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Onde estão as mulheres no conflito Ucrânia-Rússia? Exercendo uma curiosidade feminista na análise das Relações Internacionais

 Gabriela Aparecida de Oliveira*

Danielle Amaral Makio**

Helena Salim de Castro***

 

Desde o dia 24 de fevereiro, a Ucrânia tem sofrido com ataques russos a seu território e população. Motivações geopolíticas, econômicas, ideológicas e identitárias se entrelaçam criando um cenário complexo e incerto, cujos efeitos têm sido sentidos sobretudo pela população civil ucraniana. Até o momento de publicação deste texto, o observatório Global Conflict Tracker do Council on Foreign Relations contabilizava 2.685 vítimas civis do conflito, além de mais de 4,1 milhões de refugiados – em sua grande maioria mulheres e crianças, uma vez que homens entre 18 e 60 anos foram proibidos de deixar o país.

A maior vulnerabilidade de mulheres e crianças em cenários de guerra está longe de ser uma novidade. Ao olhar o conflito Rússia-Ucrânia a partir de uma lente feminista, é possível, entretanto, identificar os fatores políticos e econômicos que levam a uma maior exposição desse grupo a violências, além de identificar outros papéis que as mulheres ucranianas vêm desempenhando, voluntária ou involuntariamente, na guerra. Nesse sentido, nossa análise se guia por meio de uma pergunta que parece, em um primeiro momento, despretensiosa: onde estão as mulheres na guerra russo-ucraniana?

Como sugere Cynthia Enloe (2014), refletir sobre os lugares ocupados pelas mulheres na política internacional nos leva a uma análise mais precisa de vários fenômenos, tais como a guerra. Há uma literatura (ELSHTAIN, 1995; COHN, 2013; GOLDSTEIN, 2001) que se propõe a discutir os papéis desempenhados pelas mulheres nas guerras modernas e contemporâneas, em resposta às abordagens tradicionais que reduzem a guerra a uma atividade essencialmente masculina. Elshtain (2009) diz que muito do nosso imaginário sobre mulheres, homens e guerra encontra-se moldado por dois arquétipos: o das “belas almas” e a dos “guerreiros justos”. O primeiro, associado às mulheres, exalta sua suposta natureza não-beligerante e sua necessidade de ser protegida; ao passo que o segundo se refere aos homens, seres “naturalmente” propensos à guerra. Embora, em termos históricos, a maioria das mulheres tenha de fato se mantido longe dos campos de batalha, elas atuaram de outras formas, que têm sido recuperadas por meio de uma análise de suas memórias e testemunhos.

As narrativas sobre as mulheres e a guerra se desenvolveram ao ponto de incluírem mulheres soldado, pacificadoras e ativistas pelos direitos humanos, resultado dos esforços feministas[1] para preencher esses silêncios. Entretanto, na academia e em meios midiáticos, ainda predomina uma sub-representação feminina quando o assunto é a guerra. A mídia hegemônica e seus analistas de política internacional, muitos deles homens brancos privilegiados dentro da geopolítica do conhecimento[2], tendem a priorizar discussões acerca das batalhas e das negociações entre os governos envolvidos nos conflitos. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia não é diferente: as vozes femininas constituem menos de um quarto (23%) do total de especialistas, protagonistas ou fontes citadas nas notícias digitais globais. Um dos motivos para que as mulheres – principalmente aquelas que se autodeclaram feministas – sejam deixadas de lado é que elas supostamente representam interesses específicos e pouco relevantes para compreender o “quadro geral” das guerras (ENLOE, 2014).

No entanto, conforme analisa Enloe (2014, p. 6), temos muito a ganhar ao exercer uma “curiosidade de gênero” sobre a política internacional, pois é por meio dela que podemos “descobrir exatamente como este mundo opera”. E essa “descoberta” só se torna possível na medida em que investigamos o poder: quais são suas formas, quem o exerce e como alguns exercícios de poder foram camuflados ao ponto de não se parecerem com o poder” (ENLOE, 2014, pp. 8-9). Nesse sentido, uma pergunta a se fazer é: quais narrativas sobre o conflito russo-ucraniano têm ganhado legitimidade e destaque na mídia?

Em entrevista recente para o Stance Podcast em que são abordadas narrativas marginalizadas sobre o conflito Rússia-Ucrânia, Enloe (2022) diz que no início de toda guerra há uma tendência em se classificar os envolvidos nas categorias de combatente, vítima ou vilão, em uma tentativa de simplificar a realidade. Dado isso, ela identifica duas representações sobre as mulheres ucranianas que têm predominado na mídia hegemônica e ocidental: a de vítimas e a de combatentes. São categorizações simplistas que impedem uma compreensão mais ampla acerca da atuação destas mulheres e que perdem de vista o fato de muitos papéis coexistirem entre si – como no caso de mulheres combatentes que foram vítimas de abusos sexuais perpetrados por seus próprios colegas.

A imagem das mulheres como vítimas é facilmente difundida, pois elas – juntamente com as crianças – são, de fato, as mais afetadas em contextos de guerra. No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, desde o início dos ataques russos, a ONU Mulheres alerta para uma escalada de violência contra esse grupo. Segundo a Agência, mulheres e meninas têm vivenciado diversas formas de violência ao saírem ou permanecerem no país. Existem histórias de violações dirigidas a mulheres mais velhas, que encontraram dificuldade em deixar a Ucrânia ou que optaram deliberadamente por se manterem no país. Ademais, grupos ucranianos de direitos humanos têm denunciado que tropas russas estariam utilizando do estupro de mulheres como “arma de guerra”, e grupos feministas têm explicitado o caráter misógino de discursos de Vladmir Putin a respeito da Ucrânia, os quais estariam reproduzindo a “cultura do estupro”.

A discussão do estupro como arma de guerra[3] impulsiona análises sobre o emprego simbólico-étnico da violência sexual. Esse tipo de violação, dirigido majoritariamente às mulheres, serviria como uma forma, direta e indireta, de subjugar e humilhar determinados grupos sociais, culturais e/ou étnicos. A violência contra as mulheres, assim, além de afetá-las individualmente, gera impactos nas comunidades como um todo, influindo sobre sua coesão social, segurança e resiliência.

No entanto, como ressalta Meger (2016), a perpetração de práticas de violência sexual e outras violências baseadas em gênero muitas vezes está vinculada a dinâmicas e interesses político-econômicos – a uma economia política que ronda o conflito. No caso aqui analisado, nos chamam atenção as denúncias de que mulheres e crianças que cruzam as fronteiras em busca de refúgio estariam vulneráveis a abusos e a serem vítimas de tráfico. Algumas denúncias apontam para casos de mulheres abordadas por grupos criminosos envolvidos com o tráfico de pessoas. Eles tentam aliciá-las para a prostituição ou para trabalhos forçados através de um discurso em que prometem abrigo e segurança, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade de seus alvos para obterem recursos econômicos. Defensores de direitos humanos, que estão trabalhando para que ucranianas e ucranianos se desloquem dos epicentros do conflito, têm relatado a atuação desses criminosos principalmente em estações de trem.

Outro exemplo que lança luz para essa “economia da violência” é o caso, denunciado em reportagem de uma revista feminista, da existência de uma “pornificação” da guerra. Imagens de violências sexuais contra mulheres e crianças traficadas são exibidas em websites mantidos por uma indústria pornográfica que tem lucrado com as visualizações. Nesse sentido, os casos de violência sexual devem ser investigados como práticas pertencentes a uma dinâmica político-econômica que conecta indivíduos e interesses transnacionais. É importante ressaltar que essas violências, por sua vez, não necessariamente acabam com o encerramento formal da guerra.

Em tempo, a segunda imagem das mulheres ucranianas que impera na mídia é a das combatentes. Elas representam cerca de 15% do efetivo militar do país, que tem um dos maiores exércitos da Europa. Milhares delas têm se alistado para participar da guerra incentivadas por discursos do presidente Volodymyr Zelensky. Nas duas primeiras semanas do conflito, várias imagens e vídeos de mulheres treinando para o combate e se opondo a soldados russos armados foram divulgadas nas redes sociais. No dia 15 de março, a CNN reportou que, depois de deixar seus pais e filhos na fronteira com a Polônia, algumas delas voltaram ao país para lutar. São comuns os relatos que exaltam a bravura, a independência e a determinação das ucranianas, vistas como um símbolo de resistência frente a uma Rússia opressora.

A narrativa sobre mulheres ucranianas extremamente independentes foi construída historicamente. Com base em fatores geográficos, tenta-se explicar o temperamento “distinto” destas mulheres no folclore do país. Assim, cria-se um discurso no qual é comum a figura da mulher solteira, quase sempre viúva, que pode sobreviver e prosperar sem um homem. Não obstante a repercussão “positiva” da imagem da mulher ucraniana combatente, ela continua sendo secundária. Como afirmou uma ucraniana à CNN, “as duas coisas mais importantes que uma mulher ucraniana precisa saber é como fazer borscht [sopa de beterraba] e coquetéis molotov”. Ou seja, ela ainda deve lidar com expectativas de gênero que a restringem a determinados papéis na guerra, tais como cozinhar e produzir explosivos para os homens, esses sim, vistos como “heróis” da nação. Se, por um lado, há mulheres que escolhem deliberadamente participar dos combates, outras têm encontrado dificuldades em se desvencilhar do serviço militar e sair do país: é o caso de mulheres trans que ainda não são reconhecidas legalmente pelo gênero feminino por causa de uma série de entraves burocráticos do governo que atrasam esse processo.

Para além da presença das mulheres em situações de vulnerabilidade e como combatentes no conflito, elas também estão trabalhando como voluntárias, serviço no qual são maioria, e agentes de fronteira, gerenciando o fluxo de pessoas e atuando na recepção dos refugiados – como ocorre na Moldávia. Da mesma maneira, muitas estão ainda dentro da Ucrânia prestando serviços humanitários como médicas e psicólogas, e nas linhas de frente dos confrontos para proteger os civis.

Ademais, as mulheres têm desempenhado um papel crucial para a denúncia de crimes de guerra à comunidade internacional e aos órgãos do governo ucraniano. Um coletivo de mais de 120 mulheres ucranianas chamado Dattalion, juntamente com mulheres não organizadas, têm tirado fotos e gravado vídeos das áreas de tensão para capturar execuções e bombardeios, divulgando as imagens em um banco de dados para amplo acesso. Na mesma linha, grupos feministas na Ucrânia, na Rússia, em Belarus e outros países têm feito campanhas anti-guerra nas ruas . Feministas russas auto-organizadas, além de pessoas LGBTQIA+, por exemplo, têm protestado através de pôsteres, performances e grafites em locais públicos, e usado o Telegram para mobilizar apoiadores. Contudo, elas têm sofrido represálias e sido detidas pelo governo russo. Segundo a Anistia Internacional, uma delas pode ficar na prisão por até dez anos somente por ter colocado cartazes com slogans anti-guerra em supermercados.

