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A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 2

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Na primeira parte do texto, busquei debater duas possibilidades de análise para a decisão russa de invadir a Ucrânia. Por um lado, existe a narrativa de que Putin possui um projeto expansionista e imperialista e buscaria anexar o território ucraniano, parcial ou totalmente. Por outro, há a perspectiva de que a decisão russa de invadir o país vizinho tenha se dado a partir da escolha em fazer prevalecer seus interesses político-securitários a partir do uso do aparato militar. Nessa segunda parte, abordarei a reação pública, política e midiática à guerra.

A reação à guerra: o espanto e a percepção do tempo

Tentativas de derrubada de governo têm sido prática frequente dos últimos 30 anos, capitaneadas sobretudo por operações estadunidenses e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A exemplo, destacam-se sobretudo as guerras do Iraque, Líbia e Síria. No entanto, um grande diferencial destas invasões em relação à promovida pela Rússia na Ucrânia perpassa, sobretudo, fatores geográficos e imagéticos. De fato, EUA e OTAN não poderiam ter pretensões de anexar formalmente territórios que não são contíguos aos seus, o que dota suas operações de derrubadas de governo de uma roupagem mais sutil e que é justificada a partir da narrativa da democracia-liberal que liberta os povos da opressão de governos ditatoriais.

Dessa forma, as invasões aos países do Oriente Médio – para além da questão do preconceito que acaba por justificá-las aos olhos de parcela da opinião pública e da naturalização de conflitos nessas regiões nas grandes mídias – parecem menos agressivas pelo simples fato de não remeterem ao caráter mais “clássico” das grandes guerras do século XX e carregarem a roupagem das chamadas “novas guerras” características a partir dos anos 1990. Já no contexto ucraniano, a imagem de tanques russos invadindo por terra a fronteira do país vizinho, evoca a percepção de uma guerra de anexação em solo europeu e mobiliza a reação que expressa o espanto pela falsa sensação de que o mundo não é palco de inúmeras outras guerras. Por esse motivo, a invasão russa à Ucrânia traz um caráter de antiguidade à guerra que parece desconexa com as concepções contemporâneas dos conflitos armados.

À luz desse cenário, parece mais provável que o espanto gerado pela invasão russa decorra do contexto geográfico e histórico no qual a guerra da Ucrânia se insere do que na decisão per se de Vladimir Putin de invadir o território ucraniano. Isso se dá, sobretudo, a partir de elementos que influenciam na percepção do desenvolvimento da guerra e na expectativa que se gera entre o público em relação ao conflito. Em primeiro lugar, pode-se alegar que a guerra      na Ucrânia é a primeira na história acompanhada minuto a minuto por todos. Vale ressaltar que a guerra entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh, em 2020, também ganhou espaço nas mídias sociais, com impactos na guerra de informação sobre o conflito. No entanto, este se deu em menor escala e foi menos abordado pela mídia. Ainda que tenhamos a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991, como primeiro exemplo de um conflito televisionado e outros exemplos de grande interesse midiático na última década, como a Guerra Civil da Síria e a expansão territorial pelo autoproclamado Estado Islâmico, a invasão russa à Ucrânia se trata do primeiro embate no qual há análises feitas de forma quase instantânea, que se avolumam na televisão e nas mídias sociais.

Há alguns aspectos intrínsecos a este conflito que podem ser levantados para explicação do grande interesse público na guerra da Ucrânia. Em primeiro lugar, a Rússia é, junto com os EUA, a principal potência nuclear do mundo e possui um dos maiores exércitos a nível mundial. Decorrente disso, as possibilidades de transbordamento do conflito para a Europa e o risco de um confronto entre Rússia e OTAN se tornam o principal elemento de preocupação e interesse das análises. Por outro lado, há também os impactos econômicos na cadeia global de suprimentos alimentícios e energéticos que aumentam a expectativa sobre os desdobramentos da guerra. Não obstante, destaco o papel exercido pelas mídias sociais e das tecnologias de comunicação que, em 2022, estão muito mais consolidadas no cotidiano das pessoas do que na década passada. Nesse sentido, possibilita      ao mundo se relacionar com os acontecimentos em solo ucraniano de forma quase instantânea. Disto, se pode afirmar que a nossa percepção sobre o tempo da guerra e suas evoluções também foi alterada. Devido à enorme quantidade de informações que encontramos todos os dias, temos a impressão de se tratar de um conflito que já tem longa duração, quando na verdade estamos, no momento da escrita, há um mês observando-o.

Além disso, a forma como temos visualizado o desenvolvimento da guerra faz com que as análises sobre os avanços táticos e estratégicos russos possam ser distorcidas. No dia em que forças russas invadiram o país vizinho, destacava-se a narrativa de que tropas russas conseguiriam uma rápida tomada da capital Kiev e, em sequência, haveria uma rendição instantânea do governo e do povo ucraniano. Nessa linha, esperava-se, também, que as forças russas teriam um avanço muito maior em menos tempo em solo ucraniano. Por esse motivo, quando passados apenas alguns dias e observado a aparente lentidão do avanço russo, ganharam espaço análises segundo as quais a estratégia de Vladimir Putin havia falhado, uma vez que o presidente russo teria subestimado as capacidades de resistência do exército ucraniano.

