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Onde estão as mulheres no conflito Ucrânia-Rússia? Exercendo uma curiosidade feminista na análise das Relações Internacionais

 Gabriela Aparecida de Oliveira*

Danielle Amaral Makio**

Helena Salim de Castro***

 

Desde o dia 24 de fevereiro, a Ucrânia tem sofrido com ataques russos a seu território e população. Motivações geopolíticas, econômicas, ideológicas e identitárias se entrelaçam criando um cenário complexo e incerto, cujos efeitos têm sido sentidos sobretudo pela população civil ucraniana. Até o momento de publicação deste texto, o observatório Global Conflict Tracker do Council on Foreign Relations contabilizava 2.685 vítimas civis do conflito, além de mais de 4,1 milhões de refugiados – em sua grande maioria mulheres e crianças, uma vez que homens entre 18 e 60 anos foram proibidos de deixar o país.

A maior vulnerabilidade de mulheres e crianças em cenários de guerra está longe de ser uma novidade. Ao olhar o conflito Rússia-Ucrânia a partir de uma lente feminista, é possível, entretanto, identificar os fatores políticos e econômicos que levam a uma maior exposição desse grupo a violências, além de identificar outros papéis que as mulheres ucranianas vêm desempenhando, voluntária ou involuntariamente, na guerra. Nesse sentido, nossa análise se guia por meio de uma pergunta que parece, em um primeiro momento, despretensiosa: onde estão as mulheres na guerra russo-ucraniana?

Como sugere Cynthia Enloe (2014), refletir sobre os lugares ocupados pelas mulheres na política internacional nos leva a uma análise mais precisa de vários fenômenos, tais como a guerra. Há uma literatura (ELSHTAIN, 1995; COHN, 2013; GOLDSTEIN, 2001) que se propõe a discutir os papéis desempenhados pelas mulheres nas guerras modernas e contemporâneas, em resposta às abordagens tradicionais que reduzem a guerra a uma atividade essencialmente masculina. Elshtain (2009) diz que muito do nosso imaginário sobre mulheres, homens e guerra encontra-se moldado por dois arquétipos: o das “belas almas” e a dos “guerreiros justos”. O primeiro, associado às mulheres, exalta sua suposta natureza não-beligerante e sua necessidade de ser protegida; ao passo que o segundo se refere aos homens, seres “naturalmente” propensos à guerra. Embora, em termos históricos, a maioria das mulheres tenha de fato se mantido longe dos campos de batalha, elas atuaram de outras formas, que têm sido recuperadas por meio de uma análise de suas memórias e testemunhos.

As narrativas sobre as mulheres e a guerra se desenvolveram ao ponto de incluírem mulheres soldado, pacificadoras e ativistas pelos direitos humanos, resultado dos esforços feministas[1] para preencher esses silêncios. Entretanto, na academia e em meios midiáticos, ainda predomina uma sub-representação feminina quando o assunto é a guerra. A mídia hegemônica e seus analistas de política internacional, muitos deles homens brancos privilegiados dentro da geopolítica do conhecimento[2], tendem a priorizar discussões acerca das batalhas e das negociações entre os governos envolvidos nos conflitos. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia não é diferente: as vozes femininas constituem menos de um quarto (23%) do total de especialistas, protagonistas ou fontes citadas nas notícias digitais globais. Um dos motivos para que as mulheres – principalmente aquelas que se autodeclaram feministas – sejam deixadas de lado é que elas supostamente representam interesses específicos e pouco relevantes para compreender o “quadro geral” das guerras (ENLOE, 2014).

No entanto, conforme analisa Enloe (2014, p. 6), temos muito a ganhar ao exercer uma “curiosidade de gênero” sobre a política internacional, pois é por meio dela que podemos “descobrir exatamente como este mundo opera”. E essa “descoberta” só se torna possível na medida em que investigamos o poder: quais são suas formas, quem o exerce e como alguns exercícios de poder foram camuflados ao ponto de não se parecerem com o poder” (ENLOE, 2014, pp. 8-9). Nesse sentido, uma pergunta a se fazer é: quais narrativas sobre o conflito russo-ucraniano têm ganhado legitimidade e destaque na mídia?

Em entrevista recente para o Stance Podcast em que são abordadas narrativas marginalizadas sobre o conflito Rússia-Ucrânia, Enloe (2022) diz que no início de toda guerra há uma tendência em se classificar os envolvidos nas categorias de combatente, vítima ou vilão, em uma tentativa de simplificar a realidade. Dado isso, ela identifica duas representações sobre as mulheres ucranianas que têm predominado na mídia hegemônica e ocidental: a de vítimas e a de combatentes. São categorizações simplistas que impedem uma compreensão mais ampla acerca da atuação destas mulheres e que perdem de vista o fato de muitos papéis coexistirem entre si – como no caso de mulheres combatentes que foram vítimas de abusos sexuais perpetrados por seus próprios colegas.

A imagem das mulheres como vítimas é facilmente difundida, pois elas – juntamente com as crianças – são, de fato, as mais afetadas em contextos de guerra. No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, desde o início dos ataques russos, a ONU Mulheres alerta para uma escalada de violência contra esse grupo. Segundo a Agência, mulheres e meninas têm vivenciado diversas formas de violência ao saírem ou permanecerem no país. Existem histórias de violações dirigidas a mulheres mais velhas, que encontraram dificuldade em deixar a Ucrânia ou que optaram deliberadamente por se manterem no país. Ademais, grupos ucranianos de direitos humanos têm denunciado que tropas russas estariam utilizando do estupro de mulheres como “arma de guerra”, e grupos feministas têm explicitado o caráter misógino de discursos de Vladmir Putin a respeito da Ucrânia, os quais estariam reproduzindo a “cultura do estupro”.

A discussão do estupro como arma de guerra[3] impulsiona análises sobre o emprego simbólico-étnico da violência sexual. Esse tipo de violação, dirigido majoritariamente às mulheres, serviria como uma forma, direta e indireta, de subjugar e humilhar determinados grupos sociais, culturais e/ou étnicos. A violência contra as mulheres, assim, além de afetá-las individualmente, gera impactos nas comunidades como um todo, influindo sobre sua coesão social, segurança e resiliência.

No entanto, como ressalta Meger (2016), a perpetração de práticas de violência sexual e outras violências baseadas em gênero muitas vezes está vinculada a dinâmicas e interesses político-econômicos – a uma economia política que ronda o conflito. No caso aqui analisado, nos chamam atenção as denúncias de que mulheres e crianças que cruzam as fronteiras em busca de refúgio estariam vulneráveis a abusos e a serem vítimas de tráfico. Algumas denúncias apontam para casos de mulheres abordadas por grupos criminosos envolvidos com o tráfico de pessoas. Eles tentam aliciá-las para a prostituição ou para trabalhos forçados através de um discurso em que prometem abrigo e segurança, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade de seus alvos para obterem recursos econômicos. Defensores de direitos humanos, que estão trabalhando para que ucranianas e ucranianos se desloquem dos epicentros do conflito, têm relatado a atuação desses criminosos principalmente em estações de trem.

Outro exemplo que lança luz para essa “economia da violência” é o caso, denunciado em reportagem de uma revista feminista, da existência de uma “pornificação” da guerra. Imagens de violências sexuais contra mulheres e crianças traficadas são exibidas em websites mantidos por uma indústria pornográfica que tem lucrado com as visualizações. Nesse sentido, os casos de violência sexual devem ser investigados como práticas pertencentes a uma dinâmica político-econômica que conecta indivíduos e interesses transnacionais. É importante ressaltar que essas violências, por sua vez, não necessariamente acabam com o encerramento formal da guerra.

Em tempo, a segunda imagem das mulheres ucranianas que impera na mídia é a das combatentes. Elas representam cerca de 15% do efetivo militar do país, que tem um dos maiores exércitos da Europa. Milhares delas têm se alistado para participar da guerra incentivadas por discursos do presidente Volodymyr Zelensky. Nas duas primeiras semanas do conflito, várias imagens e vídeos de mulheres treinando para o combate e se opondo a soldados russos armados foram divulgadas nas redes sociais. No dia 15 de março, a CNN reportou que, depois de deixar seus pais e filhos na fronteira com a Polônia, algumas delas voltaram ao país para lutar. São comuns os relatos que exaltam a bravura, a independência e a determinação das ucranianas, vistas como um símbolo de resistência frente a uma Rússia opressora.

A narrativa sobre mulheres ucranianas extremamente independentes foi construída historicamente. Com base em fatores geográficos, tenta-se explicar o temperamento “distinto” destas mulheres no folclore do país. Assim, cria-se um discurso no qual é comum a figura da mulher solteira, quase sempre viúva, que pode sobreviver e prosperar sem um homem. Não obstante a repercussão “positiva” da imagem da mulher ucraniana combatente, ela continua sendo secundária. Como afirmou uma ucraniana à CNN, “as duas coisas mais importantes que uma mulher ucraniana precisa saber é como fazer borscht [sopa de beterraba] e coquetéis molotov”. Ou seja, ela ainda deve lidar com expectativas de gênero que a restringem a determinados papéis na guerra, tais como cozinhar e produzir explosivos para os homens, esses sim, vistos como “heróis” da nação. Se, por um lado, há mulheres que escolhem deliberadamente participar dos combates, outras têm encontrado dificuldades em se desvencilhar do serviço militar e sair do país: é o caso de mulheres trans que ainda não são reconhecidas legalmente pelo gênero feminino por causa de uma série de entraves burocráticos do governo que atrasam esse processo.

Para além da presença das mulheres em situações de vulnerabilidade e como combatentes no conflito, elas também estão trabalhando como voluntárias, serviço no qual são maioria, e agentes de fronteira, gerenciando o fluxo de pessoas e atuando na recepção dos refugiados – como ocorre na Moldávia. Da mesma maneira, muitas estão ainda dentro da Ucrânia prestando serviços humanitários como médicas e psicólogas, e nas linhas de frente dos confrontos para proteger os civis.

Ademais, as mulheres têm desempenhado um papel crucial para a denúncia de crimes de guerra à comunidade internacional e aos órgãos do governo ucraniano. Um coletivo de mais de 120 mulheres ucranianas chamado Dattalion, juntamente com mulheres não organizadas, têm tirado fotos e gravado vídeos das áreas de tensão para capturar execuções e bombardeios, divulgando as imagens em um banco de dados para amplo acesso. Na mesma linha, grupos feministas na Ucrânia, na Rússia, em Belarus e outros países têm feito campanhas anti-guerra nas ruas . Feministas russas auto-organizadas, além de pessoas LGBTQIA+, por exemplo, têm protestado através de pôsteres, performances e grafites em locais públicos, e usado o Telegram para mobilizar apoiadores. Contudo, elas têm sofrido represálias e sido detidas pelo governo russo. Segundo a Anistia Internacional, uma delas pode ficar na prisão por até dez anos somente por ter colocado cartazes com slogans anti-guerra em supermercados.

Por fim, outro papel pouco visível é o das mulheres voluntárias que costuram uniformes militares, redes que são usadas para camuflar o equipamento militar ucraniano nas imagens de satélite russas e capas verdes para cobrir snipers. Os pacotes com as encomendas são enviados a soldados ucranianos junto de doces e pó de café como uma forma de demonstrar seu apoio à “luta pela liberdade” do país. Assim, podemos identificar posicionamentos de mulheres que vão do “direito de lutar” – caso das combatentes ucranianas – à “abominação da guerra” – feministas antibelicistas -, sendo que ambos podem ser vistos como posicionamentos feministas. Apesar de parecer contraditório, há mulheres que podem sustentar essas duas posições ao mesmo tempo, como afirma Elshtain (1995).

Existem, portanto, diversas narrativas construídas sobre as mulheres, e homens, na guerra. Quando divulgadas pela grande mídia, elas são categorizadas como menos importantes e tendem a reproduzir estereótipos de gênero. A partir disso, nos perguntamos: Quem tem (re)produzido essas narrativas? E tendo em vista quais objetivos? O aprofundamento nessas questões, bem como em outras reflexões acerca dos diversos aspectos político-econômicos em torno da violência específica sobre as mulheres, como o estupro e o tráfico para a prostituição forçada, permite exercemos uma “curiosidade de gênero” sobre o conflito russo-ucraniano – e outros cenários de guerra e conflito armado. Essa “curiosidade” não tem um fim em si mesma, mas contribui para romper com os estereótipos sobre masculinidades e feminilidades e investigar os elementos que estruturam a violência. As mulheres estão nos diversos espaços e posições, sendo impactadas de formas particulares pela guerra. Assim, elas também devem ser chamadas para pensar nas possibilidades de encerramento dessa guerra e, principalmente, de enfrentamento das violências, que muitas vezes podem se prolongar mesmo após a paz acordada.

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Ilustrações de mulheres. Por: UN Women.

Referências

COHN, Carol (Ed.). Women and wars: Contested histories, uncertain futures. John Wiley & Sons, 2013.

ELSHTAIN, Jean Bethke. On beautiful souls, just warriors and feminist consciousness. In: Women’s Studies International Forum. Pergamon, 1982. p. 341-348.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Women and war. University of Chicago Press, 1995.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases. In: Bananas, Beaches and Bases. University of California Press, 2014.

GOLDSTEIN, Joshua S. War and gender: How gender shapes the war system and vice versa. Cambridge University Press, 2003.

MEGER, Sara. Rape Loot Pillage. The Political Economy of Sexual Violence in Armed Conflict. New York: Oxford University Press, 2016. ISBN: 9780190277666

MIGNOLO, Walter D. A geopolítica do conhecimento e a diferença colonial. Revista lusófona de educação, v. 48, n. 48, 2020. 

[1] O discurso feminista sobre a emancipação das mulheres inspirou, por exemplo, as últimas resoluções da Agenda Mulheres, Paz e Segurança das Nações Unidas (como a Resolução 2122, de 2013), que discorrem sobre o potencial de agência das mulheres em conflitos. Se nas primeiras resolução elas eram vistas como tão e somente vítimas a serem protegidas, elas passam a ser gradualmente concebidas como agentes cruciais para o processo de recuperação e manutenção da paz de suas comunidades no pós-conflito. No entanto, a Agenda continua a relacionar, ainda que não explicitamente, as mulheres à paz e os homens à guerra.

