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Por que ainda precisamos falar sobre crianças-soldado

12 de fevereiro é considerado o Dia Internacional Contra o Uso de Crianças-Soldado. Nessa data, em 2002, um dos principais documentos acerca do emprego de crianças-soldado entrou em vigor: o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Crianças Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, atualmente assinado por mais de cem países, incluindo o Brasil. Esse Protocolo é resultado de um processo de estabelecimento dos direitos da criança que ocorreu, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, quando alguns documentos internacionais sobre a infância foram assinados como a Declaração dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil (1999). De modo geral, todos esses instrumentos procuram estabelecer que a criança deve ser poupada da violência, da guerra, do trabalho e da exploração sexual e garante direito ao lazer, à educação e à saúde.
O objetivo de lembrar anualmente o dia 12 de fevereiro é chamar a atenção para o fato de que as crianças continuam sendo empregadas nos conflitos armados. Uma das metas do Protocolo Facultativo é garantir que nenhuma pessoa com menos de 18 anos seja utilizada ou treinada por forças armadas, grupos armados e outras organizações militares em qualquer função – incluindo funções que não envolvam o uso de armas – e que os menores de 18 anos que já estão engajados em algum serviço militar sejam liberados de suas funções e recebam a devida assistência para retornar às suas vidas civis.
Logo, o propósito do Protocolo não é apenas impedir que crianças sejam usadas em diversas funções durante os conflitos armado, mas prevenir que crianças sejam incentivadas a participar de atividades militares. Esse incentivo pode ocorrer de várias formas, até mesmo de formas mais sutis – como dar armas de presente para crianças ou ensiná-las a atirar, prática recorrente em muitos países nos quais o acesso a armas de fogo é amplo. Atingir um consenso global acerca da idade apropriada para entrar nas forças armadas e nas demais atividades militares é uma meta difícil de ser atingida, pois esbarra nas legislações internas de alguns países que consentem que menores de 18 anos participem de serviços militares. É o caso do Reino Unido que permite que pessoas com 16 anos juntem-se às suas forças armadas. Esse exemplo nos lembra que quando falamos em crianças-soldado não estamos nos referindo somente a crianças que estejam envolvidas em algum conflito armado em uma região pobre – imagem tradicionalmente reproduzida pela mídia, pelos documentos publicados pela ONU e por algumas ONGs e pelas histórias contadas nos filmes. De acordo com o Unicef, o termo criança-soldado designa qualquer menor de 18 anos que cumpre alguma função junto a uma força armada ou grupo armado– atuando como cozinheiras, escravas sexuais, espiãs, carregadores de munição, portando armas, etc. De fato, é um conceito amplo que busca abarcar as diversas maneiras que a atividade militar se manifesta para as crianças. Assim, trata-se de uma questão mais profunda que envolve conscientizar as crianças e os adultos de que o trabalho militar exige maturidade física e psicológica para ser realizado.
Outro desafio importante é nomear publicamente e punir as partes que empregam crianças-soldado diante do Tribunal Penal Internacional ou cortes nacionais. É mais simples enquadrar atores estatais, exigindo um comprometimento maior e mudança de postura, visto que muitos Estados são membros da ONU e signatários do Protocolo. Entretanto, existem atores não estatais – como o Estado Islâmico – que também utilizam crianças. Controlar esses atores, mapear de que forma as crianças estão sendo utilizadas, punir os responsáveis e impedir que mais crianças sejam recrutadas são objetivos ainda mais complexos. Os mecanismos legais e os documentos de proteção das crianças, apesar de relevantes, são instrumentos limitados que não abrangem toda a dimensão do emprego de crianças-soldado e não dialogam com todos os atores envolvidos na questão. Temos que considerar que os atores não estatais são partes importantes nos conflitos armados atuais, os quais são formados por uma rede de atores que interagem entre si. Estados, grupos armados, organizações internacionais, empresas privadas e forças armadas estabelecem diálogos e relações políticas e econômicas de forma dinâmica. Pensar em modos de impedir a utilização de crianças-soldado deve levar em conta todos esses atores.
Uma forma de atingir grupos e Estados que utilizam crianças-soldado é desarticulá-los, restringindo seu financiamento, dificultando a aquisição de armamentos, componentes militares e munição. Todavia, controlar os fluxos de armamentos – legais e ilegais – que chegam aos grupos e aos países que utilizam crianças demanda um esforço maior de desmontar todo um esquema de enriquecimento que pode afetar diversas regiões do mundo. Esse processo envolve tanto cortar a ajuda militar a países cujas forças armadas recrutam menores de idade, quanto fiscalizar a venda e o tráfico de armas, o que pode comprometer as atividades comerciais de grandes empresas de armamentos e as rotas ilegais utilizadas no tráfico. Assim, a decisão de controlar os armamentos que chegam às crianças-soldado varia também em função de interesses políticos e econômicos e não apenas em função da proteção das crianças. Destarte, a retórica em torno do combate ao emprego de crianças-soldado aparece quando é conveniente trazer à tona o assunto a fim de reforçar que determinado grupo ou país é um inimigo que deve ser combatido e privado de seu financiamento e aquisição de armas. Contudo, quando não há a percepção de inimizade, a proteção da criança aparece somente em segundo plano.
Apesar do esforço de criar documentos internacionais de proteção das crianças, sabemos que ainda há muitos casos de emprego de crianças-soldado em todo o mundo. Na década de 1990, emergiram diversos conflitos em que crianças-soldado eram utilizadas em países como Serra Leoa, Libéria, Moçambique, Uganda, fazendo com que o assunto ganhasse maior repercussão internacional e fosse divulgado pela mídia. O tema foi até mesmo incluído na agenda do Conselho de Segurança da ONU, em 1999. Porém, a utilização de crianças-soldado não se resume aos anos de 1990 e não terminou após esses conflitos. Atualmente, ainda noticiamos casos de crianças envolvidas em conflitos armados em algumas regiões do Oriente Médio, no Sudão do Sul, em Mianmar e na Colômbia, país em que, por outro lado, muitas já foram reintroduzidas à vida civil. Dezesseis anos após o Protocolo Facultativo, ainda precisamos falar sobre as crianças-soldado, refletindo sobre como estabelecer um conceito global de criança e ao mesmo tempo respeitar as particularidades de cada região do mundo; como garantir a dignidade e os direitos da criança; e como garantir que atores estatais e não estatais comprometam-se a não utilizar crianças-soldado. O tema envolve não somente as crianças, mas uma rede de atores e as relações de poder que estabelecem entre si.
Imagem:

. Por Stephen Davies.

Giovanna Ayres é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (UNESP – UNICAMP – PUC/SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Autonomia estratégica brasileira e as negociações entre Boeing e Embraer

