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Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: a grande mídia e as três linhas narrativas sobre o conflito (Parte 2)      

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

Neste atual conflito entre Rússia e Ucrânia, ainda que os EUA e OTAN não estejam diretamente engajados na violência do conflito – salvo pela disposição de armamentos –, é notável o modo como as construções midiáticas se assemelham às das coberturas do passado. As linhas mestras da narrativa ocidental se tornaram dominantes e se sobrepõem às frágeis tentativas de manipulação informacional direta do governo russo, que acabam isoladas e incapazes de produzir consensos fora do seu território. Afirmar que a guerra atual segue uma linha narrativa organizada pelo Ocidente não significa se mostrar favorável à invasão, ou acatar uma surreal legitimidade dessa violência organizada e de seus objetivos. Mas implica em observar como a economia dá atenção para este conflito ao desautorizar a ação russa a partir de pressupostos extremamente controversos, que afirmam um lugar de civilização e superioridade – que, por fim, são constructos comumente mobilizados em outros conflitos nos quais os países “ocidentais” estão embrenhados, para autorizar formas de intervenção e violência que se assemelham em barbárie (que como nos lembra Achilles Mbembe constituem o corpo noturno da democracia pós Guerra Fria).

Assim sendo, entendo que a cobertura midiática deste conflito pelas empresas de jornalismo americanas e europeias – e mesmo o controle sobre o enxame informacional nas redes – parecem figurar como linhas auxiliares da estratégia da OTAN sobre o conflito: negação de condicionantes históricos, deslegitimação do conflito, e estímulo à resistência independente ucraniana. Isso se manifesta através de estímulos à aceleração das decisões (com a profusão de imagens de destruições causadas pelos russos), bem como de agenda setting, legitimando o fornecimento de armamentos à Ucrânia, bem como colocando em evidência as mortes de civis para subsidiar pedidos de cessar fogo e de proteção humanitária. Nesse sentido, identifico, a priori, 3 linhas narrativas que parecem orientar interpretação e condenação da guerra a partir das redes de informação e desinformação: a) Excepcionalidade e sacralização do espaço europeu; b) Individualização e confusão estratégica; c) Disputas informacionais pela quantidade de mortos.

a) Excepcionalidade e sacralização do espaço europeu

É notório como a linha narrativa das reportagens, artigos e análises sobre a guerra tem como foco a sua deslegitimação com base na omissão de questões relativas à sua dimensão político-estratégica da guerra – isto é, ignorando as raízes históricas do conflito e a perene estabilidade europeia –, destacando uma suposta ruptura da paz no espaço europeu desde a Segunda Guerra Mundial. 

Na análise de Nic Robertson, da CNN, a Europa vinha a meio século experimentando uma paz duradoura, construída a partir da solidez e robustez das suas instituições políticas e monetárias, e esta seria a primeira vez desde 1939 que o espectro da guerra volta ao espaço europeu, descrito como civilizado, remontando uma ideia de invasões bárbaras, sem história ou contexto. Em primeiro lugar, os meios operam um argumento que restringe o espaço europeu ao que seria a Europa “ocidental”, pacífica, e que convenientemente, agora, se estende até a Ucrânia para produzir o argumento de violação da paz. Com isso, são descartadas todas as tensões militares, genocídios e bombardeios ao longo dos anos 1990 resultantes do esfacelamento da Iugoslávia, e se constrói uma imagem de ineditismo de conflito no continente. Em um segundo momento, tal argumento ignora que desde meados da década de 70, ainda que a Europa “ocidental” não tenha sido assolada por operações convencionais de guerra, ela foi berço de uma série de atentados terroristas contra a população, infraestruturas e autoridades produzidas pelos próprios Europeus do grupo Baader Meinhoff, do IRA e do ETA – que em geral questionavam fronteiras, formas de controle político, etc. 

Em sua capa do mês de março, a Time Magazine argumentou criticamente sobre o “retorno da história”, em uma alusão à expressão “fim da História” de Fukuyama, com a ascensão do capitalismo liberal e o fim da URSS. Ainda que de forma crítica, é fundamental destacar que a história nunca saiu da mesa para aqueles que vivem às margens da ordem neoliberal: ela se faz presente nos bombardeios em Belgrado, na Líbia e em Gaza, nos golpes na América Latina, e nas incursões policialescas nos morros e favelas, assim como na disposição de sistemas de vigilância e controle nas periferias e fronteiras estadunidenses, europeias, chinesas e russas. Essa história não é registrada ao vivo, mas como nota de rodapé da política internacional.