Embora a aparente lentidão do avanço russo em território ucraniano, marcado por baixas humanas e de armamentos que, alegadamente, seriam maiores do que se esperava, é fato que as tropas russas continuam em progresso e garantindo avanços estratégicos dentro da Ucrânia, sem demonstrações de que pretendem recuar. Segundo o mapa de monitoramento do The New York Times, Moscou já tem o domínio de grande parte do Sul Ucraniano – como visto pela conquista da cidade de Kherson e Melitopol – assegurando grande parte do acesso ao Mar Negro; intensos ataques às cidades de Mariupol, e já cerca Kiev, ainda que sem maiores avanços ao centro da capital ucraniana. No cenário em que as negociações não avançam, em razão da relutância russa em flexibilizar suas reivindicações, em conjunto com a resistência ucraniana, a guerra tende a se estender. Nesse cenário, ambas as forças – de ataque e defesa – buscarão vencer o inimigo pela exaustão. No campo militar, a Rússia parece ter a vantagem nessa perspectiva. Do outro lado, a Ucrânia busca, com apoio sobretudo europeu e estadunidense, sufocar a viabilidade política e econômica da manutenção da guerra pela Rússia, ao mesmo tempo em que prolonga o conflito a partir de uma estratégia defensiva.

Contudo, não há ainda como afirmar a real estratégia pensada por Putin e os generais russos a respeito da invasão à Ucrânia. Tendo em mente o contexto que levou à guerra e os meses que os soldados russos estiveram estacionados próximos à fronteira com a Ucrânia, a hipótese de que o ataque tenha ocorrido às pressas, de forma mal planejada, parece pouco provável. Além disso, desde 2014 o exército ucraniano vem se fortalecendo com equipamentos e treinamentos providos pelos EUA e outros membros da OTAN. Nesse sentido, é de se imaginar que o Ministério da Defesa da Rússia e Vladimir Putin, munido de serviços de inteligência russos, tivessem ciência de que a capacidade de resistência ucraniana não deveria ser menosprezada.

Não deve ser descartada, no entanto, a hipótese de que os sucessos militares anteriores na Geórgia, Crimeia e na Síria, possam ter elevado a confiança de Putin em seu aparato militar de forma a contribuir para a tomada de decisão na expectativa de um menor poder de resistência militar, política e econômica da Ucrânia e do Ocidente. Assim, o próprio fato de que haja uma percepção de frustração dos planos russos e da bravura da resistência ucraniana, pode alterar os rumos da guerra e fortalecer ainda mais o moral do defensor e descreditar o aparato militar russo, instrumento cada vez mais utilizado por Moscou para reivindicar o status de grande potência da Rússia e fazer prevalecer seus interesses. Talvez revisitar literaturas que abordam a psicologia política como lente de análise, buscando incorporar não somente a dimensão externa aos Estados, mas também os objetivos, crenças e percepções dos indivíduos tomadores de decisão, possa contribuir para uma compreensão mais holística dos incentivos específicos que impulsionaram Vladimir Putin a seguir com a invasão. Como exemplo, vale citar as obras de Robert Jervis (2017): How Statesmen Think: Psychology of International Relations e Perception and Misperception in International Politics.

Em suma, a guerra na Ucrânia traz elementos que contribuem para o quase fascínio humano em compreender a guerra.  As análises cotidianamente difundidas pela mídia podem mudar a maneira como o público percebe e cria expectativas acerca dos desdobramentos. Ao passo que o conflito se desenrola, buscamos compreendê-lo enquanto esperamos que uma resolução rápida possa salvar um maior número de vidas. Para depois do conflito, surgirão perguntas que também trarão consigo um grau de complexidade para as análises que buscarão respondê-las. Para citar pelo menos algumas: qual o relacionamento do governo de Vladimir Putin com a Europa e os EUA no pós-conflito? Quem financiará a reconstrução da Ucrânia? Quais os desdobramentos para a coesão interna de um país que já se via dividido desde 2013? Quais os impactos da Guerra para a configuração de forças no sistema internacional, e para as instituições como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a OTAN e a União Europeia? Qual será o impacto no âmbito interno da União Europeia e dos partidos locais em termos de imigração e dependência energética em relação à Rússia? No momento atual, nos resta estar atentos aos impactos locais, regionais e globais do conflito.

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

REFERÊNCIAS

ALMEIDA NETO, Getúlio Alves. Tensão na fronteira ucraniana: reflexos de um mundo em mudança. ERIS. 26 fev. 2022. Disponível em: https://gedes-unesp.org/tensao-na-fronteira-ucraniana-reflexos-de-um-mundo-em-mudanca/. Acesso em 22 mar. 2022.

