Murilo Motta**
O estudo das tecnologias da informação é um campo que merece destaque na pesquisa na área de Relações Internacionais, tanto porque essas tecnologias foram decisivas na estruturação do sistema interestatal pós-2ª Guerra, quanto porque elas continuam a transformar as relações humanas em seus aspectos mais fundamentais, graças à popularização da Internet e das plataformas e redes digitais, através das quais opera o capitalismo de vigilância – um novo modelo de produção, cuja matéria-prima são os dados gerados pelos usuários de tecnologias digitais, que são utilizados na produção de modelos preditivos do comportamento humano, que também permitem sua modificação por antecipação.
De fato, a acumulação e circulação de dados digitais é um elemento central da economia política do século XXI. O que nós entendemos como “tecnologia” nos dias de hoje muitas vezes significa tecnologias que instrumentalizam a informação, isto é, coletam, classificam, gerenciam e processam informações de modo a medir, registrar, controlar e prever o que coisas, pessoas ou outras informações podem ou devem fazer. Essas tecnologias tornaram a informação abundante e barata, dando origem a um novo tipo de economia política, baseada não na escassez das matérias-primas, mas no excesso da informação.
Este artigo objetiva contribuir para a compreensão dos impactos da adoção destas tecnologias digitais de ponta, desenvolvidas em países centrais, por países da periferia e semiperiferia do sistema interestatal. Especificamente, nos concentramos na atuação da Microsoft no Brasil. A Microsoft Corporation é uma empresa transnacional com sede em Redmond, Washington, EUA, que desenvolve e comercializa softwares de computador, produtos eletrônicos e serviços digitais. Entre seus produtos mais conhecidos estão o sistema operacional Windows, a linha de aplicativos para escritório Office, o navegador Internet Explorer e as redes sociais LinkedIn e Skype. Contudo, nos casos analisados a seguir, fica claro que o verdadeiro modelo de negócios da Microsoft é a privatização dos conhecimentos necessários para a inovação em tecnologias da informação.
Por exemplo, em 1985, o contencioso entre o Brasil e os EUA na questão da informática opôs os dois países em torno do acesso ao mercado brasileiro de produtos de informática. A Lei da Informática do Brasil, aprovada em outubro de 1984, previa a reserva do mercado nacional para produtos de informática produzidos por empresas brasileiras. No ano seguinte, o governo Reagan anunciou uma série de retaliações econômicas, destinadas a balancear o prejuízo potencial às empresas estadunidenses.
O contencioso da informática foi marcado pela emergência da Microsoft como um dos atores centrais da disputa, ao lado do governo estadunidense. Essa relação dialética entre Estado e empresas estadunidenses implica que a atuação internacional dos EUA sempre resulta de uma combinação entre os interesses do empresariado nacional e aqueles do governo. Consequentemente, a atuação da diplomacia dos EUA objetivava que o Brasil reconhecesse o regime internacional de propriedade intelectual que assegura os direitos autorais dos softwares e eliminasse a política de reserva de mercado para empresas nacionais.
A pressão pelo reconhecimento do regime de patentes se tornou um elemento estrutural da política internacional, o que favoreceu a afirmação de grupos alinhados ao neoliberalismo no governo brasileiro. De fato, em janeiro de 1991, um novo projeto de lei sobre o software foi anunciado pelo Congresso brasileiro, desta vez recebendo o apoio do presidente da Microsoft. Uma nova Lei da Informática, de n. 8.248, foi sancionada no mesmo ano e confirmou o fim da reserva de mercado para outubro de 1992.
A concentração dos conhecimentos necessários para desenvolver e operar tecnologias da informação de ponta entre algumas poucas empresas estadunidenses permitiu ao governo deste país deter as principais empresas desse setor sob sua jurisdição, o que lhes possibilitou acesso a uma gigantesca quantidade e variedade de dados vindos de todo o mundo. Além disso, na esteira dos ataques de 11 de setembro de 2001, o governo dos EUA implementou uma agenda de securitização da sociedade que neutralizou qualquer demanda por privacidade. Por exemplo, o USA PATRIOT Act, que esteve em vigor de 26 de outubro de 2001 até 2015, permitia que os órgãos de segurança e de inteligência dos EUA interceptassem ligações telefônicas e e-mails de organizações e pessoas supostamente envolvidas com o terrorismo nos EUA ou no exterior, sem necessidade de qualquer autorização do Poder Judiciário. Em 2015, o USA FREEDOM Act entrou em vigor em seu lugar, tornando necessária autorização judicial para que o governo estadunidense possa interceptar essas comunicações.
A atuação conjunta de empresas e governo estadunidenses continuou ao longo das décadas seguintes, em detrimento dos interesses do governo brasileiro. Em 2010, Chelsea Manning disponibilizou para a plataforma WikiLeaks uma série de mensagens diplomáticas trocadas no período de 2003 a 2010 entre embaixadas e o governo dos EUA, causando uma crise política e diplomática que ficou conhecida como Cablegate.