No último dia 21, por meio de um comunicado conjunto, a estadunidense Boeing e a brasileira Embraer tornaram pública a existência de tratativas em relação a uma potencial combinação de seus negócios. A iniciativa segue os eventos de outubro do ano passado, quando a europeia Airbus, principal competidora da Boeing, adquiriu a participação majoritária no programa de jatos C-Series da canadense Bombardier – principal concorrente da Embraer no mercado de aeronaves comerciais regionais. No entanto, a despeito do anúncio da Boeing e Embraer, a formalização e o formato do negócio continuam indefinidos, sobretudo pela necessidade de aprovação do governo brasileiro.
Empresa de capital aberto, a maior parte das ações da Embraer encontra-se sob posse da gestora norte-americana Brandes Investments Partners, a qual exerce controle sobre 14% das ações da empresa. Ainda que com participação restrita a 5,4% das ações, o governo federal possui a prerrogativa da golden share, o que permite o controle sobre decisões estratégicas da empresa e, potencialmente, o veto a qualquer tipo de fusão ou aquisição. O atual mandatário do governo brasileiro já se manifestou contrário a qualquer negociação envolvendo o controle acionário da Embraer. Em mesma medida, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, se mostrou favorável ao acordo desde que mantidas as prerrogativas estratégicas do governo brasileiro.
Cabe destacar que, em meados de 2017, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, encaminhou ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma consulta para saber como alterar as regras das golden shares. Entretanto, membros do governo federal negam que foi cogitado encerrar com todas as ações especiais da Embraer. De acordo com o secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, Flávio Corrêa Basílio, a proposta defendida por Meirelles preservaria as regras referentes a questões deimportância para a defesa.
Embora tal mecanismo também exista para outras empresas, a golden share no contexto da Embraer possui maior relevância estratégica por seu papel na base industrial de defesa do país, traduzida especialmente na estreita relação com os projetos da Força Aérea Brasileira (FAB). Única empresa brasileira a figurar no ranking das 100 maiores empresas de defesa do mundo, as vendas de armamentos representaram 15% de todos os negócios realizados pela Embraer em 2016, segundo dados organizados e disponibilizados pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI).
Ainda de acordo com o SIPRI, as vendas de armamentos da Embraer cresceram 10% entre 2015 e 2016, atingindo a cifra de US$ 930 milhões – 0,2% do total de armamentos vendidos pelas 100 maiores do mundo. Em comparação, as vendas da Boeing em 2016, segunda maior empresa de defesa do mundo, totalizaram US$ 29 bilhões – ou 7% das vendas de armamento das maiores empresas de defesa do mundo. Dessa forma, perante tamanha discrepância de capacidades e dimensão, as incertezas e preocupações em torno de uma possível aquisição pela Boeing são ainda mais agudas quando considerada a atuação da divisão de Defesa e Segurança da empresa brasileira.
A redução nos orçamentos de defesa no imediato pós-Guerra Fria, em conjunção com fatores de natureza tecnológica e de doutrina militar, implicou em significativas transformações na organização da indústria de defesa em nível mundial. Foi durante esse período que a Boeing se consolidou como uma das maiores empresas de defesa dos EUA e do mundo. Os elevados custos envolvidos no desenvolvimento e produção de novos armamentos, gradativamente mais complexos em termos tecnológicos, e as dificuldades em garantir escala produtiva a partir do mercado doméstico, impulsionaram a internacionalização da produção de armamentos. Uma das principais consequências desse processo foi o agravamento das barreiras à entrada de novos concorrentes no mercado de defesa.
A despeito dessa configuração internacional, sob a qual tornou-se virtualmente inalcançável o objetivo de produção autárquica de armamentos, a maior parte dos produtores marginais ao núcleo orgânico do sistema internacional tende a enfatizar objetivos de autossuficiência em relação ao desenvolvimento e à produção de armamentos. Os recentes documentos de Defesa brasileiros, cujas atualizações foram encaminhadas para a apreciação do Congresso Nacional no final de 2016, elencam como um de seus objetivos a promoção da autonomia produtiva e tecnológica na área de Defesa.
A almejada independência de provedores externos no âmbito militar elevaria o grau de autonomia estratégica do país, entendida como condição para ampliar a liberdade da decisão política independente de constrangimentos impostos por Estados mais poderosos. Pelo reconhecido know-how em projetos da área de tecnologia militar, bem como pelo estreito relacionamento com as Forças Armadas brasileiras, o braço de Defesa e Segurança da Embraer é parte fundamental na concepção e execução dos meios requeridos para a tentativa de alcançar tal objetivo. Atualmente, a empresa participa em diversos projetos estratégicos das Forças Armadas do país, como o Prosub – por meio de sua subsidiária Atech – e o SISFRON – por meio de sua subsidiária Savis –, além de projetos relacionados à FAB.
No âmbito do projeto FX-2, voltado para o desenvolvimento e aquisição de novos caças multipropósito para a FAB, a Embraer é a empresa líder nacional no acordo junto à sueca Saab para o projeto do Gripen. Além de importante ator no processo de transferência de tecnologia – que, dentre outros mecanismos, tem se desenvolvido por meio do Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen, inaugurado em 2016 –, também será responsável pelo desenvolvimento completo da versão biposto da aeronave, em conjunto com a Saab, compartilhando com a empresa sueca a design authority do Gripen E/F. Nesse sentido, cabe destacar que a Boeing, por meio da proposta do F-18 Super Hornet, foi parte derrotada na concorrência pelo contrato de aquisição de novos caças para a FAB, o que leva a questionamentos acerca das potenciais consequências das negociações entre Boeing e Embraer sobre as tecnologias obtidas no escopo da parceria com a Saab, bem como sobre o futuro do programa Gripen.
Dessa forma, é preciso ter em mente que, a depender dos termos acertados em uma possível negociação, a aquisição da Embraer pela Boeing pode, no limite, representar a renúncia do já debilitado objetivo de autonomia tecnológica no setor industrial militar. Se o atual governo decidir de modo favorável à aquisição – com ou sem a golden share –, que não seja respaldado exclusivamente pela falsa percepção da ideologia do mercado difundida por alguns comentaristas, os quais, presos aos benefícios comerciais da associação entre as duas empresas, perdem de vista suas potenciais consequências políticas.
Durante cerimônia de almoço entre membros do governo federal e os oficiais generais das Forças Armadas, o Comandante da Aeronáutica, Brigadeiro Nivaldo Rossato, parafraseou um conhecido texto de Napoleão Bonaparte para afirmar que “não há nada mais precioso do que saber decidir”. Frente ao cenário que se avizinha, mais do que saber decidir, cabe ao governo a sensatez de compreender a importância de também poder decidir.
Imagem: Embraer E-195 E-2. Por: Embraer.
Jonathan de Araujo de Assis é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (UNESP – UNICAMP – PUC/SP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