ALMEIDA NETO, Getúlio Alves; MAKIO, Danielle Amaral. Guerra Civil no Leste da Ucrânia. Dossiê de Conflitos Contemporâneos, v. 1, n. 1, p. 55-60. Observatório de Conflitos Contemporâneos. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2020/10/Ucr%C3%A2nia_Observat%C3%B3rio-de-Confltos_-Dossi%C3%AA-de-Conflitos-Cont..-v.1-n.-1-2020-58-63.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

CORDELL, Jake. Rewriting History, Putin Pitches Russia as a Defender of an Expanding Motherland. The Moscow Times. Feb. 22, 2022. Disponível em: https://www.themoscowtimes.com/2022/02/22/rewriting-history-putin-pitches-russia-as-defender-of-an-expanding-motherland-a76518. Acesso em: 22 mar. 2022.

JERVIS, Robert. Perceptions and Misperceptions in International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

JERVIS, Robert. How Statesmen Think: The Psychology of International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

KISSINGER, Henry. To settle the Ukraine crisis, start at the end. The Washington Post. Mar 5, 2014. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/henry-kissinger-to-settle-the-ukraine-crisis-start-at-the-end/2014/03/05/46dad868-a496-11e3-8466-d34c451760b9_story.html. Acesso em: 22 mar. 2022.

MAPS: Tracking the Russian Invasion of Ukraine. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/world/europe/ukraine-maps.html?. Acesso em: 22 mar. 2022.

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014.

PUTIN reconhece independência de regiões separatistas da Ucrânia e prevê envio  de tropas para ‘manutenção da paz’. BBC NEWS. 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60471555. Acesso em: 22 mar. 2022.

PRESIDENT OF RUSSIA. Article by Vladimir Putin “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians”. July 12, 2021. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/66181. Acesso em: 22 mar. 2022.

SIMPSON, John. Guerra na Ucrânia: as 6 exigências de Putin para acabar com o conflito. BBC NEWS. 18 Mar 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60793048. Acesso em: 24 mar. 2022.

UKRAINE continues to receive military aid. Army Technology. Disponível em: https://www.army-technology.com/features/russian-invasion-ukraine-war-nato/. March 3, 2022. Acesso em: 22 mar. 2022.

Imagem: Armas russas destruídas pelas Forças Armadas da Ucrânia. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 1

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

A grande quantidade de análises feitas diariamente acerca da guerra da Ucrânia desde a invasão russa – não somente no âmbito acadêmico, mas também midiático – desperta o interesse e demonstra o anseio público de compreender a complexidade desses eventos. Ademais, cria-se a expectativa de que analistas em geral, e sobretudo especialistas no tema, possam prever com acurácia os desdobramentos do conflito. Contudo, como tem-se observado ao longo de quase um mês de guerra, tentativas de predizer os acontecimentos e chegar a uma conclusão engessada são prejudiciais à compreensão dos fatos e estão, de certa forma, propensas a ser contraditas no instante seguinte. Nesse sentido, proponho um breve ensaio com reflexões que possam guiar o debate e auxiliar no entendimento de um fenômeno que se desenvolve enquanto o observamos.

É preciso tomar cuidado para que nossas análises não se tornem mais um reflexo do que esperamos que aconteça do que uma tentativa, ainda que naturalmente limitada, de depreender os acontecimentos que temos acompanhado, literalmente, minuto a minuto. Assim, proponho o breve debate de dois pontos: 1) os motivos que levaram à tomada de decisão russa de invadir a Ucrânia; 2) a reação pública, política e midiática à guerra, em razão de suas especificidades estratégico-militares que parecem em descompasso com o contexto histórico e geográfico atual, salientando aspectos da comunidade global contemporânea que têm impacto na percepção do tempo da guerra e seu desenvolvimento. O primeiro ponto é discutido neste texto e o segundo em sua continuação.

Os motivos da guerra: expansão imperialista ou agressão político-securitária?

Após a crescente tensão gerada por exercícios militares realizados pelas forças armadas russas próximos à fronteira ucraniana desde o final de 2021, Vladimir Putin ordenou, em 24 de fevereiro de 2022, que suas tropas invadissem o território ucraniano sob a alegação de uma “operação militar especial”. O objetivo, segundo Putin, seria “desnazificar” o país e atender ao pedido dos líderes das autoproclamadas repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk. Estas regiões no Leste Ucraniano são palco de uma guerra civil em confronto com o governo de Kiev que teve início há oito anos, na esteira da derrubada do então presidente Viktor Yanukovytch – tido como mais alinhado à Rússia em detrimento da aproximação com a União Europeia – nos protestos da Praça Maidan, em 2013. Três dias antes da invasão, o governo russo reconheceu formalmente a independência das repúblicas, anunciando a possibilidade do envio de tropas para a “manutenção da paz”.  Atualmente, o Kremlin busca impor como condições para o fim das hostilidades uma série de reivindicações: 1) neutralidade ucraniana, com garantias de que nunca se tornará país-membro da OTAN; 2) desmilitarização do país; 3) reconhecimento da independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk; 4) reconhecimento do status da Crimeia como parte da Federação Russa; 5) e, por fim, proteção à língua russa na Ucrânia.