[2] A “geopolítica do conhecimento” é uma expressão usada por Walter Mignolo (2020) para refletir sobre as disparidades de poder existentes entre os produtores de conhecimento do Norte e do Sul global. Serve para denunciar o caráter eurocêntrico da ciência que se pretende “neutra” e “universal”, e que promove a marginalização de outros saberes, dentre eles, aqueles de mulheres, pessoas não-brancas e LGBTQIA+s.

[3] A discussão do “estupro como uma arma de guerra”, já trabalhada por autoras feministas, ganhou destaque na política e no direito internacional nos anos 1990 – no contexto das discussões do Tribunais Penais para a antiga Iusgoslávia e Ruanda – e viria a superar as reflexões desse tipo de violência como um produto inevitável dos conflitos. Como consequência, os crimes de violência sexual, cometidos em cenários de conflito e guerra, foram incluídos, posteriormente, no Estatuto de Roma, que constitui as bases legais do Tribunal Penal Internacional (MEGER, 2016).

Geopolítica e identidade: dimensões do conflito russo-ucraniano

Danielle Amaral Makio*

     Gabriela Aparecida de Oliveira**

Helena Salim de Castro***

Em fevereiro de 2022, Vladimir Putin deu início a um conflito militar na Ucrânia. A decisão do presidente vem anos após a anexação da Crimeia em 2014, ano em que a soberania do Estado ucraniano também foi colocada em xeque pelo Kremlin. Agora, Moscou volta a marchar sobre solo ucraniano, alegando, inicialmente, a necessidade de enviar apoio tático às regiões separatistas do leste, que, segundo o presidente russo, estariam sob intenso ataque de Kyiv, assim como a necessidade de “desnazificar” o país vizinho. O conflito atual chama atenção por sua rápida escalada e pela simultânea guerra de narrativas entre os atores envolvidos. Se de início os objetivos russos pareciam ser claros e geograficamente localizados, agora, semanas após o estopim dos embates, as justificativas iniciais de Putin já não parecem suficientes para compreender os motivadores que levaram a Rússia a iniciar e expandir sua operação sobre todo o território da Ucrânia. A disputa discursiva que se estabelece sobretudo entre Rússia e Ocidente sugere que o universo de razões que explica a guerra que agora se desenrola é muito mais amplo do que afirma o Kremlin. Para proporcionar um debate mais informado acerca das muitas dimensões do conflito russo-ucraniano, buscaremos responder ao seguinte questionamento: quais são as razões que justificam a decisão de Putin pela guerra?

A posição geográfica estratégica da Ucrânia e a localização da base militar russa de Sebastopol justificam o interesse militar de Putin sobre o país, que permite o acesso russo a mares quentes e à Europa ocidental. Além disso, a Ucrânia é hoje o principal local de passagem de dutos que conectam a produção de Moscou ao seu maior consumidor, a União Europeia. Ademais, os laços históricos compartilhados por ambos os países envolvidos na guerra atual são também usados pelo Kremlin como elemento discursivo para justificar a invasão. Nesse contexto, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a manutenção dos separatismos ucranianos no leste são recorrentemente usados por Moscou para justificar suas ações militares. À luz destas e de outras questões, a opção russa pelo atual conflito pode ser compreendida por meio  de um viés geopolítico/econômico e também a partir de um ponto de vista ideológico/identitário (LAURELLE, 2019; TOAL, 2017). 

Em 2014, temendo que o novo governo ucraniano pró-Ocidente pudesse aprofundar políticas discriminatórias que prejudicassem a livre expressão étnica e cultural das populações russas, e em vista da anexação da Crimeia, movimentos separatistas se mobilizaram em Donbass. É neste contexto que surgem as repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, as quais, discursivamente apoiadas por Moscou, lutam por secessão em relação à Ucrânia desde então. A partir disso, o fracasso parcial dos acordos de Minsk e as recorrentes denúncias de quebra do cessar-fogo por parte dos separatistas e de Kyiv impuseram novos desafios ao compêndio e permitiram a manutenção dos irredentismos que viriam a justificar a invasão russa (KUBICEK, 2008).

A resposta de Lugansk e Donetsk à eleição de um governo pró-Ocidente na Ucrânia em 2014 tem, ainda, relações com outra questão central para o entendimento do atual conflito que se estende entre Moscou e Kyiv: o papel do Ocidente. A deposição de Viktor Yanukovich, político pró-Rússia, e a reorientação da política nacional a Oeste trouxeram à tona o aumento da influência ocidental sobre a Ucrânia e sobre todo o exterior próximo russo. O interesse ucraniano em integrar a União Europeia e a sinalização estadunidense acerca de uma possível integração do país à OTAN, nesse ínterim, ressoaram nos recentes discursos de Vladimir Putin acerca da expansão irrestrita da aliança ocidental. Em diversos momentos, o presidente russo reiterou receio acerca da aproximação do Ocidente, que desde o fim da URSS vem integrando cada vez mais países do leste e centro europeus à sua zona de influência, cerceando a Rússia do ponto de vista geopolítico. 

Uma possível adesão da Ucrânia aos blocos ocidentais aqui destacados representa uma ameaça ainda mais séria para a Rússia tendo em vista a quantidade de dutos russos que atravessam o território ucraniano e a posição geográfica do país, que não somente representa a “entrada” para a Europa, mas também dá acesso ao Mar Negro. Dessa maneira, a expansão das operações militares russas para além do leste ucraniano é, para Vladimir Putin, uma opção estratégica por conta da relevância do território ucraniano em sua totalidade. Além disso, uma presença russa mais ampla concede maior influência do país sobre o futuro da política ucraniana na medida em que oferece ao Kremlin maior margem para fazer uma série de exigências a Volodomyr Zelensky, tais quais: (i) a garantia de que a Ucrânia não irá aderir à OTAN; e (ii) a desmilitarização da Ucrânia (TOAL, 2017).

Outra característica que distingue o lugar da Ucrânia para a Rússia diz respeito à sua posição na formação da identidade russa atual. Ao longo das mais de duas décadas na liderança do Kremlin, Vladimir Putin alterou pontos-chave na construção da narrativa política que embasa suas decisões no comando russo. Destes, dois são especialmente importantes para que possamos compreender o conflito atual: (i) a oposição do Ocidente; e (ii) a noção de “mundo russo/eslavo”. O primeiro diz respeito à rivalização com atores como Estados Unidos e União Europeia. Ainda que nos primeiros anos na presidência Putin tenha tentado acomodar a Rússia ao mundo ocidental, sua abordagem progressivamente deu lugar a um discurso de alterização do Ocidente, que passa a ser considerado a ameaça absoluta à segurança ontológica russa. Assim, eventos como a expansão da OTAN em direção à fronteira russo-ucraniana tornam-se especialmente preocupantes e ganham novas dimensões em meio à postura anti-ocidental promovida por Moscou (SECCHES; BERNARDES; ROCHA, 2021).

Junto da rivalidade em relação ao Ocidente, a atual identidade russa promovida oficialmente conta com uma interpretação muito particular de povo e território. Nesse contexto, Putin tem um apelo muito grande aos russos étnicos que não habitam os limites territoriais de seu país e aos povos eslavos. Segundo o discurso oficial de Moscou, é dever da Rússia prestar ajuda a todas essas comunidades, as quais, segundo o comando do Kremlin, são parte da nação e do Estado  russos. Considerando a composição étnica da Ucrânia, tal abordagem ideológica/estatal reitera o local de destaque da Ucrânia na política moscovita. Este fato é ainda corroborado pela narrativa histórica de Putin, que concede grande importância ao episódio do nascimento de ambos os Estados, que partilham um mito fundador único que remonta à Rus Kievana do século VIII, primeira formação política de povos eslavos.

A complexidade do conflito russo-ucraniano em curso reside na sobreposição de fatores geopolíticos e identitários. Se por um lado a Rússia não está disposta a ceder sua influência sobre a Ucrânia por conta da localização e da relevância econômica do país; por outro, Putin também depende do vizinho para legitimar a identidade que busca performar na comunidade de Estados. A incursão sobre o território ucraniano, nesse contexto, permite ao Kremlin não somente corroborar a antagonização do Ocidente, mas, também, reiterar seu papel de grande protetor do povo russo e afirmar a posição da Rússia como um importante agente decisor na política internacional. O entrelaçamento de fatores e interesses em jogo dificulta o sucesso das diversas tentativas de negociação e, enquanto ambos os países não acordam um fim para a guerra, observamos a escalada dos conflitos e, consequentemente, da violência contra os civis. Nesse contexto, as reportagens sobre centenas de corpos pelas ruas de Bucha e do recente ataque de mísseis russos em uma estação ferroviária no leste da Ucrânia evidenciam o lado mais terrível da guerra, que acomete a vida de centenas de civis e impulsiona um cenário de violência e violações de direito que é atravessado por questões raciais e de gênero. 

 

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Bandeiras da Rússia e da Ucrânia, por iStock.

Referências 

KUBICEK, Paul. The History of Ukraine. Westport: Greenwood Publishing Group, 2008.

LAURELLE, Marlene. Russian Nationalism: Imaginaries, Doctrines, and Political Battlefields. New York: Routledge, 2019.

SECCHES, Daniela Vieira; BERNARDES, Marina Nunes; ROCHA, Pedro Diniz. A Construção do Pensamento sobre o Internacional na Rússia: identidades, projetos político-pragmáticos e o Ocidente. Carta Internacional: Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021.

TOAL, Gerard. Near Abroad: Putin, the West, and the contest over Ukraine and the Caucasus. New York: Oxford University Press, 2017.

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: redes e desinformação (Parte 3)      

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

As mídias sociais têm agido de forma a complementar, potencializar e mesmo capitanear os processos de desinformação. Nesse caso, esse expediente tem sido utilizado tanto pela Ucrânia como pela Rússia, que busca veicular suas justificativas para a guerra e perspectivas nacionalistas pelas redes – dado o bloqueio de operações de portais e canais russos como a RT e o Sputnik. As principais linhas narrativas dos meios russos e das informações circuladas nas redes sociais visam sustentar os princípios políticos da invasão, reforçando os argumentos de des-nazificação da Ucrânia, descrédito das ações da OTAN e, fundamentalmente, de minimização dos impactos desse conflito.

Memes Compartilhados pela conta oficial da Ucrânia no Twitter

Essa guerra informacional tem sido mobilizada também a partir das redes sociais e serviços de trocas de mensagens. Particularmente, a produção de memes, a alteração direta de imagens e vídeos visa não apenas desinformar ou informar, mas também, por serem expressões culturais que difundem uma sensação coletiva, tem um potencial de convencimento pela sua dimensão abstrata. Sua divulgação e circulação tem estado na base da estratégia ocidental, mas principalmente nas estratégias de Rússia e Ucrânia – este último, em específico, fazendo compartilhamentos a partir de contas oficiais, como pode ser apreciado acima. Numa delas, inclusive, a estratégia de demonização utilizada na Guerra do Golfo ao aproximar Sadam de Hitler é novamente mobilizada para enquadrar Putin enquanto uma liderança maligna. O governo ucraniano, ainda, tanto em sua conta oficial de Twitter, quanto a partir da conta de Zelentsky, faz divulgações sobre os movimentos russos – como quando os russos chegaram em Chernobyl e Zelentsky alertou sobre a possibilidade de um conflito ali gerar consequências para toda Europa.

Em geral, as ações da Rússia e da Ucrânia se caracterizam por difundirem nas redes sociais um conjunto de negações de fatos, de reações a eventos, e divulgação de informações e desinformações, fotos e memes que se articulam com os objetivos gerais da guerra. No entanto, enquanto as ações ucranianas claramente se destinam a um público maior que apenas o interno, dado seu amplo compartilhamento por pessoas de outros países europeus e dos EUA, no caso da Rússia seu raio de ação se concentra sobre o público interno e mesmo sobre o ucraniano, e não visa engajar o público internacional, objetivando exclusivamente angariar o suporte interno necessário.

As técnicas têm sido sofisticadas e contam com a geração de perfis e discursos falsos para a difusão de discursos pró-Rússia. Nesse caso específico, um personagem falso teria sido criado pela Rússia, Vladimir Bondarenko, a partir de sistemas de Inteligência Artificial, um deepfake orientado a difamar a Ucrânia e sua proximidade com o Ocidente. Em geral, esses perfis repostam e comentam em artigos muito breves, imagens e memes, formando os conhecidos enxames de informação, como aponta Byung-Chul Han. Com isso, se governa a tormenta de informações na internet que incluem informações absurdas como: “Putin está salvando a Ucrânia dos Nazistas”. Essa narrativa tem se articulado com uma campanha interna da Rússia em suporte à invasão, que inclui a promoção de vídeos e um espírito nacionalista que se manifesta na simbologia da letra “Z”, originalmente pintada nos tanques russos, significando “Za pobedy” (para a vitória), mas que tem sido apropriada pelo governo para enfatizar, em inglês, a ideia de “DemilitariZe” e “De-naZify” (desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia). Da mesma forma como nas estratégias “ocidentais”, essa campanha se dá em um misto de entretenimento e jornalismo, visando cativar o público, através de campanhas emocionadas e nacionalistas na televisão e nas redes sociais.

No Telegram – em especial nos canais de grupos pró-Rússia, como o “Donbass Insider” e o “Bellum Acta” – é notória a profusão de vídeos de sistemas de armas, disparo de mísseis, de deslocamento de tropas, numa clara tentativa de cativar o público interno em favor do conflito e demonstrar capacidade coercitiva, gerando frustração e decepção nos adversários. Em muitos desses canais, a utilização de memes e informações falsas visam conferir apoio interno à invasão e enaltecer a liderança de Putin, numa clara evidência que tais canais seriam controlados de forma centralizada por Moscou. Mais do que isso, a circulação de imagens desse porte por parte da Rússia tem buscado criar, como apontam especialistas, a ideia de que a Ucrânia não tem sido capaz de revidar e conter os ataques (o que reforça a moral dos combatentes e da população em favor da guerra), e que a atual invasão, na verdade, é um contínuo ou escalonamento da violência iniciada em 2014 – que tem como fim amenizar o choque causado pela atual invasão, principalmente em relação ao público interno.

