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A Crise de Refugiados Ucranianos: um retrato da linha de cor na comoção internacional

Carolina Antunes Condé de Lima*

Lucas Ramos Oliveira**

 

Desde o início da invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, a questão dos refugiados do conflito ganhou ampla cobertura midiática e gerou grande comoção internacional. Repórteres de todo o mundo acamparam na fronteira entre Ucrânia e Polônia para noticiar a chegada de famílias inteiras que fugiam do conflito. Além deles, milhares de voluntários também se dirigiram às fronteiras para receber os refugiados ucranianos com água, comida e cobertores; europeus abriram suas casas para receber os ucranianos; e toneladas de alimentos foram enviadas do Brasil para ajudar as vítimas da guerra. No entanto, ao mesmo tempo que as imagens do conflito emocionam, elas também levantam uma questão: por que os refugiados ucranianos geram mais comoção e recebem mais ajuda do que os demais grupos de refugiados ao redor do mundo? 

Para responder a essa pergunta, resgatamos a ideia suscitada por Du Bois (2021) sobre o mundo ser dividido por uma linha de cor e partimos da hipótese que por trás da comoção com os refugiados ucranianos há uma questão de racismo estrutural; ou seja, a solidariedade internacional com os ucranianos é um reflexo do pacto da branquitude, dando mais importância a fatos que acontecem com pessoas brancas e marginalizando outras questões. Para tanto, propomos uma breve análise da cobertura midiática e dos dados e respostas europeias frente a Crise de Refugiados de 2015 em comparação com  a Crise de Refugiados Ucranianos, a fim de mostrar a existência de uma linha de cor na comoção internacional.

A Criação da Ideia de Linha de Cor

A chegada dos europeus à América transformou o mundo (QUIJANO, 1998). Por mais determinista que essa afirmação possa parecer, ela resume em poucas palavras o que aconteceu nas relações históricas, intersociais, nas concepções de tempo, cultura e de desenvolvimento; além disso, do encontro dos europeus com as populações nativas da América, tem início um processo de racialização dessas populações originárias do continente. Desde então, estabeleceu-se um padrão de dominação e hierarquia que tem a ‘raça’ como elemento organizador. A partir dos primeiros contatos entre europeus e não-europeus, a ideia de raça passou a ter implicações diretas sobre os padrões de relação e interação humana. Ou seja, raça é uma construção social usada para hierarquizar a sociedade colonial em todas as suas dimensões, desde a divisão do trabalho, a possibilidade de ocupar espaços e até o acesso ao conhecimento. Em suma, são determinações que têm por base uma divisão feita por uma linha de cor, imposta na colonização e que permanece até hoje (GROSFOGUEL, 2016; QUIJANO, 1998; SILVA, 2021).

A colonização, seguida do processo de colonialidade, envolveu processos violentos que, como diz Fanon (1967), buscaram tirar daquele que foi colonizado qualquer resquício de humanidade. A violência de desumanizar o outro não foi apenas física, mas também emocional e cultural: do colonizado são retiradas suas manifestações culturais, seu entendimento de sociedade e de relações pessoais, sua organização social, sua língua e representações artísticas e seu sagrado; ou seja, do colonizado é arrancado o seu mundo de viver. Soma-se a isso o processo de desumanização dos corpos racializados pela violência contra seus corpos – desde o momento que foram sequestrados até os castigos corporais sofridos. É em cima desses conceitos, da naturalização da racialização e da retirada da humanidade dos corpos racializados que a identidade europeia se construiu; fruto de uma divisão de linha de cor, na qual o corpo racializado foi desumanizado e o corpo branco foi colocado no topo de uma hierarquia, que tem como fundamento a proteção dos seus. 

A identidade europeia, portanto, é pautada sobre o pacto narciso da branquitude (OLIVEIRA, 2020; SILVA, 2021), o qual entendemos como as

alianças inconsistentes, inter-grupais, caracterizadas pela ambiguidade e, no tocante ao racismo pela negação do problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica e política do negro, no universo social (SCHUMAN, 2012, p.28 apud OLIVEIRA, 2020, p.40).

Ou seja, podemos associar o pacto narciso da branquitude ao que hooks (2017, p. 86) chamou de ato privilegiado de nomear e Vitalis (2000) chamou de norm against noticing. Enquanto a ideia de hooks fala dos aspectos que são escondidos, ou marginalizados, nas discussões que formam teorias e interpretações dos fatos, Vitalis aponta também para o silenciamento de corpos racializados nos ambientes e discussões acadêmicas. Uma das consequências disso é que os problemas que atingem corpos racializados são excluídos da moral afetiva e da solidariedade internacional – seja por sua marginalização ou pela desumanização que persiste quando tratamos desses grupos.  

Para evidenciar isso, na próxima sessão iremos trabalhar com materiais e dados selecionados sobre a atual crise de refugiados ucraniana e traçar comparações com dados da Crise de Refugiados de 2015, a fim de mostrar a existência de uma linha de cor na comoção internacional. Especificamente, tentaremos contrastar o volume de refugiados de ambas as crises, a política de acolhimento realizada pela União Europeia (UE) e os países da Europa durante esses dois períodos e a cobertura midiática, especialmente no que se refere ao apelo emocional.

