Em 2011, a repercussão da “Primavera Árabe” rompeu um delicado equilíbrio na Síria. As tensões políticas, até então administradas pelo clã Assad com certa facilidade (já que a hegemonia familiar não se via ameaçada concretamente), explodiram em uma conflagração civil com milhares de grupos envolvidos, segundo os dados de base sobre conflitos da Universidade de Uppsala.
No embalo de revoltas populares, atores externos se voltaram ao conflito em moldes que remetiam à Guerra Fria: financiamento obscuro e treinamento oficioso a vários dos lados envolvidos. No debate público, os dirigentes dos destinos da comunidade internacional foram chamados a responder ativamente à calamidade que se alastrou na região – em especial no tocante à violência impelida pelos combates à população civil (principal questão a sensibilizar governos, organizações internacionais e setores da sociedade civil desde o início dos confrontos).
A proteção de civis em situações de conflito é um tema tradicional do Direito Internacional, mas é graças ao princípio da Responsabilidade de Proteger (popularizado pela sigla em inglês R2P) – inaugurado em 2001, e reformulado em 2005 – que o tópico ganhou sua forma mais sofisticada, a reboque de massacres ocorridos nos anos 1990. Mais do que proibir forças combatentes de dirigir violência à população geral, algo já consolidado no escopo clássico do Direito Humanitário, a R2P almeja vincular a atuação da comunidade internacional para a proteção ativa das populações em situações de violência em larga escala – impedindo a apatia generalizada como verificável no genocídio de Ruanda em 1994.
Assim, a R2P expressa um processo crescente de abalo do principal fundamento do Sistema Internacional contemporâneo (e cristalizado, por exemplo, nas Nações Unidas): o primado da soberania estatal. Contudo, a subversão proposta neste arcabouço não está alijada do atual protagonismo e autoridade do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Segundo a própria doutrina, as intervenções cunhadas na R2P devem ser conduzidas com autorização expressa do órgão e preferencialmente com apoio de organizações regionais pertinentes. Caso contrário, quaisquer ações de uso da força permanecem como atuação ilegal e ilegítima.
No caso sírio, a possibilidade de anuência do CSNU nestes termos parece quase impossível. Uma das razões é que a intervenção na Líbia (2011), que seguiu a justificativa argumentativa e jurídica da R2P, serviu de expediente para que os agentes ocidentais promovessem a derrubada do governo de Muammar Gaddafi – algo além do mandato formal do Conselho, que permitia estritamente o uso da força para a proteção de civis. Tal caso provocou a utilização sistêmica do poder de veto por Rússia e China, paralisando a partir de então qualquer deliberação arrojada sobre a matéria.
Neste sentido, os ataques militares patrocinados por EUA, Reino Unido e França na Síria, em abril de 2018, são fundamentalmente contrários à legalidade internacional e atingem as bases centrais da governança global. Sem a legitimidade multilateral, tais ações não apenas permitem a especulação acerca de interesses escusos das potências ocidentais na região, mas sobretudo enfraquecem as garantias institucionais acerca do uso da força, desestabilizando ainda mais a ordem global. Este caso é emblemático da encruzilhada em que se encontram várias das instituições ancoradas no Direito Internacional, uma vez que expõe as debilidades das atuais estruturas em constranger os interesses autocentrados dos principais Estados, gerando o descrédito por parte dos demais membros do Sistema Internacional.
Operar no terreno da ilegalidade internacional prejudica as décadas de avanços conquistados sobre o uso da força e coloca em risco a já frágil estabilidade política no mundo. Consequentemente, a manutenção da própria ONU, que tem como razão de ser a garantia da paz e que se mantém relevante por mais de 70 anos, é colocada em xeque. A percepção de que uma segunda versão da “coalizão da boa-vontade” (responsável pelos ataques ao Iraque no começo do milênio) seria capaz de superar a inércia da comunidade internacional para Síria é falaciosa. Assim, como no caso iraquiano, a atuação ocidental alheia aos acordos e à legitimação de toda comunidade internacional há de comprometer quaisquer esforços de pacificação e reconstrução de curto e médio prazo, reverberando para a perpetuação da volatilidade política na região.
Duas são as claras alternativas possíveis para que cenários como este não se repitam: a aguardada reforma no Conselho de Segurança ou a reestruturação da permissão unilateral do uso da força. A primeira, se bem executada, tem maiores chances de restaurar o grau de legitimidade da Organização sem que haja o desmonte dos fundamentos da proteção humanitária. Já a segunda apresenta riscos maiores para a relativa estabilidade que o mundo viveu nas últimas sete décadas e pode culminar na completa implosão da governança global, prejudicando os Estados mais frágeis politicamente em prol de interesses que beneficiem apenas as grandes potências e gerem cada vez mais violência para populações vulneráveis.
Daniel Campos de Carvalho é professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Letícia Rizzotti Lima é mestranda pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.
Imagem: The ruins of the American missile attack on Syria. Por: Fathi Nizam.