Antes de ordenar que suas forças armadas invadissem a Ucrânia, Vladimir Putin fez um discurso no qual colocou em xeque a própria existência do Estado ucraniano ao afirmar que “a Ucrânia moderna foi uma criação da Rússia”, após a formalização da URSS como produto da política leninista de uma federação de estados iguais. O discurso televisionado assemelhou-se a um artigo publicado por Putin, ainda em julho de 2021, no qual discorre extensamente sobre a história compartilhada entre russos e ucranianos. Este pronunciamento, somado ao histórico recente de anexação da Crimeia e o reconhecimento das regiões separatistas, torna possível questionar a narrativa utilizada por Putin antes da agressão à Ucrânia, segundo a qual Moscou buscaria apenas garantias de segurança. Consequentemente, vem crescendo como uma das linhas argumentativas para explicação do ataque russo à Ucrânia – sobretudo nas análises midiáticas –, que Putin buscaria incorporar todo o território ucraniano e restaurar territorial e formalmente as antigas fronteiras da União Soviética. Ainda nessa perspectiva, a Ucrânia poderia ser o primeiro passo para futuras tentativas de expansão russa.

O contexto ucraniano, em específico, torna ainda mais propenso o surgimento de tais análises. Russos e ucranianos possuem estreitos laços identitários que remontam ao passado político, econômico, cultural, linguístico e religioso em comum. Na historiografia de ambos os países é atribuída à Rus Kievana, um Estado feudal do século IX, como a primeira unidade política que deu origem aos atuais Estados modernos. Nesse seguimento, a interpretação de que Putin questiona a própria existência do Estado ucraniano faz sentido dentro desse contexto e perspectiva analítica.

Em compasso com as prerrogativas encontrada em documentos oficiais como a Doutrina Militar e o Conceito de Política Externa da Rússia, nas quais está prevista a utilização das forças armadas para fora de seu território em defesa de cidadãos russos, abre-se uma possibilidade de utilização deste argumento por parte do Kremlin para justificar suas ações, como observado nas incursões russas nas regiões separatistas da Ossétia e Abecásia do Sul durante a Guerra da Geórgia em 2008, além do caso da Crimeia, já citado acima. Quando expostos todos estes elementos, é natural que se traga à tona o argumento da expansão imperialista de Vladimir Putin. Não se trata aqui de descartar por completo tal possibilidade. No entanto, até que se tenha mais detalhes e conhecimento acerca dos fatos, tais afirmações podem ser caracterizadas no máximo como especulações.

Por outro lado, pode-se analisar o conflito a partir de um olhar que leve em consideração a dimensão político-securitária, em perspectiva histórica, podendo auxiliar na compreensão das circunstâncias que explicam a guerra, ainda que sem justificá-la. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a invasão russa faz parte de um contexto maior de crescente tensão entre Moscou e o chamado “bloco ocidental”, que remonta ao processo de dissolução da União Soviética e o consequente surgimento de 15 novas repúblicas independentes em dezembro de 1991, entre elas a Federação Russa e a Ucrânia.

No contexto de fragilidade econômica, política, social e militar da Rússia nos anos 1990, em conjunto com a supremacia estadunidense e surgimento de uma dita ordem internacional liberal-unipolar, Moscou observou a contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção ao Leste Europeu. Ao longo desse processo, essa aliança militar ocidental incorporou 14 novos Estados-membros, entre eles ex-repúblicas soviéticas, como os Países Bálticos, e nações que antigamente estavam sob a esfera de influência de Moscou através do Pacto de Varsóvia, tal como a Polônia. O argumento utilizado por Putin de que o avanço de tropas ocidentais a regiões próximas à Rússia seria uma ameaça à segurança de seu país não pode ser desconsiderado, ainda que não justifique a invasão de tropas a um território de outro país sem que tenha havido qualquer ataque anterior.

De fato, a expansão da OTAN é debatida por acadêmicos, políticos e militares dos próprios países-membros desde os anos 1990. Teóricos realistas das Relações Internacionais, como Mearsheimer (2014), e o conhecido Secretário de Estado dos EUA na década de 1970, Henry Kissinger, já alertavam para a possibilidade de reação russa, ainda que advertissem para as consequências à Rússia em fazer uso de seu poderio militar para impor o status de neutralidade – ou subjugar – à Ucrânia. Ademais, o governo russo sempre deixou claro, em discursos e em documentos oficiais, ser contrário ao alargamento da aliança militar ocidental, sendo particularmente contrário a qualquer possibilidade de adesão da Ucrânia e da Geórgia. Sendo assim, desde a primeira Doutrina Militar russa pós-soviética, datada de 1993, encontra-se a crítica à expansão de blocos militares. Em 2010, a terceira edição do documento cita nominalmente a OTAN como principal ameaça à segurança do país. Logo, pode-se afirmar que a decisão russa de invadir a Ucrânia e assegurar que o país não se filie à aliança ocidental não é, no fundo, uma surpresa. Seja de forma retórica ou nos casos da Geórgia e Ucrânia, o governo russo já havia demonstrado disposição em fazer uso de seu aparato militar para reivindicar seus interesses político-securitários, mesmo que em detrimento de questões econômico-financeiras e repercussões políticas causadas pelas sanções impostas.