A Necessidade de Participação de Atores Locais em projetos pela paz

A partir da década de 1990 é possível observar o aumento do engajamento de atores internacionais em intervenções para a resolução de crises da agenda de Segurança Internacional. Progressivamente, as iniciativas pela consolidação da paz são autorizadas e conduzidas não só por atores tradicionais como as Nações Unidas, mas também por grandes potências, coalizões ad hoc de Estados e acordos regionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ou a União Africana. Com efeito, as missões aprovadas por esses atores mantêm características similares às operações autorizadas e mobilizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesse sentido, é possível identificar a aplicação de princípios presentes na Carta de São Francisco e em demais documentos da instituição. Identifica-se que, majoritariamente, as intervenções conduzidas por Estados, coalizões e organismos regionais recebem anuência de outros atores centrais do cenário mundial como alternativa para garantir a legitimidade. Simultaneamente, é possível descrever relações de interesse entre os atores centrais que mobilizam as intervenções internacionais e as regiões submetidas às operações de paz. Convém destacar a reduzida participação de atores locais em projetos internacionais de paz e o contestado consentimento concedido por autoridades e elites políticas à intervenção estrangeira.
A partir das falhas em operações conduzidas pelas Nações Unidas no início da década de 1990, debates acadêmicos e institucionais destacam a necessidade de promover reformas no engajamento dos atores internacionais em crises da agenda de Segurança. Noções de “empoderamento” e “apropriação local” são incorporadas às práticas discursivas de atores relevantes no processo decisório de novas intervenções (BORGES; MASCHIETTO, 2014). Simultaneamente, é possível observar lacunas no discurso proeminente sobre operações de paz, sobretudo no que tange à necessidade de se pensar questões como “cidadania” ou “emancipação”. Depreende-se, portanto, que os projetos de paz implementados a partir do fim da Guerra Fria mantêm uma dinâmica impositiva sobre os atores locais. Dessa maneira, é possível identificar a sobreposição de modelos políticos e econômicos considerados mais eficientes pelos atores centrais sobre as instituições que regem a organização política, econômica e social das sociedades sob intervenção. A partir do ano de 2001, identifica-se, ainda, um agravamento nas dinâmicas de intervenção e reconstrução de instituições estatais, sob o exemplo da invasão estadunidense ao Afeganistão e ao Iraque. Descreve-se, portanto, um nível adicional de opressão, estabelecido pelas relações entre atores relevantes na agenda de Segurança Internacional e os atores submetidos às operações de paz.
É possível identificar a predominância de princípios liberais nos fundamentos dos modelos internacionais que, majoritariamente, apresentam contradições em relação às instituições locais. Destaca-se a ênfase sobre a consolidação de democracias liberais representativas, a criação de mercados livres e modelos burocráticos inspirados nas instituições dos atores centrais do sistema internacional.
Com efeito, destaca-se que a imposição de modelos institucionais através de projetos de paz pode implicar a manutenção de estruturas de poder favoráveis às potências internacionais, como a desigualdade em relação aos Estados periféricos. Observa-se que as intervenções conduzidas pelos Estados centrais se fundamentam na consideração de que as instituições locais carecem de eficiência na garantia de pilares do pensamento liberal. Argumenta-se, portanto, que os projetos de paz delineados sob a tutela dos atores centrais apresentam desconhecimento em relação às dinâmicas locais.
Em análise, é plausível argumentar que as ações internacionais, de maneira contraditória, refletem reminiscências do poder colonial de antigas potências, apesar do objetivo em consolidar conjunturas pacíficas nas sociedades sob intervenção. Em agravo à contradição, os modelos internacionais estabelecidos sobre a organização do cotidiano local implicam obstáculos à iniciativa de reunir e garantir princípios consonantes às noções de democracia, segurança, crescimento econômico e direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, presentes nos projetos de paz contemporâneos. Dessa maneira, é possível observar a manutenção de disputas presentes nos conflitos armados que mobilizaram o engajamento de atores centrais pela paz. É possível questionar, portanto, a possibilidade de impactos positivos a longo prazo das intervenções.
É preciso destacar que o processo de imposição de modelos de organização política e econômica através de intervenções internacionais é permeado por movimentos de resistência ou aceitação pelos atores locais. (RICHMOND, 2014). É possível utilizar a noção de “ordens políticas híbridas” para descrever a resultante das dinâmicas entre ações intervencionistas e os movimentos locais de resistência ou aceitação (BOEGE, et al., 2009). Ao indicar a complexidade de relações estabelecidas no nível local de análise, compreende-se que as ordens políticas derivadas do encontro entre formas locais e internacionais de organização institucional podem resultar em estruturas de poder negativas, que reforçam aspectos de violência estrutural como exclusão e desigualdade. Não obstante, enseja-se a possibilidade de formação de “ordens políticas híbridas” positivas, que contam com potencial para consolidar a paz em uma sociedade pós-conflito.
Nesse sentido, adverte-se a necessidade de promover a participação ativa de atores locais na formulação e implementação de projetos de paz. A superação de situações de opressão, como as relações de poder estabelecidas entre atores do sistema internacional ou entre diferentes classes do contexto local, depende da inserção crítica de atores oprimidos na realidade que se pretende transformar (FREIRE, 1974). Compreende-se que a consolidação de uma conjuntura pacífica a longo prazo deriva da possibilidade de promover princípios de inclusão política e social, redução da desigualdade e incentivar um processo autônomo de reconciliação nacional. Depreende-se que a promoção desses princípios oferece potencial à emancipação das sociedades que foram afetadas por conflitos violentos.
Simultaneamente, destaca-se a importância de fundamentar os projetos de paz definidos por atores internacionais em estudos substantivos das conjunturas locais. Ressalta-se a necessidade de ampliar o debate institucional sobre as ações de intervenção, permitindo o questionamento dos princípios considerados mais eficientes para a organização política e econômica das sociedades pós-conflito. Nesse sentido, é preciso compreender que as instituições consideradas nacionais que se apresentam no contexto locais constituem alternativas para a solução de disputas e concertação de interesses. Reiteradamente, ao valorizar as formas de organização locais, e incluí-las nos processos de paz internacionais, amplia-se a possibilidade da formação da paz a partir de elementos e dinâmicas fundamentais de sociedades pós-conflito.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais no PPG RI San Tiago Dantas – Unesp, Unicamp, PUC-SP, pesquisador do Gedes e possui financiamento da FAPESP.
Imagem: Timor Leste se prepara para Eleições Parlamentares. Por: United Nations Photo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOEGE, V. et al. On hybrid political orders and emerging states: what is falling States in the global South or ressearch and politics in the West. Berghof Research Center for Constructive Conflict Management, 2009.
BORGES, M.; MASCHIETTO, R. H. Cidadania e empoderamento local em contextos de consolidação da paz. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 105. Dezembro de 2014. pp. 65-84.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
RICHMOND, O. P. Failed Statebuilding: intervention and the dynamics of peace formation. New Haven: Yale University Press, 2014.

O que nos diz o caso ARA San Juan? Obsolescência, Reaparelhamento e Corrida Armamentista

