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Crises sul-americanas e a ausência brasileira

Tamires Aparecida Ferreira Souza*

 

O início da década de 2000, conhecida como a “era da mudança” e de desenvolvimento nacional e regional, marcou-se pela eleição, por vias democráticas, de governos progressistas na América do Sul, bem como pelo crescimento econômico, através do boom das commodities e dos recursos naturais. Neste cenário, apresentou-se a terceira onda regionalista, também denominada como regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico. Houve um movimento de priorização da agenda política, associada, nas políticas externas dos países, à busca de autonomia regional frente aos Estados Unidos e atores externos, e à adoção de políticas de desenvolvimento, além de uma inserção da região no cenário internacional. Observou-se, ainda, a concretização de consensos regionais e o desenvolvimento de instituições marcadas por abordagens multifacetadas (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012). Assim, iremos percorrer, brevemente, o período do regionalismo pós-hegemônico, destacando-se a criação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), a fim de compreendermos o período atual de crises e mudanças na América do Sul, em especial com a concretização do governo de Jair Bolsonaro no Brasil.

A UNASUL se caracterizou como a principal organização criada nesta configuração da região. Em 2004, por iniciativa brasileira, desenvolveu-se a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), marcada pela associação, única, de doze países sul-americanos. Sua proposta baseava-se em cooperação política, com a coordenação de políticas exteriores e a convergência entre outras organizações, como a Comunidade Andina (CAN) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e países como Chile, Guiana e Suriname, para uma área de livre comércio e uma integração física, energética e de comunicações, inserindo em seu escopo a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana. (SANAHUJA, 2009). Em 2008, essa Comunidade passou por uma transformação, com a assinatura do Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas, objetivando promover na região uma personalidade jurídica internacional para dialogar com outros blocos, com o status de organização internacional. A UNASUL foi projetada como via alternativa às propostas da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), para a resolução de conflitos regionais. Ademais, a União é uma instituição de caráter cooperativo regional, pautada nos vieses político, econômico, de infraestrutura, social e de defesa, sendo as decisões tomadas por consenso e implementadas de forma gradual.

Contudo, tal conjuntura passou a ser modificada a partir da ascensão de governos de centro-direita na região sul-americana e do término do ciclo das commodities. As mudanças políticas na Argentina, com a eleição de Mauricio Macri em 2015, e no Brasil, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, levaram ao poder governos de centro-direita, conservadores, liberais e ideologizados nos dois países líderes dos processos cooperativos regionais. Nota-se, assim, o “início do fim do ciclo pós-hegemônico” (BRICEÑO-RUIZ, 2020). Distintamente ao movimento anterior, ocorre uma aproximação dos países aos Estados Unidos de Donald Trump, sendo o caso mais expressivo o do Brasil de Jair Bolsonaro, que abandonou o discurso autonomista, e adotou uma visão baseada em “narrativas religiosas e/ou mitológicas” (SANAHUJA; BURIAN, 2020).

Representativamente a esta situação sul-americana, em 20 de abril de 2018, houve a solicitação de suspensão temporária de participação nas atividades da UNASUL por parte de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. A justificativa se baseou na ausência de consensos e resultados concretos na organização. Em 2019, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru anunciaram suas saídas oficiais da União. No mesmo ano, houve a criação do Foro para o Progresso e Integração da América do Sul (PROSUL), como uma resposta da direita sul-americana frente a uma UNASUL enquadrada como ideológica e bolivariana.

Assim, observa-se a presença mais evidente dos Estados Unidos atrelada a uma influência nas políticas nacionais dos países sul-americanos. Argentina e Brasil passaram a intensificar seus laços com a superpotência, promovendo acordos na área de defesa, demonstrando uma maior adoção das perspectivas estadunidenses, especialmente quanto ao emprego das Forças Armadas em assuntos de segurança pública, o reconhecimento da ameaça do narcoterror nas fronteiras, bem como um alinhamento político-econômico. O âmbito regional projeta esse novo posicionamento dos governos e da diplomacia presidencial. Há uma transformação da abordagem de autonomia regional e estímulo quanto à cooperação sul-americana, a qual entrou em um processo de estagnação, com perda acentuada da vontade política das lideranças dos países.

Vale ressaltar que o governo Bolsonaro, iniciado em 2019, marca-se por uma associação estreita aos militares brasileiros, autodeclarando-se  como “um governo todo militarizado”, nas palavras do próprio presidente. Observa-se o dobro de pessoal militar presente em Ministérios e altos cargos públicos, dentre eles o Ministério da Defesa, em comparação a governos anteriores. Tais níveis são inéditos no período democrático brasileiro. (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021).

