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A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 1

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

A grande quantidade de análises feitas diariamente acerca da guerra da Ucrânia desde a invasão russa – não somente no âmbito acadêmico, mas também midiático – desperta o interesse e demonstra o anseio público de compreender a complexidade desses eventos. Ademais, cria-se a expectativa de que analistas em geral, e sobretudo especialistas no tema, possam prever com acurácia os desdobramentos do conflito. Contudo, como tem-se observado ao longo de quase um mês de guerra, tentativas de predizer os acontecimentos e chegar a uma conclusão engessada são prejudiciais à compreensão dos fatos e estão, de certa forma, propensas a ser contraditas no instante seguinte. Nesse sentido, proponho um breve ensaio com reflexões que possam guiar o debate e auxiliar no entendimento de um fenômeno que se desenvolve enquanto o observamos.

É preciso tomar cuidado para que nossas análises não se tornem mais um reflexo do que esperamos que aconteça do que uma tentativa, ainda que naturalmente limitada, de depreender os acontecimentos que temos acompanhado, literalmente, minuto a minuto. Assim, proponho o breve debate de dois pontos: 1) os motivos que levaram à tomada de decisão russa de invadir a Ucrânia; 2) a reação pública, política e midiática à guerra, em razão de suas especificidades estratégico-militares que parecem em descompasso com o contexto histórico e geográfico atual, salientando aspectos da comunidade global contemporânea que têm impacto na percepção do tempo da guerra e seu desenvolvimento. O primeiro ponto é discutido neste texto e o segundo em sua continuação.

Os motivos da guerra: expansão imperialista ou agressão político-securitária?

Após a crescente tensão gerada por exercícios militares realizados pelas forças armadas russas próximos à fronteira ucraniana desde o final de 2021, Vladimir Putin ordenou, em 24 de fevereiro de 2022, que suas tropas invadissem o território ucraniano sob a alegação de uma “operação militar especial”. O objetivo, segundo Putin, seria “desnazificar” o país e atender ao pedido dos líderes das autoproclamadas repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk. Estas regiões no Leste Ucraniano são palco de uma guerra civil em confronto com o governo de Kiev que teve início há oito anos, na esteira da derrubada do então presidente Viktor Yanukovytch – tido como mais alinhado à Rússia em detrimento da aproximação com a União Europeia – nos protestos da Praça Maidan, em 2013. Três dias antes da invasão, o governo russo reconheceu formalmente a independência das repúblicas, anunciando a possibilidade do envio de tropas para a “manutenção da paz”.  Atualmente, o Kremlin busca impor como condições para o fim das hostilidades uma série de reivindicações: 1) neutralidade ucraniana, com garantias de que nunca se tornará país-membro da OTAN; 2) desmilitarização do país; 3) reconhecimento da independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk; 4) reconhecimento do status da Crimeia como parte da Federação Russa; 5) e, por fim, proteção à língua russa na Ucrânia.

Antes de ordenar que suas forças armadas invadissem a Ucrânia, Vladimir Putin fez um discurso no qual colocou em xeque a própria existência do Estado ucraniano ao afirmar que “a Ucrânia moderna foi uma criação da Rússia”, após a formalização da URSS como produto da política leninista de uma federação de estados iguais. O discurso televisionado assemelhou-se a um artigo publicado por Putin, ainda em julho de 2021, no qual discorre extensamente sobre a história compartilhada entre russos e ucranianos. Este pronunciamento, somado ao histórico recente de anexação da Crimeia e o reconhecimento das regiões separatistas, torna possível questionar a narrativa utilizada por Putin antes da agressão à Ucrânia, segundo a qual Moscou buscaria apenas garantias de segurança. Consequentemente, vem crescendo como uma das linhas argumentativas para explicação do ataque russo à Ucrânia – sobretudo nas análises midiáticas –, que Putin buscaria incorporar todo o território ucraniano e restaurar territorial e formalmente as antigas fronteiras da União Soviética. Ainda nessa perspectiva, a Ucrânia poderia ser o primeiro passo para futuras tentativas de expansão russa.

O contexto ucraniano, em específico, torna ainda mais propenso o surgimento de tais análises. Russos e ucranianos possuem estreitos laços identitários que remontam ao passado político, econômico, cultural, linguístico e religioso em comum. Na historiografia de ambos os países é atribuída à Rus Kievana, um Estado feudal do século IX, como a primeira unidade política que deu origem aos atuais Estados modernos. Nesse seguimento, a interpretação de que Putin questiona a própria existência do Estado ucraniano faz sentido dentro desse contexto e perspectiva analítica.