Essa narrativa acerca da excepcionalidade acaba tendo uma função aceleracionista, que legitima manobras militares, gastos e transferências de armas sob a justificativa de ameaça à estabilidade europeia. Tal narrativa é determinante para compor os discursos de parlamentares europeus e estadunidenses para a autorização de sanções contra a Rússia. De acordo com Simon Tisdal, essa narrativa presta suporte a uma ação militar mais engajada das forças da OTAN, a partir da percepção de uma inédita e brutal ameaça à civilização ocidental. Por um lado, apesar dessa narrativa favorecer a aceleração de mecanismos de contenção da ação russa, ela acaba por o fazer ignorando os determinantes históricos, militares e estratégicos que levaram ao conflito, e coloca a Europa num lugar de estabilidade civilizacional, perturbada por constantes barbarismos – uma narrativa característica de períodos anteriores que reforçava medidas duras contra imigrantes, evocando os casos de atentados terroristas (numa dualidade barbárie x civilização). 

b) Individualizacão e confusão estratégica

Um outro caminho adotado pelos conglomerados midiáticos tem sido o de contornar as importantes discussões relativas às dimensões político-estratégicas da guerra, atribuindo os dilemas e decisões aos indivíduos envolvidos no conflito, particularmente Vladmir Putin e Volodmyr Zelentsky. Essa individualização novamente ignora as razões históricas e militares do conflito, reduzindo as decisões de guerra, de comando e estratégia aos desígnios individuais dos presidentes.

Isso ocorre de modo mais sutil. A todo momento reportagens como a de Lucy Burton atribuem a guerra a uma decisão individual, quase discricionária de Putin: “Putin ordenou a invasão”;  “Putin mobilizou o exército”, e assim por diante. Um destaque foi dado à declaração do presidente estadunidense, Joe Biden, que classificara Putin como criminoso de guerra, e não a Rússia – ignorando que as decisões de guerra, militares e estratégicas pertencem a um corpo burocrático e não a governantes. Reduzir essa “razão de Estado” a decisões individuais é operar um argumento que corrobora com a ideia de barbárie e arbitrariedade (ainda que Putin, de fato, seja um líder autoritário), remetendo as decisões político-estratégicas a uma situação de instabilidade e desequilíbrio emocional das lideranças: o que novamente ignora as questões relativas aos avanços da OTAN, e que dificulta o debate sobre efetivos processos de negociação.

Em uma reportagem da CNN estadunidense, às vésperas do discurso State of the Union, inúmeros comentaristas buscaram descrever Putin como instável, nervoso e titubeante em seus primeiros discursos de guerra, algo que supostamente refletiria sobre as decisões tático-estratégicas supostamente equivocadas. Segundo diversas reportagens como as da Vox Magazine e do El País, os avanços russos estariam sendo comprometidos devido a características de contratação e formação dos soldados, por falta de combustível nos tanques, e tudo isso estaria alinhado a uma decisão individual de Putin ao ingressar no conflito.

Essa imagem de confusão e arbitrariedade forma uma linha auxiliar à estratégia dos EUA e OTAN, de modo a acelerar decisões políticas e estimular a opinião pública na direção de um êxito possível em caso de uma resistência militar ucraniana, legitimando a transferência de armamentos e medidas excepcionais para auxiliar o país no conflito. Nesse sentido, de acordo com uma pesquisa promovida pela Gallup, em torno de 73% dos cidadãos estadunidenses simpatizam com a Ucrânia, e dois terços dos americanos acreditam que os EUA devem manter seu compromisso com a OTAN.