A pandemia de COVID-19 insere-se como um agravamento da já existente crise do regionalismo. A utilização de discursos classificando a pandemia como um risco ou ameaça à segurança nacional converte-se em políticas e estratégias de segurança na maioria dos países. Observa-se um expressivo esquecimento da cooperação regional e internacional, associado à debilidade das instituições regionais, e à priorização da soberania e autonomia nacional. (BOSCHIERO, 2020).

No Brasil, o presidente Bolsonaro apresentou ceticismo quanto à pandemia, discordando de consensos científicos, minimizando seus impactos e mortes e fazendo referência à COVID-19 como uma “gripezinha” (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021). O governo brasileiro ainda se destacou por sua ausência de iniciativa e liderança regional. Em reunião do PROSUL sobre a temática da pandemia, em 2020, Bolsonaro foi o único governante dos países membros a não participar do encontro (JUNQUEIRA; NEVES; SOUZA, 2020). Ademais, o Brasil bolsonarista consolidou seu “abandono” a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e estimulou discordâncias quanto à relevância do MERCOSUL, utilizando-se de “ameaças” de saída da organização e confrontos com o atual presidente argentino, Alberto Fernández, no referente à gestão da pandemia. Paralelamente, seguindo seu alinhamento estadunidense, promoveu que a OEA retornasse como uma instituição ativa na região latina. (FRENKEL, 2021).

Desta forma, na América do Sul do período de 2015 a 2022 houve o agravamento da crise do regionalismo, da cooperação e da busca por uma região autônoma e independente frente à     s potências mundiais. Os governos de centro-direita, com destaque ao Brasil de Bolsonaro, visaram o alinhamento aos Estados Unidos e a desintegração sul-americana. O Brasil, conhecido amplamente como o líder e mediador regional, se converteu em um país ausente e indiferente aos seus vizinhos e às suas iniciativas cooperativas institucionalizadas.

 

* Tamires Aparecida Ferreira Souza é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: América do Sul. Por: delfi de la Rua/ Unsplash.

 

Referências Bibliográficas

BRICEÑO-RUIZ2, J. Da Crise da Pós-Hegemonia ao Impacto Da Covid-19. O Impasse do Regionalismo Latino-Americano. Rev. Cadernos de Campo, n. 29, p. 21-39, jul./dez. 2020.

BOSCHIERO, E. Riesgos globales y derechos humanos: hacia sociedades más resilientes, igualitarias y sostenibles In: Mesa, M. (coord.) Riesgos globales y multilateralismo: el impacto de la COVID-19 – Anuario 2019-2020. Madrid: CEIPAZ, 2020.

FRENKEL, D. Jair Bolsonaro e a desintegração da América do Sul: um parêntese? NUSO,  nº 2021, ago.-set. 2021.

JUNQUEIRA, C.; NEVES, B.; SOUZA, L. Regionalismo Sul-Americano nos anos 2020: O que esperar em meio às Instabilidades Políticas? Revista tempo do mundo, n. 23, ago. 2020.

RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-Hegemonic Regionalism In Latin America. In: RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-hegemonic Regionalism: The Case of Latin America. New York: Springer, 2012.

SANAHUJA, J. Del “regionalismo abierto” al “regionalismo post-liberal”. Crisis y cambio en la integración regional en América Latina. In: ALFONSO, L.; PEÑA, L; VAZQUEZ, M. (org) Anuario de la Integración Regional de América Latina y el Gran Caribe. Buenos Aires: CRIES, 2009. p.11-54.

SANAHUJA, J.; BURIAN, C. Las derechas neopatriotas en América Latina: contestación al orden liberal internacional. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 126, p. 41-63, 2020.

VERDES-MONTENEGRO, F.; SOUZA, T. ¿Misión cumplida? La militarización de la gestión sanitaria frente a la COVID-19 en Brasil. Análisis Carolina, v.30/2021, p.01 – 22, 2021.

Agenda do governo Biden para a América Central e a reestruturação da hegemonia dos EUA

João Estevam dos Santos Filho* 

Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.

