro, podemos destacar a crítica à vitimização da mulher[vi], propagada pelo feminismo liberal, bem como à ideologia liberal e individualista que estimula a competição entre as mulheres, impedindo uma verdadeira cooperação. As autoras também tecem fortes críticas à esteriotipação e sexualização dos corpos negros (GONZÁLEZ, 2021), bem como a falsa concepção de irmandade (sisterhood), baseada em uma opressão comum[vii] (HOOKS, 2020). Destaca-se, em contrapartida, a necessidade de uma genuína solidariedade política, uma irmandade baseada no respeito, a fim de operacionalizar transformações estruturais. Para tanto, é preciso expor, examinar e eliminar a educação e ação sexistas (HOOKS, 2020). Vale mencionar, também, uma questão interessante: bell hooks, na obra Teoria Feminista da margem ao centro (2020), defende que os homens e meninos devem ser  companheiros de luta,  compartilhando a responsabilidade de agir ativamente para a transformação social almejada pelo feminismo, tal como definido pela autora. A posição  de hooks parte de sua experiência nos movimentos antirracistas, cujos espaços eram compartilhados entre homens e mulheres negros, os quais compartilhavam uma contínua opressão comum: o racismo.  

 É importante pontuar que a noção de sororidade[viii] é essencial para alcançar coletivamente os objetivos almejados. A busca por uma verdadeira união entre mulheres faz com que elas procurem criar “espaços dentro de espaços” para investigar as opressões presentes em cada corpo, enxergar a fundo o seu lugar social[ix] e desenvolver uma compreensão crítica da realidade para que, em coletivo, elas possam erguer as suas vozes, lutando ativamente em prol dos seus direitos. É dessa forma que surgiu o feminismo negro no Brasil, como um pequeno grupo dentro do Movimento Negro Unificado (MNU) que, por sua vez, tem suas raízes no Movimento Negro Contra a Discriminação Racial e Teatro Negro Experimental.As integrantes utilizavam-se criativamente da arte para exteriorizar os problemas e desafios do viver na margem, clamando por transformações sociais, principalmente na base que é a educação popular (GONZÁLEZ, 2021).  

A consolidação teórica e acadêmica do feminismo negro ocorre um século[x] após registros de performances que vão originar o movimento político de mulheres negras reivindicando seus direitos. Assim, as autoras que vem a formar o corpo clássico dessa vertente feminista o fazem após anos de vivência de luta e participação no próprio movimento negro. Grandes teóricas como Angela Davis, bell hooks, Patricia Hill Collins e Audre Lorde, antes de escrever, foram ativistas dos movimentos em prol dos direitos civis, membros de partidos como os Panteras Negras e muitas vezes as primeiras acadêmicas negras nos departamentos de suas universidades. O feminismo negro é, então, uma teoria que nasce do ativismo, como no discurso de Sojourner Truth, e por isso possui características marcadas na auto interpretação das agentes, sendo assim uma teoria que parte da experiência própria, ou de próximos para dar origem aos seus conceitos. As pessoas responsáveis pela consolidação da abordagem são acadêmicas, mas que antes de mais nada se identificam como mulheres negras que escrevem sobre as situações de mulheres negras para que estas consigam se enxergar na produção intelectual feminista (HILL COLLINS 2000).

Alguns elementos fundamentais elaborados pelas autoras antes mencionadas, além das já descritas como de bell hooks e Kimberly Cranshaw, se consolidam nos estudos do feminismo negro e servem como matriz para o aprofundamento desta teoria. Em primeiro lugar, faz-se necessário mencionar as discussões de Angela Davis sobre classe e como ela se manifesta em conjunto com raça e gênero. Destaca-se também o entendimento de “outsiders within”[xi] de Hill Collins que impacta a maneira como as mulheres na academia são capazes de circular e manifestar sua pesquisa, enquanto não são vistas como propriamente pertencentes àquele meio. Em outra instância, os escritos de Audre Lorde contribuem para a conexão de questões como o racismo, o sexismo, o classismo e a homofobia (ou o heterosexismo). Por fim, nessa linha de primeiras escritoras se ressalta a análise do racismo e classismo, por parte das mulheres brancas que advogam pela sororidade, como barreira de um feminismo mais universal. 

Seguindo esse entendimento sobre a posição das acadêmicas como agentes e também observadoras das questões expostas pelo movimento feminista negro, percebe-se que as autoras brasileiras como Conceição Evaristo, Lélia González[xii] e Sueli Carneiro também analisam partes importantes da vivência das mulheres negras brasileiras. Assim, essas acadêmicas, que somam suas teorias às do feminismo negro, trazem consigo uma vivência de um Brasil que passou por um branqueamento social pós-abolição e que insiste em negar a veia histórica escravocrata e de maioria de população negra no país e com isso sustenta políticas que prejudicam as pessoas negras.