Nas últimas semanas surpreendeu-nos o desaparecimento do submarino argentino ARA San Juan. A suspensão nas comunicações entre a Marinha argentina e a tripulação do submarino levou a uma incessante busca, animada inicialmente pela esperança de resgate das 44 pessoas que se encontravam a bordo. A comoção foi geral. O assombro, talvez, não tanto. Hoje sabe-se que um dos comunicados enviados à Marinha argentina pelo submarino dizia respeito a uma situação de avaria no casco e consequente entrada de água, o que levou a um curto-circuito e, posteriormente, a um incêndio. Terminadas as buscas pelos tripulantes do submarino, segundo informe da Armada argentina, fica a questão: em que medida tal tragédia poderia ter sido evitada pela manutenção apropriada dos equipamentos militares argentinos?
Em entrevista ao podcast UNESP, o professor Héctor Luis Saint-Pierre ressaltava o caráter de obsolescência das Forças Armadas argentinas, apontando para o estado defasado dos equipamentos argentinos. Tal situação não é exclusividade da Armada argentina. São diversas as reclamações também no Brasil sobre a situação de desgaste das forças militares do País. O caso FX-2 é, nesse sentido, simbólico pois trata-se de reaparelhamento da Força Aérea Brasileira (FAB) num cenário de deterioração dos caças da FAB. Talvez à exceção das forças chilenas, que contam com a Lei do Cobre como fonte orçamentária relativamente fixa, as Forças Armadas sul-americanas tendem a se deparar com o problema financeiro e com questionamentos sobre a legitimidade dos gastos militares – “canhões ou manteiga” tende a ser pelos anos que se seguem um dilema imposto aos países da região.
Nesse cenário, é interessante notar que movimentos individuais voltados ao rearmamento dos países tendem a ser compreendidos – ou, melhor dito, taxados – como indícios de uma corrida armamentista supostamente em voga na região. Assim, a compra de caças russos pelo governo venezuelano é visto como uma ameaça por Bogotá, assim como o investimento no setor militar por parte de Brasília é discutido em termos de ameaça a Buenos Aires, Assunção e Montevidéu. Tais dinâmicas, entretanto, são anacrônicas.
Quando, em 2008, foram iniciados os diálogos para a conformação de um fórum sul-americano de Defesa, os países da região entravam num processo que envolvia, sobretudo, a construção de relações baseadas na confiança em detrimento de percepções mútuas de ameaça. Os processos de fomento à confiança mútua, simbolizado dentre outros por iniciativas de transparência em gastos militares, são fundamentais para a compreensão da anacronismo inerente ao argumento de que haveria uma corrida armamentista na região. Evidentemente, não se trata aqui de supervalorizar o órgão em si, uma vez que são inúmeras as dificuldades pelas quais vêm passando em termos de concertação regional, principalmente após a conformação do novo quadro político regional – uma guinada à direita, em relação ao cenário anteriormente vigente. Vale, entretanto, ressaltar que a criação de uma instituição, um fórum de concertação política se se prefere, voltada para a temática da Defesa exclusivo aos países da região é indicador de que, apesar de insistentes desconfianças, é remoto um cenário de conflito armado entre os Estados sul-americanos. Assim, a iniciativa de conformação do Conselho de Defesa Sul-Americano pode ser considerada como marco no aprofundamento dos laços regionais e um avanço no que diz respeito à superação das desconfianças e percepções de ameaça. Não se dissuade aquele com quem se coopera.
Com isso podemos agora retomar ao caso nefasto do ARA San Juan.
É fundamental que se considere a necessidade básica de manutenção dos equipamentos das forças armadas regionais. Se se comprovar que o que houve, de fato, deveu-se a uma avaria no casco do submarino levanta-se novamente o questionamento sobre o descaso dos governos para com a manutenção das forças. Na já mencionada entrevista, Saint-Pierre destaca muito apropriadamente que “não é bom ter esse tipo de acidente para que se dê esse tipo de discussão. Quem tem forças armadas deve prestar atenção na manutenção dessas forças armadas”. Uma suposta corrida armamentista não pode ser considerada justificativa plausível para a desatenção ao estado deteriorado das forças.
Apenas para citar uma alternativa, vale retomar a discussão sobre a integração da Base Industrial de Defesa da região. O debate em questão gira em torno da necessidade de que a região garanta a manutenção de suas forças, bem como adquira certo grau de autonomia frente a atores exógenos. Nesse cenário, no marco da cooperação regional em defesa, a integração da base industrial sul-americana é, não raro, apresentada como meio para que se alcance os objetivos supracitados. Dentre os argumentos a favor podemos citar: ganho de escala, redução de custos, maior nível de coordenação e de articulação entre as diferentes forças armadas regionais, fomento à ciência e à tecnologia de desenvolvimento autóctone. Em suma, são diversos os ganhos apontados. Como símbolo de iniciativa nesse sentido vale destacar o projeto para o desenvolvimento de um veículo aéreo não tripulado, o VANT UNASUL. Embora sejam ainda remotos os ganhos em termos de recursos materiais advindos desse projeto, considera-se que em 2014 os atores envolvidos no mesmo já avançavam para a definição dos requisitos operacionais do equipamento, o que denota que num cenário de efetiva vontade política há potencial a ser aproveitado na concertação regional que viabilizaria a discussão que se faz necessária sobre reaparelhamento e manutenção de capacidades combativas das forças.
Reiteramos que o desenvolvimento de projetos como o citado demanda alto comprometimento político e relativo grau de harmonização de interesses – fatores que fazem com que empreendimentos para produção conjunta de armamentos muitas vezes não se desenvolvam em sua plenitude. Entretanto, entendemos que as dificuldades inerentes a iniciativas desta magnitude não devem servir de justificativa para o atual grau de negligência ao qual são, muitas vezes, submetidas as forças sul-americanas. Falar em corrida armamentista ofusca uma discussão mais importante, a saber: como garantir a capacidade dissuasória da região num cenário de constrangimentos econômicos internos aos países e de maneira a não reavivar antigas desconfianças? A busca pela resposta a tal pergunta é basilar para a discussão sobre a viabilidade não apenas de uma base industrial de defesa integrada, mas do próprio projeto de integração regional.
Jorge Matheus Oliveira Rodrigues é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC/SP) e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES) e do Grupo de Estudos Comparados em Política Externa e Defesa (COPEDE).
Imagem: Mapa da Argentina. Por: NordNordWest.

Brasil e Estados Unidos: aproximação bilateral em Defesa no pós-impeachment

Desde o início do governo de Michel Temer e da gestão de Raul Jungmann no Ministério da Defesa, houve certas modificações no posicionamento internacional brasileiro que incorrem em aproximação aos Estados Unidos. Não se trata de ruptura total, haja vista que a preservação de boas relações bilaterais com a potência é uma preocupação constante dos governos e burocracias brasileiros. Contudo, algumas ações empreendidas durante o mês de novembro demonstram a maior convergência de visão de mundo e a abertura do país para a potência norte-americana.
A realização de um exercício multilateral inédito na Amazônia, com a participação de Estados Unidos, Peru e Colômbia é relevante nesse sentido. O exercício, que teve início no dia 11 de novembro, buscava “desenvolver doutrina para ações humanitárias que respondam de forma rápida a adversidades causadas por ondas migratórias, catástrofes e acidentes”. Embora sejam comuns os exercícios conjuntos, a realização na região amazônica com a presença de potências globais é uma novidade e o episódio mostra o distanciamento da postura de anos anteriores. A Estratégia Nacional de Defesa de 2008, por exemplo, apresentava como hipótese de emprego “a ameaça de forças militares muito superiores na região amazônica”. A sentença deixava implícita a desconfiança frente a possíveis ataques à soberania nacional por parte de potências mundiais, notadamente os Estados Unidos.
A agenda de Jungmann durante sua visita a Washington, de 14 a 17 de novembro, também revela a aproximação. Na ocasião, Jungmann propôs que o Brasil e os Estados Unidos adotassem uma política de Estado sobre cooperação bilateral, estável e duradoura. Também buscou negociar o uso da base de lançamento de Alcântara pela potência. Nesse caso, já havia sido assinado um acordo bilateral nos anos 1990, que foi retirado do Congresso no início da presidência de Lula, em 2003, antes de ser ratificado. Contudo, não se trata de um retorno àquela década, uma vez que o governo atualnão pretende conceder o monopólio aos EUA. Rússia, China, Israel e França também possuem interesse em utilizar o centro de lançamentos do estado do Maranhão.
A cooperação regional também passa por importante mudança de orientação, aproximando-se da perspectiva dos Estados Unidos. Durante sua visita aos EUA, o ministro abordou com o subsecretário de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Thomas A. Shannon Jr., a criação de uma Autoridade de Segurança Sul-Americana. A iniciativa é conduzida em parceria com o Ministério das Relações Exteriores e nas palavras de Jungmann, trata-se de uma “proposta coletiva da área de Defesa, Justiça e Inteligência” para o compartilhamento de informações e troca de experiências de êxito no combate ao crime transnacional. Assim, participariam do organismo tanto ministros da área de segurança pública quanto de defesa.
Embora o ministro argumente que possa ser criado um organismo semelhante ao Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), as diferenças são marcantes. O CDS propunha uma agenda que separava temas tradicionais de defesa e aqueles de segurança pública. Assim, contrastava com a agenda norte-americana, na qual o crime organizado transnacional é entendido como uma das principais ameaças à região e a atuação conjunta interagências, com a participação de policiais e militares, é vista como o mecanismo ideal para seu combate. Nesse sentido, a criação do CDS representava a busca de autonomia e de uma orientação regional autóctone nessa área. Por outro lado, a iniciativa proposta por Jungmann e Aloysio Nunes incorpora a agenda debatida nas organizações hemisféricas e representa uma aproximação à agenda de segurança da potência.
Tais iniciativas explicitam que a agenda internacional de Defesa brasileira liderada por Jungmann pauta-se, entre outros aspectos, na busca de aproximação bilateral com os Estados Unidos. Nesse processo, a América do Sul não fica excluída ou marginalizada, mas é entendida a partir de um novo prisma. A cooperação regional continua presente, porém com outra orientação. Não se trata de buscar autonomia frente à potência ou de criar um espaço geopolítico próprio, mas de garantir a estabilidade regional e o combate conjunto ao narcotráfico de acordo com os preceitos do Norte, em um processo de aceitação e busca de cooperação iniciado pelo Brasil. Tampouco, há maiores preocupações com as consequências do emprego militar no combate ao narcotráfico, que tende a gerar retrocessos em questões de direitos humanos, e policialização das Forças Armadas, que são desviadas de sua função principal: a defesa contra ameaças militares externas.
Lívia Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas – UNESP-UNICAMP-PUC-SP, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Imagem: Em Washington Jungmann esteve em reunião com o setor aeroespacial privado norte-americano. Por: Ministério da Defesa.