Em suma, a Guerra da Ucrânia suscitou o debate sobre um possível ímpeto expansionista-imperialista do governo de Vladimir Putin, que teria como objetivo restaurar – parcial ou totalmente – as fronteiras da União Soviética a partir da anexação contínua dos territórios adjacentes à Rússia. Apesar de o discurso do presidente russo ter se tornado cada mais agressivo e possua indícios de um revisionismo histórico, busquei salientar que considero mais frutífera a análise feita a partir de um contexto de percepção do governo russo de ameaça advinda de suas fronteiras ocidentais desde os anos 1990 em razão do processo de expansão da OTAN para o Leste europeu, e dos desdobramentos domésticos na política ucraniana desde os protestos na Praça Maidan, em 2013. Por essa perspectiva, o fortalecimento do aparato bélico russo, executado a partir de reformas militares em curso desde 2008, dotou o país de um instrumento de política externa para confrontação ao Ocidente e a partir da reivindicação de seus interesses político-securitários. Dessa forma, pode-se entender a agressão à Ucrânia como produto de um cálculo político do Kremlin que, dotado de confiança em seu poder militar, busca conseguir as vitórias políticas ensejadas, como a imposição do status de neutralidade da Ucrânia, o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, e da Crimeia como parte integral da Federação Russa, mesmo que isto venha a custos de pesadas sanções econômicas e isolacionismo político.

REFERÊNCIAS

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014

 

* Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br.

Imagem: Russian military weapons destroyed and seized by the Armed Forces of Ukraine. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons

“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 2

Danielle Amaral Makio*

Na primeira parte da nossa análise sobre o Cazaquistão abordamos alguns elementos que levaram aos protestos no país no início de 2022, entre os quais podemos destacar, sobretudo: (i) a formação e a estrutura do regime político do país; (ii) a transição econômica ocorrida no período pós-soviético; e (iii) o contexto socioeconômico face os efeitos da pandemia. No presente texto, analisaremos mais uma questão essencial para entendermos o contexto cazaque: o nacionalismo. Este é um tema recorrente na política do Cazaquistão. Ainda durante os primeiros anos do mandato de Nazarbayev dizia-se que o líder era um nacionalista desenvolvimentista. Esse, porém, não é um entendimento partilhado pelos grupos nacionalistas do país, exacerbando, mais uma vez, a profunda cisão entre regime e povo no país. Segundo estes cazaquistaneses afeitos a ideias próprias de nação, Nazarbayev, apesar de ter sido uma figura importante na definição da identidade cazaque atual, não poderia ser rotulado como uma nacionalista, pois sempre promoveu uma ideia de nação essencialmente atrelada a agentes estrangeiros. Nazarbayev, nesse contexto, é acusado de não exaltar os reais símbolos e a verdadeira história do seu povo e de condicionar parte do desenvolvimento nacional a fatores externos. Dessa maneira, surgiram diferentes ramificações do nacionalismo cazaquistanês, todas unidas pelo objetivo primeiro de remodelar a identidade e a política nacionais de acordo com expressões genuinamente pertencentes à sociedade local, distanciando o Cazaquistão de narrativas alheias. 

Assim, a primeira vertente do nacionalismo cazaquistanês é essencialmente anti-russa. Esse grupo se preocupa com os quase 30% da sociedade que é formada por russos étnicos, com a manutenção do idioma russo em detrimento do idioma local – o cazaque – entre outros exemplos. Nesse contexto, eles buscam por uma maior autonomia, e não um rompimento em relação ao Kremlin, histórico parceiro do país. Outro setor do movimento nacionalista cazaquestanês é a sua porção sinofóbica, cuja relevância vem crescendo sobretudo desde 2014, a despeito da satisfação das elites em relação à parceria, explicitando outro ponto de ruptura entre sistema e sociedade. Naquele ano, o então presidente Nazarbayev oficialmente lançou o chamado Nurly Zhol, plano desenvolvimentista do Cazaquistão que busca aumentar a conectividade entre a malha produtiva do país e o mercado consumidor. O ambicioso projeto foi uma resposta sobretudo à crise ucraniana, a qual, ao afetar a economia russa, penalizou severamente também a economia cazaque, altamente integrada a Moscou. O Nurly Zhol, portanto, foi uma tentativa de reorganização econômica interna para que o país pudesse reaquecer indústria e mercado domésticos e, assim, reduzir os efeitos da crise. Poucos meses após o lançamento oficial do plano, o mesmo foi oficialmente atrelado à Nova Rota da Seda chinesa, empreendimento também anunciado no mesmo período. A China, a partir de então, tornou-se a financiadora legítima do projeto de desenvolvimento cazaque. A partir daí as relações entre ambos vêm se estreitando progressivamente. Alguns de seus resultados, porém, ainda que bem-vistos pelo governo e pelo grande capital local, vem desagradando parte da população.