Por fim, outro papel pouco visível é o das mulheres voluntárias que costuram uniformes militares, redes que são usadas para camuflar o equipamento militar ucraniano nas imagens de satélite russas e capas verdes para cobrir snipers. Os pacotes com as encomendas são enviados a soldados ucranianos junto de doces e pó de café como uma forma de demonstrar seu apoio à “luta pela liberdade” do país. Assim, podemos identificar posicionamentos de mulheres que vão do “direito de lutar” – caso das combatentes ucranianas – à “abominação da guerra” – feministas antibelicistas -, sendo que ambos podem ser vistos como posicionamentos feministas. Apesar de parecer contraditório, há mulheres que podem sustentar essas duas posições ao mesmo tempo, como afirma Elshtain (1995).

Existem, portanto, diversas narrativas construídas sobre as mulheres, e homens, na guerra. Quando divulgadas pela grande mídia, elas são categorizadas como menos importantes e tendem a reproduzir estereótipos de gênero. A partir disso, nos perguntamos: Quem tem (re)produzido essas narrativas? E tendo em vista quais objetivos? O aprofundamento nessas questões, bem como em outras reflexões acerca dos diversos aspectos político-econômicos em torno da violência específica sobre as mulheres, como o estupro e o tráfico para a prostituição forçada, permite exercemos uma “curiosidade de gênero” sobre o conflito russo-ucraniano – e outros cenários de guerra e conflito armado. Essa “curiosidade” não tem um fim em si mesma, mas contribui para romper com os estereótipos sobre masculinidades e feminilidades e investigar os elementos que estruturam a violência. As mulheres estão nos diversos espaços e posições, sendo impactadas de formas particulares pela guerra. Assim, elas também devem ser chamadas para pensar nas possibilidades de encerramento dessa guerra e, principalmente, de enfrentamento das violências, que muitas vezes podem se prolongar mesmo após a paz acordada.

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Ilustrações de mulheres. Por: UN Women.

Referências

COHN, Carol (Ed.). Women and wars: Contested histories, uncertain futures. John Wiley & Sons, 2013.

ELSHTAIN, Jean Bethke. On beautiful souls, just warriors and feminist consciousness. In: Women’s Studies International Forum. Pergamon, 1982. p. 341-348.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Women and war. University of Chicago Press, 1995.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases. In: Bananas, Beaches and Bases. University of California Press, 2014.

GOLDSTEIN, Joshua S. War and gender: How gender shapes the war system and vice versa. Cambridge University Press, 2003.

MEGER, Sara. Rape Loot Pillage. The Political Economy of Sexual Violence in Armed Conflict. New York: Oxford University Press, 2016. ISBN: 9780190277666

MIGNOLO, Walter D. A geopolítica do conhecimento e a diferença colonial. Revista lusófona de educação, v. 48, n. 48, 2020. 

[1] O discurso feminista sobre a emancipação das mulheres inspirou, por exemplo, as últimas resoluções da Agenda Mulheres, Paz e Segurança das Nações Unidas (como a Resolução 2122, de 2013), que discorrem sobre o potencial de agência das mulheres em conflitos. Se nas primeiras resolução elas eram vistas como tão e somente vítimas a serem protegidas, elas passam a ser gradualmente concebidas como agentes cruciais para o processo de recuperação e manutenção da paz de suas comunidades no pós-conflito. No entanto, a Agenda continua a relacionar, ainda que não explicitamente, as mulheres à paz e os homens à guerra.

[2] A “geopolítica do conhecimento” é uma expressão usada por Walter Mignolo (2020) para refletir sobre as disparidades de poder existentes entre os produtores de conhecimento do Norte e do Sul global. Serve para denunciar o caráter eurocêntrico da ciência que se pretende “neutra” e “universal”, e que promove a marginalização de outros saberes, dentre eles, aqueles de mulheres, pessoas não-brancas e LGBTQIA+s.

[3] A discussão do “estupro como uma arma de guerra”, já trabalhada por autoras feministas, ganhou destaque na política e no direito internacional nos anos 1990 – no contexto das discussões do Tribunais Penais para a antiga Iusgoslávia e Ruanda – e viria a superar as reflexões desse tipo de violência como um produto inevitável dos conflitos. Como consequência, os crimes de violência sexual, cometidos em cenários de conflito e guerra, foram incluídos, posteriormente, no Estatuto de Roma, que constitui as bases legais do Tribunal Penal Internacional (MEGER, 2016).

Geopolítica e identidade: dimensões do conflito russo-ucraniano

Danielle Amaral Makio*

     Gabriela Aparecida de Oliveira**

Helena Salim de Castro***

Em fevereiro de 2022, Vladimir Putin deu início a um conflito militar na Ucrânia. A decisão do presidente vem anos após a anexação da Crimeia em 2014, ano em que a soberania do Estado ucraniano também foi colocada em xeque pelo Kremlin. Agora, Moscou volta a marchar sobre solo ucraniano, alegando, inicialmente, a necessidade de enviar apoio tático às regiões separatistas do leste, que, segundo o presidente russo, estariam sob intenso ataque de Kyiv, assim como a necessidade de “desnazificar” o país vizinho. O conflito atual chama atenção por sua rápida escalada e pela simultânea guerra de narrativas entre os atores envolvidos. Se de início os objetivos russos pareciam ser claros e geograficamente localizados, agora, semanas após o estopim dos embates, as justificativas iniciais de Putin já não parecem suficientes para compreender os motivadores que levaram a Rússia a iniciar e expandir sua operação sobre todo o território da Ucrânia. A disputa discursiva que se estabelece sobretudo entre Rússia e Ocidente sugere que o universo de razões que explica a guerra que agora se desenrola é muito mais amplo do que afirma o Kremlin. Para proporcionar um debate mais informado acerca das muitas dimensões do conflito russo-ucraniano, buscaremos responder ao seguinte questionamento: quais são as razões que justificam a decisão de Putin pela guerra?

A posição geográfica estratégica da Ucrânia e a localização da base militar russa de Sebastopol justificam o interesse militar de Putin sobre o país, que permite o acesso russo a mares quentes e à Europa ocidental. Além disso, a Ucrânia é hoje o principal local de passagem de dutos que conectam a produção de Moscou ao seu maior consumidor, a União Europeia. Ademais, os laços históricos compartilhados por ambos os países envolvidos na guerra atual são também usados pelo Kremlin como elemento discursivo para justificar a invasão. Nesse contexto, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a manutenção dos separatismos ucranianos no leste são recorrentemente usados por Moscou para justificar suas ações militares. À luz destas e de outras questões, a opção russa pelo atual conflito pode ser compreendida por meio  de um viés geopolítico/econômico e também a partir de um ponto de vista ideológico/identitário (LAURELLE, 2019; TOAL, 2017). 

Em 2014, temendo que o novo governo ucraniano pró-Ocidente pudesse aprofundar políticas discriminatórias que prejudicassem a livre expressão étnica e cultural das populações russas, e em vista da anexação da Crimeia, movimentos separatistas se mobilizaram em Donbass. É neste contexto que surgem as repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, as quais, discursivamente apoiadas por Moscou, lutam por secessão em relação à Ucrânia desde então. A partir disso, o fracasso parcial dos acordos de Minsk e as recorrentes denúncias de quebra do cessar-fogo por parte dos separatistas e de Kyiv impuseram novos desafios ao compêndio e permitiram a manutenção dos irredentismos que viriam a justificar a invasão russa (KUBICEK, 2008).

A resposta de Lugansk e Donetsk à eleição de um governo pró-Ocidente na Ucrânia em 2014 tem, ainda, relações com outra questão central para o entendimento do atual conflito que se estende entre Moscou e Kyiv: o papel do Ocidente. A deposição de Viktor Yanukovich, político pró-Rússia, e a reorientação da política nacional a Oeste trouxeram à tona o aumento da influência ocidental sobre a Ucrânia e sobre todo o exterior próximo russo. O interesse ucraniano em integrar a União Europeia e a sinalização estadunidense acerca de uma possível integração do país à OTAN, nesse ínterim, ressoaram nos recentes discursos de Vladimir Putin acerca da expansão irrestrita da aliança ocidental. Em diversos momentos, o presidente russo reiterou receio acerca da aproximação do Ocidente, que desde o fim da URSS vem integrando cada vez mais países do leste e centro europeus à sua zona de influência, cerceando a Rússia do ponto de vista geopolítico. 

Uma possível adesão da Ucrânia aos blocos ocidentais aqui destacados representa uma ameaça ainda mais séria para a Rússia tendo em vista a quantidade de dutos russos que atravessam o território ucraniano e a posição geográfica do país, que não somente representa a “entrada” para a Europa, mas também dá acesso ao Mar Negro. Dessa maneira, a expansão das operações militares russas para além do leste ucraniano é, para Vladimir Putin, uma opção estratégica por conta da relevância do território ucraniano em sua totalidade. Além disso, uma presença russa mais ampla concede maior influência do país sobre o futuro da política ucraniana na medida em que oferece ao Kremlin maior margem para fazer uma série de exigências a Volodomyr Zelensky, tais quais: (i) a garantia de que a Ucrânia não irá aderir à OTAN; e (ii) a desmilitarização da Ucrânia (TOAL, 2017).

Outra característica que distingue o lugar da Ucrânia para a Rússia diz respeito à sua posição na formação da identidade russa atual. Ao longo das mais de duas décadas na liderança do Kremlin, Vladimir Putin alterou pontos-chave na construção da narrativa política que embasa suas decisões no comando russo. Destes, dois são especialmente importantes para que possamos compreender o conflito atual: (i) a oposição do Ocidente; e (ii) a noção de “mundo russo/eslavo”. O primeiro diz respeito à rivalização com atores como Estados Unidos e União Europeia. Ainda que nos primeiros anos na presidência Putin tenha tentado acomodar a Rússia ao mundo ocidental, sua abordagem progressivamente deu lugar a um discurso de alterização do Ocidente, que passa a ser considerado a ameaça absoluta à segurança ontológica russa. Assim, eventos como a expansão da OTAN em direção à fronteira russo-ucraniana tornam-se especialmente preocupantes e ganham novas dimensões em meio à postura anti-ocidental promovida por Moscou (SECCHES; BERNARDES; ROCHA, 2021).

Junto da rivalidade em relação ao Ocidente, a atual identidade russa promovida oficialmente conta com uma interpretação muito particular de povo e território. Nesse contexto, Putin tem um apelo muito grande aos russos étnicos que não habitam os limites territoriais de seu país e aos povos eslavos. Segundo o discurso oficial de Moscou, é dever da Rússia prestar ajuda a todas essas comunidades, as quais, segundo o comando do Kremlin, são parte da nação e do Estado  russos. Considerando a composição étnica da Ucrânia, tal abordagem ideológica/estatal reitera o local de destaque da Ucrânia na política moscovita. Este fato é ainda corroborado pela narrativa histórica de Putin, que concede grande importância ao episódio do nascimento de ambos os Estados, que partilham um mito fundador único que remonta à Rus Kievana do século VIII, primeira formação política de povos eslavos.