 

Na primeira semana de maio de 2022, no marco da Cúpula das Américas, os governos dos EUA e do México anunciaram o planejamento de um plano bilateral de assistência à América Central, em virtude tanto da crise migratória que tem se dado na região desde o final da década passada, quanto da revogação de medidas anti-imigração tomadas pelo governo de Donald Trump (2017-2021). Esse é um dos eventos que têm marcado as relações entre EUA e América Central durante o governo de Joe Biden, um dos pontos mais importantes na agenda do presidente democrata para a América Latina desde a sua campanha presidencial. No entanto, mais do que uma mera resposta à crise migratória, essas relações também compõem uma série de mudanças na política externa norte-americana, voltada para uma reestruturação de sua hegemonia na região latino-americana.

Atenção renovada à América Central

Desde sua campanha presidencial, as prioridades que Biden definiu para as relações com a América Latina incluíam a intensificação da assistência à América Central – inclusive a partir de uma abordagem diferente daquela que vigorou durante a administração de seu antecessor – mais focada na implementação de medidas anti-imigração, inclusive por meio da militarização da fronteira com o México.

Assim, ainda enquanto candidato, dentre os objetivos estabelecidos, foram apontados o desenvolvimento de uma estratégia regional de quatro anos com recursos equivalentes a US$ 4 bilhões para os países do Triângulo Norte (Guatemala, Honduras e El Salvador – a principal fonte dos imigrantes para os EUA e países com alto índice de violência e corrupção institucional) e a mobilização de investimentos privados para a região. Nesse segundo caso, a proposta incluía a ação conjunta com instituições financeiras internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para desenvolver projetos de infraestrutura e promover investimentos diretos estrangeiros; criação das condições jurídico-institucionais necessárias para tornar o funcionamento de seus mercados eficiente e transferência de recursos financeiros para bancos privados da região, a fim de garantir capital para microempreendedores. Portanto, já em sua campanha, Biden afirma a importância de os EUA consolidarem sua posição na América Central, não apenas por meio de mecanismos de segurança, mas também através de maior presença de capitais públicos e privados estadunidenses na região.

Já nos primeiros meses de seu mandato, o novo governo norte-americano, através da vice-presidente Kamala Harris, encarregada de tratar as questões referentes à América Central anunciou um pacote de assistência no montante de US$ 310 milhões, a fim de ajudar no combate à insegurança alimentar no Triângulo Norte. Ademais, em dezembro de 2021, também foram anunciados pela vice-presidente um pacote de investimentos diretos no valor de U$ 450 milhões, realizado por empresas como Microsoft, Cargill, PepsiCo, dentre outras. Além disso, a administração tem aumentado os volumes de recursos destinados à região, através de dois programas centrais para a Estratégia dos EUA para Engajamento na América Central: a Iniciativa de Segurança Regional da América Central (CARSI, na sigla em inglês) e o Programa Regional da América Central da USAID – cujos orçamentos foram reduzidos severamente no governo Trump (MEYER, 2022).

Dois aspectos se destacam nesse renovado interessante pela América Central: em primeiro lugar, a tendência de diminuição da assistência especificamente militar iniciada ainda no governo de Barack H. Obama (2009-2017) foi mantida: entre 2010 e 2021, os valores totais para esse setor passaram de US$ 107,8 milhões para US$ 1,7 milhões. O segundo aspecto foi iniciado também durante a administração Obama e, apesar de ter sofrido um forte revés com a diminuição dos valores destinados à América Central pelo governo Trump, tem continuado com a administração de Biden, tratando-se da tendência crescente de destinar recursos para projetos socioeconômicos em conjunto com os Estados centro-americanos, o México e instituições financeiras internacionais (principalmente o BID) e a realização destes com significativa presença de capitais privados transnacionais – em sua maioria sediados nos EUA.

Dessa forma, desde a construção da Estratégia dos EUA para Engajamento na América Central em 2016, o foco da agenda norte-americana para a região tem sido o de aumentar sua presença não apenas por meio da assistência de segurança (ainda que esta se mantenha até hoje), mas principalmente por meio do fluxo de seus capitais privados para a região. Também é importante afirmar que, apesar da forte ênfase do governo Biden na América Central, essas duas tendências têm se verificado no conjunto das relações dos EUA com a região latino-americana, o que deixa implícito que essa tendência, mais do que uma mera resposta de médio prazo para a crise migratória, também faz parte de um contexto maior de reestruturação da hegemonia norte-americana na América Latina.