Grande parte das empresas chinesas que se instalaram no Cazaquistão desde então não usam mão de obra local. A ausência da criação de novos empregos e o aumento da concorrência gerada pela maior migração de chineses para território cazaque é motivo de grande insatisfação popular. Ademais, a sistemática compra de terras pela China, o uso de meios de produção altamente poluentes e extrativistas, prejudiciais ao solo, e outros fatores aumentam a lista de insatisfações de cazaquistaneses em relação aos vizinhos. A despeito da relevância desses argumentos na formação da sinofobia no país, há um elemento central: a questão de Xinjiang, província separatista chinesa formada por minorias étnicas e muçulmanas que faz fronteira com o Cazaquistão. Devido a relevância da região para a China, Pequim tem instituído um controle rígido sobre a população local, medida rondada por denúncias de desrespeito aos direitos humanos das minorias que habitam o espaço. Nesse contexto, as ondas migratórias entre Xinjiang e Cazaquistão vêm crescendo e há preocupações por parte do governo e do povo cazaque acerca do tratamento dispensado pela China aos cidadãos cazaques da etnia uighur que eventualmente cruzam a fronteira.

Ambos, russofobia e sinofobia, não são elementos excludentes no cenário nacionalista cazaquistanês, tampouco são necessariamente acompanhados um do outro, contudo, há uma ligação explícita entre o nacionalismo local e a maneira pela qual esses fatores são entendidos pela sociedade. 

Outro fator externo de incentivo ao nacionalismo no Cazaquistão é a presença do Ocidente, sobretudo dos EUA, em meio à sociedade. Ainda que haja, de fato, certa influência estadunidense sobre grupos da população do país – e até mesmo sobre setores do governo -, estes, em geral, limitam-se a porções jovens da burguesia que habitam grandes centros. Algumas regiões do interior do país podem, de fato, apresentar níveis interessantes de influência norte-americana, porém é difícil mensurar até que ponto esses grupamentos são parte de algum tipo de movimento nacionalista local. A ocidentalização, assim, pode atuar como uma espécie de polarizador de alguns setores do nacionalismo cazaquistanês, porém o nível de sua interferência entre a população de fato é ainda nebuloso e não parece ter expressividade tão grande quanto os demais fatores aqui apresentados. 

Assim, pode-se notar que por trás dos protestos que tomaram conta do Cazaquistão logo nos primeiros dias de 2022 há muito mais que o aumento dos preços do gás. De um regime ensimesmado incapaz de estabelecer diálogos efetivos com sua população até uma economia altamente dependente típica de um país sobre o qual pairam interesses escusos de naturezas diversas, a política cazaque tem níveis de complexidade que demandam uma análise cautelosa. Compreender como se deu a formação do Estado e como ele se articula interna e externamente são questões chaves para desvelar as recentes manifestações sem que nos enganemos com narrativas demasiado simplistas que ignoram as próprias divisões discursivas inerentes ao país. Nesse cenário, é indispensável aceitar os limites que a própria conjuntura impõe à análise para que não criemos hipóteses que se distanciam da realidade e/ou que nos ceguem para características genuínas que importam para a construção de um novo futuro para o Cazaquistão.

 

* Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 1

Danielle Amaral Makio*

Embalados ao som de vozes gritando “Adeus, vovô”, em referência ao ex-presidente Nursultan Nazarbayev, cidadãos e cidadãs tomaram as ruas de importantes centros no Cazaquistão em manifestações marcadas por revolta, violência e dúvidas. Há muitas maneiras de analisar os protestos que tomaram o Cazaquistão no início de 2022. De revolução colorida a manifestações genuínas das classes trabalhadoras do país, os eventos que convulsionaram o maior Estado da Ásia Central têm diferentes níveis de complexidade. Mais importante do que rotular o episódio de acordo com nomenclaturas específicas, contudo, é compreendê-lo em suas minúcias e particularidades. Portanto, nosso objetivo neste texto é explanarmos a realidade com a qual estamos lidando, analisando elementos políticos, históricos e sociais deste país.

Ex-república soviética, o Cazaquistão é hoje uma república constitucional semipresidencialista na qual o primeiro-ministro é o chefe de governo e o presidente assume o posto de chefe de Estado e das forças armadas. Antes de integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), porém, o país era composto por povos nômades que, organizados em torno de clãs, não constituíam um Estado nacional aos moldes atuais.  As práticas políticas sustentadas ao longo dos períodos soviético e nomádico levaram o país a construir um regime que, por um lado, mantém estruturas típicas dos tempos soviéticos, como a manutenção das burocracias características e a centralização de poder, e, por outro, é influenciado por traços comuns a sociedades nômades e clânicas, o que se observa, entre outros, na alta personificação do poder e na estrutura dos laços de lealdade criados entre sociedade e governantes.

Mapa do Cazaquistão

A figura de Nursultan Nazarbayev, nesse contexto, é emblemática. Presidente do país até 2019, o líder, cuja influência remonta ao período soviético, é ainda hoje visto como o grande símbolo nacional. A história de Nazarbayev à frente do Cazaquistão exemplifica a maneira pela qual o poder se configura no país. Primeiramente, vem à tona a personificação do governo. Em clãs, é comum que a liderança tenha um elemento corpóreo; ela é identificada em uma pessoa, um líder que goza da posse da lealdade dos demais membros do grupo. A regência do ex-presidente em grande medida reproduz essa estrutura política. A confiança há anos depositada em sua figura é mantida e aprofundada para uma espécie de culto que atrela a existência e as glórias do Cazaquistão ao seu líder absoluto. A influência deste é tamanha que não só se expressa em uma quantidade massiva de reproduções de sua imagem em estátuas e quadros espalhados por cidades do país, como também se manteve mesmo após sua sucessão.