A complexidade do conflito russo-ucraniano em curso reside na sobreposição de fatores geopolíticos e identitários. Se por um lado a Rússia não está disposta a ceder sua influência sobre a Ucrânia por conta da localização e da relevância econômica do país; por outro, Putin também depende do vizinho para legitimar a identidade que busca performar na comunidade de Estados. A incursão sobre o território ucraniano, nesse contexto, permite ao Kremlin não somente corroborar a antagonização do Ocidente, mas, também, reiterar seu papel de grande protetor do povo russo e afirmar a posição da Rússia como um importante agente decisor na política internacional. O entrelaçamento de fatores e interesses em jogo dificulta o sucesso das diversas tentativas de negociação e, enquanto ambos os países não acordam um fim para a guerra, observamos a escalada dos conflitos e, consequentemente, da violência contra os civis. Nesse contexto, as reportagens sobre centenas de corpos pelas ruas de Bucha e do recente ataque de mísseis russos em uma estação ferroviária no leste da Ucrânia evidenciam o lado mais terrível da guerra, que acomete a vida de centenas de civis e impulsiona um cenário de violência e violações de direito que é atravessado por questões raciais e de gênero. 

 

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Bandeiras da Rússia e da Ucrânia, por iStock.

Referências 

KUBICEK, Paul. The History of Ukraine. Westport: Greenwood Publishing Group, 2008.

LAURELLE, Marlene. Russian Nationalism: Imaginaries, Doctrines, and Political Battlefields. New York: Routledge, 2019.

SECCHES, Daniela Vieira; BERNARDES, Marina Nunes; ROCHA, Pedro Diniz. A Construção do Pensamento sobre o Internacional na Rússia: identidades, projetos político-pragmáticos e o Ocidente. Carta Internacional: Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021.

TOAL, Gerard. Near Abroad: Putin, the West, and the contest over Ukraine and the Caucasus. New York: Oxford University Press, 2017.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 2

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Na primeira parte do texto, busquei debater duas possibilidades de análise para a decisão russa de invadir a Ucrânia. Por um lado, existe a narrativa de que Putin possui um projeto expansionista e imperialista e buscaria anexar o território ucraniano, parcial ou totalmente. Por outro, há a perspectiva de que a decisão russa de invadir o país vizinho tenha se dado a partir da escolha em fazer prevalecer seus interesses político-securitários a partir do uso do aparato militar. Nessa segunda parte, abordarei a reação pública, política e midiática à guerra.

A reação à guerra: o espanto e a percepção do tempo

Tentativas de derrubada de governo têm sido prática frequente dos últimos 30 anos, capitaneadas sobretudo por operações estadunidenses e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A exemplo, destacam-se sobretudo as guerras do Iraque, Líbia e Síria. No entanto, um grande diferencial destas invasões em relação à promovida pela Rússia na Ucrânia perpassa, sobretudo, fatores geográficos e imagéticos. De fato, EUA e OTAN não poderiam ter pretensões de anexar formalmente territórios que não são contíguos aos seus, o que dota suas operações de derrubadas de governo de uma roupagem mais sutil e que é justificada a partir da narrativa da democracia-liberal que liberta os povos da opressão de governos ditatoriais.

Dessa forma, as invasões aos países do Oriente Médio – para além da questão do preconceito que acaba por justificá-las aos olhos de parcela da opinião pública e da naturalização de conflitos nessas regiões nas grandes mídias – parecem menos agressivas pelo simples fato de não remeterem ao caráter mais “clássico” das grandes guerras do século XX e carregarem a roupagem das chamadas “novas guerras” características a partir dos anos 1990. Já no contexto ucraniano, a imagem de tanques russos invadindo por terra a fronteira do país vizinho, evoca a percepção de uma guerra de anexação em solo europeu e mobiliza a reação que expressa o espanto pela falsa sensação de que o mundo não é palco de inúmeras outras guerras. Por esse motivo, a invasão russa à Ucrânia traz um caráter de antiguidade à guerra que parece desconexa com as concepções contemporâneas dos conflitos armados.

À luz desse cenário, parece mais provável que o espanto gerado pela invasão russa decorra do contexto geográfico e histórico no qual a guerra da Ucrânia se insere do que na decisão per se de Vladimir Putin de invadir o território ucraniano. Isso se dá, sobretudo, a partir de elementos que influenciam na percepção do desenvolvimento da guerra e na expectativa que se gera entre o público em relação ao conflito. Em primeiro lugar, pode-se alegar que a guerra      na Ucrânia é a primeira na história acompanhada minuto a minuto por todos. Vale ressaltar que a guerra entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh, em 2020, também ganhou espaço nas mídias sociais, com impactos na guerra de informação sobre o conflito. No entanto, este se deu em menor escala e foi menos abordado pela mídia. Ainda que tenhamos a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991, como primeiro exemplo de um conflito televisionado e outros exemplos de grande interesse midiático na última década, como a Guerra Civil da Síria e a expansão territorial pelo autoproclamado Estado Islâmico, a invasão russa à Ucrânia se trata do primeiro embate no qual há análises feitas de forma quase instantânea, que se avolumam na televisão e nas mídias sociais.

Há alguns aspectos intrínsecos a este conflito que podem ser levantados para explicação do grande interesse público na guerra da Ucrânia. Em primeiro lugar, a Rússia é, junto com os EUA, a principal potência nuclear do mundo e possui um dos maiores exércitos a nível mundial. Decorrente disso, as possibilidades de transbordamento do conflito para a Europa e o risco de um confronto entre Rússia e OTAN se tornam o principal elemento de preocupação e interesse das análises. Por outro lado, há também os impactos econômicos na cadeia global de suprimentos alimentícios e energéticos que aumentam a expectativa sobre os desdobramentos da guerra. Não obstante, destaco o papel exercido pelas mídias sociais e das tecnologias de comunicação que, em 2022, estão muito mais consolidadas no cotidiano das pessoas do que na década passada. Nesse sentido, possibilita      ao mundo se relacionar com os acontecimentos em solo ucraniano de forma quase instantânea. Disto, se pode afirmar que a nossa percepção sobre o tempo da guerra e suas evoluções também foi alterada. Devido à enorme quantidade de informações que encontramos todos os dias, temos a impressão de se tratar de um conflito que já tem longa duração, quando na verdade estamos, no momento da escrita, há um mês observando-o.

Além disso, a forma como temos visualizado o desenvolvimento da guerra faz com que as análises sobre os avanços táticos e estratégicos russos possam ser distorcidas. No dia em que forças russas invadiram o país vizinho, destacava-se a narrativa de que tropas russas conseguiriam uma rápida tomada da capital Kiev e, em sequência, haveria uma rendição instantânea do governo e do povo ucraniano. Nessa linha, esperava-se, também, que as forças russas teriam um avanço muito maior em menos tempo em solo ucraniano. Por esse motivo, quando passados apenas alguns dias e observado a aparente lentidão do avanço russo, ganharam espaço análises segundo as quais a estratégia de Vladimir Putin havia falhado, uma vez que o presidente russo teria subestimado as capacidades de resistência do exército ucraniano.

Embora a aparente lentidão do avanço russo em território ucraniano, marcado por baixas humanas e de armamentos que, alegadamente, seriam maiores do que se esperava, é fato que as tropas russas continuam em progresso e garantindo avanços estratégicos dentro da Ucrânia, sem demonstrações de que pretendem recuar. Segundo o mapa de monitoramento do The New York Times, Moscou já tem o domínio de grande parte do Sul Ucraniano – como visto pela conquista da cidade de Kherson e Melitopol – assegurando grande parte do acesso ao Mar Negro; intensos ataques às cidades de Mariupol, e já cerca Kiev, ainda que sem maiores avanços ao centro da capital ucraniana. No cenário em que as negociações não avançam, em razão da relutância russa em flexibilizar suas reivindicações, em conjunto com a resistência ucraniana, a guerra tende a se estender. Nesse cenário, ambas as forças – de ataque e defesa – buscarão vencer o inimigo pela exaustão. No campo militar, a Rússia parece ter a vantagem nessa perspectiva. Do outro lado, a Ucrânia busca, com apoio sobretudo europeu e estadunidense, sufocar a viabilidade política e econômica da manutenção da guerra pela Rússia, ao mesmo tempo em que prolonga o conflito a partir de uma estratégia defensiva.

Contudo, não há ainda como afirmar a real estratégia pensada por Putin e os generais russos a respeito da invasão à Ucrânia. Tendo em mente o contexto que levou à guerra e os meses que os soldados russos estiveram estacionados próximos à fronteira com a Ucrânia, a hipótese de que o ataque tenha ocorrido às pressas, de forma mal planejada, parece pouco provável. Além disso, desde 2014 o exército ucraniano vem se fortalecendo com equipamentos e treinamentos providos pelos EUA e outros membros da OTAN. Nesse sentido, é de se imaginar que o Ministério da Defesa da Rússia e Vladimir Putin, munido de serviços de inteligência russos, tivessem ciência de que a capacidade de resistência ucraniana não deveria ser menosprezada.

Não deve ser descartada, no entanto, a hipótese de que os sucessos militares anteriores na Geórgia, Crimeia e na Síria, possam ter elevado a confiança de Putin em seu aparato militar de forma a contribuir para a tomada de decisão na expectativa de um menor poder de resistência militar, política e econômica da Ucrânia e do Ocidente. Assim, o próprio fato de que haja uma percepção de frustração dos planos russos e da bravura da resistência ucraniana, pode alterar os rumos da guerra e fortalecer ainda mais o moral do defensor e descreditar o aparato militar russo, instrumento cada vez mais utilizado por Moscou para reivindicar o status de grande potência da Rússia e fazer prevalecer seus interesses. Talvez revisitar literaturas que abordam a psicologia política como lente de análise, buscando incorporar não somente a dimensão externa aos Estados, mas também os objetivos, crenças e percepções dos indivíduos tomadores de decisão, possa contribuir para uma compreensão mais holística dos incentivos específicos que impulsionaram Vladimir Putin a seguir com a invasão. Como exemplo, vale citar as obras de Robert Jervis (2017): How Statesmen Think: Psychology of International Relations e Perception and Misperception in International Politics.

Em suma, a guerra na Ucrânia traz elementos que contribuem para o quase fascínio humano em compreender a guerra.  As análises cotidianamente difundidas pela mídia podem mudar a maneira como o público percebe e cria expectativas acerca dos desdobramentos. Ao passo que o conflito se desenrola, buscamos compreendê-lo enquanto esperamos que uma resolução rápida possa salvar um maior número de vidas. Para depois do conflito, surgirão perguntas que também trarão consigo um grau de complexidade para as análises que buscarão respondê-las. Para citar pelo menos algumas: qual o relacionamento do governo de Vladimir Putin com a Europa e os EUA no pós-conflito? Quem financiará a reconstrução da Ucrânia? Quais os desdobramentos para a coesão interna de um país que já se via dividido desde 2013? Quais os impactos da Guerra para a configuração de forças no sistema internacional, e para as instituições como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a OTAN e a União Europeia? Qual será o impacto no âmbito interno da União Europeia e dos partidos locais em termos de imigração e dependência energética em relação à Rússia? No momento atual, nos resta estar atentos aos impactos locais, regionais e globais do conflito.