Em compasso com as prerrogativas encontrada em documentos oficiais como a Doutrina Militar e o Conceito de Política Externa da Rússia, nas quais está prevista a utilização das forças armadas para fora de seu território em defesa de cidadãos russos, abre-se uma possibilidade de utilização deste argumento por parte do Kremlin para justificar suas ações, como observado nas incursões russas nas regiões separatistas da Ossétia e Abecásia do Sul durante a Guerra da Geórgia em 2008, além do caso da Crimeia, já citado acima. Quando expostos todos estes elementos, é natural que se traga à tona o argumento da expansão imperialista de Vladimir Putin. Não se trata aqui de descartar por completo tal possibilidade. No entanto, até que se tenha mais detalhes e conhecimento acerca dos fatos, tais afirmações podem ser caracterizadas no máximo como especulações.

Por outro lado, pode-se analisar o conflito a partir de um olhar que leve em consideração a dimensão político-securitária, em perspectiva histórica, podendo auxiliar na compreensão das circunstâncias que explicam a guerra, ainda que sem justificá-la. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a invasão russa faz parte de um contexto maior de crescente tensão entre Moscou e o chamado “bloco ocidental”, que remonta ao processo de dissolução da União Soviética e o consequente surgimento de 15 novas repúblicas independentes em dezembro de 1991, entre elas a Federação Russa e a Ucrânia.

No contexto de fragilidade econômica, política, social e militar da Rússia nos anos 1990, em conjunto com a supremacia estadunidense e surgimento de uma dita ordem internacional liberal-unipolar, Moscou observou a contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção ao Leste Europeu. Ao longo desse processo, essa aliança militar ocidental incorporou 14 novos Estados-membros, entre eles ex-repúblicas soviéticas, como os Países Bálticos, e nações que antigamente estavam sob a esfera de influência de Moscou através do Pacto de Varsóvia, tal como a Polônia. O argumento utilizado por Putin de que o avanço de tropas ocidentais a regiões próximas à Rússia seria uma ameaça à segurança de seu país não pode ser desconsiderado, ainda que não justifique a invasão de tropas a um território de outro país sem que tenha havido qualquer ataque anterior.

De fato, a expansão da OTAN é debatida por acadêmicos, políticos e militares dos próprios países-membros desde os anos 1990. Teóricos realistas das Relações Internacionais, como Mearsheimer (2014), e o conhecido Secretário de Estado dos EUA na década de 1970, Henry Kissinger, já alertavam para a possibilidade de reação russa, ainda que advertissem para as consequências à Rússia em fazer uso de seu poderio militar para impor o status de neutralidade – ou subjugar – à Ucrânia. Ademais, o governo russo sempre deixou claro, em discursos e em documentos oficiais, ser contrário ao alargamento da aliança militar ocidental, sendo particularmente contrário a qualquer possibilidade de adesão da Ucrânia e da Geórgia. Sendo assim, desde a primeira Doutrina Militar russa pós-soviética, datada de 1993, encontra-se a crítica à expansão de blocos militares. Em 2010, a terceira edição do documento cita nominalmente a OTAN como principal ameaça à segurança do país. Logo, pode-se afirmar que a decisão russa de invadir a Ucrânia e assegurar que o país não se filie à aliança ocidental não é, no fundo, uma surpresa. Seja de forma retórica ou nos casos da Geórgia e Ucrânia, o governo russo já havia demonstrado disposição em fazer uso de seu aparato militar para reivindicar seus interesses político-securitários, mesmo que em detrimento de questões econômico-financeiras e repercussões políticas causadas pelas sanções impostas.

Em suma, a Guerra da Ucrânia suscitou o debate sobre um possível ímpeto expansionista-imperialista do governo de Vladimir Putin, que teria como objetivo restaurar – parcial ou totalmente – as fronteiras da União Soviética a partir da anexação contínua dos territórios adjacentes à Rússia. Apesar de o discurso do presidente russo ter se tornado cada mais agressivo e possua indícios de um revisionismo histórico, busquei salientar que considero mais frutífera a análise feita a partir de um contexto de percepção do governo russo de ameaça advinda de suas fronteiras ocidentais desde os anos 1990 em razão do processo de expansão da OTAN para o Leste europeu, e dos desdobramentos domésticos na política ucraniana desde os protestos na Praça Maidan, em 2013. Por essa perspectiva, o fortalecimento do aparato bélico russo, executado a partir de reformas militares em curso desde 2008, dotou o país de um instrumento de política externa para confrontação ao Ocidente e a partir da reivindicação de seus interesses político-securitários. Dessa forma, pode-se entender a agressão à Ucrânia como produto de um cálculo político do Kremlin que, dotado de confiança em seu poder militar, busca conseguir as vitórias políticas ensejadas, como a imposição do status de neutralidade da Ucrânia, o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, e da Crimeia como parte integral da Federação Russa, mesmo que isto venha a custos de pesadas sanções econômicas e isolacionismo político.

REFERÊNCIAS

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014

 

* Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br.

Imagem: Russian military weapons destroyed and seized by the Armed Forces of Ukraine. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons

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