O decreto que autorizou a intervenção militar do governo federal no setor de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro gerou dúvida em relação aos limites da ação de militares das Forças Armadas. A intervenção deve se estender até o fim de 2018 e tem como objetivo solucionar os graves problemas de segurança no estado fluminense. É adequado considerar que a confusão foi gerada pela ausência de planejamento e negociação entre os atores relevantes para a decisão. Com efeito, a relatora do projeto na Câmara dos Deputados, Laura Carneiro, questionou a falta de detalhes sobre a disponibilidade de recursos financeiros e estratégias de atuação dos militares no texto editado pelo Palácio do Planalto. Contudo, a iniciativa foi aprovada em ambas as casas legislativas com relativa tranquilidade.
É possível observar ao menos duas perspectivas referentes à delimitação das Regras de Engajamento, conjunto de disposições operacionais que limitam o emprego da força por contingentes das Forças Armadas. Por um lado, representantes da sociedade civil destacam a necessidade de definir com exatidão os limites para o engajamento de militares durante o período de intervenção. Defende-se a relevância de manter a transparência e mecanismos de verificação da iniciativa do governo federal. De maneira complementar, mecanismos de verificação contribuem para a observância das normas relacionadas a direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos. Em contrapartida, militares requisitam maior proteção jurídica para desempenhar as atividades e “flexibilidade” nas regras de engajamento. O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, enfatizou a necessidade de garantias para evitar que militares enfrentem “uma nova Comissão Nacional da Verdade”. Assim, ensaia-se a relevância de determinar Regras de Engajamento para evitar excessos na atuação de contingentes militares.
Ao observar os diálogos referentes à atuação das Forças Armadas em missões relacionadas à “pacificação” ou a “manutenção da ordem e segurança públicas” é possível descrever pouca ênfase sobre o debate de formulação das Regras de Engajamento para militares. Reconhece-se que o principal argumento para a manutenção do sigilo da tática de ação consiste na possibilidade de comprometimento da missão e, consequentemente, redução de sua eficiência. No entanto, é adequado afirmar que o uso da força constitui uma ferramenta e um meio para a imposição de um modelo de organização social, frequentemente associados a ideais considerados mais eficientes para a manutenção de instituições estatais.
Observa-se que a atuação das Forças Armadas no estado do Rio de Janeiro é frequentemente comparada à presença de contingentes militares brasileiros no Haiti sob o mandato da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). O cenário predominantemente urbano e a presença de grupos armados com diferentes estruturas hierárquicas no estado do Rio de Janeiro são utilizados por parte dos atores da mídia e por autoridades locais e nacionais como imagens similares ao cenário de segurança observado, sobretudo, nos anos iniciais da MINUSTAH.
Contudo, convém diferenciar os limites impostos à ação dos militares em ambos os casos. Compreende-se que a ação militar no país caribenho é amparada por regras de engajamento mais flexíveis quando comparadas à mobilização das Forças Armadas em operações no território brasileiro. O contingente militar da missão no Haiti, amparado pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, possuía prerrogativa para o uso da força em situações de ameaça e confronto. Em agravo, os Estados que contribuem com tropas para as Operações de Paz das Nações Unidas requisitam uma série de garantias para os contingentes mobilizados no exterior. Acordos celebrados antecipadamente garantem, por exemplo, que os militares enviados a uma Operação de Paz sejam julgados pelo setor judiciário de sua nacionalidade. Em agravo, é prudente considerar também que a acessibilidade aos canais de denúncia e investigação sobre as ações de militares em Operações de Paz é frequentemente reduzida. Assim, observam-se casos significativos de impunidade em relação a condutas excessivas e crimes perpetrados por militares estrangeiros.
Ao debater os limites para a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, reitera-se a ausência de definição para a atuação das Forças Armadas no decreto presidencial. Não se ignora, que a intervenção federal, apesar de prevista na Constituição de 1988, constitui uma medida inédita. As missões internas desempenhadas pelas forças militares em outras ocasiões foram formuladas segundo o dispositivo de Garantia da Lei e da Ordem, que permite o emprego das Forças Armadas com a função de força policial. Assim, a atuação das Forças Armadas durante o período de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro é circunscrita a limites bastante similares ao trabalho policial cotidiano.
No entanto, é possível descrever ao menos um traço de semelhança entre ambas as operações: o aspecto autoritário e a frequência do uso excessivo da força. É preciso considerar que, apesar do discurso militar e diplomático, a participação brasileira na missão de imposição da paz é marcada por questionamentos e acusações referentes a excessos cometidos por militares do país. Nota-se que a atuação de militares no estado do Rio de Janeiro é fundamentada pela possibilidade de emprego de meios coercitivos para a manutenção da ordem pública. Em agravo, as atuações em comunidades periféricas do estado do Rio de Janeiro são descritas a partir da posição autoritária violenta das forças de segurança.
O pedido das Forças Armadas por regras de engajamento mais flexíveis e garantias jurídicas excepcionais desperta atenção para a possibilidade de impunidade de ações excessivas e violações a direitos e liberdades fundamentais. Convém considerar que, a partir do governo de Michel Temer, crimes cometidos por militares contra civis durante ações das forças castrenses são julgados pela Justiça Militar, tradicionalmente favorável aos membros das Forças Armadas. É possível ilustrar a impunidade a membros das Forças Armadas sob o exemplo da participação não investigada de dezessete soldados em mortes ocorridas em novembro de 2017 na cidade do Rio de Janeiro. Compreende-se, então, que os militares mobilizados para a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro já detêm privilégios jurídicos.
Nesse sentido, é possível descrever ao menos três possíveis implicações negativas para a flexibilização dos limites para o recurso a meios coercitivos e a ampliação da proteção jurídica aos militares mobilizados para a intervenção federal no estado fluminense: (i) a elevação da intensidade dos confrontos entre militares e associações do crime organizado; (ii) a violação de direitos e liberdades fundamentais; (iii) a impunidade a crimes cometidos por militares contra civis. Dessa maneira, é adequado considerar a necessidade de delimitar a ação militar durante o período de intervenção e estabelecer mecanismos de verificação que permitam ampliar a transparência das operações conduzidas sob o decreto presidencial.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas – UNESP/UNICAMP/PUC-SP e pesquisador do Gedes.
Imagem: Forças armadas já estão operando nas ruas e avenidas do Rio. Por: Agência Brasil de Fotografia.