Em uma destas mensagens, de 21 de dezembro de 2007, é relatado um encontro do presidente da Microsoft Brasil, Michel Levy, com o Embaixador dos EUA, Clifford Sobel, em que o presidente da filial brasileira desta gigante do software estadunidense afirma que o governo do Brasil e o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) estariam buscando descreditar o software proprietário da Microsoft (XML) em favor da adoção de softwares livres (ou Open Document Format, ODF), e aponta como fatores dessa posição questões ideológicas e interesses comerciais contrários aos dos EUA.
Em 2013, Edward Snowden disponibilizou uma série de documentos da National Security Agency (NSA) para o WikiLeaks, que ficaram conhecidos como SpyFiles. Dentre eles, há documentos que atestam que o governo dos EUA, através do programa PRISM, teve acesso aos servidores de armazenamento de dados dos usuários das principais empresas de tecnologias da informação do país, começando pela Microsoft, em 11 de setembro de 2007.
Além disso, outros documentos disponibilizados por Snowden para jornalistas do The Guardian atestam que houve cooperação direta entre a Microsoft e o governo dos EUA, uma vez que a Microsoft ajudou a NSA a contornar a criptografia de seu serviço de e-mail, o Outlook.com, e de seu serviço de conversas por áudio e vídeo, o Skype – comprado pela Microsoft em 2011.
As operações de vigilância da NSA realizadas no Brasil incluíram o monitoramento do telefone celular da então presidenta Dilma Rousseff, a coleta de dados da Petrobras e, de forma indiscriminada, de cidadãos brasileiros. Em resposta, Rousseff adiou uma visita oficial aos EUA, inicialmente prevista para outubro de 2013, e dedicou seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas daquele ano à questão da vigilância em massa e da rede global de espionagem eletrônica, condenando as práticas da NSA como uma violação do Direito Humano à privacidade e como um desrespeito à soberania nacional.
Em 2015, uma nova série de vazamentos tornou públicas práticas de espionagem econômica levadas a cabo pelo governo dos EUA contra parceiros tradicionais, como a Alemanha, a França, a União Europeia e o Brasil. Segundo os documentos, entre 2011 e 2013, 29 “alvos” brasileiros tiveram seus telefones grampeados pela NSA, incluindo a presidenta Dilma Rousseff, seu assistente, sua secretária, o Chefe da Casa Civil, Antônio Palocci, o Ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, o embaixador brasileiro nos EUA, Luiz Alberto Figueiredo Machado, e a Procuradora-Geral do Ministério da Fazenda, Adriana Queiroz de Carvalho.
Tanto no contencioso da informática entre o Brasil e os EUA na década de 1980, quanto nos casos das denúncias de espionagem internacional ao longo dos anos 2010, a Microsoft e o governo dos EUA atuaram em sinergia de modo a garantir seus interesses, em detrimento dos interesses, da privacidade e da soberania do governo brasileiro. Nestes casos, ficaram claras as vulnerabilidades a que se expõe qualquer país quando adota tecnologias estrangeiras, desenvolvidas por empresas intimamente ligadas a seus respectivos governos. Entretanto, a rejeição a elas não é tão simples. Empresas como as GAFAM concentram os conhecimentos e as capacidades necessárias para o desenvolvimento de novas tecnologias, de modo que a criação de alternativas nacionais não é tarefa fácil.
De fato, como a Microsoft, tal qual as outras grandes empresas representadas pelas GAFAM, oferece vantagens de custo no armazenamento de dados, seus serviços são contratados por diversos países ao redor de globo. Isso acontece sem que exista uma discussão maior acerca das implicações sociais da adoção de tecnologias estrangeiras por países periféricos e semiperiféricos porque a racionalidade neoliberal hegemônica preza pela competitividade e pela eficiência, em detrimento de objetivos como o ajuste às necessidades locais e a promoção da autonomia.
O neoliberalismo pode ser entendido como uma visão de mundo, escorada em um conjunto original de aparatos discursivos, práticas sociais e formas de conduta individual que buscam generalizar o princípio da concorrência em todas as dimensões da vida humana. Especificamente nas redes e plataformas digitais, a racionalidade neoliberal opera anulando e dissipando quaisquer ações coletivas que busquem criar outras lógicas que não sejam voltadas à concorrência e à reprodução do capital.
Ao longo do período analisado neste artigo, é possível notar que a concentração dos conhecimentos e capacidades necessárias para o desenvolvimento de tecnologias da informação contribuiu para a manutenção das assimetrias econômicas e políticas entre o Brasil e os EUA. Essa concentração também implicou em violações do princípio da soberania nacional e do Direito Humano à privacidade, reforçando as assimetrias culturais e sociais entre as populações do centro e aquelas da periferia e semiperiferia do sistema interestatal.
*Este ensaio é um resumo do artigo “Tecnologias da informação, concentração de conhecimentos e relações internacionais: a atuação da Microsoft no Brasil” publicado pela Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 11, n. 22, 2022. A versão completa está disponível no site da revista.
** Murilo Motta é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/Pucsp), bolsista CAPES (PROCAD-DEFESA) e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia & Defesa (PAET&D)
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