Ainda que o feminismo negro tenha surgido em contextos nacionais, objetivando questionar as opressões experenciadas por mulheres negras nas sociedades em que viviam ⎼ especialmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil ⎼ as suas discussões iluminam temas e instigam problematizações relevantes para o estudo da Segurança Internacional. Embora o feminismo negro não sejam comumente empregado nas análises da área, as reflexões levantadas pelas autoras mencionadas evidenciam as inúmeras violências e opressões às quais estão submetidos certos grupos sociais, especialmente as mulheres negras. 

Essa caracterização é importante para desconstruir a visão mais clássica dos estudos de segurança internacional que ⎼ ao identificarem uma separação rígida entre o interno e o externo, entendendo este último como o âmbito que fica à sombra da  guerra ⎼ silenciam as formas de violência corriqueiramente presentes no âmbito doméstico em momentos de presumida “paz”. Este tema é de suma importância, uma vez que estas violências são, em muitos casos, negligenciadas pelo Estado e, em diversos outros, perpetradas por agentes estatais. Angela Davis, por exemplo, promove uma importante discussão sobre o racismo estrutural no sistema prisional, por meio da ideia de Complexo Industrial Carcerário, além de ser parte atuante do movimento anti-punitivista transnacional (DAVIS, DENT, 2003, DAVIS, 2011). Para entender as violências contra grupos marginalizados de forma mais profunda, o recorte de gênero precisa ser complementado com os recortes de raça e classe.

Tais recortes trazem elementos relevantes para estudo crítico de temas centrais para a literatura sobre segurança na América Latina, como o combate ao crime organizado, ao narcotráfico, a pesquisa sobre a contra-insurgência e o contra-terrorismo, iluminando as consequências da violência estatal para grupos específicos. Embora estes temas sejam bastante estudados no campo das Relações Internacionais, são poucos os estudos que incorporam lentes de gênero e refletem sobre as opressões de raça e classe.

As questões abordadas pelo feminismo negro também são importantes para a problematização da Agenda Mulheres, Paz e Segurança (WPS, na sigla em ingês). Partindo de uma visão pós-colonial, Nicolla Pratt (2013), por exemplo, aponta que a resolução 1325, assim como outras que a seguiram, reproduz uma linguagem sobre proteção das mulheres que privilegia o recorte de gênero e reescreve hierarquias de raça. Mais recentemente, em 2021, a revista Critical Security Studies (v.9, issue 1) publicou um dossiê que buscava analisar os acontecimentos principais do ano anterior: a pandemia do coronavírus e as mobilizações contra o racismo nos Estados Unidos que se seguiram à morte de George Floyd. Entre os artigos, dois propõem um recorte de gênero: Toni Haastrup e Jamie J. Hagen discutem a hierarquia racial na produção acadêmica sobre a Agenda WPS, enquanto Marsha Henry aborda a necessidade de incluir a teoria crítica de raça (critical race theory) no debate sobre o WPS.

Referências Bibliográficas:

ADÃO, Maria Cecília Oliveira. Feminismo Negro. in: COLLING, A. M. TEDESCHI, L. À (org). Dicionário crítico de gênero 2.ed. Dourados, MS: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019. p. 255-259. Disponível em: https://omp.ufgd.edu.br/omp/index.php/livrosabertos/catalog/view/2/2/29. Acesso em 28 mar 2022.

COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, 31(1), pp. 99-127. 2016. ISSN: 0102-6992. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=339945647006. Acesso em 07 de março de 2022.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, 1(8) p. 139-167, 1989.

DAVIS Angela, DENT, Gina. A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e punição. Revista Estudos Feministas, 11, no. 2, 2003, p. 523-531.

DAVIS, Angela. Are prisons obsolete?. Seven Stories Press, 2011.

GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Zahar. 2021. 

HAASTRUP, T. AND HAGEN, J.J., Racial hierarchies of knowledge production in the Women, Peace and Security agenda. Critical Studies on Security, v. 9, n. 1, 2021, pp.27-30.

HILL COLLINS, Patricia. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Rev. 10th anniversary eded. New York: Routledge, 2000. 

HENRY, M. On the necessity of critical race feminism for women, peace and security. Critical Studies on Security, v. 9, n. 1, pp.22-26.

HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras / tradução de Bhuvi Libânio. Rio de Janeiro. Editora Rosa dos Tempos. 2019 a. 

HOOKS, bell. Teoria Feminista: da margem ao centro / tradução de Rainer Patriota. São Paulo. Editora Perspectiva. 2020.

PRATT, N. Reconceptualizing gender, reinscribing racial–sexual boundaries in international security: the case of UN Security Council Resolution 1325 on “Women, Peace and Security”. International Studies Quarterly, 2013, v. 57, n. 4, pp.772-783.

[i] É importante evidenciar que o feminismo negro, tal como apresentado neste verbete, difere-se do feminismo propagado por mulheres negras sob uma perspectiva africana que, por sua vez, tem suas próprias especificidades, pois é influenciado por sua localização e cultura (para conhecer mais, sugerimos a leitura de Ifi Amadiume e Oyèrónkẹ Oyěwùmí). Vale pontuar também que as autoras deste texto não são mulheres negras. Porém, como pesquisadoras que almejam a emancipação coletiva (tal como pensado por Paulo Freire e defendido por bell hooks), elas entendem que este debate não poderia ser suprimido.

[ii] Vale mencionar que “bell hooks” é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins. O nome foi escolhido para homenagear a bisavó, e é escrito em minúsculas por preferência da autora, com a intenção de dar mais valor à sua obra do que ao seu nome.

[iii] Há outras feministas negras na América Latina, como Ochy Curiel e Yuderkis Espinosa, que assim como Lélia González são consideradas pertencentes à vertente do feminismo decolonial. A linha que para fins didáticos separa essas duas vertentes teóricas é tênue. Sugerimos a leitura do verbete “Feminismo decolonial” presente na aba de produções do Iaras.

[iv] De acordo com bell hooks, estar na margem significa fazer parte de um sistema e/ou espaço, mas sem ocupar a parte principal (HOOKS, 2020). Essa condição permite que as pessoas tenham uma visão mais ampla do funcionamento da realidade uma vez que elas podem, facilmente, transitar entre esses dois espaços relacionais: a margem e o centro, sabendo que os benefícios desse último são pagos pela exploração do primeiro. As pessoas que são marginalizadas recebem pouca atenção do Estado quanto à garantia de boas condições de vida e oportunidades sociais, e essa condição é perpetuada por uma estrutura desigual. Na realidade brasileira, como destaca Lélia González (2021), o povo negro foi marginalizado desde a colonização. Além disso, a abolição tardia da escravidão, em 1888, promoveu apenas uma igualdade legal entre os corpos considerados como brancos e os negros.

[v] De acordo com bell hooks (2020), o racismo é uma barreira à solidariedade entre as mulheres nos coletivos feministas. Segundo ela: “O sexismo dos homens negros tem minado a luta pela erradicação do racismo, da mesma forma que o racismo das mulheres brancas tem minado a luta feminista”(HOOKS, 2020, p. 46).

[vi] Utilizamos a palavra “mulher” e não “mulheres” pois a vertente feminista liberal entendia como universal a categoria “mulher”, como se as opressões de gênero fossem sentidas igualmente. Esta ideia é fortemente rechaçada pelas representantes do feminismo negro, cuja vivência escancara o fato de que as múltiplas violências se entrelaçam, fazendo com que as opressões sejam percebidas de forma diferente em cada corpo. 

[vii] Ver hooks, 2020, p. 80.

[viii] A sororidade muitas vezes é definida como a verdadeira irmandade, estando baseada na noção de solidariedade e emancipação coletiva. É importante lembrar, porém, que este conceito não significa uma união de mulheres pela atitude de não julgar umas às outras, mas compartilhar dores e experiências, bem como embarcar coletivamente em uma jornada de tomada de consciência crítica e autodescoberta. Para conhecer mais, recomendamos a leitura de “Erguer a voz”, de bell hooks (2021). 

[ix] Lugar social faz referência à posição que os indivíduos ocupam na sociedade.

[x] Para essa análise utiliza-se como marco o discurso “Ain’t I a woman?” de Sojourner Truth na Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres em Ohio em 1851.

[xi] Não foi identificada uma tradução oficial para o termo outsiders within, sendo assim se preferiu deixar o cunhado por Hill Collins, que possui a intenção de identificar agentes que estão dentro do sistema, mas não são vistas como pertencentes a este.

[xii] Gonzalez aponta a importância da influência negra na formação social do Brasil e de outros países da região e destaca a necessidade de pensar no feminismo a partir de um ponto de vista afro-latinoamericano.

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25 de novembro de 2021