Quando abdicou do cargo em 2019, Nazarbayev deixou a presidência para Tokayev, seu partidário e protegido, garantindo que este continuasse, de forma efetiva, a influenciar a política nacional. A saída de Nazarbayev se deu em meio a uma crise de popularidade inédita que ameaçava a manutenção dos altíssimos níveis de governabilidade do político. Com o crescimento econômico comprometido desde a crise de 2008, e em face de medidas austeras adotadas por imposição do Fundo Monetário Internacional como condição para acesso a novas linhas de crédito, Nazarbayev passou por um período de crescente contestação popular. O mesmo não se pode afirmar das elites políticas e econômicas, que em muito se beneficiaram do contexto. A indicação de Tokayev, assim, pode ser entendida como uma manobra política que a um só tempo garantiu: (i) a continuação do poder de Nazarbayev, (ii) o arrefecimento dos ânimos de parte da população insatisfeita e (iii) a sinalização ao mundo de que o país passava por um momento de abertura política. 

Há, ainda, um segundo elemento do governo de Nazarbayev que nos interessa para compreender a constituição do regime político cazaque: a centralização do poder. Ainda que o governo do Cazaquistão seja dividido em diversas instituições, como parlamento bicameral, ministérios, prefeituras, entre outros, é notável o peso do cargo de presidência no comando do país. Nesse contexto, é importante ainda ressaltar a ausência de uma oposição política devidamente organizada. Prática recorrente da URSS, o controle rígido de partidos e grupos opositores é uma realidade no cenário cazaque, que volta esforços consideráveis para o monitoramento e repressão de movimentos contrários ao regime, os quais são corriqueiramente classificados como células terroristas. Na esteira do cerceamento político, é importante salientar o intenso controle estatal sobre as mídias do país, fato que impacta a formação da opinião pública e dificulta a circulação de informações que possam favorecer o crescimento de sentimentos contrários ao status.

Dessa maneira, o Cazaquistão se caracteriza por um regime político autocrático afeito à personificação do poder e com uma oposição política pouco organizada. Há, porém, outras características importantes do país que devem ser consideradas para que analisemos os recentes protestos de janeiro de 2022. A primeira delas está relacionada à independência e abertura do país em 1991. O fim da URSS marcou a introdução de suas 15 repúblicas em um sistema internacional dominado pelo capitalismo e, por conseguinte, por grandes corporações. O caso cazaque não é diferente. Rico em minérios e hidrocarbonetos, o Estado rapidamente recebeu um fluxo massivo de capital estrangeiro, à época primordialmente representado por empresas estrangeiras que se instalaram no país para extrair e comercializar seus recursos naturais e por capital financeiro. O choque entre um capitalismo endógeno pouco desenvolvido e o crescente interesse do capital estrangeiro pelo Cazaquistão teve diversas consequências. De um lado, houve um crescimento econômico expressivo que enriqueceu as oligarquias no poder. Por outro, criou-se uma grande dependência de capital externo, que veio acompanhada de: (i) desindustrialização, ocorrida pela incapacidade das indústrias nacionais de competir com estrangeiras; (ii) pouca diversidade econômica, causada pela crescente dependência de atividades extrativistas; (iii) alianças entre o grande capital e as elites no poder em detrimento da população em geral; entre outros.

Nesse contexto, a maneira com que se deu a abertura econômica cazaque levou à criação de um regime que não somente é autocrático, mas que também é ensimesmado, que se afastou de sua sociedade. O atrelamento dos interesses das oligarquias no poder e dos interesses do grande capital que se instalou no país moldou um governo que por vezes preza mais o lucro das empresas multinacionais que se encontram no Cazaquistão – as quais em sua maioria têm como acionistas ou beneficiados membros das famílias no poder – do que o próprio país. Leis trabalhistas pouco eficazes na defesa do trabalhador, escassos incentivos à fomentação da indústria nacional (cenário que começa a mudar lentamente em 2014) e falta de garantias no que diz respeito ao emprego longevo de mão de obra local por multinacionais presentes no país são alguns exemplos de como o governo privilegia mais uma parte da sociedade do que outra. Somando esse cenário a uma histórica brutalidade policial, à proibição de manifestações públicas contra o regime e ao controle midiático, o diálogo entre o governo e o povo se deteriorou até atingir níveis insignificantes. Esse quadro, ademais, ganha novos matizes quando pensamos na imensa desigualdade social e nos altos níveis de corrupção que se estendem por todo o país.