Relações com a América Central e a hegemonia dos EUA

A América Central e o Caribe foram as primeiras sub-regiões do chamado Hemisfério Ocidental a serem incorporados ao sistema de relações hegemônicas criadas pelos EUA na segunda metade do século XIX e início do XX. De um modo geral, desde então, as ações norte-americanas na região incluíram a exportação de capitais em diversos setores econômicos, principalmente nos ramos de agronegócio e extração mineral; intervenção direta (como no caso da Guatemala em 1954, da República Dominicana em 1965, de Granada em 1983 e do Panamá em 1989); financiamento de paramilitares (como no caso dos Contras, criados para desestabilizar o governo sandinista da Nicarágua na década de 1980), dentre outras medidas (SMITH, 2008). Dessa forma, a América Central – bem como a Bacia do Caribe – têm sido consideradas as zonas de influência dos EUA “por excelência”.

Entretanto, a partir do fim da Guerra Fria, as relações hegemônicas entre EUA e América Latina passaram por mudanças, uma vez que, além do desmantelamento do bloco soviético, essa hegemonia passou a se basear fortemente na implementação de um projeto neoliberal de poder, fundamentado não apenas no desenvolvimento de uma “economia de mercado” (que incluía o fim de barreiras comerciais, desregulamentação das leis trabalhistas, privatização de empresas estatais, flexibilização dos fluxos de capitais financeiros), mas também na criação de um ambiente político-institucional que favorecesse a presença de empresas transnacionais (ROBINSON, 2005). O apoio norte-americano a esse projeto foi visto tanto por meio das negociações entre os diferentes Estados latino-americanos com o governo e os bancos privados dos EUA nas décadas de 1980 e 1990, quanto também por meio de acordos regionais, sobretudo os de livre-comércio, como foram os casos do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na tradução em inglês) e dos acordos firmados com Colômbia, Peru, Chile e com a América Central.

Por outro lado, esse novo esquema de relações hegemônicas esteve centrado em um forte estímulo ao emprego interno das forças militares latino-americanas – agora não mais contra os agentes do comunismo internacional, mas contra as chamadas “novas ameaças”, cuja maior expressão era o crime organizado transnacional e o terrorismo internacional. Desse modo, foram criados programas de assistência de segurança com forte viés militarizado, como o Plano Colômbia, a Iniciativa Regional Andina, a Iniciativa Mérida e até mesmo o CARSI. Suas principais características eram: aumento do volume de recursos destinados às forças armadas desses países; maior transferência de armamentos para uso interno; intensificação do treinamento de militares latino-americanos e propagação de doutrinas de operações especiais entre as forças de segurança da região.

No entanto, a partir de meados da década de 2000 e 2010, a hegemonia norte-americana experimentou algumas contrarreações, dentre as quais se destacaram: a ascensão de governos de esquerda na região (evento que ficou conhecido como “Onda Rosa”) e a maior presença chinesa na América Latina. Em relação ao primeiro caso, foi visto a criação de uma série de projetos nacionais e regionais direcionados a minar algumas das bases do projeto neoliberal na região (CHODOR, 2015). Por outro lado, a presença chinesa passou a preocupar as elites políticas estadunidenses, dado o aumento do volume de fluxos comerciais, de investimentos diretos (inclusive, em áreas em que a presença norte-americana ainda é deficiente) e empréstimos financeiros. Importante também mencionar que essa aproximação chinesa tem se dado inclusive na América Central, com alguns países sendo incluídos na iniciativa One Belt, One Road (Panamá, Costa Rica, Nicarágua e El Salvador).

Em virtude dessas mudanças estruturais – além da própria crise econômica de 2008-2009 –, as relações hegemônicas entre EUA e a América Latina têm passado por algumas mudanças operacionais, ainda que sua consistência política (baseada principalmente no neoliberalismo e na financeirização) permaneça a mesma. Desde o governo de Barack Obama, tem havido um esforço das diferentes instituições estatais norte-americanas de adaptar os programas de assistência aos países latino-americanos para atividades mais focadas na construção de condições socioeconômicas de uma economia de mercado. Dessa forma, o próprio CARSI que foi criado como uma iniciativa de assistência de segurança aos países da América Central tem se convertido em um plano de direcionamento de investimentos para a região, principalmente, a partir do maior envolvimento da USAID no programa (MEYER; SEELKE, 2015). Além disso, a partir de 2015, foram criadas as chamadas Estratégias de Cooperação para Desenvolvimento do País para os Estados centro-americanos. Essas iniciativas têm como objetivo auxiliar na realização de projetos socioeconômicos de cada país (em parceria com os respectivos governos) e canalizar capitais privados para a realização de investimentos na região.