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

REFERÊNCIAS

ALMEIDA NETO, Getúlio Alves. Tensão na fronteira ucraniana: reflexos de um mundo em mudança. ERIS. 26 fev. 2022. Disponível em: https://gedes-unesp.org/tensao-na-fronteira-ucraniana-reflexos-de-um-mundo-em-mudanca/. Acesso em 22 mar. 2022.

ALMEIDA NETO, Getúlio Alves; MAKIO, Danielle Amaral. Guerra Civil no Leste da Ucrânia. Dossiê de Conflitos Contemporâneos, v. 1, n. 1, p. 55-60. Observatório de Conflitos Contemporâneos. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2020/10/Ucr%C3%A2nia_Observat%C3%B3rio-de-Confltos_-Dossi%C3%AA-de-Conflitos-Cont..-v.1-n.-1-2020-58-63.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

CORDELL, Jake. Rewriting History, Putin Pitches Russia as a Defender of an Expanding Motherland. The Moscow Times. Feb. 22, 2022. Disponível em: https://www.themoscowtimes.com/2022/02/22/rewriting-history-putin-pitches-russia-as-defender-of-an-expanding-motherland-a76518. Acesso em: 22 mar. 2022.

JERVIS, Robert. Perceptions and Misperceptions in International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

JERVIS, Robert. How Statesmen Think: The Psychology of International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

KISSINGER, Henry. To settle the Ukraine crisis, start at the end. The Washington Post. Mar 5, 2014. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/henry-kissinger-to-settle-the-ukraine-crisis-start-at-the-end/2014/03/05/46dad868-a496-11e3-8466-d34c451760b9_story.html. Acesso em: 22 mar. 2022.

MAPS: Tracking the Russian Invasion of Ukraine. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/world/europe/ukraine-maps.html?. Acesso em: 22 mar. 2022.

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014.

PUTIN reconhece independência de regiões separatistas da Ucrânia e prevê envio  de tropas para ‘manutenção da paz’. BBC NEWS. 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60471555. Acesso em: 22 mar. 2022.

PRESIDENT OF RUSSIA. Article by Vladimir Putin “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians”. July 12, 2021. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/66181. Acesso em: 22 mar. 2022.

SIMPSON, John. Guerra na Ucrânia: as 6 exigências de Putin para acabar com o conflito. BBC NEWS. 18 Mar 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60793048. Acesso em: 24 mar. 2022.

UKRAINE continues to receive military aid. Army Technology. Disponível em: https://www.army-technology.com/features/russian-invasion-ukraine-war-nato/. March 3, 2022. Acesso em: 22 mar. 2022.

Imagem: Armas russas destruídas pelas Forças Armadas da Ucrânia. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 1

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

A grande quantidade de análises feitas diariamente acerca da guerra da Ucrânia desde a invasão russa – não somente no âmbito acadêmico, mas também midiático – desperta o interesse e demonstra o anseio público de compreender a complexidade desses eventos. Ademais, cria-se a expectativa de que analistas em geral, e sobretudo especialistas no tema, possam prever com acurácia os desdobramentos do conflito. Contudo, como tem-se observado ao longo de quase um mês de guerra, tentativas de predizer os acontecimentos e chegar a uma conclusão engessada são prejudiciais à compreensão dos fatos e estão, de certa forma, propensas a ser contraditas no instante seguinte. Nesse sentido, proponho um breve ensaio com reflexões que possam guiar o debate e auxiliar no entendimento de um fenômeno que se desenvolve enquanto o observamos.

É preciso tomar cuidado para que nossas análises não se tornem mais um reflexo do que esperamos que aconteça do que uma tentativa, ainda que naturalmente limitada, de depreender os acontecimentos que temos acompanhado, literalmente, minuto a minuto. Assim, proponho o breve debate de dois pontos: 1) os motivos que levaram à tomada de decisão russa de invadir a Ucrânia; 2) a reação pública, política e midiática à guerra, em razão de suas especificidades estratégico-militares que parecem em descompasso com o contexto histórico e geográfico atual, salientando aspectos da comunidade global contemporânea que têm impacto na percepção do tempo da guerra e seu desenvolvimento. O primeiro ponto é discutido neste texto e o segundo em sua continuação.

Os motivos da guerra: expansão imperialista ou agressão político-securitária?

Após a crescente tensão gerada por exercícios militares realizados pelas forças armadas russas próximos à fronteira ucraniana desde o final de 2021, Vladimir Putin ordenou, em 24 de fevereiro de 2022, que suas tropas invadissem o território ucraniano sob a alegação de uma “operação militar especial”. O objetivo, segundo Putin, seria “desnazificar” o país e atender ao pedido dos líderes das autoproclamadas repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk. Estas regiões no Leste Ucraniano são palco de uma guerra civil em confronto com o governo de Kiev que teve início há oito anos, na esteira da derrubada do então presidente Viktor Yanukovytch – tido como mais alinhado à Rússia em detrimento da aproximação com a União Europeia – nos protestos da Praça Maidan, em 2013. Três dias antes da invasão, o governo russo reconheceu formalmente a independência das repúblicas, anunciando a possibilidade do envio de tropas para a “manutenção da paz”.  Atualmente, o Kremlin busca impor como condições para o fim das hostilidades uma série de reivindicações: 1) neutralidade ucraniana, com garantias de que nunca se tornará país-membro da OTAN; 2) desmilitarização do país; 3) reconhecimento da independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk; 4) reconhecimento do status da Crimeia como parte da Federação Russa; 5) e, por fim, proteção à língua russa na Ucrânia.

Antes de ordenar que suas forças armadas invadissem a Ucrânia, Vladimir Putin fez um discurso no qual colocou em xeque a própria existência do Estado ucraniano ao afirmar que “a Ucrânia moderna foi uma criação da Rússia”, após a formalização da URSS como produto da política leninista de uma federação de estados iguais. O discurso televisionado assemelhou-se a um artigo publicado por Putin, ainda em julho de 2021, no qual discorre extensamente sobre a história compartilhada entre russos e ucranianos. Este pronunciamento, somado ao histórico recente de anexação da Crimeia e o reconhecimento das regiões separatistas, torna possível questionar a narrativa utilizada por Putin antes da agressão à Ucrânia, segundo a qual Moscou buscaria apenas garantias de segurança. Consequentemente, vem crescendo como uma das linhas argumentativas para explicação do ataque russo à Ucrânia – sobretudo nas análises midiáticas –, que Putin buscaria incorporar todo o território ucraniano e restaurar territorial e formalmente as antigas fronteiras da União Soviética. Ainda nessa perspectiva, a Ucrânia poderia ser o primeiro passo para futuras tentativas de expansão russa.

O contexto ucraniano, em específico, torna ainda mais propenso o surgimento de tais análises. Russos e ucranianos possuem estreitos laços identitários que remontam ao passado político, econômico, cultural, linguístico e religioso em comum. Na historiografia de ambos os países é atribuída à Rus Kievana, um Estado feudal do século IX, como a primeira unidade política que deu origem aos atuais Estados modernos. Nesse seguimento, a interpretação de que Putin questiona a própria existência do Estado ucraniano faz sentido dentro desse contexto e perspectiva analítica.

Em compasso com as prerrogativas encontrada em documentos oficiais como a Doutrina Militar e o Conceito de Política Externa da Rússia, nas quais está prevista a utilização das forças armadas para fora de seu território em defesa de cidadãos russos, abre-se uma possibilidade de utilização deste argumento por parte do Kremlin para justificar suas ações, como observado nas incursões russas nas regiões separatistas da Ossétia e Abecásia do Sul durante a Guerra da Geórgia em 2008, além do caso da Crimeia, já citado acima. Quando expostos todos estes elementos, é natural que se traga à tona o argumento da expansão imperialista de Vladimir Putin. Não se trata aqui de descartar por completo tal possibilidade. No entanto, até que se tenha mais detalhes e conhecimento acerca dos fatos, tais afirmações podem ser caracterizadas no máximo como especulações.

Por outro lado, pode-se analisar o conflito a partir de um olhar que leve em consideração a dimensão político-securitária, em perspectiva histórica, podendo auxiliar na compreensão das circunstâncias que explicam a guerra, ainda que sem justificá-la. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a invasão russa faz parte de um contexto maior de crescente tensão entre Moscou e o chamado “bloco ocidental”, que remonta ao processo de dissolução da União Soviética e o consequente surgimento de 15 novas repúblicas independentes em dezembro de 1991, entre elas a Federação Russa e a Ucrânia.

No contexto de fragilidade econômica, política, social e militar da Rússia nos anos 1990, em conjunto com a supremacia estadunidense e surgimento de uma dita ordem internacional liberal-unipolar, Moscou observou a contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção ao Leste Europeu. Ao longo desse processo, essa aliança militar ocidental incorporou 14 novos Estados-membros, entre eles ex-repúblicas soviéticas, como os Países Bálticos, e nações que antigamente estavam sob a esfera de influência de Moscou através do Pacto de Varsóvia, tal como a Polônia. O argumento utilizado por Putin de que o avanço de tropas ocidentais a regiões próximas à Rússia seria uma ameaça à segurança de seu país não pode ser desconsiderado, ainda que não justifique a invasão de tropas a um território de outro país sem que tenha havido qualquer ataque anterior.

De fato, a expansão da OTAN é debatida por acadêmicos, políticos e militares dos próprios países-membros desde os anos 1990. Teóricos realistas das Relações Internacionais, como Mearsheimer (2014), e o conhecido Secretário de Estado dos EUA na década de 1970, Henry Kissinger, já alertavam para a possibilidade de reação russa, ainda que advertissem para as consequências à Rússia em fazer uso de seu poderio militar para impor o status de neutralidade – ou subjugar – à Ucrânia. Ademais, o governo russo sempre deixou claro, em discursos e em documentos oficiais, ser contrário ao alargamento da aliança militar ocidental, sendo particularmente contrário a qualquer possibilidade de adesão da Ucrânia e da Geórgia. Sendo assim, desde a primeira Doutrina Militar russa pós-soviética, datada de 1993, encontra-se a crítica à expansão de blocos militares. Em 2010, a terceira edição do documento cita nominalmente a OTAN como principal ameaça à segurança do país. Logo, pode-se afirmar que a decisão russa de invadir a Ucrânia e assegurar que o país não se filie à aliança ocidental não é, no fundo, uma surpresa. Seja de forma retórica ou nos casos da Geórgia e Ucrânia, o governo russo já havia demonstrado disposição em fazer uso de seu aparato militar para reivindicar seus interesses político-securitários, mesmo que em detrimento de questões econômico-financeiras e repercussões políticas causadas pelas sanções impostas.