Essa estratégia parece estar surtindo efeito, apesar dos inúmeros bloqueios que as Big Techs têm feito de perfis e informações circuladas pela Rússia nas redes sociais. De acordo com a agência de pesquisas Levada, a invasão da Ucrânia conta com uma aprovação de 81% do público russo, sendo que 35% deste público sequer prestaria atenção a esse conflito. Como mostra essa pesquisa, boa parte das razões para esse apoio estaria relacionada justamente à vinculação do sentimento de insegurança estatal com o “cercamento” da OTAN sobre a Rússia, a um sentimento de ameaça existencial junto à população. Essa sensação não é exclusiva dos russos, mas partilhada entre seus aliados, como no caso dos cidadãos chineses, que têm demonstrado apoio à invasão Russa – graças à ampla difusão de informações por influencers na rede Douiyn, o Tik Tok do país – levando ao consenso de que as movimentações da OTAN são incautas e de cunho imperialista.

Nesse sentido, vale destacar que não é inédita a utilização dos meios para a produção de consensos ou dissensos em um conflito, mas nesse atual conflito é vertente como imaginários histórico-políticos, desinformação e memes se conformam como complexos mecanismos capazes de produzir efeitos de realidade. Sua articulação auxilia na produção de simulacros, ora sustentando uma imagem de ineditismo e distanciamento da guerra do espaço europeu (e do ocidente civilizado) – recompondo as linhas narrativas colonialistas, que justificam ou deslegitimam a barbárie – ora compondo uma imagem de vitória inabalável para a mobilização interna do público russo.

Conforme a guerra de narrativas se intensifica, e jogos de imagem e vídeo passam a se tornar as únicas formas de se acessar o conflito, as linhas entre realidade e ficção se turvam e obrigam os olhares estratégicos a assumirem, também, um olhar crítico sobre tudo aquilo que se produz em termos informacionais na guerra. Isso porque a ação midiática, assim como o enxame informacional nas mídias sociais, operam de forma a fundir notícia e entretenimento a partir de imagens, memes e vinhetas, mobilizando uma dimensão emocional e afetiva na difusão de informações.

A leitura semiótica, a abordagem crítica do discurso, dos condicionantes históricos e da produção histórica das narrativas deixa de ser algo acessório, e se torna determinante para a compreensão das estratégias e disputas num conflito. Da televisão ao vivo à produção de realidades imediatas nas redes, o que se imagina é que os meios são a guerra em seu estado subliminar. No entanto, se não debatidos de forma crítica, os meios de comunicação podem ser condicionados como mecanismos que autorizam e legitimam o prolongamento do sofrimento, mais do que auxiliam o seu fim.

 

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: a grande mídia e as três linhas narrativas sobre o conflito (Parte 2)      

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

Neste atual conflito entre Rússia e Ucrânia, ainda que os EUA e OTAN não estejam diretamente engajados na violência do conflito – salvo pela disposição de armamentos –, é notável o modo como as construções midiáticas se assemelham às das coberturas do passado. As linhas mestras da narrativa ocidental se tornaram dominantes e se sobrepõem às frágeis tentativas de manipulação informacional direta do governo russo, que acabam isoladas e incapazes de produzir consensos fora do seu território. Afirmar que a guerra atual segue uma linha narrativa organizada pelo Ocidente não significa se mostrar favorável à invasão, ou acatar uma surreal legitimidade dessa violência organizada e de seus objetivos. Mas implica em observar como a economia dá atenção para este conflito ao desautorizar a ação russa a partir de pressupostos extremamente controversos, que afirmam um lugar de civilização e superioridade – que, por fim, são constructos comumente mobilizados em outros conflitos nos quais os países “ocidentais” estão embrenhados, para autorizar formas de intervenção e violência que se assemelham em barbárie (que como nos lembra Achilles Mbembe constituem o corpo noturno da democracia pós Guerra Fria).

Assim sendo, entendo que a cobertura midiática deste conflito pelas empresas de jornalismo americanas e europeias – e mesmo o controle sobre o enxame informacional nas redes – parecem figurar como linhas auxiliares da estratégia da OTAN sobre o conflito: negação de condicionantes históricos, deslegitimação do conflito, e estímulo à resistência independente ucraniana. Isso se manifesta através de estímulos à aceleração das decisões (com a profusão de imagens de destruições causadas pelos russos), bem como de agenda setting, legitimando o fornecimento de armamentos à Ucrânia, bem como colocando em evidência as mortes de civis para subsidiar pedidos de cessar fogo e de proteção humanitária. Nesse sentido, identifico, a priori, 3 linhas narrativas que parecem orientar interpretação e condenação da guerra a partir das redes de informação e desinformação: a) Excepcionalidade e sacralização do espaço europeu; b) Individualização e confusão estratégica; c) Disputas informacionais pela quantidade de mortos.

a) Excepcionalidade e sacralização do espaço europeu

É notório como a linha narrativa das reportagens, artigos e análises sobre a guerra tem como foco a sua deslegitimação com base na omissão de questões relativas à sua dimensão político-estratégica da guerra – isto é, ignorando as raízes históricas do conflito e a perene estabilidade europeia –, destacando uma suposta ruptura da paz no espaço europeu desde a Segunda Guerra Mundial. 

Na análise de Nic Robertson, da CNN, a Europa vinha a meio século experimentando uma paz duradoura, construída a partir da solidez e robustez das suas instituições políticas e monetárias, e esta seria a primeira vez desde 1939 que o espectro da guerra volta ao espaço europeu, descrito como civilizado, remontando uma ideia de invasões bárbaras, sem história ou contexto. Em primeiro lugar, os meios operam um argumento que restringe o espaço europeu ao que seria a Europa “ocidental”, pacífica, e que convenientemente, agora, se estende até a Ucrânia para produzir o argumento de violação da paz. Com isso, são descartadas todas as tensões militares, genocídios e bombardeios ao longo dos anos 1990 resultantes do esfacelamento da Iugoslávia, e se constrói uma imagem de ineditismo de conflito no continente. Em um segundo momento, tal argumento ignora que desde meados da década de 70, ainda que a Europa “ocidental” não tenha sido assolada por operações convencionais de guerra, ela foi berço de uma série de atentados terroristas contra a população, infraestruturas e autoridades produzidas pelos próprios Europeus do grupo Baader Meinhoff, do IRA e do ETA – que em geral questionavam fronteiras, formas de controle político, etc. 

Em sua capa do mês de março, a Time Magazine argumentou criticamente sobre o “retorno da história”, em uma alusão à expressão “fim da História” de Fukuyama, com a ascensão do capitalismo liberal e o fim da URSS. Ainda que de forma crítica, é fundamental destacar que a história nunca saiu da mesa para aqueles que vivem às margens da ordem neoliberal: ela se faz presente nos bombardeios em Belgrado, na Líbia e em Gaza, nos golpes na América Latina, e nas incursões policialescas nos morros e favelas, assim como na disposição de sistemas de vigilância e controle nas periferias e fronteiras estadunidenses, europeias, chinesas e russas. Essa história não é registrada ao vivo, mas como nota de rodapé da política internacional.

Essa narrativa acerca da excepcionalidade acaba tendo uma função aceleracionista, que legitima manobras militares, gastos e transferências de armas sob a justificativa de ameaça à estabilidade europeia. Tal narrativa é determinante para compor os discursos de parlamentares europeus e estadunidenses para a autorização de sanções contra a Rússia. De acordo com Simon Tisdal, essa narrativa presta suporte a uma ação militar mais engajada das forças da OTAN, a partir da percepção de uma inédita e brutal ameaça à civilização ocidental. Por um lado, apesar dessa narrativa favorecer a aceleração de mecanismos de contenção da ação russa, ela acaba por o fazer ignorando os determinantes históricos, militares e estratégicos que levaram ao conflito, e coloca a Europa num lugar de estabilidade civilizacional, perturbada por constantes barbarismos – uma narrativa característica de períodos anteriores que reforçava medidas duras contra imigrantes, evocando os casos de atentados terroristas (numa dualidade barbárie x civilização). 

b) Individualizacão e confusão estratégica

Um outro caminho adotado pelos conglomerados midiáticos tem sido o de contornar as importantes discussões relativas às dimensões político-estratégicas da guerra, atribuindo os dilemas e decisões aos indivíduos envolvidos no conflito, particularmente Vladmir Putin e Volodmyr Zelentsky. Essa individualização novamente ignora as razões históricas e militares do conflito, reduzindo as decisões de guerra, de comando e estratégia aos desígnios individuais dos presidentes.

Isso ocorre de modo mais sutil. A todo momento reportagens como a de Lucy Burton atribuem a guerra a uma decisão individual, quase discricionária de Putin: “Putin ordenou a invasão”;  “Putin mobilizou o exército”, e assim por diante. Um destaque foi dado à declaração do presidente estadunidense, Joe Biden, que classificara Putin como criminoso de guerra, e não a Rússia – ignorando que as decisões de guerra, militares e estratégicas pertencem a um corpo burocrático e não a governantes. Reduzir essa “razão de Estado” a decisões individuais é operar um argumento que corrobora com a ideia de barbárie e arbitrariedade (ainda que Putin, de fato, seja um líder autoritário), remetendo as decisões político-estratégicas a uma situação de instabilidade e desequilíbrio emocional das lideranças: o que novamente ignora as questões relativas aos avanços da OTAN, e que dificulta o debate sobre efetivos processos de negociação.

Em uma reportagem da CNN estadunidense, às vésperas do discurso State of the Union, inúmeros comentaristas buscaram descrever Putin como instável, nervoso e titubeante em seus primeiros discursos de guerra, algo que supostamente refletiria sobre as decisões tático-estratégicas supostamente equivocadas. Segundo diversas reportagens como as da Vox Magazine e do El País, os avanços russos estariam sendo comprometidos devido a características de contratação e formação dos soldados, por falta de combustível nos tanques, e tudo isso estaria alinhado a uma decisão individual de Putin ao ingressar no conflito.

Essa imagem de confusão e arbitrariedade forma uma linha auxiliar à estratégia dos EUA e OTAN, de modo a acelerar decisões políticas e estimular a opinião pública na direção de um êxito possível em caso de uma resistência militar ucraniana, legitimando a transferência de armamentos e medidas excepcionais para auxiliar o país no conflito. Nesse sentido, de acordo com uma pesquisa promovida pela Gallup, em torno de 73% dos cidadãos estadunidenses simpatizam com a Ucrânia, e dois terços dos americanos acreditam que os EUA devem manter seu compromisso com a OTAN.

Um outro lado dessa linha narrativa é a construção da ideia de resistência heroica de Zelentsky. O presidente ucraniano já tem sua trajetória política resultante de uma confusão entre ficção e realidade, ao protagonizar uma série – “Servo do Povo”, a qual, inclusive, o Netflix voltou a exibir – às vésperas da eleição, na qual ele se tornava presidente do país (livrando-o da corrupção e buscando integrá-lo à União Europeia). Não há um só dia em que seus discursos não sejam reproduzidos e analisados pela grande mídia, destacando sua perspicácia e enquadramento da OTAN para seu engajamento no conflito – como quando ele se direcionou ao parlamento dos países europeus, da União Europeia, e dos EUA, em cada um utilizando um artifício discursivo; ou quando o presidente apareceu de surpresa na transmissão do Grammy. Com frequência, no entanto, os meios passaram a enaltecer a decisão do presidente em comandar uma resistência popular em Kiev, conclamando civis a se engajarem no conflito – algo que para muitos analistas seria extremamente arriscado. 

Essas construções forçam uma dialética entre um herói esquemático e um autocrata ensandecido, um movimento que, novamente, descarta o debate histórico estratégico, e força um envolvimento emocional com a disputa. Nessa dinâmica, mesmo em uma situação de profunda desvantagem militar entre Ucrânia e Rússia, constrói-se uma hipótese de resistência possível – pela contraditória via de engajamento civil no conflito – ante uma confusão estratégica russa. Com isso, o apoio popular ao armamentismo da Ucrânia e ao estabelecimento de uma zona de exclusão aérea vem crescendo entre os países da OTAN. 

c) Corpos e Imagens

Uma vertente comum em todas as guerras, e que geralmente produz um efeito não apenas sobre a população em geral, mas sobre a moral dos combatentes também, é a disputa pela quantidade de mortos (civis e combatentes). Potencialmente, um número elevado de mortes de combatentes de um lado tende a afetar a moral desta tropa, a qual se questiona sobre a eficácia da estratégia e o sentido do conflito – portanto aumentando a fricção de guerra, como debate Clausewitz. Esse efeito também é sentido pela população, que paulatinamente retira seu apoio sobre a empreitada militar, algo que foi verificado nos EUA durante a Guerra do Vietnã, principalmente a partir da ação de jornalistas independentes, que revelavam a quantidade de mortes de combatentes e as condições precárias no campo de batalha[1]. Quando a questão de mortes civis é trazida à tona, isso tem um efeito ainda mais intenso sobre a população, que passa a pressionar por um cessar fogo e medidas humanitárias.

Nesse caso, a ação midiática tem a função de pressionar o estabelecimento de uma agenda humanitária e de desmobilizar o apoio popular aos conflitos – algo extremamente positivo. No entanto, em diversas ocasiões, o não registro adequado de mortes de civis e combatentes tem como função a produção de um conflito Tragedy-Free, ou seja, sanitarizado, supostamente cirúrgico e, portanto, legítimo, como aponta Der Derian em sua teoria da Virtuous War. O autor entende que os conflitos nos quais EUA e OTAN se inseriram nos últimos anos contaram com uma ação midiática que buscava inicialmente engajar a sociedade e, ao mesmo tempo, tolerar os abusos estadunidenses contra civis, além das práticas de tortura em prisões militares – ora escondendo as mortes de civis provocadas por sua incursão, ora assumindo discurso oficialista de “efeito colateral”.