É, pois, nesse contexto mais alargado que ganham corpo as manifestações de janeiro de 2022. Há, contudo, outros fatores de ordem conjuntural que merecem atenção para que possamos compreender o que levou todas essas contradições à ebulição. A COVID-19 é talvez a mais preponderante entre elas. Somada a uma economia que vinha desacelerando desde 2008, a pandemia teve um efeito especialmente devastador no cenário cazaque. Fechamento de empresas, cortes no número de empregados em grandes e pequenas indústrias, aumento da pressão sobre as contas públicas, aumento de desemprego, inflação. Esses são alguns dos problemas que vêm afetando severamente o país desde 2020 e cuja principal consequência tem sido um descontentamento social contra o governo, que face às novas dificuldades foi incapaz de oferecer auxílio adequado à sua população, a qual se viu à mercê dos acontecimentos e das devastadoras decisões de muitas multinacionais. Ainda em 2020, pequenos protestos liderados pelas classes trabalhadoras já vinham ocorrendo em regiões como Mangystau, local cuja principal atividade é a extração de combustíveis fósseis e que foi duramente atingida pela redução de operações lideradas por estrangeiras.

Para além dos desafios aqui apontados, 2022 começa com uma nova surpresa para o povo cazaque: no primeiro dia do ano, o presidente decidiu retirar subsídios nacionais direcionados ao gás liquefeito de petróleo, levando os preços do combustível a explodirem em um contexto no qual a renda da população vinha caindo expressivamente. É importante ressaltar que o sistema de aquecimento do Cazaquistão funciona majoritariamente à base de gás, combustível também muito usado por veículos. Em meio a um rigoroso inverno, impedir que parte da sociedade tenha condições de pagar pelo gás sob a justificativa de corrigir imperfeições do mercado que poderiam levar a uma crise de desabastecimento foi o suficiente para que os protestos eclodissem.

A resposta veio de imediato: no dia 2 de janeiro, manifestações pacíficas já tomavam Mangystau. Na pauta dos protestantes estavam não somente a revogação da medida, mas também insatisfações com os níveis de corrupção do governo, que estariam ligados à situação em que se encontra o país, e com a própria manutenção de um regime que se consolidou em detrimento da sociedade e em favor de elites e do grande capital – como explicitado nas referências diretas dos manifestantes a Nazarbayev. Ainda que não houvesse apelo à violência por parte dos manifestantes, estes foram duramente reprimidos pela polícia, a qual classificou o movimento como terrorista. Graças à legitimidade dos clamores das ruas e da brutalidade com que foram recebidos pelo Estado, os protestos logo foram apoiados por outros setores da sociedade em cidades como Almaty, onde se deram os principais desdobramentos do episódio.

A escalada violenta dos protestos, nesse ínterim, deu-se por motivos diversos: (i) a resposta genuína dos manifestantes à brutalidade demonstrada pela polícia e pelo governo, que violou de diversas maneiras os direitos da população, utilizando desde gás lacrimogêneo e bombas de dispersão a cortes à internet; (ii) a apropriação das manifestações por grupos oportunistas que viram no evento a possibilidade de se mobilizarem; (iii) a ação de vândalos não associados aos protestos. Considerando o controle midiático que o regime do Cazaquistão imprime sobre a imprensa e a limitação ao acesso à rede de comunicação, ainda é incerto afirmar a presença de grupos ligados a agentes estrangeiros. Atualmente, sobressaem-se duas hipóteses. A primeira propõe que a radicalização do movimento foi promovida pelos EUA que, na tentativa de conter o eixo sino-russo e após o fracasso no Afeganistão, viu no Cazaquistão a possibilidade de garantir sua presença na região. Nesse sentido, a Casa Branca teria conseguido coordenar os eventos sobretudo através do aumento da ocidentalização do país por meio da presença de ONGs financiadas pela National Endowment for Democracy (NED). De acordo com essa visão, a população cazaque seria porosa o suficiente para que houvesse a incitação de sentimentos pró-Ocidente e anti-regime. A outra leitura, porém, sugere o oposto: a Rússia, na esteira dos acontecimentos na Ucrânia, estaria por trás do episódio como forma de garantir a manutenção de seus interesses no país, cujo crescente alinhamento à China, somado à ameaça estadunidense, estaria atrapalhando a presença do Kremlin no local.

Ambas as hipóteses, ainda que importantes para compreendermos o episódio sob várias perspectivas, não são, no momento, claramente refutadas ou confirmadas. O que se pode afirmar, por hora, é que tanto EUA quanto Rússia têm interesses em se manter influentes no Cazaquistão e teriam condições de fazê-lo. Contudo, é preciso que não deixemos que a suposta relevância da atuação de agentes externos ofusque o cenário cazaque e sua força. Entender os recentes protestos também como um movimento proletário genuíno e nacional é fundamental para não perder de vista os interesses daquele que é o lado mais importante de todos os recentes eventos: o povo cazaque. É preciso, pois, cuidado para não reduzir, mais uma vez, uma sociedade complexa e suas expressões às vontades de grandes players da política internacional. Dito isso, há ainda uma consideração que devemos fazer a fim de entender melhor as relações estabelecidas entre o Cazaquistão, os protestos de janeiro de 2022 e os agentes estrangeiros: o nacionalismo cazaque, ou cazaquistanês, como preferem os nacionalistas. Este tema será o foco da segunda parte da nossa análise.

Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem 1: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

Imagem 2: Mapa do Cazaquistão. Por U.S. Central Intelligence Agency – University of Texas Libraries.