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“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 2

Danielle Amaral Makio*

Na primeira parte da nossa análise sobre o Cazaquistão abordamos alguns elementos que levaram aos protestos no país no início de 2022, entre os quais podemos destacar, sobretudo: (i) a formação e a estrutura do regime político do país; (ii) a transição econômica ocorrida no período pós-soviético; e (iii) o contexto socioeconômico face os efeitos da pandemia. No presente texto, analisaremos mais uma questão essencial para entendermos o contexto cazaque: o nacionalismo. Este é um tema recorrente na política do Cazaquistão. Ainda durante os primeiros anos do mandato de Nazarbayev dizia-se que o líder era um nacionalista desenvolvimentista. Esse, porém, não é um entendimento partilhado pelos grupos nacionalistas do país, exacerbando, mais uma vez, a profunda cisão entre regime e povo no país. Segundo estes cazaquistaneses afeitos a ideias próprias de nação, Nazarbayev, apesar de ter sido uma figura importante na definição da identidade cazaque atual, não poderia ser rotulado como uma nacionalista, pois sempre promoveu uma ideia de nação essencialmente atrelada a agentes estrangeiros. Nazarbayev, nesse contexto, é acusado de não exaltar os reais símbolos e a verdadeira história do seu povo e de condicionar parte do desenvolvimento nacional a fatores externos. Dessa maneira, surgiram diferentes ramificações do nacionalismo cazaquistanês, todas unidas pelo objetivo primeiro de remodelar a identidade e a política nacionais de acordo com expressões genuinamente pertencentes à sociedade local, distanciando o Cazaquistão de narrativas alheias. 

Assim, a primeira vertente do nacionalismo cazaquistanês é essencialmente anti-russa. Esse grupo se preocupa com os quase 30% da sociedade que é formada por russos étnicos, com a manutenção do idioma russo em detrimento do idioma local – o cazaque – entre outros exemplos. Nesse contexto, eles buscam por uma maior autonomia, e não um rompimento em relação ao Kremlin, histórico parceiro do país. Outro setor do movimento nacionalista cazaquestanês é a sua porção sinofóbica, cuja relevância vem crescendo sobretudo desde 2014, a despeito da satisfação das elites em relação à parceria, explicitando outro ponto de ruptura entre sistema e sociedade. Naquele ano, o então presidente Nazarbayev oficialmente lançou o chamado Nurly Zhol, plano desenvolvimentista do Cazaquistão que busca aumentar a conectividade entre a malha produtiva do país e o mercado consumidor. O ambicioso projeto foi uma resposta sobretudo à crise ucraniana, a qual, ao afetar a economia russa, penalizou severamente também a economia cazaque, altamente integrada a Moscou. O Nurly Zhol, portanto, foi uma tentativa de reorganização econômica interna para que o país pudesse reaquecer indústria e mercado domésticos e, assim, reduzir os efeitos da crise. Poucos meses após o lançamento oficial do plano, o mesmo foi oficialmente atrelado à Nova Rota da Seda chinesa, empreendimento também anunciado no mesmo período. A China, a partir de então, tornou-se a financiadora legítima do projeto de desenvolvimento cazaque. A partir daí as relações entre ambos vêm se estreitando progressivamente. Alguns de seus resultados, porém, ainda que bem-vistos pelo governo e pelo grande capital local, vem desagradando parte da população.

Grande parte das empresas chinesas que se instalaram no Cazaquistão desde então não usam mão de obra local. A ausência da criação de novos empregos e o aumento da concorrência gerada pela maior migração de chineses para território cazaque é motivo de grande insatisfação popular. Ademais, a sistemática compra de terras pela China, o uso de meios de produção altamente poluentes e extrativistas, prejudiciais ao solo, e outros fatores aumentam a lista de insatisfações de cazaquistaneses em relação aos vizinhos. A despeito da relevância desses argumentos na formação da sinofobia no país, há um elemento central: a questão de Xinjiang, província separatista chinesa formada por minorias étnicas e muçulmanas que faz fronteira com o Cazaquistão. Devido a relevância da região para a China, Pequim tem instituído um controle rígido sobre a população local, medida rondada por denúncias de desrespeito aos direitos humanos das minorias que habitam o espaço. Nesse contexto, as ondas migratórias entre Xinjiang e Cazaquistão vêm crescendo e há preocupações por parte do governo e do povo cazaque acerca do tratamento dispensado pela China aos cidadãos cazaques da etnia uighur que eventualmente cruzam a fronteira.

Ambos, russofobia e sinofobia, não são elementos excludentes no cenário nacionalista cazaquistanês, tampouco são necessariamente acompanhados um do outro, contudo, há uma ligação explícita entre o nacionalismo local e a maneira pela qual esses fatores são entendidos pela sociedade. 

Outro fator externo de incentivo ao nacionalismo no Cazaquistão é a presença do Ocidente, sobretudo dos EUA, em meio à sociedade. Ainda que haja, de fato, certa influência estadunidense sobre grupos da população do país – e até mesmo sobre setores do governo -, estes, em geral, limitam-se a porções jovens da burguesia que habitam grandes centros. Algumas regiões do interior do país podem, de fato, apresentar níveis interessantes de influência norte-americana, porém é difícil mensurar até que ponto esses grupamentos são parte de algum tipo de movimento nacionalista local. A ocidentalização, assim, pode atuar como uma espécie de polarizador de alguns setores do nacionalismo cazaquistanês, porém o nível de sua interferência entre a população de fato é ainda nebuloso e não parece ter expressividade tão grande quanto os demais fatores aqui apresentados. 

Assim, pode-se notar que por trás dos protestos que tomaram conta do Cazaquistão logo nos primeiros dias de 2022 há muito mais que o aumento dos preços do gás. De um regime ensimesmado incapaz de estabelecer diálogos efetivos com sua população até uma economia altamente dependente típica de um país sobre o qual pairam interesses escusos de naturezas diversas, a política cazaque tem níveis de complexidade que demandam uma análise cautelosa. Compreender como se deu a formação do Estado e como ele se articula interna e externamente são questões chaves para desvelar as recentes manifestações sem que nos enganemos com narrativas demasiado simplistas que ignoram as próprias divisões discursivas inerentes ao país. Nesse cenário, é indispensável aceitar os limites que a própria conjuntura impõe à análise para que não criemos hipóteses que se distanciam da realidade e/ou que nos ceguem para características genuínas que importam para a construção de um novo futuro para o Cazaquistão.

 

* Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

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