No caso do atual conflito, verifica-se uma crescente disputa informacional a respeito da quantidade de mortos que envolve três diferentes atores, a Ucrânia, a Rússia e o grupo formado por EUA/OTAN/ONU, em três categorias diferentes “Mortes Civis”, “Mortes de Combatentes Russos” e Mortes de Combatentes Ucranianos”. Enquanto o governo da Ucrânia estima em torno de 7 mil mortos civis, dados das Nações Unidas confirmam a morte de pouco mais de 2 mil civis, enquanto o governo russo não confirma nenhuma dessas mortes. No que tange à morte de combatentes ucranianos, os EUA estimam em torno de 4 mil mortos, algo confirmado pelo governo ucraniano. Por fim, no que tange a morte de combatentes russos, os dados são muito discrepantes: as estimativas da OTAN são de mais de 15 mil mortos, enquanto as do governo russo são de menos de 1400 mortos[2]. Tamanha discrepância em relação às mortes civis e de combatentes russos revela as estratégias das partes envolvidas em minimizar seus erros estratégicos e maximizar seus êxitos. 

No entanto, a linha dominante da narrativa midiática tem sido a de evitar a relativização dos números (ou seja, essa disputa discrepante que se constrói), ora se apoiando nas estimativas mais conservadoras, ora se apoiando nas estimativas mais amplas. No entanto, com o anúncio de um elevado número de mortes civis na cidade de Bucha – e a proliferação de inúmeras imagens e fotos da catástrofe humanitária – o argumento principal do governo Zelentsky tem sido de um genocídio por parte dos russos, algo que já é tomado como certo em algumas análises e publicações.  Ainda que quaisquer mortes civis devam ser condenadas em um conflito, e suas condições investigadas para a identificação de culpados, há um salto significativo para uma situação de genocídio, e a urgente associação das imagens e narrativas nesse sentido tem um enorme impacto não apenas sobre o conflito, mas reforça ainda mais as tensões entre os países.

Ainda, a produção de imagens de guerra e destruição veiculadas nas mídias sociais e, consequentemente, nos veículos televisivos e portais de notícia tem sido um importante mecanismo de produção de efeitos de impedimento e desmobilização na Guerra. Boa parte da cobertura televisiva e das mídias sociais tem buscado circular imagens de destruição e sofrimento humano, as quais produzem efeitos de constrangimento e impedimento das ações militares – principalmente russas. No entanto, a urgência dessa prática tem levado a situações vexatórias de desinformação, como a das imagens veiculadas pela mídia ocidental a partir das redes sociais, de um tanque russo que teria atropelado um carro civil em Kiev – quando na verdade se tratava de um tanque ucraniano. Um caso semelhante é o de um vídeo de um drone que teria registrado a destruição de um comboio russo, compartilhado por uma conta oficial da Ucrânia, mas que ao fim se tratava de um vídeo da guerra da Síria em 2020

Isso reforça que a desinformação não é apenas uma ação exclusiva das forças russas, mas uma estratégia mobilizada por ambas as partes no conflito. Em uma reportagem conduzida pela BBC, fica evidente como inúmeros casos de vídeos, imagens falsas ou antigas têm sido utilizados pelos enxames favoráveis e contrários à invasão da Ucrânia, construindo um amplo leque desinformacional.

Reitero que é fundamental a condenação desta e de quaisquer guerras, seja na sua dimensão de bombardeios estratégicos, como no caso do bombardeio da coalisão europeia sobre a Líbia, sob a forma de guerras de contra insurgência – como nas fases finais da invasão estadunidense do Iraque pelos EUA –, de assassinatos extrajudiciais com drones como as promovidas pelos EUA e Israel, e fundamentalmente como esta guerra convencional mobilizada pela Rússia. No entanto, tal condenação deve se dar sobre bases e princípios sólidos da Carta das Nações Unidas, do Direito Humanitário Internacional, e das múltiplas convenções sobre armamentos, e não se sustentando sobre frágeis dualidades e constructos históricos que reforçam auto-imagens duvidosas – as quais ao mesmo tempo que condenam a guerra, eximem as potencias europeias os EUA, e mesmo a Rússia, de sua responsabilidade nas intervenções e conflitos provocados nos últimos 40 anos. Mais do que isso, a condenação deve considerar as razões políticas do conflito, compreendendo e discutindo de forma ampla as condições históricas e mesmo os argumentos da potência agressora, o que teria o potencial de produzir discussões e respostas mais adequadas e ao conflito, contribuindo de forma mais eficaz para seu encerramento.

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

[1] O jornalista Jonh Pilger foi um dos correspondentes de guerra que furaram os bloqueios estadunidenses, e produziu a extensa reportagem “The Quiet Minority”, revelando as condições precárias de guerra e as mortes de soldados não mostradas na mídia: https://www.youtube.com/watch?v=krcNTkAgRrA. Ela contribuiu para reforçar a chamada “Síndrome do Vietnã”, um temor generalizado da sociedade em ingressar em conflitos de grande proporção.

[2] Vide o compilado de informações feito pelo Wikipedia a partir de dados oficiais que podem ser acessados na própria página. O autor verificou cada uma das fontes indicadas no site, averiguando sua atualização até o dia da escrita deste artigo.

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: uma aproximação ao controle informacional nos conflitos (Parte 1) 

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

Mira, ângulo de visão, ângulo morto, ponto cego, tempo de exposição: a linha de mira prenuncia a linha do horizonte da perspectiva utilizada nos quadros pelo pintor de cavalete, que também é engenheiro militar ou estrategista como Dürer ou Da Vinci.”

Paul Virilio, Guerra e Cinema

“Está ao vivo, veja, as Imagens não mentem”, disse a âncora do telejornal enquanto apontava para a imagem de uma criança no telão do estúdio. Ao lado dessa filmagem, uma decoração especial, com fumaça cinza, e o que parecia ser um míssil sendo lançado de uma plataforma de armas, sobreposto por um enorme título, “Guerra na Ucrânia”. Como na guerra do Golfo em 1991, a âncora buscava associar a imagem (ao vivo), a uma proposta de cristalinidade do meio, de transparência e, fundamentalmente, de verdade em seu estado puro, com isso, colocando fim às especulações de diversas ordens, de que os meios teriam alguma agência sobre a política e a guerra. Ainda, a atual cobertura movimenta elementos muito similares aos da Guerra do Golfo, como a ampla produção de imagens, múltiplos narradores, em uma linha argumentativa coesa: a condenação (ou ilegitimidade) da agressão de uma das partes, associada ao apagamento das razões históricas e geopolíticas do conflito, e a uma exagerada heroicização de uma das partes do conflito. Um sofisticado enredo orientado a (des)informar – ao mesmo tempo que entretém –, embora, contemporaneamente, também esteja associado à ampla difusão de materiais, análises e imagens nas redes sociais.

Ao contrário do que a apresentadora sustenta, as imagens, se inseridas em contextos e narrativas específicas, podem potencializar, desqualificar ou redirecionar os sentidos da mensagem. O conhecidíssimo debate proferido ao longo do século XX por Walter Benjamin, Marshall Mcluhan, Guy Debord, Jacques Ranciére e por tantos outros, buscou centrar a imagem como objeto do discurso. Com o seu poder de alcance muito superior ao das palavras, a imagem carrega simbolismos, sentidos, valores políticos, potencializando a mensagem, ou sendo por si mesma a mensagem. Pierre Bourdieu ao descrever o campo jornalístico descreve a técnica de “ocultar mostrando”, que consiste em estruturas “invisíveis” que organizam aquilo que se percebe pela televisão, a partir de dramatizações e do intercâmbio entre imagens e narrativas, produzindo um “efeito de real” – algo que não seria diferente nas guerras, ou sua cobertura.

Esse efeito de real está na base das guerras informacionais que compõem os conflitos bélicos desde seus primórdios e, fundamentalmente, na deste atual conflito. Ambas as partes agora têm buscado tornar hegemônica sua linha argumentativa, a partir de múltiplos expedientes, como narrativas midiáticas, controle dos enxames nas redes sociais, etc. Esse breve ensaio, dividido em três partes, visa debater como essa produção de efeito de realidade é uma prática estratégica dos conflitos, e não envolve apenas movimentos midiáticos, mas também de desinformação nas redes, turvando a linha entre jornalismo e entretenimento, real e ficção.

A Guerra e seus meios

Clausewitz já havia entendido o modo como o ambiente de guerra era também um ambiente da administração dos sentidos, não apenas dos combatentes, que deveriam se lançar em aventura de morte, mas também da população, cujo papel seria o engajamento irrestrito à campanha. Nesse sentido, a fricção seria, antes de mais nada, um elemento que atenta contra o cognitivo dos combatentes e da população, imprimindo o desejo de cessar o conflito, tornando a mente um dos domínios a serem conquistados num conflito – como coloca Der Derian, o “Human Terrain”.  No entanto, foi Paul Virilio um dos primeiros a discutir o status das imagens e das narrativas nas guerras contemporâneas, descrevendo-o como um espaço de disputas perceptivas. Para Virilio, o termo “teatro de operações” assume múltiplos sentidos, ao mesmo tempo um ambiente de disputas entre atores com funções bem delimitadas, mas também como um espetáculo de produção de sentidos, imagens e informações – utilizados para cativar, engajar ou desengajar os espectadores da guerra.

Mais recentemente, autores como Jean Baudrillard, Douglas Kellner, e James Der Derian se debruçaram sobre o modo como Estados modernos – particularmente os EUA – conseguem mobilizar uma ampla rede informacional e comunicacional de modo a produzir consensos a respeito dos conflitos a partir de um movimento-chave: a conversão da guerra em entretenimento, quando informação quebra a barreira sensorial da razão, e passa a ser assimilada como algo lúdico, viciante e animador. Isso se daria a partir não de uma cobertura enfadonha das guerras, mas com o alinhamento entre vinhetas, narrativas estratégicas (sobre o contexto do conflito), táticas (que alinham o conflito em uma sequência lógica de eventos), polarizações e, fundamentalmente, cobertura 24 horas – uma caixa de ressonância que, como o documentarista John Pilger aponta, não abre espaço para o embate, o raciocínio ou ao contraditório, nos fazendo consumir construções parciais como integrais e absolutas. A cobertura ao vivo se diluía em um misto de imagens gravadas, de movimentos abstratos (crianças, soldados, refugiados, lideranças) impedindo a diferenciação entre tempo real e gravações. 

Com o foco na Guerra do Golfo em 1991, esses autores exploram como a produção de imagens e narrativas sobre a guerra engajou de maneira profunda a população estadunidense em um conflito desnecessário e vago. Nesse sentido, Douglas Kellner se ocupou em identificar e desmontar as linhas mestras da narrativa midiática, que envolviam a desinformação (a respeito de uma iminente invasão iraquiana na Arábia Saudita, e sobre falhas tratativas de “paz”), afirmações sobre o caráter e intenções de Sadam Hussein (sem que houvesse entrevistas ou declarações), desumanização dos líderes (o frequente enquadramento de Sadam Husseim em uma linha sucessória de Hitler), manipulação de dados (sobre o deslocamento de tropas iraquianas em suas fronteiras), e omissão arbitrária de dados (de satélites russos, que colocavam em xeque as afirmações de deslocamentos de tropas).

Como concluem, os tambores da Guerra da mídia televisiva e impressa foram fundamentais para a mobilização de tropas estadunidenses, administrando o apoio popular e redimindo previamente as lideranças por eventuais fracassos. Der Derian, no entanto, vai além e identifica nesse processo um dispositivo inerente à máquina de guerra estadunidense, o MIME – NET, sigla em inglês para a rede militar industrial de entretenimento. Essa rede não possuiria hierarquias, sendo composta por empresas privadas de jornalismo, setores de entretenimento, agências de governo e de Estado, sendo ativada em períodos de guerra justamente para o engajamento ou desengajamento da população à guerra. De acordo com o autor, isso não implica em dizer que existem conluios ou manipulações pelos Estados ou pelas empresas de jornalismo, mas sim um extenso processo de alinhamentos de ideias e interesses, de administração e de controle sutil, com a seleção de especialistas que condizem com a perspectiva da emissora (e dos burocratas da guerra), o que garantem a concessão de entrevistas exclusivas, acessos, materiais, documentos, dentre outros elementos que vão intensificando um relacionamento que, no limite, se traduz como benéfico para ambos os lados. Enquanto a máquina de guerra dissemina uma perspectiva interessada da guerra, o outro lado tem acesso a elementos que vão incrementar seu material informacional e, consequentemente, sua audiência.

Outros autores, como Steven Livingston, ainda que não se apoiem na ideia desta rede, reconhece a importância do papel das grandes empresas de jornalismo e entretenimento na construção dos imaginários dos conflitos, ao qual denomina como “efeito CNN”. Esses efeitos são diversos, e não implicam necessariamente em um alinhamento ideológico do conflito, mas demonstram o potencial dos meios em influenciar os conflitos. De acordo com ele, três seriam os modos pelos quais os efeitos midiáticos agem: 

  • Acelerante: na qual a cobertura do conflito tem um efeito multiplicador, exigindo a redução do tempo de resposta das autoridades, divulgando informações, fazendo coberturas frequentes sobre mortos e destruição, entre outras ações; 
  • Impedidor: primeiramente, emocional, deprimindo a moral populacional, sanitarizando a guerra (reduzindo a dimensão de coberturas sobre mortos e destruição) e, segundamente, frustrando as operações militares a partir da divulgação ampla de notícias operacionais; 
  • Definidora de agendas: agindo emocionalmente de forma a definir as agendas humanitárias como prioritárias. 

Na verdade, a atuação midiática como uma fusão entre jornalismo e entretenimento já é uma prática que data, pelo menos, desde a Segunda Guerra Mundial, com o envolvimento da empresa Walt Disney em conteúdos sobre a guerra; a produção de eventos e shows em campos de batalhas (para animar a moral dos combatentes); e o emprego de cineastas famosos para capturar imagens do conflito – vide o documentário da Netflix “Five Came Back”, que narra o modo como o Pentágono remunerou John Ford, Frank Capra, dentre outros. De acordo com Der Derian e John Pilger,  após a Guerra do Golfo se inicia um modelo de cobertura 24 horas de guerras e conflitos, os quais demandam: a manutenção exaustiva de especialistas, imagens, reportagens em loop, o que paulatinamente funde noticiário e entretenimento de guerra – no caso do Golfo, com a intenção de propagar um novo modelo de guerra inteligente, comandada a distância por alta tecnologia, como aponta Rune Ottosen. De acordo com ambos, essa prática foi adotada em todos os conflitos desde os anos 90 em que os EUA ou países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estiveram inseridos: na Bósnia, na Sérvia, Afeganistão, Iraque, e mesmo na Líbia e Síria. A cobertura midiática tornava-se, assim, uma linha acessória do conflito, algo descrito inclusive nas doutrinas de guerra estadunidenses.

