A partir da década de 1990 é possível observar o aumento do engajamento de atores internacionais em intervenções para a resolução de crises da agenda de Segurança Internacional. Progressivamente, as iniciativas pela consolidação da paz são autorizadas e conduzidas não só por atores tradicionais como as Nações Unidas, mas também por grandes potências, coalizões ad hoc de Estados e acordos regionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ou a União Africana. Com efeito, as missões aprovadas por esses atores mantêm características similares às operações autorizadas e mobilizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesse sentido, é possível identificar a aplicação de princípios presentes na Carta de São Francisco e em demais documentos da instituição. Identifica-se que, majoritariamente, as intervenções conduzidas por Estados, coalizões e organismos regionais recebem anuência de outros atores centrais do cenário mundial como alternativa para garantir a legitimidade. Simultaneamente, é possível descrever relações de interesse entre os atores centrais que mobilizam as intervenções internacionais e as regiões submetidas às operações de paz. Convém destacar a reduzida participação de atores locais em projetos internacionais de paz e o contestado consentimento concedido por autoridades e elites políticas à intervenção estrangeira.
A partir das falhas em operações conduzidas pelas Nações Unidas no início da década de 1990, debates acadêmicos e institucionais destacam a necessidade de promover reformas no engajamento dos atores internacionais em crises da agenda de Segurança. Noções de “empoderamento” e “apropriação local” são incorporadas às práticas discursivas de atores relevantes no processo decisório de novas intervenções (BORGES; MASCHIETTO, 2014). Simultaneamente, é possível observar lacunas no discurso proeminente sobre operações de paz, sobretudo no que tange à necessidade de se pensar questões como “cidadania” ou “emancipação”. Depreende-se, portanto, que os projetos de paz implementados a partir do fim da Guerra Fria mantêm uma dinâmica impositiva sobre os atores locais. Dessa maneira, é possível identificar a sobreposição de modelos políticos e econômicos considerados mais eficientes pelos atores centrais sobre as instituições que regem a organização política, econômica e social das sociedades sob intervenção. A partir do ano de 2001, identifica-se, ainda, um agravamento nas dinâmicas de intervenção e reconstrução de instituições estatais, sob o exemplo da invasão estadunidense ao Afeganistão e ao Iraque. Descreve-se, portanto, um nível adicional de opressão, estabelecido pelas relações entre atores relevantes na agenda de Segurança Internacional e os atores submetidos às operações de paz.
É possível identificar a predominância de princípios liberais nos fundamentos dos modelos internacionais que, majoritariamente, apresentam contradições em relação às instituições locais. Destaca-se a ênfase sobre a consolidação de democracias liberais representativas, a criação de mercados livres e modelos burocráticos inspirados nas instituições dos atores centrais do sistema internacional.
Com efeito, destaca-se que a imposição de modelos institucionais através de projetos de paz pode implicar a manutenção de estruturas de poder favoráveis às potências internacionais, como a desigualdade em relação aos Estados periféricos. Observa-se que as intervenções conduzidas pelos Estados centrais se fundamentam na consideração de que as instituições locais carecem de eficiência na garantia de pilares do pensamento liberal. Argumenta-se, portanto, que os projetos de paz delineados sob a tutela dos atores centrais apresentam desconhecimento em relação às dinâmicas locais.
Em análise, é plausível argumentar que as ações internacionais, de maneira contraditória, refletem reminiscências do poder colonial de antigas potências, apesar do objetivo em consolidar conjunturas pacíficas nas sociedades sob intervenção. Em agravo à contradição, os modelos internacionais estabelecidos sobre a organização do cotidiano local implicam obstáculos à iniciativa de reunir e garantir princípios consonantes às noções de democracia, segurança, crescimento econômico e direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, presentes nos projetos de paz contemporâneos. Dessa maneira, é possível observar a manutenção de disputas presentes nos conflitos armados que mobilizaram o engajamento de atores centrais pela paz. É possível questionar, portanto, a possibilidade de impactos positivos a longo prazo das intervenções.
É preciso destacar que o processo de imposição de modelos de organização política e econômica através de intervenções internacionais é permeado por movimentos de resistência ou aceitação pelos atores locais. (RICHMOND, 2014). É possível utilizar a noção de “ordens políticas híbridas” para descrever a resultante das dinâmicas entre ações intervencionistas e os movimentos locais de resistência ou aceitação (BOEGE, et al., 2009). Ao indicar a complexidade de relações estabelecidas no nível local de análise, compreende-se que as ordens políticas derivadas do encontro entre formas locais e internacionais de organização institucional podem resultar em estruturas de poder negativas, que reforçam aspectos de violência estrutural como exclusão e desigualdade. Não obstante, enseja-se a possibilidade de formação de “ordens políticas híbridas” positivas, que contam com potencial para consolidar a paz em uma sociedade pós-conflito.
Nesse sentido, adverte-se a necessidade de promover a participação ativa de atores locais na formulação e implementação de projetos de paz. A superação de situações de opressão, como as relações de poder estabelecidas entre atores do sistema internacional ou entre diferentes classes do contexto local, depende da inserção crítica de atores oprimidos na realidade que se pretende transformar (FREIRE, 1974). Compreende-se que a consolidação de uma conjuntura pacífica a longo prazo deriva da possibilidade de promover princípios de inclusão política e social, redução da desigualdade e incentivar um processo autônomo de reconciliação nacional. Depreende-se que a promoção desses princípios oferece potencial à emancipação das sociedades que foram afetadas por conflitos violentos.
Simultaneamente, destaca-se a importância de fundamentar os projetos de paz definidos por atores internacionais em estudos substantivos das conjunturas locais. Ressalta-se a necessidade de ampliar o debate institucional sobre as ações de intervenção, permitindo o questionamento dos princípios considerados mais eficientes para a organização política e econômica das sociedades pós-conflito. Nesse sentido, é preciso compreender que as instituições consideradas nacionais que se apresentam no contexto locais constituem alternativas para a solução de disputas e concertação de interesses. Reiteradamente, ao valorizar as formas de organização locais, e incluí-las nos processos de paz internacionais, amplia-se a possibilidade da formação da paz a partir de elementos e dinâmicas fundamentais de sociedades pós-conflito.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais no PPG RI San Tiago Dantas – Unesp, Unicamp, PUC-SP, pesquisador do Gedes e possui financiamento da FAPESP.
Imagem: Timor Leste se prepara para Eleições Parlamentares. Por: United Nations Photo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOEGE, V. et al. On hybrid political orders and emerging states: what is falling States in the global South or ressearch and politics in the West. Berghof Research Center for Constructive Conflict Management, 2009.
BORGES, M.; MASCHIETTO, R. H. Cidadania e empoderamento local em contextos de consolidação da paz. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 105. Dezembro de 2014. pp. 65-84.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
RICHMOND, O. P. Failed Statebuilding: intervention and the dynamics of peace formation. New Haven: Yale University Press, 2014.