Em suma, a Guerra da Ucrânia suscitou o debate sobre um possível ímpeto expansionista-imperialista do governo de Vladimir Putin, que teria como objetivo restaurar – parcial ou totalmente – as fronteiras da União Soviética a partir da anexação contínua dos territórios adjacentes à Rússia. Apesar de o discurso do presidente russo ter se tornado cada mais agressivo e possua indícios de um revisionismo histórico, busquei salientar que considero mais frutífera a análise feita a partir de um contexto de percepção do governo russo de ameaça advinda de suas fronteiras ocidentais desde os anos 1990 em razão do processo de expansão da OTAN para o Leste europeu, e dos desdobramentos domésticos na política ucraniana desde os protestos na Praça Maidan, em 2013. Por essa perspectiva, o fortalecimento do aparato bélico russo, executado a partir de reformas militares em curso desde 2008, dotou o país de um instrumento de política externa para confrontação ao Ocidente e a partir da reivindicação de seus interesses político-securitários. Dessa forma, pode-se entender a agressão à Ucrânia como produto de um cálculo político do Kremlin que, dotado de confiança em seu poder militar, busca conseguir as vitórias políticas ensejadas, como a imposição do status de neutralidade da Ucrânia, o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, e da Crimeia como parte integral da Federação Russa, mesmo que isto venha a custos de pesadas sanções econômicas e isolacionismo político.

REFERÊNCIAS

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014

 

* Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br.

Imagem: Russian military weapons destroyed and seized by the Armed Forces of Ukraine. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons

“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 2

Danielle Amaral Makio*

Na primeira parte da nossa análise sobre o Cazaquistão abordamos alguns elementos que levaram aos protestos no país no início de 2022, entre os quais podemos destacar, sobretudo: (i) a formação e a estrutura do regime político do país; (ii) a transição econômica ocorrida no período pós-soviético; e (iii) o contexto socioeconômico face os efeitos da pandemia. No presente texto, analisaremos mais uma questão essencial para entendermos o contexto cazaque: o nacionalismo. Este é um tema recorrente na política do Cazaquistão. Ainda durante os primeiros anos do mandato de Nazarbayev dizia-se que o líder era um nacionalista desenvolvimentista. Esse, porém, não é um entendimento partilhado pelos grupos nacionalistas do país, exacerbando, mais uma vez, a profunda cisão entre regime e povo no país. Segundo estes cazaquistaneses afeitos a ideias próprias de nação, Nazarbayev, apesar de ter sido uma figura importante na definição da identidade cazaque atual, não poderia ser rotulado como uma nacionalista, pois sempre promoveu uma ideia de nação essencialmente atrelada a agentes estrangeiros. Nazarbayev, nesse contexto, é acusado de não exaltar os reais símbolos e a verdadeira história do seu povo e de condicionar parte do desenvolvimento nacional a fatores externos. Dessa maneira, surgiram diferentes ramificações do nacionalismo cazaquistanês, todas unidas pelo objetivo primeiro de remodelar a identidade e a política nacionais de acordo com expressões genuinamente pertencentes à sociedade local, distanciando o Cazaquistão de narrativas alheias. 

Assim, a primeira vertente do nacionalismo cazaquistanês é essencialmente anti-russa. Esse grupo se preocupa com os quase 30% da sociedade que é formada por russos étnicos, com a manutenção do idioma russo em detrimento do idioma local – o cazaque – entre outros exemplos. Nesse contexto, eles buscam por uma maior autonomia, e não um rompimento em relação ao Kremlin, histórico parceiro do país. Outro setor do movimento nacionalista cazaquestanês é a sua porção sinofóbica, cuja relevância vem crescendo sobretudo desde 2014, a despeito da satisfação das elites em relação à parceria, explicitando outro ponto de ruptura entre sistema e sociedade. Naquele ano, o então presidente Nazarbayev oficialmente lançou o chamado Nurly Zhol, plano desenvolvimentista do Cazaquistão que busca aumentar a conectividade entre a malha produtiva do país e o mercado consumidor. O ambicioso projeto foi uma resposta sobretudo à crise ucraniana, a qual, ao afetar a economia russa, penalizou severamente também a economia cazaque, altamente integrada a Moscou. O Nurly Zhol, portanto, foi uma tentativa de reorganização econômica interna para que o país pudesse reaquecer indústria e mercado domésticos e, assim, reduzir os efeitos da crise. Poucos meses após o lançamento oficial do plano, o mesmo foi oficialmente atrelado à Nova Rota da Seda chinesa, empreendimento também anunciado no mesmo período. A China, a partir de então, tornou-se a financiadora legítima do projeto de desenvolvimento cazaque. A partir daí as relações entre ambos vêm se estreitando progressivamente. Alguns de seus resultados, porém, ainda que bem-vistos pelo governo e pelo grande capital local, vem desagradando parte da população.

Grande parte das empresas chinesas que se instalaram no Cazaquistão desde então não usam mão de obra local. A ausência da criação de novos empregos e o aumento da concorrência gerada pela maior migração de chineses para território cazaque é motivo de grande insatisfação popular. Ademais, a sistemática compra de terras pela China, o uso de meios de produção altamente poluentes e extrativistas, prejudiciais ao solo, e outros fatores aumentam a lista de insatisfações de cazaquistaneses em relação aos vizinhos. A despeito da relevância desses argumentos na formação da sinofobia no país, há um elemento central: a questão de Xinjiang, província separatista chinesa formada por minorias étnicas e muçulmanas que faz fronteira com o Cazaquistão. Devido a relevância da região para a China, Pequim tem instituído um controle rígido sobre a população local, medida rondada por denúncias de desrespeito aos direitos humanos das minorias que habitam o espaço. Nesse contexto, as ondas migratórias entre Xinjiang e Cazaquistão vêm crescendo e há preocupações por parte do governo e do povo cazaque acerca do tratamento dispensado pela China aos cidadãos cazaques da etnia uighur que eventualmente cruzam a fronteira.

Ambos, russofobia e sinofobia, não são elementos excludentes no cenário nacionalista cazaquistanês, tampouco são necessariamente acompanhados um do outro, contudo, há uma ligação explícita entre o nacionalismo local e a maneira pela qual esses fatores são entendidos pela sociedade. 

Outro fator externo de incentivo ao nacionalismo no Cazaquistão é a presença do Ocidente, sobretudo dos EUA, em meio à sociedade. Ainda que haja, de fato, certa influência estadunidense sobre grupos da população do país – e até mesmo sobre setores do governo -, estes, em geral, limitam-se a porções jovens da burguesia que habitam grandes centros. Algumas regiões do interior do país podem, de fato, apresentar níveis interessantes de influência norte-americana, porém é difícil mensurar até que ponto esses grupamentos são parte de algum tipo de movimento nacionalista local. A ocidentalização, assim, pode atuar como uma espécie de polarizador de alguns setores do nacionalismo cazaquistanês, porém o nível de sua interferência entre a população de fato é ainda nebuloso e não parece ter expressividade tão grande quanto os demais fatores aqui apresentados. 

Assim, pode-se notar que por trás dos protestos que tomaram conta do Cazaquistão logo nos primeiros dias de 2022 há muito mais que o aumento dos preços do gás. De um regime ensimesmado incapaz de estabelecer diálogos efetivos com sua população até uma economia altamente dependente típica de um país sobre o qual pairam interesses escusos de naturezas diversas, a política cazaque tem níveis de complexidade que demandam uma análise cautelosa. Compreender como se deu a formação do Estado e como ele se articula interna e externamente são questões chaves para desvelar as recentes manifestações sem que nos enganemos com narrativas demasiado simplistas que ignoram as próprias divisões discursivas inerentes ao país. Nesse cenário, é indispensável aceitar os limites que a própria conjuntura impõe à análise para que não criemos hipóteses que se distanciam da realidade e/ou que nos ceguem para características genuínas que importam para a construção de um novo futuro para o Cazaquistão.

 

* Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 1

Danielle Amaral Makio*

Embalados ao som de vozes gritando “Adeus, vovô”, em referência ao ex-presidente Nursultan Nazarbayev, cidadãos e cidadãs tomaram as ruas de importantes centros no Cazaquistão em manifestações marcadas por revolta, violência e dúvidas. Há muitas maneiras de analisar os protestos que tomaram o Cazaquistão no início de 2022. De revolução colorida a manifestações genuínas das classes trabalhadoras do país, os eventos que convulsionaram o maior Estado da Ásia Central têm diferentes níveis de complexidade. Mais importante do que rotular o episódio de acordo com nomenclaturas específicas, contudo, é compreendê-lo em suas minúcias e particularidades. Portanto, nosso objetivo neste texto é explanarmos a realidade com a qual estamos lidando, analisando elementos políticos, históricos e sociais deste país.

Ex-república soviética, o Cazaquistão é hoje uma república constitucional semipresidencialista na qual o primeiro-ministro é o chefe de governo e o presidente assume o posto de chefe de Estado e das forças armadas. Antes de integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), porém, o país era composto por povos nômades que, organizados em torno de clãs, não constituíam um Estado nacional aos moldes atuais.  As práticas políticas sustentadas ao longo dos períodos soviético e nomádico levaram o país a construir um regime que, por um lado, mantém estruturas típicas dos tempos soviéticos, como a manutenção das burocracias características e a centralização de poder, e, por outro, é influenciado por traços comuns a sociedades nômades e clânicas, o que se observa, entre outros, na alta personificação do poder e na estrutura dos laços de lealdade criados entre sociedade e governantes.

Mapa do Cazaquistão

A figura de Nursultan Nazarbayev, nesse contexto, é emblemática. Presidente do país até 2019, o líder, cuja influência remonta ao período soviético, é ainda hoje visto como o grande símbolo nacional. A história de Nazarbayev à frente do Cazaquistão exemplifica a maneira pela qual o poder se configura no país. Primeiramente, vem à tona a personificação do governo. Em clãs, é comum que a liderança tenha um elemento corpóreo; ela é identificada em uma pessoa, um líder que goza da posse da lealdade dos demais membros do grupo. A regência do ex-presidente em grande medida reproduz essa estrutura política. A confiança há anos depositada em sua figura é mantida e aprofundada para uma espécie de culto que atrela a existência e as glórias do Cazaquistão ao seu líder absoluto. A influência deste é tamanha que não só se expressa em uma quantidade massiva de reproduções de sua imagem em estátuas e quadros espalhados por cidades do país, como também se manteve mesmo após sua sucessão.

Quando abdicou do cargo em 2019, Nazarbayev deixou a presidência para Tokayev, seu partidário e protegido, garantindo que este continuasse, de forma efetiva, a influenciar a política nacional. A saída de Nazarbayev se deu em meio a uma crise de popularidade inédita que ameaçava a manutenção dos altíssimos níveis de governabilidade do político. Com o crescimento econômico comprometido desde a crise de 2008, e em face de medidas austeras adotadas por imposição do Fundo Monetário Internacional como condição para acesso a novas linhas de crédito, Nazarbayev passou por um período de crescente contestação popular. O mesmo não se pode afirmar das elites políticas e econômicas, que em muito se beneficiaram do contexto. A indicação de Tokayev, assim, pode ser entendida como uma manobra política que a um só tempo garantiu: (i) a continuação do poder de Nazarbayev, (ii) o arrefecimento dos ânimos de parte da população insatisfeita e (iii) a sinalização ao mundo de que o país passava por um momento de abertura política. 