 Como um exemplo, a Joint Low Intensity Conflict Project (JILC) de 1986 deixa claro que, nenhuma informação entrará ou sairá do conflito sem que seja previamente arquitetada. A JLIC abertamente afirma a importância de um alinhamento entre Estado e empresas de jornalismo, em uma tradução livre: “Conflitos prolongados também aumentam as ambiguidades da situação, e a mídia moderna irá trazer essas ambiguidades para casa para o debate público, exacerbando as incertezas e compondo as dificuldades de envolvimento […] A mídia exerce uma poderosa, senão indeterminada, influência na opinião pública, e isso pode ter um impacto sobre as operações, para bem ou para mal […] Líderes políticos e militares devem considerar o papel da mídia e desenvolver programas apropriados e relacionamentos que irão sustentar as operações”.

O controle informacional em um conflito se torna uma tática central para os modelos de guerra contemporâneos, principalmente por sua capacidade de estímulo da opinião pública, dos combatentes e aliados, mas também para agir sobre a moral inimiga e produzir descrédito, o que coloca em xeque a capacidade dos países em produzir mobilização interna para o conflito. No caso estadunidense, e de países da OTAN, essa estratégia não se dá através de uma centralização, censura e manipulação direta das informações pelos aparelhos de Estado – como no caso do controle informacional russo nos últimos conflitos –, mas a partir de uma intrincada rede de relacionamentos e articulações entre empresas de jornalismo, e que agora contam com uma nova linha acessória, as redes sociais.

De acordo com pesquisas recentes, mais da metade dos americanos se informam regularmente através de mídias sociais, que incluem Facebook, Instagram, Snapchat e Tik Tok. Assim, principalmente a partir dos anos 2000, essas articulações, bem como a difusão de informações e conteúdos, ocorrem não apenas a partir da mídia televisiva, mas também pelas redes sociais e aplicativos de mensagens – um ambiente em grande medida desregulado, em que informações manipuladas, desinformações, deepfakes, análises enviesadas de especialistas são veiculadas e ganham proeminência a partir de compartilhamentos, que podem ou não ser estimulados por contas falsas (robôs). Esse fenômeno acaba governando a percepção geral dos usuários dessas redes sobre diversos temas – conformando verdadeiros ecossistemas de desinformação que se articulam com as redes televisivas e de entretenimento. Aqui, a divisão entre notícia e entretenimento se torna cada vez mais turva, dado o amplo compartilhamento de imagens, músicas, sessões ao vivo de discussões sobre a guerra em múltiplas redes sociais.

Desde Gilles Lipovetsky à Byung-Chul Han, diversos autores esclarecem que, diferente de uma estética de desaparecimento e de omissão de informações que caracterizou a era televisiva (inclusive nas coberturas de guerras), as redes sociais e o hiper-compartilhamento de dados produzem um fenômeno de desinformação a partir do excesso de informações não verificadas, produzidas por uma miríade de sujeitos. Como aponta Lee Mcintyre, o caráter dinâmico da internet e das redes sociais leva a uma confusão entre notícia e opinião, elevando uma posição pouco fundamentada ao status de “verdade”. A problemática relativa a isso é a de que não são geradas apenas opiniões, mas aquilo que Claire Wardle e Hossein Derakhshan tipologizam como desordem informacional: informações incorretas (com falsas conexões e conteúdo ilusório), más-informações (vazamentos, assédios, discursos de ódio), e fundamentalmente desinformação (conteúdo deliberadamente produzido, falso, manipulado e fabricado). Assim, notícias falsas, imagens e informações manipuladas, vídeos, discursos parcializados são compartilhados na rede em uma dinâmica de enxame, ora complementando as abordagens midiáticas “ocidentais”, ora as contradizendo. Assim, há na guerra um complexo ecossistema de desinformações que envolvem a mídia tradicional e as redes na composição de verdadeiros simulacros da realidade, a partir do controle e mobilização de informações, análises de especialistas, produção de notícias falsas, deepfakes, memes, entre outros. 

 

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

A violência de gênero contra as populações indígenas: a outra face do desenvolvimento neoextrativista

Helena Salim de Castro*

 

Nos últimos dias, ganhou destaque nas redes sociais as denúncias de líderes indígenas Yanomami sobre o abuso e a violência sexual contra meninas e adolescentes cometidos por homens envolvidos na atividade do garimpo ilegal. O presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana, Júnior Hekurari Yanomami, denunciou em sua conta no Twitter que uma menina, de 12 anos, foi violentada até a morte e outra, de quatro anos, está desaparecida após uma invasão de garimpeiros na comunidade Aracaçá, em Roraima.

A denúncia se soma a tantos outros abusos perpetrados contra a população há anos. No começo do mês de abril, foi divulgado um relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami sobre violações sexuais cometidas por garimpeiros contra adolescentes no ano de 2020. Além da destruição ambiental, eles deixaram um rastro de proliferação de doenças sexualmente transmissíveis. Esse cenário de violência não acomete apenas o povo Yanomami, mas muitas outras populações tradicionais e comunidades rurais pelo país. 

Os conflitos por terra não são uma novidade no Brasil. No entanto, como retrata o projeto Mapa dos Conflitos, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), na última década houve uma acentuação das ocorrências de conflitos no campo, particularmente na Amazônia Legal. Eles ocorrem em um contexto em que são perpetradas atividades depredadoras da natureza como queimadas, desmatamentos, mineração, entre outros. Não só naquela área, mas por toda a América Latina, a concentração de terras, herança da colonização, e a adoção de um modelo de desenvolvimento neoextrativista estão por trás de muitos dos conflitos, que são, por sua vez, atravessados por elementos de gênero. 

Segundo Maristella Svampa (2019, o. 33), o neoextrativismo “pode ser caracterizado como um modelo de desenvolvimento baseado na superexploração de bens naturais […], assim como na expansão das fronteiras de exploração para territórios antes considerados improdutivos do ponto de vista do capital”. A diferença com o “extrativismo clássico” estaria no fato de que, naquele, os fundos arrecadados com a atividade extrativista e a exportação dos bens primários seriam “invertidos em políticas sociais redistributivas para combater a pobreza” (MUNOZ C., 2013, p. 120, tradução própria). Para a socióloga argentina, esse modelo foi aplicado na América Latina no início do século XXI. Os países da região, muitos governados por lideranças progressistas, aprofundaram e incentivaram uma política de desenvolvimento sustentada na exportação de bens primários – o que a autora chamou de “Consenso das Commodities” (SVAMPA, 2019). 

Após anos colhendo os lucros econômicos dessa política, a região estaria vivendo, atualmente, a terceira fase do modelo[1], denominada por Svampa (2019) como a da “exacerbação do neoextrativismo”. Essa fase, que teria se iniciado a partir de 2013-2015, é marcada pela queda dos preços das commodities. Para fazer frente a essa instabilidade econômica, os governos latino-americanos têm impulsionado ainda mais os projetos extrativistas e aprofundado a reprimarização das economias nacionais. Somam-se a esse cenário o declínio da hegemonia progressista e uma reconfiguração política na região, com a ascensão de governos conservadores e alinhados à direita. No Brasil, essa mudança política resultou, dentre outras perdas de direitos, no desmantelamento das instituições responsáveis pela fiscalização das áreas ambientais e na diminuição dos recursos e esforços para o enfrentamento da violência no campo

Tais processos se refletem no aumento dos conflitos socioterritoriais e no crescimento da violência estatal e paraestatal, a qual é dirigida, muitas vezes, contra os corpos das mulheres e outros sujeitos feminizados. Além de agressões físicas e lesões corporais, as mulheres, nesses contextos de conflitos no campo, são vítimas de assédio moral e violação sexual, principalmente quilombolas e dos povos originários. O histórico de colonização e exploração dos territórios, corpos e subjetividades de indígenas e afrodescendentes estrutura a violência contra as mulheres latino-americanas. Elas são duplamente subjugadas – por preconceitos de gênero e raça/etnia – e, com isso, consideradas menos humanas, inferiores diante da imagem do homem branco e ocidental, apresentado como o ser racional e superior. A violência sobre essas mulheres, principalmente a de cunho sexual, é, portanto, invisibilizada em um contexto de masculinização do território e justificada como prática estruturante de um modelo de desenvolvimento patriarcal e liberal. 

Svampa (2019) chama atenção para a histórica relação entre atividades extrativistas, masculinização dos territórios e reforço do patriarcado. Em um cenário em que há uma concentração da população masculina, atividades como a prostituição e o tráfico de mulheres são concebidas como naturais, invés de inseridas em um contexto de problemas sociais e econômicos. Ademais, há reforço de um ambiente de desigualdade de gênero, marcado pela não valorização do trabalho doméstico, assimetrias salariais e o fortalecimento do que seria considerado a atribuição das mulheres, vistas como cuidadoras do lar (SVAMPA, 2019). 

No intuito de expandir as fronteiras do extrativismo, a violação sobre os corpos das mulheres também adquire uma função instrumental. Além das mortes diretas e a transmissão de doenças, os abusos e as violações podem gerar rupturas no tecido comunitário, com o enfraquecimento do papel ancestral das mulheres, e o abandono das terras. A comunidade Aracaçá, por exemplo, foi queimada após as denúncias do estupro e da morte da menina de 12 anos. De acordo com lideranças indígenas, é uma tradição dessa população abandonar o território após a morte de alguém. No entanto, até o momento não se tem confirmação sobre as causas do incêndio e para onde foram e se estão seguras as mais de 20 pessoas que viviam na comunidade. 

O terror propagado pela presença e as ações dos garimpeiros nesses territórios gera o deslocamento forçado dos povos. O abandono das terras abre espaço, por sua vez, para a exploração realizada pelo capital nacional e transnacional em nome do ideal de desenvolvimento moderno-liberal – no qual o desenvolvimento é concebido como um processo linear em busca do crescimento econômico. A violência sobre os corpos das mulheres adquire, portanto, amplos significados no contexto dos conflitos socioterritoriais. Não é uma mera consequência de um cenário de disputas. Sob uma lógica patriarcal e colonial a respeito dos corpos e das subjetividades de alguns atores, as violações se constituem como práticas estruturantes do modelo de desenvolvimento neoextrativista e de uma ordem social patriarcal. Como resume Hernández Castillo (2017, p. 36, tradução própria), a violação dos territórios dos povos indígenas e campesinos produz “deslocamentos que deixam suas terras ‘livres’ para o capital. Nessa investida de violência e desapropriação, os corpos das mulheres têm se convertido também em territórios para ser invadidos e violados”. 

* Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES-UNESP); e do Núcleo de Estudos Transnacional de Segurança (NETS – PUC-SP).

Imagem: Garimpo ilegal no Pará. Por: Ibama.

[1] A primeira fase compreende o período entre 2003 e 2008-2010, denominada como “fase da positividade”. A segunda seria a da “multiplicação dos megraprojetos”, compreendendo o início da segunda década dos anos 2000. Para maior aprofundamento, consultar Svampa (2019).

 

Referências bibliográficas:

HERNÁNDEZ CASTILLO, R. A. Confrontando la Utopía Desarrollista: El Buen Vivir y la Comunalidad en las luchas de las Mujeres Indígenas. In: VAREA, Soledad; ZARAGOCIN, Sofía (Comp.). Feminismo y Buen Vivir: Utopías Decoloniales. PYDLOS Ediciones, Cuenca: Ecuador. 2017, p. 26 – 43. ISBN: 978-9978-14-355-1

MUNOZ C., María José. El conflicto en torno al Territorio Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure: Un conflicto multidimensional. Cultura representaciones soc, v. 7, n. 14, p. 67-141, 2013. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2007-81102013000100004&lng=es&nrm=iso. 

SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Tradução de Lígia Azevedo. São Paulo: Elefante, 2019. 192 p.  ISBN: 978-85-93115-45-5

A Política Externa Brasileira frente à invasão russa na Ucrânia

Guilherme Paul Berdú*

Ao completar trinta anos de independência, a Ucrânia se vê mais uma vez ameaçada pelo ataque russo deflagrado no dia 24 de fevereiro de 2022. Este contexto tem demandado um posicionamento do Brasil, em razão da precedente aproximação diplomática com a Rússia. Historicamente, o Brasil carrega em suas relações diplomáticas os princípios de não intervenção, autodeterminação (CERVO, 2008), não ingerência e resolução pacífica de controvérsias, construindo a imagem de um país que pauta suas ações dentro desses princípios, em defesa dos valores democráticos, dos direitos humanos, do meio ambiente, da paz e da justiça social (LAMPREIA, 1998). O estreitamento das relações do Brasil com a Rússia ocorre no contexto da ascensão das relações globais-multilaterais para além das relações hemisféricas-bilaterais, conforme apresentado por Cristina Pecequilo (2008), especialmente no contexto do grupo BRICS (Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul).  Neste artigo, busca-se analisar a ação externa brasileira frente à ação militar da Rússia na Ucrânia.

O presidente brasileiro eleito em 2018, Jair Bolsonaro, afirmou em sua proposta de governo que, quando eleito, libertaria o Ministério das Relações Exteriores (MRE) de cooperações ideológicas, apoiando e alinhando-se incondicionalmente aos Estados Unidos da América (EUA) (CASARÕES, 2019). Coerente com seu discurso, o primeiro país a ser visitado por Bolsonaro foram os EUA (OPEX – INFORME 597, 2019). Assim, a ação inicial do Brasil, em 2022, foi discutir a situação ucraniana com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, em ligação telefônica com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, que defendeu uma solução de acordo com o Direito Internacional (OPEX – INFORME 691, 2022). 

Por outro lado, o dilema do governo brasileiro está posto pelo caráter conservador, segundo Bolsonaro, do presidente da Rússia, Vladimir Putin, estando entre os presidentes com os quais Bolsonaro busca construir uma rede conservadora. Ao ser convidado por Putin para visitar o país, Bolsonaro recebeu questionamentos dos EUA, que enfatizaram o compromisso brasileiro de confrontar Putin em defesa dos princípios democráticos e da ordem. Por sua vez, Bolsonaro afirmou que a viagem para a Rússia teve como objetivo melhorar o entendimento e as relações comerciais. Pressionado novamente, o governo argumentou que a situação entre os países não diz respeito ao Brasil, recorrendo ao vice-presidente Hamilton Mourão para defender tal posicionamento (OPEX – INFORME 693, 2022).