Um outro lado dessa linha narrativa é a construção da ideia de resistência heroica de Zelentsky. O presidente ucraniano já tem sua trajetória política resultante de uma confusão entre ficção e realidade, ao protagonizar uma série – “Servo do Povo”, a qual, inclusive, o Netflix voltou a exibir – às vésperas da eleição, na qual ele se tornava presidente do país (livrando-o da corrupção e buscando integrá-lo à União Europeia). Não há um só dia em que seus discursos não sejam reproduzidos e analisados pela grande mídia, destacando sua perspicácia e enquadramento da OTAN para seu engajamento no conflito – como quando ele se direcionou ao parlamento dos países europeus, da União Europeia, e dos EUA, em cada um utilizando um artifício discursivo; ou quando o presidente apareceu de surpresa na transmissão do Grammy. Com frequência, no entanto, os meios passaram a enaltecer a decisão do presidente em comandar uma resistência popular em Kiev, conclamando civis a se engajarem no conflito – algo que para muitos analistas seria extremamente arriscado. 

Essas construções forçam uma dialética entre um herói esquemático e um autocrata ensandecido, um movimento que, novamente, descarta o debate histórico estratégico, e força um envolvimento emocional com a disputa. Nessa dinâmica, mesmo em uma situação de profunda desvantagem militar entre Ucrânia e Rússia, constrói-se uma hipótese de resistência possível – pela contraditória via de engajamento civil no conflito – ante uma confusão estratégica russa. Com isso, o apoio popular ao armamentismo da Ucrânia e ao estabelecimento de uma zona de exclusão aérea vem crescendo entre os países da OTAN. 

c) Corpos e Imagens

Uma vertente comum em todas as guerras, e que geralmente produz um efeito não apenas sobre a população em geral, mas sobre a moral dos combatentes também, é a disputa pela quantidade de mortos (civis e combatentes). Potencialmente, um número elevado de mortes de combatentes de um lado tende a afetar a moral desta tropa, a qual se questiona sobre a eficácia da estratégia e o sentido do conflito – portanto aumentando a fricção de guerra, como debate Clausewitz. Esse efeito também é sentido pela população, que paulatinamente retira seu apoio sobre a empreitada militar, algo que foi verificado nos EUA durante a Guerra do Vietnã, principalmente a partir da ação de jornalistas independentes, que revelavam a quantidade de mortes de combatentes e as condições precárias no campo de batalha[1]. Quando a questão de mortes civis é trazida à tona, isso tem um efeito ainda mais intenso sobre a população, que passa a pressionar por um cessar fogo e medidas humanitárias.

Nesse caso, a ação midiática tem a função de pressionar o estabelecimento de uma agenda humanitária e de desmobilizar o apoio popular aos conflitos – algo extremamente positivo. No entanto, em diversas ocasiões, o não registro adequado de mortes de civis e combatentes tem como função a produção de um conflito Tragedy-Free, ou seja, sanitarizado, supostamente cirúrgico e, portanto, legítimo, como aponta Der Derian em sua teoria da Virtuous War. O autor entende que os conflitos nos quais EUA e OTAN se inseriram nos últimos anos contaram com uma ação midiática que buscava inicialmente engajar a sociedade e, ao mesmo tempo, tolerar os abusos estadunidenses contra civis, além das práticas de tortura em prisões militares – ora escondendo as mortes de civis provocadas por sua incursão, ora assumindo discurso oficialista de “efeito colateral”.

No caso do atual conflito, verifica-se uma crescente disputa informacional a respeito da quantidade de mortos que envolve três diferentes atores, a Ucrânia, a Rússia e o grupo formado por EUA/OTAN/ONU, em três categorias diferentes “Mortes Civis”, “Mortes de Combatentes Russos” e Mortes de Combatentes Ucranianos”. Enquanto o governo da Ucrânia estima em torno de 7 mil mortos civis, dados das Nações Unidas confirmam a morte de pouco mais de 2 mil civis, enquanto o governo russo não confirma nenhuma dessas mortes. No que tange à morte de combatentes ucranianos, os EUA estimam em torno de 4 mil mortos, algo confirmado pelo governo ucraniano. Por fim, no que tange a morte de combatentes russos, os dados são muito discrepantes: as estimativas da OTAN são de mais de 15 mil mortos, enquanto as do governo russo são de menos de 1400 mortos[2]. Tamanha discrepância em relação às mortes civis e de combatentes russos revela as estratégias das partes envolvidas em minimizar seus erros estratégicos e maximizar seus êxitos. 