Brasil e Estados Unidos: aproximação bilateral em Defesa no pós-impeachment

Desde o início do governo de Michel Temer e da gestão de Raul Jungmann no Ministério da Defesa, houve certas modificações no posicionamento internacional brasileiro que incorrem em aproximação aos Estados Unidos. Não se trata de ruptura total, haja vista que a preservação de boas relações bilaterais com a potência é uma preocupação constante dos governos e burocracias brasileiros. Contudo, algumas ações empreendidas durante o mês de novembro demonstram a maior convergência de visão de mundo e a abertura do país para a potência norte-americana.
A realização de um exercício multilateral inédito na Amazônia, com a participação de Estados Unidos, Peru e Colômbia é relevante nesse sentido. O exercício, que teve início no dia 11 de novembro, buscava “desenvolver doutrina para ações humanitárias que respondam de forma rápida a adversidades causadas por ondas migratórias, catástrofes e acidentes”. Embora sejam comuns os exercícios conjuntos, a realização na região amazônica com a presença de potências globais é uma novidade e o episódio mostra o distanciamento da postura de anos anteriores. A Estratégia Nacional de Defesa de 2008, por exemplo, apresentava como hipótese de emprego “a ameaça de forças militares muito superiores na região amazônica”. A sentença deixava implícita a desconfiança frente a possíveis ataques à soberania nacional por parte de potências mundiais, notadamente os Estados Unidos.
A agenda de Jungmann durante sua visita a Washington, de 14 a 17 de novembro, também revela a aproximação. Na ocasião, Jungmann propôs que o Brasil e os Estados Unidos adotassem uma política de Estado sobre cooperação bilateral, estável e duradoura. Também buscou negociar o uso da base de lançamento de Alcântara pela potência. Nesse caso, já havia sido assinado um acordo bilateral nos anos 1990, que foi retirado do Congresso no início da presidência de Lula, em 2003, antes de ser ratificado. Contudo, não se trata de um retorno àquela década, uma vez que o governo atualnão pretende conceder o monopólio aos EUA. Rússia, China, Israel e França também possuem interesse em utilizar o centro de lançamentos do estado do Maranhão.
A cooperação regional também passa por importante mudança de orientação, aproximando-se da perspectiva dos Estados Unidos. Durante sua visita aos EUA, o ministro abordou com o subsecretário de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Thomas A. Shannon Jr., a criação de uma Autoridade de Segurança Sul-Americana. A iniciativa é conduzida em parceria com o Ministério das Relações Exteriores e nas palavras de Jungmann, trata-se de uma “proposta coletiva da área de Defesa, Justiça e Inteligência” para o compartilhamento de informações e troca de experiências de êxito no combate ao crime transnacional. Assim, participariam do organismo tanto ministros da área de segurança pública quanto de defesa.
Embora o ministro argumente que possa ser criado um organismo semelhante ao Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), as diferenças são marcantes. O CDS propunha uma agenda que separava temas tradicionais de defesa e aqueles de segurança pública. Assim, contrastava com a agenda norte-americana, na qual o crime organizado transnacional é entendido como uma das principais ameaças à região e a atuação conjunta interagências, com a participação de policiais e militares, é vista como o mecanismo ideal para seu combate. Nesse sentido, a criação do CDS representava a busca de autonomia e de uma orientação regional autóctone nessa área. Por outro lado, a iniciativa proposta por Jungmann e Aloysio Nunes incorpora a agenda debatida nas organizações hemisféricas e representa uma aproximação à agenda de segurança da potência.
Tais iniciativas explicitam que a agenda internacional de Defesa brasileira liderada por Jungmann pauta-se, entre outros aspectos, na busca de aproximação bilateral com os Estados Unidos. Nesse processo, a América do Sul não fica excluída ou marginalizada, mas é entendida a partir de um novo prisma. A cooperação regional continua presente, porém com outra orientação. Não se trata de buscar autonomia frente à potência ou de criar um espaço geopolítico próprio, mas de garantir a estabilidade regional e o combate conjunto ao narcotráfico de acordo com os preceitos do Norte, em um processo de aceitação e busca de cooperação iniciado pelo Brasil. Tampouco, há maiores preocupações com as consequências do emprego militar no combate ao narcotráfico, que tende a gerar retrocessos em questões de direitos humanos, e policialização das Forças Armadas, que são desviadas de sua função principal: a defesa contra ameaças militares externas.
Lívia Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas – UNESP-UNICAMP-PUC-SP, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). É bolsista Fapesp.
Imagem: Em Washington Jungmann esteve em reunião com o setor aeroespacial privado norte-americano. Por: Ministério da Defesa.