Em mais um telefonema entre França e Blinken, o secretário dos EUA se declarou preocupado com a visita de Bolsonaro à Rússia, e que esta poderia sinalizar apoio a uma possível invasão à Ucrânia. Por sua vez, Bolsonaro afirmou que manteria a visita e negou desgastes entre Brasil e EUA (OPEX – INFORME 694, 2022). Buscando equilibrar a balança, o Itamaraty publicou uma nota oficial, às vésperas da viagem de Bolsonaro, celebrando os trinta anos de relações diplomáticas com a Ucrânia e o aumento das parcerias e comércio entre os países (OPEX – INFORME 695, 2022). 

O presidente brasileiro desembarcou na Rússia no dia 15 de fevereiro e declarou que o Brasil é solidário à Rússia. Ainda, comentou as áreas de cooperação entre os países e destacou a defesa de valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família. Bolsonaro agradeceu o apoio ao Brasil no pleito a um assento permanente no Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), e na defesa da soberania do Brasil sobre a Amazônia. O ministro brasileiro ressaltou que o Brasil busca, junto à Rússia, a promoção de uma ordem multipolar, e Bolsonaro destacou que leva de volta ao Brasil o sentimento de casamento perfeito com Putin (OPEX – INFORME 696, 2022). 

A resposta estadunidense foi imediata. Em nota, o Departamento de Estado dos EUA afirmou que o momento para o Brasil se declarar solidário à Rússia não poderia ter sido pior, enfraquecendo o esforço por evitar um desastre estratégico e humanitário, e as chances de se obter uma solução pacífica para a crise. O presidente brasileiro negou ter tomado partido na questão e afirmou ter transmitido uma mensagem de paz. A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, criticou a declaração de Bolsonaro em solidariedade à Rússia, afirmando que o país pode estar em oposição à maioria da comunidade internacional (OPEX – INFORME 696, 2022). Em nota, o MRE lamentou o teor das declarações da Casa Branca, e afirmou que não as considera construtivas ou úteis (OPEX – INFORME 697, 2022).

No dia 21 de fevereiro, em sessão do CS da ONU, o embaixador brasileiro no organismo, Ronaldo Costa Filho, defendeu a retirada de tropas de Donetsk e Lugansk – territórios separatistas pró-Rússia reconhecidos como independentes por Putin. Na sequência, no dia 22, por meio de nota, o MRE pediu uma solução negociada, em que as partes evitem a escalada da violência e estabeleçam canais de diálogo rumo a uma solução pacífica. No dia 23, Mourão declarou que o Brasil não iria reconhecer as regiões separatistas do leste ucraniano como independentes, condenou as ações de Putin, asseverou que o país não está neutro, que o Ocidente deve ajudar militarmente a Ucrânia e comparou a expansão russa aos movimentos de Adolf Hitler. Tal declaração e seu emissor foram desautorizados por Jair Bolsonaro no dia seguinte, que convocou seus ministros para uma análise da situação a fim de emitir um parecer. A posição brasileira foi cobrada pelo embaixador estadunidense em exercício no Brasil, Douglas Koneff, que classificou as ações russas como a maior invasão entre países europeus desde a Segunda Guerra Mundial. Ainda, sem emitir uma decisão, Bolsonaro e ministros afirmaram que a prioridade do governo seria coordenar a saída dos brasileiros que estão na Ucrânia (OPEX – INFORME 697, 2022).

Um dia após a ofensiva russa, no dia 24, o ministro Carlos França conversou novamente com o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, para tratar da visão do Brasil sobre o tema. Segundo França, os representantes debateram formas de restaurar a paz e proteger os civis. Blinken reiterou o pedido de que o Brasil condene publicamente as ações russas e que se alinhe ao discurso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em nova reunião do CS da ONU, o Brasil votou a favor da resolução que pede o fim dos ataques russos à Ucrânia, condenou a Rússia por ameaçar a integridade e a soberania de outro país, pediu a suspensão dos ataques e clamou por uma solução diplomática do conflito. Ademais, o MRE pulicou uma nota discordando das operações militares da Rússia contra a Ucrânia, e pedindo a suspensão das agressões (OPEX – INFORME 697, 2022).

Na sequência, o governo brasileiro optou por não propor uma data para o encontro entre o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, e o primeiro-ministro da Rússia, Mikhail Mishustin, cancelando a reunião (OPEX – INFORME 696, 2022), ao considerar que recebê-lo poderia ser interpretado como apoio às ações russas (OPEX – INFORME 697, 2022). No dia 27, em reunião do CS da ONU, o embaixador brasileiro, Ronaldo Costa Filho, pediu cautela nas medidas tomadas para não aumentar a tensão entre as partes, afirmando que as sanções poderiam agravar o conflito ao invés de resolvê-lo, apelando por um cessar-fogo. Já em reunião da Assembleia Geral (AG) da ONU, no dia 28, o embaixador brasileiro condenou a invasão russa, defendeu o cessar-fogo e questionou o envio de armas à Ucrânia pelas potências ocidentais. No mesmo dia, em reunião do CS da ONU, o representante alterno do Brasil, João Genésio de Almeida Filho, reiterou as críticas às sanções e ao suprimento de armas, argumentando que esta contribui para a militarização do conflito, e não para o diálogo. Bolsonaro, por sua vez, no dia 28 de fevereiro, informou que o Brasil concederia vistos humanitários a ucranianos, mas reafirmou a posição neutra no conflito (OPEX – INFORME 698, 2022), reiterada nos dias 02 e 03 de março (OPEX – INFORME 698, 2022).

No dia 02 de março, o Brasil reforçou seu posicionamento ao votar a favor da resolução da AG da ONU que condenou a invasão da Ucrânia e pediu a retirada imediata das tropas do país vizinho. Na ocasião, o embaixador brasileiro reiterou a defesa da paz, o cessar-fogo e a construção do diálogo. Já no dia 07, o governo brasileiro enviou uma aeronave contendo itens de ajuda humanitária aos ucranianos, mesmo dia em que Bolsonaro comentou a importância do veto russo na defesa da soberania brasileira sobre a Amazônia (OPEX – INFORME 699, 2022).

A mudança da postura brasileira gerou elogios dos EUA. Em mídia social, o secretário-assistente para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, Brian Nichols, elogiou a atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, bem como o posicionamento brasileiro no CS. Enquanto isso, preocupada com a compra de fertilizantes russos, a ministra da Agricultura do Brasil, Tereza Cristina, buscou apoio para uma proposta que exclui o item das sanções impostas à Rússia (OPEX – INFORME 699, 2022), posição reiterada pela ministra por meio de veículos de imprensa e em reunião do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) na segunda quinzena de março. No dia 24 de março, o Brasil reafirmou sua posição ao aprovar a segunda resolução da AG da ONU pedindo o fim do cerco russo e a proteção de civis (OPEX – INFORME 701, 2022). 

Internamente, durante sessão no Senado, França defendeu Bolsonaro e criticou as sanções impostas por acabarem prejudicando mais as nações em desenvolvimento do que a própria Rússia, tal como ocorre com o próprio Brasil no acesso a fertilizantes russos, prejudicando a agricultura do país (OPEX – INFORME 701, 2022).

O posicionamento do Brasil com relação à invasão russa na Ucrânia se apresenta em dois tempos: 1) descrença de que uma ação militar russa se concretizaria; momento no qual prevalecem o presidente Jair Bolsonaro, que mantém sua visita oficial à Rússia, e seu ministro das Relações Exteriores, Carlos França, que em março defendeu o posicionamento inicial do governo ao afirmar que seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba, o havia tranquilizado quanto à iminência de um conflito; 2) defesa de uma solução pacífica com retirada das tropas russas da Ucrânia; momento no qual prevalecem as ações no âmbito da ONU através do embaixador brasileiro no organismo, Ronaldo Costa Filho. Mesmo no segundo momento, defendido pelo ministro Carlos França, Bolsonaro preferiu destacar o apoio russo ao Brasil na candidatura a um assento permanente no CS da ONU e na defesa da Amazônia.

O devido funcionamento das instituições brasileiras ainda é colocado em dúvida. Apesar das contradições entre a postura inicial do Brasil e aquela adotada após a invasão russa, neste caso, parece prevalecer a cultura da resolução pacífica de controvérsias através da ação do corpo diplomático brasileiro em espaços multilaterais, mais propriamente, na AG e no CS da ONU.

* Guilherme Paul Berdú – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Observatório de Política Exterior (OPEx). Contato: guilherme-paul.berdu@unesp.br

Imagem: Jair Bolsonaro acompanhado de Vladmir Putin durante declaração à Imprensa. Foto: Alan Santos/PR. Palácio do Planalto

 

Referências Bibliográficas

CASARÕES, Guilherme. Eleições, política externa e os desafios do novo governo brasileiro. Pensamiento Próprio, 49-50. 2019. Ano 24. 

CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo:  Saraiva, 2008, 297 p.

LAMPREIA, Luiz Felipe. A política externa do governo FHC: continuidade e renovação. Revista Brasileira de Política Internacional, 42 (2): 5-17, 1998. 

OBSERVATÓRIO DE POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL (OPEX). São Paulo: Grupo de Estudos  de Defesa e Segurança Internacional, Jan-Mar. 2022. Semanal.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa do Brasil no século XXI: os eixos combinados  de cooperação horizontal e vertical. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, n.51, 136-153. 2008.

Guerra na Ucrânia e seu reflexo na política internacional africana

Laurindo Tchinhama*

Como os Estados africanos se posicionaram sobre a guerra na Ucrânia? O posicionamento dos países africanos na votação da resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2 de março, para condenar a invasão russa à Ucrânia chamou atenção da comunidade internacional porque juntos representavam 27, 97% dos votos. No campo político, boa parte dos Estados africanos tiveram atitudes convergentes embasadas nas relações históricas com as partes em conflito. No âmbito humanitário, assistiu-se ao nível de racismo e xenofobia contra as pessoas negras, em particular os africanos e oriundos do Oriente Médio – o que influenciou indiretamente o posicionamento dos governos africanos.

No tocante à atitude dos Estados africanos na votação da resolução para condenação da invasão russa, foram um total de 28 votos a favor, na sua maioria países com relações estreitas com o Ocidente no setor militar, envolvendo tanto bases militares como operações conjuntas. Por outro lado, houve 17 abstenções de países como, por exemplo, Argélia, Burundi, República Centro-Africana, Senegal, África do Sul, Sudão, Sudão do Sul, Madagascar, Namíbia, Uganda, Zimbábue, República Centro Africana (RCA), Mali e Angola, na sua maioria regimes considerados autoritários ou híbridos. Enquanto a Guiné, Burquina Faso, Togo, Camarões e Marrocos não participaram da votação; e a Eritreia foi o único país africano que votou contra.

Dois argumentos ajudam a entender o posicionamento dos africanos. O primeiro é que se trata de um comportamento político-diplomático. Dentre as razões deste argumento estão o elevado grau de dependência da Rússia e o medo de abalar as alianças estabelecidas com Moscou. Como exemplos que ilustram tal dependência, temos os casos da RCA, Sudão, Líbia, Guine e o Mali, que enfrentam instabilidade política e necessitam do suporte russo no setor de defesa e segurança. A empresa privada de segurança russa, Wagner, por exemplo, atua na RCA no setor de segurança do Estado e há indícios de abusos cometidos pela empresa contra os Direitos Humanos, sendo alvo de críticas pelos observadores do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Embora a RCA alegue estar investigando tais crimes, as informações indicam que pode ser infrutífero visto que parte da equipe de segurança pessoal do presidente do país, Faustin-Archange Touadera, é composta por membros da empresa. Na Líbia, a empresa possui cerca de 1.200 mercenários que atuam no suporte ao presidente Khalifa Haftar (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020).

Ainda nesta linha, é imperioso salientar que muitos países africanos são compradores de armamentos  tanto da Rússia quanto da Ucrânia, assim como também da Bielorrússia, um dos principais aliados russos no conflito. Ademais, as relações Rússia-África nos últimos anos se intensificaram sobretudo a partir do primeiro Fórum Econômico realizado em Sochi, 2019, do qual 43 estados africanos participaram, quando foi fechado um investimento de cerca de US$ 12,5 bilhões de dólares em negócios no continente (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020). No fórum foram estabelecidas parcerias nos setores político, securitário, comercial e econômico, jurídico, científico, técnico, humanitário, informacional e ambiental em todo continente. Além disso, parcerias no setor de infraestrutura energética com o Sudão, Etiópia, República Democrática do Congo (RDC) se destacam na política externa russa para África (INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE, 2020).

A neutralidade de alguns países chamou atenção da comunidade internacional, em especial dos Estados Unidos da América (EUA). O país criticou a falta de postura clara dos africanos diante da guerra, o que levou alguns estadistas africanos a se posicionarem criticamente. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, declarou que “os países mais poderosos tendem a usar sua posição como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU para servir seus interesses nacionais em vez dos interesses da paz e estabilidade globais”. Vale lembrar que a África do Sul é um dos principais parceiros estratégicos russos no continente, além de membro dos BRICS, grupo das economias emergentes, do qual a Rússia é integrante. No entanto, esta declaração reforça a longa discussão acerca da reforma do Conselho de Segurança da ONU como um dos pilares da crise que a segurança internacional vem enfrentando nos últimos anos. Ademais, na mesma linha, o embaixador do Quênia no Conselho de Segurança da ONU, Martin Kimani, observou haver uma tendência dos membros permanentes do Conselho da ONU de violarem o Direito Internacional.

Quando se analisa a posição político-diplomática no âmbito regional, o procedimento dos Estados africanos foi díspar. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), composta por 15 países, e a União Africana (UA) condenaram a invasão russa. A base argumentativa da UA sobre a violação do Direito Internacional, á integridade territorial e à soberania cometidos pela Rússia, também condenou o racismo escancarado contra os africanos que solicitaram refúgio aos países vizinhos, os quais priorizaram os ucranianos em detrimento dos africanos.