Duas Crises de Refugiados, Duas Narrativas 

Em setembro de 2015, dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apontaram que mais de 350 mil pessoas haviam tentado atravessar o Mediterrâneo — 2,4 mil desse montante havia morrido durante o percurso. Até o final daquele ano, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) indicava que pouco mais de um milhão de indivíduos tentaram chegar na Europa e que, desse contingente, 50% eram sírios fugindo do contexto de guerra civil, 20% afegãos e outros 7% iraquianos.

Levando em consideração o importante volume de indivíduos tentando acessar a Europa ocidental, Itália e Grécia – países que eram considerados porta de entrada dos refugiados -, assim como Alemanha, tiveram de ajustar suas políticas migratórias, o que teve reflexos políticos em todo o continente. Apesar do apoio inicial alemão para recepcionar os refugiados do Mediterrâneo e da União Europeia ter tentado equacionar esse contingente populacional entre seus Estados-membros, Áustria, Hungria, Polônia e República Tcheca rejeitaram o sistema de cotas da UE e construíram muros em suas fronteiras a fim de espantar a entrada de refugiados em seus territórios. Além disso, a França fechou suas fronteiras com a Itália.

Politicamente, é importante ressaltar também que a crise foi uma bandeira importante para o aumento no tom de vozes conservadoras por toda a Europa. No Reino Unido, a ala conservadora britânica se utilizou dessa questão para alavancar o Brexit. Na Itália, o fluxo migratório também foi mobilizado pela coalizão conservadora, que acabou recebendo o maior número de votos nas eleições de 2018. 

O apelo midiático dessa crise iniciou-se apenas no final de 2015, quando o corpo de Alan Kurdi, menino sírio de 5 anos, foi encontrado em uma praia na Turquia, por mais que a crise somasse números alarmantes durante todo o ano de 2015 e em anos anteriores. O desenho traçado pela mídia tratava menos da receptividade negativa da Europa e mais do horror que beirava as praias banhadas pelo Mediterrâneo.

Por outro lado, quando olhamos para o caso ucraniano de 2022, é gritante a diferença de postura. Em assembleia da União Europeia, foi decidida proteção humanitária a ucranianos por unanimidade. Ucranianos terão acesso ao mercado de trabalho, residência, assistência médica e educação infantil por um ano. O Reino Unido, que não participa mais da União Europeia, ofereceu mesada a quem acolhesse ucranianos em suas casas.

O caso polonês, nesse sentido, é o mais emblemático de todos. País que faz fronteira com a Ucrânia e é membro da União Europeia, a Polônia já recebeu mais de 2,1 milhões de refugiados ucranianos, de acordo com dados do ACNUR. O presidente do país, Andrzej Duda, declarou que muitos estavam sendo acolhidos pelas famílias polonesas “porque as pessoas sabem que devem abrir seus corações e receber os refugiados”.

Polônia e Ucrânia, importante ressaltar, possuem laços bastante estreitos. Muitos ucranianos trabalham na Polônia, assim como empresas polonesas têm operações na Ucrânia. Cerca de 1,5 milhão de ucranianos vivem na Polônia e muitos deles estão agora acomodando em suas casas parentes e amigos que chegam fugindo da guerra no país vizinho.

Os poloneses têm promovido diversas campanhas de doação de roupas de frio, cobertores, alimentos, itens de higiene como fraldas, absorventes femininos e dinheiro. Há centros de coleta de mantimentos e roupas em várias cidades onde as pessoas podem deixar suas doações para serem encaminhadas aos refugiados.

O próprio governo polonês tem sido bastante receptivo. No início de fevereiro, quando a Rússia estava pressionando a Ucrânia, o governo declarou que a Polônia também receberia um milhão de refugiados ucranianos se fosse necessário. Imediatamente após a invasão russa da Ucrânia, a Polônia rapidamente instalou oito chamados “pontos de recepção” ao longo dos 500 quilômetros da fronteira com a Ucrânia. Esses lugares oferecem comida quente, opções para tomar banho e também colchões para descansar temporariamente.

Em entrevista à CNN, o ex-diretor no ACNUR e na Organização Internacional para as Migrações, Jeff Crisp,  avaliou que a diferença na resposta dos países europeus entre as duas crises migratórias é nítida. De acordo com ele, “os ucranianos se deslocaram de forma mais rápida e em maior número, mas não há o mesmo senso de alarme e medo na Europa”. Crisp aponta alguns fatores que explicam a diferença e o primeiro deles é a discriminação de raça e etnia. “Os ucranianos são vistos como europeus brancos e cristãos”, explica. Os refugiados que vinham do Oriente Médio não eram percebidos como brancos, além de alguns serem muçulmanos. Para Crisp, essas características levaram os europeus a temerem possíveis ameaças terroristas.