Há, ainda, um segundo elemento do governo de Nazarbayev que nos interessa para compreender a constituição do regime político cazaque: a centralização do poder. Ainda que o governo do Cazaquistão seja dividido em diversas instituições, como parlamento bicameral, ministérios, prefeituras, entre outros, é notável o peso do cargo de presidência no comando do país. Nesse contexto, é importante ainda ressaltar a ausência de uma oposição política devidamente organizada. Prática recorrente da URSS, o controle rígido de partidos e grupos opositores é uma realidade no cenário cazaque, que volta esforços consideráveis para o monitoramento e repressão de movimentos contrários ao regime, os quais são corriqueiramente classificados como células terroristas. Na esteira do cerceamento político, é importante salientar o intenso controle estatal sobre as mídias do país, fato que impacta a formação da opinião pública e dificulta a circulação de informações que possam favorecer o crescimento de sentimentos contrários ao status.

Dessa maneira, o Cazaquistão se caracteriza por um regime político autocrático afeito à personificação do poder e com uma oposição política pouco organizada. Há, porém, outras características importantes do país que devem ser consideradas para que analisemos os recentes protestos de janeiro de 2022. A primeira delas está relacionada à independência e abertura do país em 1991. O fim da URSS marcou a introdução de suas 15 repúblicas em um sistema internacional dominado pelo capitalismo e, por conseguinte, por grandes corporações. O caso cazaque não é diferente. Rico em minérios e hidrocarbonetos, o Estado rapidamente recebeu um fluxo massivo de capital estrangeiro, à época primordialmente representado por empresas estrangeiras que se instalaram no país para extrair e comercializar seus recursos naturais e por capital financeiro. O choque entre um capitalismo endógeno pouco desenvolvido e o crescente interesse do capital estrangeiro pelo Cazaquistão teve diversas consequências. De um lado, houve um crescimento econômico expressivo que enriqueceu as oligarquias no poder. Por outro, criou-se uma grande dependência de capital externo, que veio acompanhada de: (i) desindustrialização, ocorrida pela incapacidade das indústrias nacionais de competir com estrangeiras; (ii) pouca diversidade econômica, causada pela crescente dependência de atividades extrativistas; (iii) alianças entre o grande capital e as elites no poder em detrimento da população em geral; entre outros.

Nesse contexto, a maneira com que se deu a abertura econômica cazaque levou à criação de um regime que não somente é autocrático, mas que também é ensimesmado, que se afastou de sua sociedade. O atrelamento dos interesses das oligarquias no poder e dos interesses do grande capital que se instalou no país moldou um governo que por vezes preza mais o lucro das empresas multinacionais que se encontram no Cazaquistão – as quais em sua maioria têm como acionistas ou beneficiados membros das famílias no poder – do que o próprio país. Leis trabalhistas pouco eficazes na defesa do trabalhador, escassos incentivos à fomentação da indústria nacional (cenário que começa a mudar lentamente em 2014) e falta de garantias no que diz respeito ao emprego longevo de mão de obra local por multinacionais presentes no país são alguns exemplos de como o governo privilegia mais uma parte da sociedade do que outra. Somando esse cenário a uma histórica brutalidade policial, à proibição de manifestações públicas contra o regime e ao controle midiático, o diálogo entre o governo e o povo se deteriorou até atingir níveis insignificantes. Esse quadro, ademais, ganha novos matizes quando pensamos na imensa desigualdade social e nos altos níveis de corrupção que se estendem por todo o país.

É, pois, nesse contexto mais alargado que ganham corpo as manifestações de janeiro de 2022. Há, contudo, outros fatores de ordem conjuntural que merecem atenção para que possamos compreender o que levou todas essas contradições à ebulição. A COVID-19 é talvez a mais preponderante entre elas. Somada a uma economia que vinha desacelerando desde 2008, a pandemia teve um efeito especialmente devastador no cenário cazaque. Fechamento de empresas, cortes no número de empregados em grandes e pequenas indústrias, aumento da pressão sobre as contas públicas, aumento de desemprego, inflação. Esses são alguns dos problemas que vêm afetando severamente o país desde 2020 e cuja principal consequência tem sido um descontentamento social contra o governo, que face às novas dificuldades foi incapaz de oferecer auxílio adequado à sua população, a qual se viu à mercê dos acontecimentos e das devastadoras decisões de muitas multinacionais. Ainda em 2020, pequenos protestos liderados pelas classes trabalhadoras já vinham ocorrendo em regiões como Mangystau, local cuja principal atividade é a extração de combustíveis fósseis e que foi duramente atingida pela redução de operações lideradas por estrangeiras.

Para além dos desafios aqui apontados, 2022 começa com uma nova surpresa para o povo cazaque: no primeiro dia do ano, o presidente decidiu retirar subsídios nacionais direcionados ao gás liquefeito de petróleo, levando os preços do combustível a explodirem em um contexto no qual a renda da população vinha caindo expressivamente. É importante ressaltar que o sistema de aquecimento do Cazaquistão funciona majoritariamente à base de gás, combustível também muito usado por veículos. Em meio a um rigoroso inverno, impedir que parte da sociedade tenha condições de pagar pelo gás sob a justificativa de corrigir imperfeições do mercado que poderiam levar a uma crise de desabastecimento foi o suficiente para que os protestos eclodissem.

A resposta veio de imediato: no dia 2 de janeiro, manifestações pacíficas já tomavam Mangystau. Na pauta dos protestantes estavam não somente a revogação da medida, mas também insatisfações com os níveis de corrupção do governo, que estariam ligados à situação em que se encontra o país, e com a própria manutenção de um regime que se consolidou em detrimento da sociedade e em favor de elites e do grande capital – como explicitado nas referências diretas dos manifestantes a Nazarbayev. Ainda que não houvesse apelo à violência por parte dos manifestantes, estes foram duramente reprimidos pela polícia, a qual classificou o movimento como terrorista. Graças à legitimidade dos clamores das ruas e da brutalidade com que foram recebidos pelo Estado, os protestos logo foram apoiados por outros setores da sociedade em cidades como Almaty, onde se deram os principais desdobramentos do episódio.

A escalada violenta dos protestos, nesse ínterim, deu-se por motivos diversos: (i) a resposta genuína dos manifestantes à brutalidade demonstrada pela polícia e pelo governo, que violou de diversas maneiras os direitos da população, utilizando desde gás lacrimogêneo e bombas de dispersão a cortes à internet; (ii) a apropriação das manifestações por grupos oportunistas que viram no evento a possibilidade de se mobilizarem; (iii) a ação de vândalos não associados aos protestos. Considerando o controle midiático que o regime do Cazaquistão imprime sobre a imprensa e a limitação ao acesso à rede de comunicação, ainda é incerto afirmar a presença de grupos ligados a agentes estrangeiros. Atualmente, sobressaem-se duas hipóteses. A primeira propõe que a radicalização do movimento foi promovida pelos EUA que, na tentativa de conter o eixo sino-russo e após o fracasso no Afeganistão, viu no Cazaquistão a possibilidade de garantir sua presença na região. Nesse sentido, a Casa Branca teria conseguido coordenar os eventos sobretudo através do aumento da ocidentalização do país por meio da presença de ONGs financiadas pela National Endowment for Democracy (NED). De acordo com essa visão, a população cazaque seria porosa o suficiente para que houvesse a incitação de sentimentos pró-Ocidente e anti-regime. A outra leitura, porém, sugere o oposto: a Rússia, na esteira dos acontecimentos na Ucrânia, estaria por trás do episódio como forma de garantir a manutenção de seus interesses no país, cujo crescente alinhamento à China, somado à ameaça estadunidense, estaria atrapalhando a presença do Kremlin no local.

Ambas as hipóteses, ainda que importantes para compreendermos o episódio sob várias perspectivas, não são, no momento, claramente refutadas ou confirmadas. O que se pode afirmar, por hora, é que tanto EUA quanto Rússia têm interesses em se manter influentes no Cazaquistão e teriam condições de fazê-lo. Contudo, é preciso que não deixemos que a suposta relevância da atuação de agentes externos ofusque o cenário cazaque e sua força. Entender os recentes protestos também como um movimento proletário genuíno e nacional é fundamental para não perder de vista os interesses daquele que é o lado mais importante de todos os recentes eventos: o povo cazaque. É preciso, pois, cuidado para não reduzir, mais uma vez, uma sociedade complexa e suas expressões às vontades de grandes players da política internacional. Dito isso, há ainda uma consideração que devemos fazer a fim de entender melhor as relações estabelecidas entre o Cazaquistão, os protestos de janeiro de 2022 e os agentes estrangeiros: o nacionalismo cazaque, ou cazaquistanês, como preferem os nacionalistas. Este tema será o foco da segunda parte da nossa análise.

Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem 1: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

Imagem 2: Mapa do Cazaquistão. Por U.S. Central Intelligence Agency – University of Texas Libraries.

Tensão na fronteira ucraniana: reflexos de um mundo em mudança

                                                                        Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

O ano de 2021 marcou os 30 anos da dissolução da União Soviética. No início do mês de dezembro deste mesmo ano, tropas russas – em números estimados em até 175 mil, segundo os serviços de inteligência do governo dos Estados Unidos – foram posicionadas próximas às fronteiras com a Ucrânia. A situação provocou o aumento da tensão das relações russo-estadunidenses e pode ser apontada como reflexo de um processo que evidencia a questão ainda a ser resolvida sobre as configurações de forças e a arquitetura de segurança no continente europeu, sobretudo no que tange ao chamado espaço pós-soviético, e são motivos de apreensão aos olhos da comunidade internacional em relação à iminência de um conflito em maiores escalas.

Apesar de intensificada ao longo da última década, a latência destas tensões pode ser traçada desde a queda do bloco comunista em 1991. Nesse sentido, os acontecimentos e desdobramentos observados neste período trazem à tona alguns pontos que merecem atenção especial. Em primeiro lugar, torna-se claro que, mesmo passados 30 anos, a formação dos novos Estados pós-soviéticos ainda traz questionamentos sobre a identidade destes e o papel da Rússia neste novo contexto geopolítico. Em segundo lugar, mostram a evolução da capacidade militar russa e a disposição do Kremlin em fazer uso de suas forças armadas – direta ou indiretamente – no processo de barganha e reivindicação de seus interesses. Como terceiro ponto, destaca-se a tendência de reconfiguração de forças no tabuleiro internacional a partir da ascensão da China ao posto de principal concorrente dos Estados Unidos e do renascimento militar russo. Em razão destes dois elementos, os cálculos estratégicos  dos atores envolvidos passam a ser feitos a partir da percepção do fim da hegemonia estadunidense estabelecida no pós-Guerra Fria. Por fim, este cenário evidencia o papel crucial da geopolítica para análise da política externa russa e de sua relação com os Estados Unidos e a OTAN. Na origem das tensões atualmente em curso na Ucrânia encontra-se um fenômeno geopolítico percebido pela Rússia como lesivo a sua segurança nacional: a crescente expansão da OTAN, uma aliança militar forjada para combater a União Soviética, em direção às fronteiras russas.