The San Juan submarine and the British presence in the South Atlantic

On 15 November 2017, the diesel-electric patrol submarine San Juan, in active service with the Argentine Navy, ceased communicating with the rest of the fleet during a routine patrol mission from the port of Ushuaia to Mar del Plata with 44 crew members aboard. The submarine, built in West Germany in 1983 and commissioned 1985, was one of the three vessels that composed the Argentine Submarine Force Command and was the newest of three boats of an ageing and under-funded Argentine fleet.
Shortly after the news of the disappearance of the San Juan was confirmed by the Argentine Government, other nations were quick to offer aid to locate the vessel. Amongst those that took part in the search, there were forces from neighbouring countries such as Brazil, Chile and Uruguay. The United States participated in the search offering aircraft and cutting-edge equipment to locate the disappeared boat. The UK also offered aid and participated in the tracking of the missing submarine, nonetheless its position in the region diverges from the others engaged in the mission; Britain’s position is tempered by its territories and permanent military presence in the area that generate diplomatic discomfort with Argentina.
Britain is present in the South Atlantic through its Overseas Territories, scattered from tiny Ascension Island, home of the Royal Air Force’s facility Wideawake Airfield, to the widely known Falkland Islands/Islas Malvinas. These territories offer to the European country a considerable space of manoeuvre in the region, and as the war for the Falklands/Malvinas showed back in 1982, they might be of use as staging points for military forces alongside Gibraltar and other British territories throughout the globe. Thereby, London keeps a garrison to protect its valuable dependencies in the South Atlantic.
When the San Juan went missing, Britain moved to support the Argentines using some of its forces based in the Falklands/Malvinas that are part of the "British Forces South Atlantic Islands". Royal Navy ships HMS Clyde, an offshore patrol vessel permanently located in the South Atlantic, and HMS Protector were sent to help the Argentine effort. One Royal Air Force (RAF) C-130 Hercules present in the disputed islands was placed at Argentine disposal, and one RAF Voyager based in Oxfordshire has landed in Comodoro Rivadavia, on 22 November; this landing was the first of a British military aircraft to do so in Argentina since 1982. Besides that, specialists from the British Submarine Parachute Assistance Group, regarded in British military ranks as an "elite unit", were deployed to advise its Argentine counterparts.
These were the forces mobilised by London in less than seven days to attend the Argentine request to search and rescue for the San Juan. Nevertheless, this British presence invoked the issue of the territories regarded by Argentina as illegally occupied by Britain. However, there were only isolated cases such as the Argentina’s Workers’ Party leader Gabriel Solano declarations which characterised the British as "pirates" and "responsible for war crimes, like the sinking of the General Belgrano". The broader repercussion of the British help was meet with more enthusiasm by the media both in Buenos Aires and London.
The British participation also demonstrates that even with budgetary constraints its military presence has been a relevant factor in the region and does not signal to be fading away back to London. Actually, British presence in the South Atlantic is represented by the three branches of the armed forces, primarily by the Royal Navy; its vessels are regularly paying visits to the region, and HMS Clyde does not leave the area not even for repairs that are made in South Africa, displaying British defence relations with a strategic regional player.
The increase in its technological capabilities is also relevant to comprehend the reduced numbers of British capital ships, aircraft and personnel not just in the South Atlantic. As the technological advancements are introduced, the total numbers are set to reduce, for the new assets are more efficient than its previous versions. This phenomenon is known as the "Revolution in Military Affairs". So, the new military assets are heading towards the concepts of capabilities and effectiveness instead of purely relying on numbers, helping to explain why the British military personnel in the Falklands/Malvinas is roughly 1,200.
Thus, the technological gap that persists between the South American nations and Britain is a matter as central as the total numbers of conventional forces. The historical trend is represented by a widening gap between the great powers, such as Britain, and the other nations from the periphery, such as Argentina and Brazil. Concisely, meanwhile the centre is capable of maintaining armed forces with the newest and most capable weaponry the peripheral nations are not able to follow the technological breakthroughs and the cost of its implementations, leaving them dependent on the central powers for military technologies that are only transferred when regarded as in the process of obsolescence.
Another aspect that can be noticed by the San Juan disaster is the conditions of the Argentine Armed Forces. The maintenance of the military have been under severe neglect, and the navy is a source of many problems concerning the readiness of its fleet. Under-funded and struggling to reach training requirements and upkeep of its vessels, the Argentine Navy is failing to sustain its commissioned ships fully operational. In 2013, the defence budgetpermitted 15 boats to spend no more than 11 days at sea, and the submarines spent on average just over six hours submerged in the previous year. Moreover, the fleet is composed of 42 ships, most of them construct and commissioned in the 1970s and the early 1980s and a few are British-made; for the standards adopted by Britain, the United States and other NATO members the Argentine Navy would be regarded as out-dated, in need of a complete reformulation and a more substantial budget.
So, the role played by the British military assets and the readiness in gathering some of them 8,000 miles from London in the search the San Juan reveals a glimpse of the capabilities of a former imperial nation in projecting its power elsewhere, despite its relative decline since the end of the Second World War. It also shows that the South Atlantic is not a stage exclusive to the regional nations, it is an area where foreign interests have its weight and do not show indications to renounce its share in the region’s future.
Britain’s position involves its territories and their relevance to London: They grant a permanent voice in the area, are support facilities for military forces therefore relevant part of its projection of power, since 1982 an increasing source of prestige and, concerning the Falklands/Malvinas, have a significant prospect of economic advantages like the profits from oil extraction. These points are some of the main reasons that since 1982 Britain does not negotiate the issue of sovereignty, other motives rely on the anglophile desires of the Islanders.
In spite of that, the British participation in the mission showed possibilities of cooperation between two nations with long-dated territorial disputes, which eventually led them in fighting each other. Argentina and Britain share a complicated history of highs and lows. If the tragic incident with the San Juan can teach a positive aspect to the two nations it is that cooperation with former rivals is possible and desirable; despite its divergent interests, it is a win-win situation for both parties.
João Vitor Tossini is a under-graduated student in the São Paulo State University (UNESP) in Franca and a collaborator at "UK Defence Journal". João Vitor’s scientific intiation research is funded by FAPESP.