Percebe-se que o argumento político-diplomático, de um lado, está alicerçado nas relações bilaterais dos africanos, na dependência do setor de defesa, inteligência e segurança, especificamente, assim como na reaproximação da Rússia com o continente. É uma forma de preservar o cortejo com os russos além das relações históricas que alguns países estabeleceram durante e no pós-Guerra Fria, dado que o país apoiava os movimentos de libertação na África.

O representante queniano, Martin Kimani, comparou a invasão russa com o colonialismo afirmando que “[…] esta situação ecoa nossa história. O Quênia e quase todos os países africanos nasceram do fim de um império. Nossas fronteiras não foram traçadas por nós mesmos. Foram traçadas nas distantes metrópoles coloniais de Londres, Paris e Lisboa, sem considerar as nações antigas que eles separaram”.

Um segundo argumento que influenciou o posicionamento dos Estados africanos, ainda que indiretamente, está relacionado à questão humanitária. O comportamento das entidades ou agentes fronteiriços diante do fluxo de refugiados foi observado em vários jornais internacionais pelo caráter xenofóbico e racista contra os não ucranianos, que eram rejeitados nos meios de transportes. Nesse sentido, o fluxo migratório de ucranianos para os países vizinhos revisitou a questão racial e xenofóbica contra os refugiados não ucranianos, porém residentes no país. Declarações e comportamentos xenofóbicos das entidades migratórias e da mídia elucidaram a diferença na definição de quem deve ser salvo, protegido ou acolhido e, entre os critérios estava a cor da pele e a origem. Os migrantes da África, Índia, Oriente Médio e demais regiões, residentes na Ucrânia, foram impedidos de entrar nos países acolhedores ou de acessar os meios de transportes para se deslocarem.  De um total de 76.000 estudantes residentes na Ucrânia, 16.000 são africanos, ou seja, três em cada dez estudantes estrangeiros na Ucrânia são africanos e o país é o quinto destino mais procurado depois da França, Estados Unidos, Reino Unido e Malásia.

A ajuda humanitária e a solidariedade são seletivas, ficando evidente que algumas vidas importam mais e outras menos – fato que apenas reforça como a expansão do movimento Black Lives Matter torna-se cada vez mais importante na luta contra o racismo internacional e a xenofobia descarada como a presenciada na guerra. Um exemplo claro foi o argumento do primeiro ministro búlgaro, Kiril Petkov de que “estes não são os refugiados a que estamos acostumados. … Essas pessoas são europeias. … Essas pessoas são inteligentes; são pessoas educadas. … Esta não é a onda de refugiados a que estamos acostumados, pessoas que não tínhamos certeza sobre sua identidade, pessoas com passado obscuro, que poderiam ter sido até terroristas”.

Diante da discriminação e violência desenfreada, países africanos como Zimbábue, Angola, Nigéria já retiraram os seus cidadãos da Ucrânia e os demais Estados, como Gana, África do Sul e Costa do Marfim, têm feito esforços para salvarem seus cidadãos. Em tom crítico, a declaração do presidente nigeriano reforçou que “todos os que fogem da situação de conflito têm o mesmo direito de passagem segura sob a convenção da ONU e a cor de seu passaporte ou de sua pele não deve fazer diferença”. Como resposta, a Nigeria fretou aviões para retirar seus cidadãos que conseguiram chegar nos países vizinhos.

Diante do exposto, compreende-se que os argumentos político-diplomático e o humanitário demonstram os fundamentos da política internacional africana frente ao conflito Rússia-Ucrânia, sob pano de fundo das relações internacionais construída ao longo da Guerra Fria, principalmente. De um lado, afere-se que as relações históricas da África com o Ocidente, marcada pela colonização e luta anticolonial, ainda influenciam diretamente na decisão da política internacional e nas relações bilaterais desses Estados com os russos, visto que estes apoiaram os movimentos de libertação nacional. Assim, as relações estabelecidas nos últimos anos com a Rússia, com destaque ao Fórum econômico em Sochi, 2019, demonstram ruptura dos africanos em relação à dependência do Ocidente, apesar destes ainda exercerem maior influência na região, e influenciaram diretamente na votação na ONU. Por último, os atos xenofóbicos presenciados na guerra ilustram que a luta contra o racismo sempre foi uma luta transnacional que merece olhares críticos.

 

Referências Bibliográficas

INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE. PROCEEDINGS REPORT Dialogue Russia-Africa Summit. Sochi: [s. n.], 2020.

LYAMMOURI, R.; EDDAZI, Y. Russian Interference in Africa: Disinformation and Mercenaries. Policy Brief for the new South, Rabat, no. June, p. 6, 2020.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pesquisador do Observatório de Conflitos.

Imagem: Sessão emergencial da Assembleia Geral da ONU. Por: UN Photo/Cia Pak.

 

A Crise Humanitária na Ucrânia e a Resposta aos Refugiados e Refugiadas: o que determina o rechaço e a acolhida?

Laís Azeredo*

João Carlos Jarochinski Silva**

 

A escalada de conflito na Ucrânia, decorrente da invasão russa em 24 de fevereiro, tem resultado em mortes de civis, destruição de infraestrutura, medo e violência, o que levou ao deslocamento forçado de 10,7 milhões de pessoas, sendo que 4,2 milhões dessas são refugiadas, recepcionadas principalmente na Polônia, Romênia, Moldávia e Hungria. A maioria absoluta dessas pessoas é formada por mulheres e crianças. Desde os conflitos nos Bálcãs nos anos 1990 e da invasão russa à Crimeia, esse é o mais novo episódio europeu que ocasionou uma crise humanitária, demandando soluções emergenciais para atender a refugiados. De fevereiro a abril de 2022, em cerca de cinco semanas, um quarto da população da Ucrânia foi forçada a sair de suas casas, em busca de assistência e segurança, o que torna essa crise a que cresce mais rapidamente desde a Segunda Guerra Mundial. 

Interessante notar que nesse caso, diferentemente do que ocorreu em outras situações de mobilidade com destino a Europa – envolvendo os deslocados em situação de refúgio, em fuga de cenários de violência, conflitos, perseguições e graves violações de direitos humanos -, os ucranianos, felizmente, não estão sendo recepcionados por medidas que inserem essas pessoas em centros de detenção, criminalizando-as e tratando-as como ameaça. A resposta, de grande parte dos países[1] à crise ucraniana, tem sido positiva e acolhedora, compreendendo esse fluxo migratório como dever ser, a fuga pela sobrevivência, pela vida, não uma ameaça à segurança, ao emprego dos nacionais, à saúde pública. Ao ver esse cenário com medidas tão díspares, faz-se mister questionar: o que determina quem vai ser rechaçado e quem vai ser acolhido?

A pronta resposta dos países da União Europeia (UE) esteve baseada na permissão de entrada das pessoas refugiadas ucranianas sem a necessidade de visto. A acolhida por parte dos países vizinhos europeus tem sido de apoio público, com ações das comunidades, e também político, com posicionamentos claros dos líderes de que os ucranianos são bem-vindos. Eslováquia e Polônia permitiram que refugiados pudessem atravessar suas respectivas fronteiras até sem passaporte ou outros documentos válidos. Na Europa, o transporte público foi disponibilizado de forma gratuita, assim como os serviços de telefone. A UE propôs, inclusive, reativar a Diretiva de Proteção Temporária que foi utilizada nos anos 1990 para atender à crise de refugiados nos Bálcãs e que permite às pessoas ucranianas até um ano de Proteção Temporária, sem precisar solicitar refúgio, com acesso a direitos e a residência. Caso o conflito tenha seguimento, essa temporalidade será reavaliada. Em um contexto de fechamento e de forte retrocesso em ações de proteção às pessoas refugiadas, ver esse tipo de medida ser discutida é relevante para demonstrar que não podemos abdicar de um sistema protetivo tão relevante como o dos refugiados.

Ações como a da UE nesse contexto são medidas que contemplam a forma como o regime de Proteção às pessoas refugiadas deveria funcionar: fronteiras abertas, acolhida, sem penalizações para os que estão fugindo e buscando Proteção. Mas, infelizmente, esse não tem sido o padrão europeu e, tampouco, tem sido o padrão adotado nessa situação para os não-ucranianos, mesmo sendo atingidos pela mesma violência. Pessoas que foram afetadas pela crise humanitária na Ucrânia, mas que tinham outra nacionalidade, particularmente nacionais de países africanos, asiáticos ou do Oriente Médio, não conseguiram as mesmas oportunidades de acesso facilitado. Inúmeros relatos de pessoas provenientes de outras localidades, com destaque pelas anteriormente citadas, que viviam na Ucrânia, evidenciaram desafios no acesso à ajuda e Proteção, especialmente racismo e violência. 

Enquanto alguns foram impedidos de embarcar em ônibus e trens em cidades ucranianas, porque a prioridade eram os nacionais, outros descreveram maus tratos por parte de guardas de fronteira e autoridades daquele país, enquanto tentavam atravessar as fronteiras. Os Estados que estão demonstrando tamanha solidariedade com os ucranianos são os mesmos que rechaçam os nacionais de outros países. Na Polônia, migrantes africanos, do sudeste da Ásia e do Oriente Médio sofreram ataques por parte de nacionalistas poloneses e também têm enfrentado dificuldades para acessar o território. 

A pronta e efetiva resposta dos países europeus à crise de refugiados decorrente do conflito na Ucrânia é representativa da capacidade da Europa em responder a esse tipo de situação e permite o questionamento: por que isso não foi feito em outras circunstâncias , como na crise da Síria em 2015-2016? Quando milhares de refugiados sírios e de outras partes do Oriente Médio e África chegaram pela Itália ou Grécia em barcos precários, correndo risco de morte, mulheres com crianças, pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, a resposta foi bastante distinta. A associação desses grupos com atividades terroristas, devido ao sentimento anti-muçulmano e à islamofobia, resultou em uma ação agressiva aos deslocamentos, inclusive reforçando plataformas políticas xenofóbicas, além de ações de criminalização, impedimento de acesso a território seguro e devolução, contrariando princípios basilares do Direito Internacional dos Refugiados e da estrutura jurídica europeia. 

Como esquecer que a mesma Hungria, que hoje mostra solidariedade para com os ucranianos,  instalou cercas nas fronteiras, legalizou a devolução de migrantes e fechou a fronteira com a Sérvia, além de ter associado a migração com diversos tipos de problemas e ameaças. De acordo com Parekh, é compreensível a recepção que os ucranianos têm recebido de seus vizinhos, muito em função da empatia construída pela fluidez de suas fronteiras e pelas diásporas constituídas nos países mais próximos, além do histórico pertencimento à antiga União Soviética. No mais, é mais fácil recepcionar os ucranianos por conta de seu direito já estabelecido de permanência nos países do bloco por até 90 dias. Ignorar, todavia, a racialização dessa resposta seria não perceber o contexto relacionado ao tema nos últimos anos, o que permite formular a hipótese de que a solidariedade existiu porque eles são percebidos como mais semelhantes, em termos de características físicas, de crenças, história. São vistos como parte da mesma “civilização” europeia. “Não são refugiados com um passado desconhecido”, conforme afirmou o primeiro-ministro búlgaro

A justificativa utilizada para que os não-europeus não recebam o mesmo tratamento que os ucranianos – por mais que também tenham sido afetados pela mesma Guerra -, e a resposta anterior que era dada aos outros deslocamentos de refugiados – notadamente provenientes do Oriente Médio e África -, pautam-se na ideia de que esses fluxos representam uma ameaça à segurança. Não há dados embasados que comprovem que pessoas do Oriente Médio ou da África estão mais ou menos propensas a cometer crimes ou a realizar um ato terrorista. Utilizar essa perspectiva é abrir espaço para um pensamento racializado, que associa determinados grupos étnicos, tidos como indesejados, a práticas criminosas. É racismo disfarçado de motivação de segurança.

A situação deixou mais claro algo que já ocorria anteriormente: que a dinâmica europeia de dar boas-vindas a pessoas refugiadas e migrantes é focada em grupos específicos. Essa eficiente resposta aos refugiados ucranianos deixou explícito que a abordagem de compartilhamento de responsabilidades – que envolve governos, sociedade civil, agências humanitárias e comunidades locais – e uma política de solidariedade e acolhida humanitária são possíveis e podem funcionar muito bem. O necessário é vontade política.

Muito se tem questionado se a partir desse exemplo, um novo paradigma para o acolhimento e proteção de pessoas refugiadas pode surgir, baseado no desenvolvimento esperado de uma lógica de ação pautada na solidariedade e nos direitos humanos. Infelizmente, mesmo com a importante, necessária e significativa resposta que tem sido dada para essa situação, quando se enxerga em perspectiva, a mudança de paradigma parece algo distante, pois só ocorrerá quando os critérios de raça, cor e nacionalidade deixarem de ser associados a questões de segurança. Enquanto discursos, percepções sociais e políticas e, principalmente, as ações corroborarem a racialização da segurança, a acolhida decente de pessoas refugiadas vai permanecer uma exceção.

[1] A resposta da Grã-Bretanha à crise tem sido distinta da que a União Europeia tem oferecido, visto que manteve o padrão de segurança recorrente e restringiu a concessão de entrada aos que tivessem familiares próximos vivendo na Grã-Bretanha, mas que teriam que ter visto prévio, para evitar a entrada de “infiltrados russos e extremistas”.

*Laís Azeredo, doutora pelo PPGRI San Tiago Dantas

**João Carlos Jarochinski Silva, Professor do Mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (PPGSOF/UFRR) e Coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFRR)

Imagem: Refugiados partindo da Ucrânia em direção à Polônia. Por: Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia/Wikimedia Commons.

A Crise de Refugiados Ucranianos: um retrato da linha de cor na comoção internacional

Carolina Antunes Condé de Lima*

Lucas Ramos Oliveira**

 

Desde o início da invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, a questão dos refugiados do conflito ganhou ampla cobertura midiática e gerou grande comoção internacional. Repórteres de todo o mundo acamparam na fronteira entre Ucrânia e Polônia para noticiar a chegada de famílias inteiras que fugiam do conflito. Além deles, milhares de voluntários também se dirigiram às fronteiras para receber os refugiados ucranianos com água, comida e cobertores; europeus abriram suas casas para receber os ucranianos; e toneladas de alimentos foram enviadas do Brasil para ajudar as vítimas da guerra. No entanto, ao mesmo tempo que as imagens do conflito emocionam, elas também levantam uma questão: por que os refugiados ucranianos geram mais comoção e recebem mais ajuda do que os demais grupos de refugiados ao redor do mundo? 