A crise em torno da Ucrânia se iniciou após o posicionamento de tropas russas munidas de artilharia, veículos blindados de combate e tanques ao redor de praticamente toda a fronteira com a Ucrânia. Conforme pode ser visto por imagens de satélites, Kiev se vê cercada ao norte, leste e sul por forças russas. O medo gerado pela aproximação de soldados à fronteira ucraniana se deve ao histórico recente de anexação da Crimeia (2014) e apoio militar – ainda que negado oficialmente pelo Kremlin – às forças separatistas na região do Donbass, nas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. Todos estes elementos fazem com que Ucrânia, Europa e Estados Unidos passem a projetar a possibilidade de invasão militar russa em solo ucraniano. Vale ressaltar, no entanto, que, em abril de 2021, episódio semelhante já havia acontecido. Na ocasião, o governo russo alegou se tratar de uma ação defensiva em resposta aos exercícios militares da OTAN na Europa e como medidas preemptivas para impedir o governo ucraniano de lançar uma ofensiva na região de Donbass (BIELIESKOV, 2021).

Com o objetivo de resolver o impasse, uma sequência de conversas entre líderes da Rússia, EUA e OTAN têm acontecido. Nas negociações, o Kremlin lançou uma gama de reivindicações que incluem, principalmente: 1) o compromisso da OTAN em nunca incorporar a Ucrânia à aliança militar ocidental; 2) eliminar a alocação de armas e tropas da OTAN em países que aderiram à aliança após 1997[1]; 3) banimento de mísseis balísticos de alcance intermediário da OTAN instalados na Europa; 4) garantir a autonomia através da região de Donbass através da federalização da Ucrânia conforme os acordos de Minsk de 2015 (MEYNES, 2022).

Desse modo, o Kremlin tem elevado suas apostas sobre a reposta da OTAN a uma eventual invasão russa em território ucraniano, com o objetivo de coagir seus membros a uma nova rodada de negociações que estabeleça garantias à segurança russa e que formalmente estabeleça o fim da expansão militar ocidental próximo à fronteira russa. Segundo Pifer (2021), Putin sabe que as demandas feitas seriam consideradas desproporcionais pelo governo Biden e pelos outros líderes da OTAN, que tais termos não seriam aceitos e que sua rejeição poderia servir como um pretexto para a incursão russa. Pode-se conjecturar, também, a hipótese de que Vladimir Putin estaria testando os limites de concessões e a forma de negociação do governo estadunidense sob comando de Biden.

Nesse sentido, pode-se argumentar que um objetivo do governo russo foi atingido, ao menos por ora: gerar tensão para chamar atenção das potências ocidentais e garantir um lugar à mesa de negociação, estabelecendo seus próprios termos e interesses. Entre esses interesses, destaca-se o objetivo de reformular a configuração de forças estabelecidas no pós-Guerra Fria, no qual o avanço da OTAN ao Leste Europeu e a adesão de ex-repúblicas bálticas soviéticas, além da sinalização da possível adesão de Geórgia e Ucrânia, foram percebidas por Moscou como política agressiva do bloco ocidental capitaneado por Washington e ameaça à segurança doméstica russa. Com isso em mente, a postura atual russa em relação à Ucrânia deve ser entendida como uma estratégia de brinkmanship, que consiste na elevação da tensão e ameaça de um conflito iminente em busca de obter ganhos em relação à contraparte, como visto na Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. De fato, um episódio que ressoou as tensões vividas no auge da Guerra Fira, o vice-chanceler da Rússia, Sergei Ryabkov cogitou a possibilidade de envio de recursos militares russos à Cuba e Venezuela.

A Rússia parece, a princípio, ter vantagem quanto aos desdobramentos da crise ucraniana. Enquanto suas tropas não ultrapassarem a fronteira, o país não poderá ser acusado de agressão e, nesse meio tempo, continuará a pressionar o Ocidente a negociar em termos favoráveis a Moscou. Como consequência, o dilema de como agir em relação a este imbróglio fica, em sua maior parte, nas mãos da Administração Biden. No cenário em que os Estados Unidos concordem com as demandas de Moscou, a imagem de Washington a nível internacional demonstraria um sinal de fraqueza e mais um indício de que a hegemonia exercida pelo país desde o fim da Guerra Fria está se deteriorando, uma vez que a despeito do imenso poderio militar e econômico, não é mais capaz de fazer prevalecer seus interesses políticos ao redor do globo.

No cenário em que os Estados Unidos iniciem o conflito, Putin terá ainda mais argumentos para justificar a intervenção militar na Ucrânia e aumentar sua retórica de expansionismo militar ocidental como ameaça à segurança russa. Caso a Rússia eventualmente tome o primeiro passo e invada a Ucrânia, Biden terá que lidar com o dilema de não reagir com o uso de força militar, como já ocorreu no caso da Crimeia e, novamente, demonstrar fraqueza política, ou também enviar tropas à Ucrânia. Se este último cenário acontecer, haveria uma linha tênue entre evitar a escalada dos conflitos e se ver em meio a uma guerra indesejada, logo após a retirada humilhante das tropas do Afeganistão.

A retaliação não-bélica mais provável seria, portanto, a aplicação de sanções à Rússia. Contudo, Moscou tem demonstrado, desde a anexação da Crimeia, que está disposta a sofrer os custos econômicos em detrimento de seus interesses estratégico-securitários e garantir a primazia de sua influência política e militar sobre as ex-repúblicas soviéticas, sobretudo no caso da Ucrânia, cujos laços históricos e culturais trazem um elemento de ainda mais complexidade. Como bem define Bordachev (2021, p. 13, tradução nossa) “a política externa russa não é focada em considerações materiais: as questões de segurança, prestígio e étnicas prevalecem sobre os ganhos e benefícios.”

Não obstante, é preciso dizer que a eclosão de um conflito tampouco é de interesse entre os russos. Como mostra Kolesnikov (2021), a população não é favorável a um conflito com a Ucrânia, sobretudo em razão dos laços históricos entre os dois povos. Além disso, o apoio político a Vladimir Putin, a nível doméstico, vem se deteriorando em decorrência dos anos de estagnação econômica e da pandemia de Covid-19. A possibilidade de uma repressão violenta a eventuais protestos contra o governo russo ecoaria os acontecimentos em Belarus e Cazaquistão[2] e seria mais um elemento prejudicial à figura do presidente, doméstica e internacionalmente.

Por fim, cabe destacar que a atual situação envolvendo a possibilidade de um conflito na Ucrânia se desenvolve a partir de um cauteloso cálculo estratégico das potências envolvidas. Ainda que o autor desta análise acredite ser improvável a eclosão de um conflito, ao menos em curto e médio prazo, os desdobramentos das negociações e o desencadeamento de hostilidades em razão de possíveis falhas de comunicação entre as partes dotam o futuro das relações russo-estadunidenses em relação ao contexto pós-soviético de uma grande carga de imprevisibilidade.

[1] A expansão da OTAN a partir de 1997 deu-se em quatro rodadas de adesão de novos membros: Hungria, Polônia e Tchéquia (1999); Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Romênia e Bulgária (2004); Albânia e Croácia (2009); Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020).

[2] No caso de Belarus, os protestos eclodiram em 2020, após o anúncio da reeleição de Lukashenko, a sexta seguida desde a independência do país da União Soviética, apesar das pesquisas eleitorais apontarem para a derrota do governante. No Cazaquistão, as revoltas começaram no início de 2022 em resposta ao aumento do preço dos combustíveis. Em comum, os dois casos se dão em ex-repúblicas soviéticas marcadas pela centralização de poder e autoritarismo de seus governos, que contam com o apoio de Vladimir Putin para a manutenção de seus mandatos. Na crise cazaque, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) – aliança militar composta por Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão – foi acionada pela primeira vez desde sua criação, em 1992, a pedido do governo cazaque. A Rússia contribuiu com, ao menos, 2 mil soldados.

 

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Foto de Kiev por Pixabay.

REFERÊNCIAS

BIELIESKOV, Mykola. The Russian and Ukrainian Spring 2021 War Scare. Center for Strategic and International Studies. Disponível em: csis.org/analysis/russian-and-ukrainian-spring-2021-war-scare. Acesso em: 18 jan. 2022.

BORDACHEV, Timofei. Space Without Borders: Russia and Its Neighbours. Valdai Discussion Club. December 20, 2021. Disponível em: https://valdaiclub.com/a/reports/space-without-borders-russia-and-its-neighbours/. Acesso em: 18 jan. 2022.

EM RESPOSTA à OTAN, Rússia não descarta enviar militares para Cuba e Venezuela. O Povo. 13 jan. 2022. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2022/01/13/em-resposta-a-otan-russia-nao-descarta-enviar-militares-para-cuba-e-venezuela.html. Acesso em 21 jan. 2021.

GONCHARENKO, Roman. O que está por trás da crise do Cazaquistão. Deutsche Welle. 06 jan. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-que-est%C3%A1-por-tr%C3%A1s-da-crise-no-cazaquist%C3%A3o/a-60349114. Acesso em: 21 jan. 2022.

HÖPPNER, Stephanie. Entenda os protestos em Belarus. Deutsche Welle. 20 ago. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/entenda-os-protestos-em-belarus/a-54636597. Acesso em: 21 jan. 2022.

KOLESNIKOV, Andrei. How do Russians Feel About War With Ukraine? Carnegie Moscow Center. 16 dez. 2021. Disponível em: https://carnegiemoscow.org/commentary/86013. Acesso em: 18 jan. 2022.

MAYNES, Charles. 4 things Russia wants right now. NPR. January 13, 2022. Disponível em: https://www.npr.org/2022/01/12/1072413634/russia-nato-ukraine. Acesso em: 18 jan. 2022.

PIFER, Steven. Russia’s draft agreements with NATO and the United States: Intended for rejection? Brookings. December 21. 2021. Disponível em: https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2021/12/21/russias-draft-agreements-with-nato-and-the-united-states-intended-for-rejection/. Acesso em: 18 jan. 2022.

SCHWIRTZ, Michael; REINHARD, Scott. How Russia’s Military Is Positioned to Threaten Ukraine. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/01/07/world/europe/ukraine-maps.html.  Acesso em: 18 jan. 2022.

SONNE, Paul; HARRIS, Shane. Russia planning massive military offensive against Ukraine involving 175,000 troops, U.S. intelligence warns. The Washington Post. December 3, 2021. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/national-security/russia-ukraine-invasion/2021/12/03/98a3760e-546b-11ec-8769-2f4ecdf7a2ad_story.html. Acesso em: 18 jan. 2022.

Guerra Civil no Leste da Ucrânia

Getúlio Alves de Almeida Neto: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.

E-mail: g.alvesneto3@gmail.com

Danielle Amaral Makio: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: daniellemakio@gmail.com

 

 

Desde março de 2014, o Leste Ucraniano é palco de um conflito armado entre movimentos separatistas pró-Rússia que reivindicam a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, e o governo de Kiev. Também conhecido como Guerra em Donbass, região da bacia do rio Donets, o conflito deu-se na esteira das manifestações do Euromaidan em fins de 2013 e concomitante à anexação da Crimeia pela Federação Russa. Em razão de evidências que apontam para o apoio indireto russo aos separatistas, através de suporte logístico e armamentista e do envio de tropas paramilitares à região (SCIUTTO, 2019), Kiev receia que haja uma nova anexação de parte do território ucraniano à Federação Russa, como ocorrera na Crimeia. Fruto desse contexto, o conflito reverbera na imagem russa perante a União Europeia, os Estados Unidos e a outros países do chamado espaço pós-soviético. Sobretudo, a Guerra em Donbass reflete a tensão gerada pela oposição russa ao alargamento do bloco europeu em direção às regiões reivindicas por Moscou como sua zona de influência.