Image: ARA San Juan in Buenos Aires, May 2017. By: Juan Kulichevsky.

A Guerra ao Terror falhou

A utilização de automóveis para atingir indivíduos em locais públicos vem se mostrando uma forma recorrente de praticar atentados terroristas. Do ano passado até o presente momento, dois casos talvez sejam os mais emblemáticos: o de Nice, em julho de 2016, e o de Mogadíscio na Somália, que apesar de menos midiatizado que eventos com menos casualidades como os de Berlin e Londres, produziu pelo menos 300 mortes.
Antes e durante a minha exposição na Band News sobre o incidente que ocorreu em Nova York, percebi que também talvez tenha mais perguntas do que respostas, ou pelo menos respostas diferentes do que as comumente oferecidas por figuras públicas e alguns meios de comunicação para as costumeiras perguntas que surgem após momentos como o do dia 31 de outubro. De que forma o terrorismo mudou ao longo do tempo e como podemos olhar para história a fim de buscarmos ideias para o futuro? Existe alguma racionalidade por detrás desses atos – tanto do ponto de vista individual quanto organizacional? Quais são os meios para evitar que tais incidentes se repitam?
Em primeiro lugar, e sem nenhuma surpresa, as denominações de algo como um ataque terrorista são sempre atos políticos. Enquanto historicamente grupos como o IRA (Exército Revolucionário Irlandês) e o ETA (Pátria Basca e Liberdade) foram enquadrados na lógica do terrorismo, o Movimento de Resistência Afrikânder, o qual perseguia negros no sistema do apartheid, não era visto como terrorista pela elite branca na África do Sul. O mesmo se repete nos dias atuais. O ataque em Las Vegas, no qual um americano da janela de um hotel atirou em cidadãos que acompanhavam um festival, apesar de ter gerado mais de 50 mortes não foi intitulado pelo presidente Trump como um ato terrorista, mas apenas como ato vindo de um “homem doente”. No dia 31 de outubro, no entanto, pouco tempo após a divulgação na mídia de que o suspeito pelo ataque seria um nacional do Uzbequistão, a segunda publicação de Trump no Twitter foi declarandoque os Estados Unidos não poderiam permitir o retorno do ISIS ou que integrantes do grupo entrem no país e ameacem americanos. A comparação desses dois casos atuais nos sinaliza para este componente político na definição do que é ou não terrorismo. Ainda, ela nos mostra que fatores identitários de familiaridade e desconhecimento – tais como diferenças de nacionalidade, de religião, ou de pertencimento cultural, em um sentido mais amplo – talvez sejam a principal característica que fomenta essa rotulação enviesada.
Em 1 de novembro, no recrudescimento de políticas nacionais conservadoras que visam responder ao incidente do dia anterior, Trump advogou pela reformulação do Diversity Visa Lottery Program. Identificado enquanto meio pelo qual o cidadão uzbeque entrou em solo americano, este Programa visa conceder vistos para nacionais de países com baixa taxa de imigração para os Estados Unidos. Segundo Trump, o Lottery Program deveria ser transformado em um programa baseado na meritocracia. A proposta de Trump, se não totalmente vaga – afinal, o que define meritocracia? – é um tanto preconceituosa e distante dos ditos ideais norte-americanos. Preconceituosa pois assume que indivíduos com certas características – seja desde baixa escolaridade até pertencimento a grupos étnicos específicos – são terroristas em potencial; e distante dos ideais norte-americanos pois vai contra toda a lógica dos Estados Unidos como uma nação de imigrantes na qual qualquer cidadão que aqui se estabelecer tem todas as condições para prosperar.
Sobre a identificação de uma possível racionalidade, a melhor resposta que eu poderia dar seria a da identificação de um estado de coisas que fomenta desigualdades e, aos olhos dos ‘terroristas’, injustiças. E isso talvez valha tanto para a esfera nacional quanto a internacional. Nos Estados Unidos, o crescimento em exposição de movimentos de supremacia branca, atitudes violentas contra mulheres muçulmanas que usam qualquer tipo de véu ou até mesmo políticas governamentais, como a que propõe a criação de um muro entre Estados Unidos e México, são apenas exemplos de uma guinada conservadora que se apropria do medo para avançar certas agendas e afastar indivíduos. No plano internacional e na chamada “guerra contra o terror”, a conclusão que chego depois de quase um ano de pesquisa em Washington e entrevistas com pessoas de diversos setores – acadêmicos, diplomatas e membros de agências de inteligência – é que a ação armada contra o terrorismo não funcionou. Alguns analistas podem até aventar o argumento de que a ausência de um novo ataque aos Estados Unidos à la 11 de setembro é motivo suficiente para provar a eficiência das ações da política externa norte-americana. No entanto, não existe nenhuma evidência que comprove essa relação de causalidade e, se por um lado a intervenção no Afeganistão contribuiu para desorganizar a Al Qaeda, por outro a intervenção no Iraque muito contribuiu para o surgimento do ISIS. De modo ainda mais preocupante, a militarização da máquina de política externa dos Estados Unidos, que se intensificou na guerra ao terror, permitiu a substituição de instituições civis e da diplomacia por instituições militares no processo de reconstrução de países como Afeganistão e Iraque. O que o establishment de política externa norte-americana esquece é que não é banal o peso simbólico que tanques e comboios militares, em vez de agências humanitárias, exercem no imaginário dos nacionais desses países e do mundo. Isso, no entanto, é apenas a ponta do iceberg que deixa para uma próxima discussão os escândalos de tortura cometidos pelos Estados Unidos e as operações cirúrgicas autorizadas por um AUMF (Authorization for Use of Military Force) ainda de 2001, as quais continuam via drones ou special forces eliminado alvos pontuais em qualquer região do globo.
Para finalizar, a ação armada contra o terrorismo não só fomenta novos ataques como dissemina a insegurança. Por isso que a ‘guerra ao terror’ falhou e vai continuar falhando. O terrorismo precisa ser tratado pela via da criminalização, submetendo os indivíduos responsáveis aos critérios jurídicos nacionais e internacionais disponíveis, e não da militarização. O anseio por segurança e ‘justiça’ (palavra usada pelo Governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo) não podem gerar um revanchismo que perde de perspectiva o compromisso com os direitos humanos e com as instituições democráticas. Ainda, e de modo mais abrangente e sistêmico, o terrorismo de cunho internacional é primeiramente uma questão social. Dessa forma, perguntas como ‘o que gera o terrorismo’, ‘como esses grupos ganham força’, ‘como eles alcançam seguidores’ precisam ser respondidas antes mesmo que reações hiperbolicamente militares sejam lançadas. Como toda questão que passa a ser vista como um problema de segurança, mas tem por origem uma disrupção no tecido social, acabar com as condições para que grupos se valham do terrorismo e se fortaleçam passa inevitavelmente pela busca de melhores condições de desenvolvimento para certas regiões. Mas não o desenvolvimento que vem atrelado ao aparato militar, que como apontado anteriormente não só tem um peso simbólico inquestionável, mas principalmente traz consigo as capacidades de securizar a questão. Só apenas com a garantia de infraestrutura e desenvolvimento econômico por meio de agências humanitárias e de cunho civil que grupos como o ISIS vão perder força no local em que estão situados e suas ideologias terão cada vez menos condições de reverberar e produzir essa capilaridade tão assustadora que coopta indivíduos a quilômetros de distância.
Bárbara Motta é doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.