No entanto, a linha dominante da narrativa midiática tem sido a de evitar a relativização dos números (ou seja, essa disputa discrepante que se constrói), ora se apoiando nas estimativas mais conservadoras, ora se apoiando nas estimativas mais amplas. No entanto, com o anúncio de um elevado número de mortes civis na cidade de Bucha – e a proliferação de inúmeras imagens e fotos da catástrofe humanitária – o argumento principal do governo Zelentsky tem sido de um genocídio por parte dos russos, algo que já é tomado como certo em algumas análises e publicações.  Ainda que quaisquer mortes civis devam ser condenadas em um conflito, e suas condições investigadas para a identificação de culpados, há um salto significativo para uma situação de genocídio, e a urgente associação das imagens e narrativas nesse sentido tem um enorme impacto não apenas sobre o conflito, mas reforça ainda mais as tensões entre os países.

Ainda, a produção de imagens de guerra e destruição veiculadas nas mídias sociais e, consequentemente, nos veículos televisivos e portais de notícia tem sido um importante mecanismo de produção de efeitos de impedimento e desmobilização na Guerra. Boa parte da cobertura televisiva e das mídias sociais tem buscado circular imagens de destruição e sofrimento humano, as quais produzem efeitos de constrangimento e impedimento das ações militares – principalmente russas. No entanto, a urgência dessa prática tem levado a situações vexatórias de desinformação, como a das imagens veiculadas pela mídia ocidental a partir das redes sociais, de um tanque russo que teria atropelado um carro civil em Kiev – quando na verdade se tratava de um tanque ucraniano. Um caso semelhante é o de um vídeo de um drone que teria registrado a destruição de um comboio russo, compartilhado por uma conta oficial da Ucrânia, mas que ao fim se tratava de um vídeo da guerra da Síria em 2020

Isso reforça que a desinformação não é apenas uma ação exclusiva das forças russas, mas uma estratégia mobilizada por ambas as partes no conflito. Em uma reportagem conduzida pela BBC, fica evidente como inúmeros casos de vídeos, imagens falsas ou antigas têm sido utilizados pelos enxames favoráveis e contrários à invasão da Ucrânia, construindo um amplo leque desinformacional.

Reitero que é fundamental a condenação desta e de quaisquer guerras, seja na sua dimensão de bombardeios estratégicos, como no caso do bombardeio da coalisão europeia sobre a Líbia, sob a forma de guerras de contra insurgência – como nas fases finais da invasão estadunidense do Iraque pelos EUA –, de assassinatos extrajudiciais com drones como as promovidas pelos EUA e Israel, e fundamentalmente como esta guerra convencional mobilizada pela Rússia. No entanto, tal condenação deve se dar sobre bases e princípios sólidos da Carta das Nações Unidas, do Direito Humanitário Internacional, e das múltiplas convenções sobre armamentos, e não se sustentando sobre frágeis dualidades e constructos históricos que reforçam auto-imagens duvidosas – as quais ao mesmo tempo que condenam a guerra, eximem as potencias europeias os EUA, e mesmo a Rússia, de sua responsabilidade nas intervenções e conflitos provocados nos últimos 40 anos. Mais do que isso, a condenação deve considerar as razões políticas do conflito, compreendendo e discutindo de forma ampla as condições históricas e mesmo os argumentos da potência agressora, o que teria o potencial de produzir discussões e respostas mais adequadas e ao conflito, contribuindo de forma mais eficaz para seu encerramento.

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

[1] O jornalista Jonh Pilger foi um dos correspondentes de guerra que furaram os bloqueios estadunidenses, e produziu a extensa reportagem “The Quiet Minority”, revelando as condições precárias de guerra e as mortes de soldados não mostradas na mídia: https://www.youtube.com/watch?v=krcNTkAgRrA. Ela contribuiu para reforçar a chamada “Síndrome do Vietnã”, um temor generalizado da sociedade em ingressar em conflitos de grande proporção.

[2] Vide o compilado de informações feito pelo Wikipedia a partir de dados oficiais que podem ser acessados na própria página. O autor verificou cada uma das fontes indicadas no site, averiguando sua atualização até o dia da escrita deste artigo.

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