Na esteira dessa diferenciação, africanos que moram na Ucrânia estavam tendo dificuldades de cruzar a fronteira. Polônia e Ucrânia negam que tenha havido discriminação na zona fronteiriça e disseram que os guardas são instruídos a deixar todos os estrangeiros passarem. Alguns africanos postaram vídeos nas mídias sociais acusando as autoridades de os impedirem de cruzar a fronteira durante dias, apesar do frio e da falta de comida ou outros suprimentos. Entre eles, milhares de jovens africanos que estavam estudando na Ucrânia, atraídos pelo relativo padrão alto do ensino e baixos custos das universidades ucranianas. Em contrapartida, os guardas teriam permitido que refugiados brancos entrassem na Polônia.

Para além do tratamento estatal, o tratamento midiático também é bastante díspar em relação às duas crises. Em primeiro lugar, a crise ucraniana é coberta de forma latente e massiva. Somos constantemente bombardeados por notícias sobre diversos aspectos da guerra e seus desdobramentos. A prioridade dada pelos veículos de mídia e a atenção monumental em comparação à crise no Mediterrâneo evidenciam a reafirmação do pacto de proteção da branquitude. A fala do próprio Jeff Crisp, nesse sentido, endossa essa avaliação.

Além disso, o ponto fulcral da crítica está no tom das reportagens de uma maneira geral. Grande parte da mídia internacional defende que a Ucrânia, país “relativamente europeu e civilizado, não deveria passar por isso”. Em não haver o constrangimento por parte dos jornalistas de fazer comparações sobre “a Ucrânia não ser um país de terceiro mundo, como Iraque e Afeganistão” e de os ucranianos “serem loiros de olhos azuis”, escancara-se o racismo que estrutura as relações sociais no Norte Global quando pensa as vítimas europeias e não-europeias de conflitos; ao mesmo tempo, o reconhecimento da dor do ucraniano como um semelhante, fato que não se encontra de maneira tão vocal ou explícita quando o conflito não ocorre em território europeu, expõe uma hierarquia subjetiva de corpos que são permitidos de receber afeto e solidariedade, ao mesmo tempo que nega tais sentimentos a outros corpos: corpos racializados.

A atual crise de refugiados ucraniana, quando em comparação com outras crises humanitárias, em específico com a crise de refugiados de 2015, nos permite recuperar Du Bois (2021) e afirmar que há uma linha de cor que distingue aqueles que são dignos de ajuda e refúgio daqueles que podem ser deixados para morrer. Nesse sentido, a solidariedade “internacional”, ao mesmo tempo que comove, também preocupa: enquanto, de um lado, tanto governos como empresas privadas se mobilizam para abrigar refugiados ucranianos; do outro lado, aos não-europeus é reservada apenas a morte.

Ao mesmo tempo, quando refletimos sobre essa conjuntura, fica igualmente evidente a estrutura racista pela qual se organizam as relações sociais sob o selo da ordem internacional vigente. Não seria surpreendente constatar futuramente, caso algo semelhante à onda de refugiados de 2015 ocorresse mais uma vez, que a crise de refugiados da guerra russo-ucraniana seja usada de subterfúgio para o impedimento de concessão de proteção humanitária a não-europeus. O pacto de proteção à branquitude demanda que, do outro lado da moeda, ocorra a exclusão sistemática daqueles que não se deleitam com o privilégio concedido pela estrutura.

 

REFERÊNCIAS

CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D’Salete. Cronologia de Rogério de Campos. – São Paulo: Vendeta, 2020

DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Editora Veneta. 1ª Edição. 2021.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Editora Ulisseia limitada, Lisboa. Tradução de SERAFIM FERREIRA, Transcrição: João Filipe Freitas, 1961.

GROSFOGUEL, Ramón: “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI”, Revista Sociedade e Estado, vol. 31, número 1, janeiro/abril 2016.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2.ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017

OLIVEIRA, Ananda Vilela da Silva. Epistemicídio e a academia de Relações Internacionais: o Projeto UNESCO e o afrodiaspórico sobre o Brasil e seu lugar no mundo. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en America Latina, 1998. 

SILVA, Karine de Souza. “Esse silêncio todo me atordoa”: a surdez e a cegueira seletivas para as dinâmicas raciais nas Relações Internacionais. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 229, p. 37-55, jan./mar. 2021. Disponível em: https://www12. senado.leg.br/ril/edicoes/58/229/ril_v58_n229_p37

VITALIS, Robert. The Graceful and Generous Liberal Gesture: Making Racism Invisible in American International Relations. Millennium: Journal of International Studies, 2000. Vol. 29, No. 2, p. 331-356. 2000.

 

* Doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). Bolsista CAPES. Pesquisadora no Grupos de Estudos sobre Defesa e Segurança (GEDES/UNESP),  membro do Observatório de Conflitos (GEDES) e do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI).

** Doutorando em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP). Pesquisador no Grupos de Estudos sobre Defesa e Segurança (GEDES/UNESP) e membro do ONDJANGO/GEDES (Núcleo de Estudos sobre Política e Relações Internacionais em África).

Imagem: Refugiados ucranianos recebem assistência na Polônia. Por: Silar/Wikimedia Commons.

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