O conflito na Ucrânia é fortemente marcado por questões de cunho étnico, linguístico e cultural que dividem a Ucrânia em dois grandes grupos identitários: enquanto o centro-oeste do país defende a aproximação com Europa, as populações do sul e do leste ucraniano defendem maior influência de Moscou na região, ou até mesmo a futura incorporação à Federação Russa.  O caráter identitário e cultural do conflito tem suas raízes no processo de formação das identidades de russos e ucranianos, que remontam ao século IX. A origem comum dos atuais Estados Russo e Ucraniano é tema de controvérsia entre ambos os povos sobre o real nascimento de suas nações. A lacuna criada por esta ausência de consenso, por sua vez, reflete tanto na forma como a Ucrânia é vista pela Rússia quanto na percepção dos nacionais ucranianos sobre a Rússia (ADAM, 2018).

Somente após a dissolução da União Soviética em 1991 houve o surgimento do Estado Ucraniano soberano e independente (a despeito de um breve período após a Revolução de 1917). Como consequência do grande número de russos que permaneceram fora da Rússia após a extinção do bloco soviético, a Ucrânia conta com significativa parcela de russos étnicos na composição de sua população: 17,3% segundo o censo de 2001 (UCRÂNIA, 2001). No entanto, as características demográficas da Ucrânia sofrem de alto grau de regionalização. Nas regiões de Donetsk e Lugansk, a porcentagem de russos étnicos se eleva para 38,2% e 39%, respectivamente. Quanto ao número de russófonos, cerca de 75% da população da região do Donbass são falantes de russo o que contribui para a percepção de pertencimento cultural à Rússia (GIELOW, 2019). À medida em que se observa a demografia ucraniana do Leste em direção a Oeste, menor é a porcentagem da população étnica russa e/ou falante da língua russa (UCRÂNIA, 2001).

Dentro desse contexto de divisão identitária no país, ocorrem as primeiras manifestações políticas em 2004, na chamada Revolução Laranja. Os protestos tiveram início após as alegações de fraude nas eleições a favor de Viktor Yanukovytch, de tendência pró-Rússia. Com o êxito das manifestações, realizaram-se novas eleições sob observação de órgãos nacionais e internacionais, culminando na eleição do governo pró-Ocidente liderado por Viktor Yushchenko (MIELNICZUK, 2014). Yushchenko, no entanto, não conseguiu se reeleger nas eleições de 2010, cujo vencedor foi Yanukovytch.

Apesar de não ser contrário à aproximação com a União Europeia, Yanukovytch era marcadamente mais favorável ao estreitamento das relações com Moscou do que seu antecessor. Nesse contexto, o presidente ucraniano suspendeu, em novembro de 2013, as negociações econômicas com a União Europeia, as quais possibilitariam a possível adesão do país ao bloco europeu no futuro Em resposta à decisão do governo, tiveram início protestos da Praça Maidan, em Kiev, exigindo a renúncia do Presidente Yanukovytch. Os protestos receberam o nome de Euromaidan, em alusão à reivindicação da população local da volta das negociações com Bruxelas, e duraram até fevereiro de 2014, marcados pela repressão policial e escalada da violência, culminando na fuga de Yanukovytch para a Rússia (HENDLER, 2014; SCIUTTO, 2019).

Após a fuga do então governante, instaurou-se um parlamento interino em Kiev. Dentro das medidas apresentadas pelo governo de transição, havia uma proposta de rebaixar o status oficial da língua russa no país. Em resposta a esta perspectiva, uma série de protestos pró-Rússia começaram em cidades do Leste e do Sul da Ucrânia e também na península da Crimeia. No caso da Crimeia, em um referendo realizado em 16 de março de 2014, 90% dos votos expressaram a vontade da população de incorporarem-se à Rússia, processo concluído pelo tratado de adesão da Crimeia à Federação Russa assinado em 18 de março de 2014. Da mesma forma, os protestos nas regiões de Donetsk e Lugansk passaram a ter um caráter separatista e a buscar por maior aproximação e integração com a Rússia.

Ao contrário da Crimeia, no entanto, esses movimentos separatistas evoluíram para um conflito armado com a tomada de prédios públicos em Donetsk e Lugansk e o envio do exército ucraniano e da Guarda Nacional – organização paramilitar que havia sido criada durante os protestos de Maidan para controlar as revoltas no leste do país. A República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk autodeclararam-se independentes de Kiev em 7 e 14 de abril de 2014, respectivamente. Em 22 de maio do mesmo ano, foi anunciada a criação de uma confederação envolvendo as duas repúblicas, chamada de Nova Rússia (Novorossyia). Um ano depois, os líderes regionais anunciaram o congelamento deste projeto (KOLESNIKOV, 2015).

Apesar de o governo russo negar, constantemente, o envolvimento no conflito, e de não apoiar oficialmente um processo de adesão das repúblicas separatistas à Federação Russa, como foi o caso da Crimeia, há evidência de envolvimento de forças russas na região. Chamados informalmente de “pequenos homens de verde”, soldados que não carregam a insígnia do exército russo, mas que são russófonos e estão armados com arsenal russo ocupam a região do leste da Ucrânia, assim como na Crimeia. Ainda, de acordo com dados da OTAN, do Pentágono e do governo ucraniano à época, estimava-se a presença entre 20 mil e 45 mil soldados russos posicionados na fronteira entre Rússia e Ucrânia. Ademais, a derrubada do voo MH17 da Malaysia Airlines, com origem de Amsterdam e destino a Kuala Lampur, em 17 de julho de 2014, enquanto sobrevoava o território controlado pelos separatistas, é motivo de forte desconfiança quanto à origem do míssil lançado. Segundo relatos, as 283 mortes de passageiros e tripulantes ocasionadas pelo ataque foram causadas pela utilização do sistema de míssil russo BUK-TELAR, corroborando as suspeitas de envolvimento da Rússia na região (SCIUTTO, 2019).

Para além da ingerência militar, um novo decreto assinado por Putin em abril de 2019, que facilita a concessão de cidadania russa a cidadãos das regiões separatistas (GIELOW, 2019), contribui para o receio das autoridades ucranianas de que haja uma nova anexação promovida por Moscou. Tal medida se relaciona, sobretudo, com a nova abordagem de Putin sobre a questão étnico-nacional a partir de seu terceiro mandato em 2012, que inaugura um período conhecido por dar maior ênfase ao estreitamento de laços linguísticos e culturais entre a Rússia e demais países da região. Ao liderar este processo, a Rússia passa, então, a facilitar que populações que vivem fora de seu território possam também ser consideradas russas (BLAKKISRUD, 2016). A medida também pode ser entendida como uma forma de frear os avanços do exército ucraniano contra os separatistas, que poderiam ser reconhecidos pela Rússia como uma agressão aos seus nacionais.

A primeira tentativa de acordo entre as partes foi realizada através do Protocolo de Minsk, concebido na capital da Bielorrússia em setembro de 2014. O acordo, assinado por Ucrânia, Rússia e representantes das repúblicas separatistas da Ucrânia, consistia em doze pontos e previa: 1) um cessar-fogo imediato; 2) a anistia aos rebeldes que se desarmassem; e 3) um corredor para ajuda humanitária e refugiados. No entanto, o acordo fracassou e as hostilidades entre as partes combatentes continuam. Após inúmeras tentativas frustradas de cessar-fogo e de uma série de negociações, em outubro de 2019 estabeleceu-se, sob o âmbito do Fórmula Steinmeier, em alusão ao Presidente Alemão Frank-Walter Steinmeier, uma negociação entre os governos da Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk, República Popular de Lugansk e da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). O acordo prevê as eleições livres nos territórios separatistas, observadas pela OSCE, e reincorporação destes ao território ucraniano com status especial. Após o acordo, tropas separatistas começaram a se retirar de algumas cidades ocupadas. Em dezembro do mesmo ano, se reuniram na Normandia, França, o atual presidente ucraniano Volodymyr Zelensk, Vladimir Putin, Emmanuel Macron e Angela Merkel, para que fosse negociada a troca de prisioneiros entre as partes e para que fosse reiterada a necessidade da realização de eleições e negociações futuras.

O conflito no Leste Ucraniano afeta cerca de 5,2 milhões de pessoas. Desse total, estima-se que 3,5 milhões necessitarão de algum tipo de ajuda humanitária para sobreviver (OCHA, 2020a). Em 2015, apenas um ano após o início do conflito em Donbass, 925.500 pessoas haviam fugido para países vizinhos (OCHA, 2015). Já em relação ao número dos deslocados internos, os registros oficiais em 2020 indicam ao menos 1,4 milhão de pessoas. Segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgado em 12 de março de 2020, o conflito já causou a morte de 13 mil a 13,2 mil pessoas. Estima-se que este total seja composto pela morte de ao menos 3,350 mil civis, 4,1 mil soldados ucranianos, e 5,650 mil de outros grupos armados. No entanto, o mesmo relatório aponta para uma forte tendência de queda no número de vítimas. Em 2019, registrou-se a morte de 27 civis, 40,6% a menos que no ano de 2018, sendo então o ano com menor número de baixas desde o início das hostilidades (ACNUDH, 2020b).

Apesar do arrefecimento recente das hostilidades entre separatistas e forças governamentais, o conflito estende-se há seis anos. Como desdobramento dos protestos iniciados em 2013, na Praça Maidan, em Kiev, e da anexação da Crimeia pela Federação Russa, a Guerra em Donbass evidencia a disputa interna entre narrativas pró-União Europeia e pró-Rússia. Nesse sentido, o entendimento das razões que desencadearam o movimento separatista passa pela necessidade de um olhar histórico da construção da identidade ucraniana após a dissolução da União Soviética, bem como do posicionamento russo em relação aos países do chamado espaço pós-soviético. Como demonstrado pelo cessar-fogo negociado em 2019, na Normandia, um acordo de paz entre as partes necessitará da participação em conjunta entre o Kremlin e líderes europeus.

 

 

REFERÊNCIAS

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BABIAK, Mat. Welcome to New Russia. Ukrainian Policy. 23. Maio. 2014. Disponível em: http://ukrainianpolicy.com/welcome-to-new-russia/. Acesso em: 11 maio 2020.

BLAKKISRUD, Helge. Blurring the boundary between civic and ethnic: the Kremlin’s new approach to national identity under Putin’s third term. In: KOLSTO, Pal; BLAKKISRUD, Helge. The new Russian nationalism: imperialism, ethnicity and authoritarianism 2000-2015. Edimburgo: Edinburgh University Press. 2016. pp. 249-274

GIELOW, Igor. Decreto de Putin facilita cidadania russa a separatista da Ucrânia. Folha de S. Paulo. São Paulo. 24 abr. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/04/decreto-de-putin-facilita-cidadania-russa-a-separatista-da-ucrania.shtml. Acesso em: 06 maio 2020.

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Imagem: Guerra no leste da Ucrânia: Getty images