O BRASIL ANTES E DEPOIS DA MINUSTAH

No dia 21 de outubro, o Ministro da Defesa, Raul Jungman, comentou a possibilidade de o Brasil participar de maneira mais robusta da Missão Integrada Multidimensional das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA). A fala ocorreu após evento que celebrou o fim da presença brasileira na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), realizado no Rio de Janeiro, no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial. No entanto, a questão envolve aspectos mais profundos que a simples semelhança fonética entre os acrônimos das Missões.
A primeira participação do Brasil em uma operação de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas ocorreu ainda em 1956, quando o país enviou o intitulado “Batalhão de Suez” para a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF I). Desde então o Brasil já participou de cerca de 40 Missões – desconsiderando as de assistência ou escritórios de apoio –, sendo que 86% dos mais de 46 mil militares e policiais brasileiros que estiveram em terreno sob a bandeira das Nações Unidas foram desdobrados nos últimos 25 anos (HAMANN, 2015). Isso porque, apesar de ser um dos membros fundadores da ONU, o Brasil participou de apenas cinco Missões entre 1945 e 1988.
Quadro 1. Participação brasileira em operações de manutenção da paz da ONU por década.

Fonte: Elaboração própria com base em United Nations Peacekeeping (2017a; 2017b).
O Quadro 1 acima demonstra a disposição temporal da atuação brasileira em operações de manutenção da paz da ONU, a partir do ano de início da participação. A despeito do diminuto envolvimento inicial, podemos observar que esse número mais que triplicou nos anos 1990, abarcando também uma diversificação nos efetivos enviados – uma vez que, enquanto nas cinco missões anteriores o Brasil enviara efetivos exclusivamente militares, ao longo da década constaram também 300 policiais e 40 civis (FONTOURA, 1999; UNITED NATIONS PEACEKEEPING, 2017a).
Um fator importante nesse período foi a formulação da Política de Defesa Nacional em 1996, a qual buscava determinar a inserção estratégica do país e suas prioridades no campo da Defesa. No documento, a projeção do Brasil no concerto das nações, sua maior inserção no processo decisório internacional e a contribuição para a manutenção da paz e segurança internacionais aparecem como objetivos da Defesa Nacional (BRASIL, 1996). Em mesma medida, a participação em operações de manutenção da paz passa a figurar enquanto diretriz nacional para alcançar tais objetivos. Ademais, ganha destaque a criação do Ministério da Defesa em 1999.
Com o advento dos anos 2000, o Brasil passou a atuar com maior robustez. Ou seja, apesar do menor número de operações de paz com efetivos brasileiros, o envolvimento do país nessas Missões foi muito mais aprofundado, sendo a MINUSTAH o principal exemplo dessa nova característica de participação. Além de ter contribuído com mais de 37 mil homens e mulheres, o comando de todos os militares da MINUSTAH foi exercido exclusivamente por generais brasileiros ao longo dos 13 anos da Missão – fato inédito em toda a história das operações de paz da ONU.
Essa mudança reflete a política externa do período, caracterizada pelo ímpeto em reforçar a capacidade propositiva do Brasil no cenário internacional, o desejo em ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), bem como a defesa do multilateralismo. Além disso, a elaboração e atualização dos documentos nacionais de defesa consolidaram o papel das operações de paz na política externa brasileira. Enquanto a Estratégia Nacional de Defesa (2012a) ressaltou a importância dessas operações como instrumento de cooperação entre os povos e meio para ampliar a projeção do país, o Livro Branco de Defesa Nacional apontou como interesse do Brasil intensificar sua participação em ações humanitárias e em missões de paz sob a égide de organismos multilaterais, além de “dispor de capacidade de projeção de poder, visando à eventual participação em outras operações estabelecidas ou autorizadas pelo Conselho de Segurança” (2012b, p. 54).
Dessa forma, é natural que o fim de um marco tão significativo como a participação brasileira na MINUSTAH gere inquietações quanto aos próximos passos. Por um lado, aventa-se maior envolvimento com a Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL), a segunda mais antiga Missão sob a égide da ONU ainda em curso, que conta atualmente com mais de 10.500 militares envolvidos oriundos de 41 países diferentes. Estabelecida em 1978, a UNIFIL teve seu mandato ampliado em 2006 por meio da Resolução 1701, passando a abrigar os seguintes objetivos: coordenar a retirada das Forças Armadas de Israel do território libanês; monitorar a cessação das hostilidades; prover assistência para garantir ajuda humanitária à população civil, bem como o retorno seguro das pessoas deslocadas; auxiliar as Forças Armadas libanesas a estabelecerem uma área livre de armas entre a Linha Azul e o rio Litani; além de, a pedido do governo libanês, auxiliar na patrulha das fronteiras, a fim de evitar a entrada de armas ou matérias relacionados sem prévio consentimento (UN MISSIONS, 2017
Por outro lado, conforme exposto no início desse texto, alguns apontam como “próximo destino” do envolvimento brasileiro a República Centro-Africana. Estabelecida em 2014, por meio da Resolução 2149, a MINUSCA tem como objetivos: a proteção de civis; o apoio ao processo político e elementos-chave do período de transição, incluindo o reestabelecimento da autoridade estatal e sua extensão em todo o território; a criação de condições de segurança adequadas para a entrega de ajuda humanitária; promoção e proteção dos direitos humanos; promoção, mediação e reconciliação do diálogo nacional em todos os níveis; além de apoio ao desarmamento, desmobilização e reintegração dos grupos armados (UM MISSIONS, 2017b).
É importante destacar que o Brasil já participa de ambas, com 6 especialistas e 2 militares na MINUSCA, e com 269 militares na UNIFIL. A questão, portanto, não é estrear sua participação nessas Missões, mas sim enviar efetivos em maiores proporções e aprofundar seu envolvimento. Embora existam similaridades entre as duas, como o fato de possuírem autorização para o emprego da força no cumprimento de seus respectivos mandatos, a escolha também perpassa aspectos geopolíticos e mesmo de ordem orçamentária.
Por figurar o quarto maior envolvimento do Brasil dentre todas as operações de paz da ONU que o país já participou – atrás da MINUSTAH, UNEF I e UNAVEM –, poderia ser mais prática uma maior atuação na UNIFIL, em especial pelo fato de o Brasil já desempenhar um papel de liderança na Missão, sendo o primeiro país não membro da OTAN a assumir o comando da Força-Tarefa Marítima (FTM) no Líbano.
Além disso, historicamente, o Brasil costuma se envolver em operações ditas de “baixo risco”, mesmo aquelas autorizadas pelo Capítulo VII da Carta de São Francisco. O que não seria o caso da MINUSCA, uma vez que a Missão enfrenta uma situação muito mais grave do que a encontrada pelo Brasil no Timor Leste, em Angola e mesmo no Haiti em 2004. Um envio mais robusto para a República Centro-Africana seria, portanto, um possível novo ponto de inflexão na participação brasileira em operações de manutenção da paz. Sem contar o próprio entrave geográfico ocasionado pela falta de saída para o mar no país africano, o que dificultaria o envio de equipamentos militares de maior escala.
Por fim, e talvez principalmente, essa dificuldade em debater os próximos passos também encontra justificativa no atual cenário doméstico do Brasil, uma vez que a política externa tem sido pauta secundária nos últimos anos e a crise político-econômica pela qual passa o país marginaliza ainda mais questões de defesa e segurança internacional.
Esse texto foi publicado anteriormente no Mundorama.
Kimberly Alves Digolin é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP), pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pesquisadora voluntária do Instituto Pandiá Calógeras do Ministério da Defesa. (kimberly.alves.digolin@hotmail.com).
Imagem: Cerimônia de Encerramento da Minustah. Por: UN Photos.
Referências Bibliográficas
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BRASIL. Ministério da Defesa. Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa. Brasília, 2012a. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017.
BRASIL. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília, 2012b. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/lbdn.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017.
CAVALCANTE, F. Rendering peacekeeping instrumental? The Brazilian approach to United Nations peacekeeping during the Lula da Silva years (2003-2010). Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 53, n. 2, p. 142-159, 2010.
FONTOURA, Paulo R. C. T. O Brasil e as operações de manutenção da paz das Nações Unidas. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1999.
HAMANN, E. P. A força de uma trajetória: o Brasil e as operações de paz da ONU (1948-2015). Nota Estratégica 19. 2015. Disponível em: <https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2015/09/NE-19_Brasil-e-opera%C3%A7%C3%B5es-de-paz-da-ONU-web.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017.
PLATONOW, V. Após saída do Haiti, Brasil poderá atuar em missão de paz na África. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 22 jun. 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-10/apos-saida-do-haiti-brasil-podera-atuar-em-missao-de-paz-na-africa>. Acesso em: 22 out. 2017.
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(Des)Territorialização do Patrimônio Histórico da Humanidade: A saída dos Estados Unidos e de Israel da UNESCO

Os governos dos Estados Unidos e de Israel declararam que irão se retirar da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), alegando que a organização seria anti-Israel. Este pensamento advém da última votação da UNESCO relacionada à natureza cultural, histórica e legal da cidade de Jerusalém em relação aos israelenses, negando-lhes ligações de qualquer tipo com a cidade igualmente sagrada para as três maiores religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo). A decisão dos Estados Unidos e de Israel de deixar a instituição foi feita ao mesmo tempo em que a agência elegeu sua nova diretora-geral, Audrey Azoulay.
O apoio estadunidense foi recebido pelo governo israelense com euforia. Não só o Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, como Avi Gabbay, presidente do partido União Sionista, maior representante da esquerda, rapidamente publicou uma declaração de apoio à decisão dos Estados Unidos; Tzipi Livni, ex-ministra das Relações Exteriores de Israel e do mesmo partido, também declarou apoio, e juntos provaram que, hoje em dia, não há oposição em Israel sobre esta matéria.
Apesar de o governo israelense estar contente com a iniciativa estadunidense, é preocupante Israel depender politicamente e estrategicamente do governo imprevisível de Donald Trump. Também é preocupante pensar que os Estados Unidos estão prestes a abandonar uma importante agência internacional apenas por causa de Israel, de acordo com o que foi dito tanto pelo Presidente Trump, quanto pela chancelaria estadunidense, de que o organismo seria tendencioso em suas decisões relacionadas a Israel – um passo não teria tomado para nenhum dos seus demais aliados, nem a Grã-Bretanha, nem a Alemanha, nem o Japão, nem a Coreia do Sul, se estivessem em uma situação semelhante. E não é menos embaraçoso que, sob a influência de Israel, o acordo com o Irã, uma das conquistas internacionais mais importantes dos últimos anos, poderia entrar em colapso. Esse episódio pode evidenciar mudanças na política externa dos Estados Unidos, como citado na campanha eleitoral, uma tendência isolamento e afastamento do governo anterior.
A UNESCO tem sido muito crítica a Israel, como todas as agências internacionais. Mas, na maioria dos casos, suas críticas eram relevantes e adequadas, como em relação à ocupação na Cisjordânia. Jerusalém oriental é de fato um território ocupado, como é a Cisjordânia, não importa o quanto Israel tente negar. Entretanto, em um dos casos a UNESCO falhou seriamente: quando ignorou a conexão judaica com o Muro das Lamentações. A organização deveria ter sido repreendida por isso. Mas ao longo dos anos reconheceu seis locais em Israel como Patrimônios da Humanidade (Massada, Cidade Branca de Tel Aviv, Acre, Cidades no Deserto do Negev, Centro Mundial Baha’i em Haifa e as cavernas de Maressa) reconhecimento que trouxe honra e turistas.
Apesar de parecer que a atitude dos Estados Unidos é positiva para Israel, e até mesmo interpretada como tal pelo governo israelense, na verdade está prejudicando o país e o isolando no Sistema Internacional, já que não possui muitos aliados além dos Estados Unidos e a cada dia é mais criticado nos organismos internacionais por suas políticas em relação aos palestinos. O que podemos esperar para o futuro? Talvez uma saída conjunta das Nações Unidas?
Israel é um Estado pequeno que, apesar de atrair muita atenção internacional, não tem força militar, política ou econômica suficiente para alterar o status quo do Sistema Internacional sozinho – não podemos esperar que o governo errático de Donald Trump esteja sempre ao seu lado – e atitudes como se retirar de grandes organismos internacionais apenas o isolam ainda mais. Tão equivocada quanto a decisão da UNESCO em negar a ligação dos judeus com Jerusalém foi a deliberação estadunidense e israelense em deixar o órgão. Estas disputas que se dão em campos aparentemente supérfluos escondem problemas geopolíticos ainda maiores, sobretudo o conflito territorial israelo-palestino.
Karina Stange Calandrin é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES
Imagem: Conferência Geral da Unesco. Por: Unesco.