Para responder a essa pergunta, resgatamos a ideia suscitada por Du Bois (2021) sobre o mundo ser dividido por uma linha de cor e partimos da hipótese que por trás da comoção com os refugiados ucranianos há uma questão de racismo estrutural; ou seja, a solidariedade internacional com os ucranianos é um reflexo do pacto da branquitude, dando mais importância a fatos que acontecem com pessoas brancas e marginalizando outras questões. Para tanto, propomos uma breve análise da cobertura midiática e dos dados e respostas europeias frente a Crise de Refugiados de 2015 em comparação com  a Crise de Refugiados Ucranianos, a fim de mostrar a existência de uma linha de cor na comoção internacional.

A Criação da Ideia de Linha de Cor

A chegada dos europeus à América transformou o mundo (QUIJANO, 1998). Por mais determinista que essa afirmação possa parecer, ela resume em poucas palavras o que aconteceu nas relações históricas, intersociais, nas concepções de tempo, cultura e de desenvolvimento; além disso, do encontro dos europeus com as populações nativas da América, tem início um processo de racialização dessas populações originárias do continente. Desde então, estabeleceu-se um padrão de dominação e hierarquia que tem a ‘raça’ como elemento organizador. A partir dos primeiros contatos entre europeus e não-europeus, a ideia de raça passou a ter implicações diretas sobre os padrões de relação e interação humana. Ou seja, raça é uma construção social usada para hierarquizar a sociedade colonial em todas as suas dimensões, desde a divisão do trabalho, a possibilidade de ocupar espaços e até o acesso ao conhecimento. Em suma, são determinações que têm por base uma divisão feita por uma linha de cor, imposta na colonização e que permanece até hoje (GROSFOGUEL, 2016; QUIJANO, 1998; SILVA, 2021).

A colonização, seguida do processo de colonialidade, envolveu processos violentos que, como diz Fanon (1967), buscaram tirar daquele que foi colonizado qualquer resquício de humanidade. A violência de desumanizar o outro não foi apenas física, mas também emocional e cultural: do colonizado são retiradas suas manifestações culturais, seu entendimento de sociedade e de relações pessoais, sua organização social, sua língua e representações artísticas e seu sagrado; ou seja, do colonizado é arrancado o seu mundo de viver. Soma-se a isso o processo de desumanização dos corpos racializados pela violência contra seus corpos – desde o momento que foram sequestrados até os castigos corporais sofridos. É em cima desses conceitos, da naturalização da racialização e da retirada da humanidade dos corpos racializados que a identidade europeia se construiu; fruto de uma divisão de linha de cor, na qual o corpo racializado foi desumanizado e o corpo branco foi colocado no topo de uma hierarquia, que tem como fundamento a proteção dos seus. 

A identidade europeia, portanto, é pautada sobre o pacto narciso da branquitude (OLIVEIRA, 2020; SILVA, 2021), o qual entendemos como as

alianças inconsistentes, inter-grupais, caracterizadas pela ambiguidade e, no tocante ao racismo pela negação do problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica e política do negro, no universo social (SCHUMAN, 2012, p.28 apud OLIVEIRA, 2020, p.40).

Ou seja, podemos associar o pacto narciso da branquitude ao que hooks (2017, p. 86) chamou de ato privilegiado de nomear e Vitalis (2000) chamou de norm against noticing. Enquanto a ideia de hooks fala dos aspectos que são escondidos, ou marginalizados, nas discussões que formam teorias e interpretações dos fatos, Vitalis aponta também para o silenciamento de corpos racializados nos ambientes e discussões acadêmicas. Uma das consequências disso é que os problemas que atingem corpos racializados são excluídos da moral afetiva e da solidariedade internacional – seja por sua marginalização ou pela desumanização que persiste quando tratamos desses grupos.  

Para evidenciar isso, na próxima sessão iremos trabalhar com materiais e dados selecionados sobre a atual crise de refugiados ucraniana e traçar comparações com dados da Crise de Refugiados de 2015, a fim de mostrar a existência de uma linha de cor na comoção internacional. Especificamente, tentaremos contrastar o volume de refugiados de ambas as crises, a política de acolhimento realizada pela União Europeia (UE) e os países da Europa durante esses dois períodos e a cobertura midiática, especialmente no que se refere ao apelo emocional.

Duas Crises de Refugiados, Duas Narrativas 

Em setembro de 2015, dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apontaram que mais de 350 mil pessoas haviam tentado atravessar o Mediterrâneo — 2,4 mil desse montante havia morrido durante o percurso. Até o final daquele ano, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) indicava que pouco mais de um milhão de indivíduos tentaram chegar na Europa e que, desse contingente, 50% eram sírios fugindo do contexto de guerra civil, 20% afegãos e outros 7% iraquianos.

Levando em consideração o importante volume de indivíduos tentando acessar a Europa ocidental, Itália e Grécia – países que eram considerados porta de entrada dos refugiados -, assim como Alemanha, tiveram de ajustar suas políticas migratórias, o que teve reflexos políticos em todo o continente. Apesar do apoio inicial alemão para recepcionar os refugiados do Mediterrâneo e da União Europeia ter tentado equacionar esse contingente populacional entre seus Estados-membros, Áustria, Hungria, Polônia e República Tcheca rejeitaram o sistema de cotas da UE e construíram muros em suas fronteiras a fim de espantar a entrada de refugiados em seus territórios. Além disso, a França fechou suas fronteiras com a Itália.

Politicamente, é importante ressaltar também que a crise foi uma bandeira importante para o aumento no tom de vozes conservadoras por toda a Europa. No Reino Unido, a ala conservadora britânica se utilizou dessa questão para alavancar o Brexit. Na Itália, o fluxo migratório também foi mobilizado pela coalizão conservadora, que acabou recebendo o maior número de votos nas eleições de 2018. 

O apelo midiático dessa crise iniciou-se apenas no final de 2015, quando o corpo de Alan Kurdi, menino sírio de 5 anos, foi encontrado em uma praia na Turquia, por mais que a crise somasse números alarmantes durante todo o ano de 2015 e em anos anteriores. O desenho traçado pela mídia tratava menos da receptividade negativa da Europa e mais do horror que beirava as praias banhadas pelo Mediterrâneo.

Por outro lado, quando olhamos para o caso ucraniano de 2022, é gritante a diferença de postura. Em assembleia da União Europeia, foi decidida proteção humanitária a ucranianos por unanimidade. Ucranianos terão acesso ao mercado de trabalho, residência, assistência médica e educação infantil por um ano. O Reino Unido, que não participa mais da União Europeia, ofereceu mesada a quem acolhesse ucranianos em suas casas.

O caso polonês, nesse sentido, é o mais emblemático de todos. País que faz fronteira com a Ucrânia e é membro da União Europeia, a Polônia já recebeu mais de 2,1 milhões de refugiados ucranianos, de acordo com dados do ACNUR. O presidente do país, Andrzej Duda, declarou que muitos estavam sendo acolhidos pelas famílias polonesas “porque as pessoas sabem que devem abrir seus corações e receber os refugiados”.

Polônia e Ucrânia, importante ressaltar, possuem laços bastante estreitos. Muitos ucranianos trabalham na Polônia, assim como empresas polonesas têm operações na Ucrânia. Cerca de 1,5 milhão de ucranianos vivem na Polônia e muitos deles estão agora acomodando em suas casas parentes e amigos que chegam fugindo da guerra no país vizinho.

Os poloneses têm promovido diversas campanhas de doação de roupas de frio, cobertores, alimentos, itens de higiene como fraldas, absorventes femininos e dinheiro. Há centros de coleta de mantimentos e roupas em várias cidades onde as pessoas podem deixar suas doações para serem encaminhadas aos refugiados.

O próprio governo polonês tem sido bastante receptivo. No início de fevereiro, quando a Rússia estava pressionando a Ucrânia, o governo declarou que a Polônia também receberia um milhão de refugiados ucranianos se fosse necessário. Imediatamente após a invasão russa da Ucrânia, a Polônia rapidamente instalou oito chamados “pontos de recepção” ao longo dos 500 quilômetros da fronteira com a Ucrânia. Esses lugares oferecem comida quente, opções para tomar banho e também colchões para descansar temporariamente.

Em entrevista à CNN, o ex-diretor no ACNUR e na Organização Internacional para as Migrações, Jeff Crisp,  avaliou que a diferença na resposta dos países europeus entre as duas crises migratórias é nítida. De acordo com ele, “os ucranianos se deslocaram de forma mais rápida e em maior número, mas não há o mesmo senso de alarme e medo na Europa”. Crisp aponta alguns fatores que explicam a diferença e o primeiro deles é a discriminação de raça e etnia. “Os ucranianos são vistos como europeus brancos e cristãos”, explica. Os refugiados que vinham do Oriente Médio não eram percebidos como brancos, além de alguns serem muçulmanos. Para Crisp, essas características levaram os europeus a temerem possíveis ameaças terroristas.

Na esteira dessa diferenciação, africanos que moram na Ucrânia estavam tendo dificuldades de cruzar a fronteira. Polônia e Ucrânia negam que tenha havido discriminação na zona fronteiriça e disseram que os guardas são instruídos a deixar todos os estrangeiros passarem. Alguns africanos postaram vídeos nas mídias sociais acusando as autoridades de os impedirem de cruzar a fronteira durante dias, apesar do frio e da falta de comida ou outros suprimentos. Entre eles, milhares de jovens africanos que estavam estudando na Ucrânia, atraídos pelo relativo padrão alto do ensino e baixos custos das universidades ucranianas. Em contrapartida, os guardas teriam permitido que refugiados brancos entrassem na Polônia.

Para além do tratamento estatal, o tratamento midiático também é bastante díspar em relação às duas crises. Em primeiro lugar, a crise ucraniana é coberta de forma latente e massiva. Somos constantemente bombardeados por notícias sobre diversos aspectos da guerra e seus desdobramentos. A prioridade dada pelos veículos de mídia e a atenção monumental em comparação à crise no Mediterrâneo evidenciam a reafirmação do pacto de proteção da branquitude. A fala do próprio Jeff Crisp, nesse sentido, endossa essa avaliação.

Além disso, o ponto fulcral da crítica está no tom das reportagens de uma maneira geral. Grande parte da mídia internacional defende que a Ucrânia, país “relativamente europeu e civilizado, não deveria passar por isso”. Em não haver o constrangimento por parte dos jornalistas de fazer comparações sobre “a Ucrânia não ser um país de terceiro mundo, como Iraque e Afeganistão” e de os ucranianos “serem loiros de olhos azuis”, escancara-se o racismo que estrutura as relações sociais no Norte Global quando pensa as vítimas europeias e não-europeias de conflitos; ao mesmo tempo, o reconhecimento da dor do ucraniano como um semelhante, fato que não se encontra de maneira tão vocal ou explícita quando o conflito não ocorre em território europeu, expõe uma hierarquia subjetiva de corpos que são permitidos de receber afeto e solidariedade, ao mesmo tempo que nega tais sentimentos a outros corpos: corpos racializados.

A atual crise de refugiados ucraniana, quando em comparação com outras crises humanitárias, em específico com a crise de refugiados de 2015, nos permite recuperar Du Bois (2021) e afirmar que há uma linha de cor que distingue aqueles que são dignos de ajuda e refúgio daqueles que podem ser deixados para morrer. Nesse sentido, a solidariedade “internacional”, ao mesmo tempo que comove, também preocupa: enquanto, de um lado, tanto governos como empresas privadas se mobilizam para abrigar refugiados ucranianos; do outro lado, aos não-europeus é reservada apenas a morte.

Ao mesmo tempo, quando refletimos sobre essa conjuntura, fica igualmente evidente a estrutura racista pela qual se organizam as relações sociais sob o selo da ordem internacional vigente. Não seria surpreendente constatar futuramente, caso algo semelhante à onda de refugiados de 2015 ocorresse mais uma vez, que a crise de refugiados da guerra russo-ucraniana seja usada de subterfúgio para o impedimento de concessão de proteção humanitária a não-europeus. O pacto de proteção à branquitude demanda que, do outro lado da moeda, ocorra a exclusão sistemática daqueles que não se deleitam com o privilégio concedido pela estrutura.

 

REFERÊNCIAS

CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D’Salete. Cronologia de Rogério de Campos. – São Paulo: Vendeta, 2020

DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Editora Veneta. 1ª Edição. 2021.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Editora Ulisseia limitada, Lisboa. Tradução de SERAFIM FERREIRA, Transcrição: João Filipe Freitas, 1961.

GROSFOGUEL, Ramón: “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI”, Revista Sociedade e Estado, vol. 31, número 1, janeiro/abril 2016.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2.ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017

OLIVEIRA, Ananda Vilela da Silva. Epistemicídio e a academia de Relações Internacionais: o Projeto UNESCO e o afrodiaspórico sobre o Brasil e seu lugar no mundo. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en America Latina, 1998. 

SILVA, Karine de Souza. “Esse silêncio todo me atordoa”: a surdez e a cegueira seletivas para as dinâmicas raciais nas Relações Internacionais. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 229, p. 37-55, jan./mar. 2021. Disponível em: https://www12. senado.leg.br/ril/edicoes/58/229/ril_v58_n229_p37

VITALIS, Robert. The Graceful and Generous Liberal Gesture: Making Racism Invisible in American International Relations. Millennium: Journal of International Studies, 2000. Vol. 29, No. 2, p. 331-356. 2000.

 

* Doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). Bolsista CAPES. Pesquisadora no Grupos de Estudos sobre Defesa e Segurança (GEDES/UNESP),  membro do Observatório de Conflitos (GEDES) e do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI).

** Doutorando em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). Pesquisador no Grupos de Estudos sobre Defesa e Segurança (GEDES/UNESP) e membro do ONDJANGO/GEDES (Núcleo de Estudos sobre Política e Relações Internacionais em África).

Imagem: Refugiados ucranianos recebem assistência na Polônia. Por: Silar/Wikimedia Commons.