Por outro lado, mesmo com as restrições orçamentárias para a assistência à América Central levadas à cabo pelo governo Trump, essa tendência apresentada na administração anterior não foi totalmente abandonada, uma vez que também houve um foco no aumento do direcionamento de investimentos privados, orientados por instituições como a USAID e o novo banco de investimentos internacionais, a Corporação Financeira dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (DFC, na sigla em inglês). Desse modo, foram instituídos projetos como o América Cresce, focado em áreas como infraestrutura e telecomunicações em diversos países da América Latina – áreas em que os capitais norte-americanos ainda perdem para os chineses.

Tendência de longo prazo

Desse modo, os projetos criados nos três últimos governos norte-americanos para a América Central têm dado indicativos de serem mais do que meras respostas de curto prazo para a crise migratória no sul dos EUA. Ao que se demonstra, essa tem sido uma tendência de longo prazo nas relações hegemônicas com a América Latina, para as quais a presença de capitais privados (e públicos) estadunidenses passa a ser uma peça central. É importante mencionar que essa medida contribui para duas questões centrais: em primeiro lugar, oferece um contraponto à aproximação econômica e política chinesa na região, atuando em setores ainda pouco atendidos pelos capitais privados norte-americanos. E em segundo lugar, por meio dessas medidas – juntamente com a assistência militarizada que as elites políticas estadunidenses ainda oferecem aos países centro-americanos –, é criado um ambiente institucional que privilegia a construção de relações sociais especificamente neoliberais, garantindo a assim a continuação do processo de acumulação de capital nessa região.

 

João Estevam dos Santos Filho é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisador pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes).

Imagem: Biden assina declaração sobre migração. Por: Departamento de Estado (EUA)/Flickr.

Referências

CHODOR, T. Neoliberal hegemony and the Pink Tide in Latin America: breaking up with TINA? Basingstoke; New York: Palgrave Macmillan, 2015-.

MEYER, P. J. U.S. Foreign Assistance to Latin America and the Caribbean: FY2022 Appropriations. Washington, D.C.: CRS, 2022.

MEYER, P. J.; SEELKE, C. R. Central America Regional Security Initiative: Background and Policy Issues for Congress. Washington, D.C.: CRS, 2015.

‌ROBINSON, W. I. Gramsci and Globalization: From Nation‐State to Transnational Hegemony. Critical Review of International Social and Political Philosophy, [s. l.], v. 8, n. 4, p. 559–574, 2005.

‌SMITH, P. H. Talons of the eagle: Latin America, the United States, and the world. New York: Oxford University Press, 2008.‌

Barganhas Militarizadas Interestatais na America Latina: uma região de paz violenta?

Iury França*

 

O presente trabalho objetiva evidenciar a presença de episódios de violência entre Estados latino-americanos, sob a forma de disputas interestatais militarizadas (MIDs). Conforme Gochman e Maoz (1984), MIDs são um “conjunto de incidentes envolvendo ameaça, exibição ou uso da força sancionada e dirigida pelo governo entre dois ou mais Estados”. Os eventos são separados por um intervalo temporal curto. Bremer (1993) define MIDs como situações em que Estados se ameaçam ou usam a força um contra o outro, na condição de até 1000 mortes. Uma vez que um conflito se torna militarizado, às vezes a ação inicial é seguida por contra-ações, numa “espiral ascendente de violência”. A escalada do conflito pode evoluir até ultrapassar o limiar das MIDs, tornando-se uma guerra entre Estados. Na mesma linha, Bremer, Jones, Singer (1996), afirmam que MIDs são “ações militarizadas envolvendo ameaça, emprego ou uso explícito da força por um membro do sistema internacional contra outro”.

Foi depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que pesquisas quantitativas sobre conflitos internacionais começaram a ser desenvolvidas e armazenadas em banco de dados (FREEDMAN, 2017). Métodos quantitativos poderiam gerar um novo campo de pesquisa para a paz. Segundo Freedman, para se ter acesso a fundos para pesquisa, os cientistas sociais pensaram em demonstrar que era possível prover pesquisas semelhantes à objetividade das ciências naturais, com a finalidade de desenvolver leis. Se leis pudessem ser criadas, o futuro da guerra poderia ser controlado (VASQUEZ, 2012 apud FREEDMAN, 2017) Nessa linha, policymakers [formuladores de políticas] poderiam reconhecer sintomas, fazer diagnósticos e identificar como tratar situações na iminência de desastres. Contudo, era necessário observar a importância do assunto em questão na geração da guerra, como observou John Vasquez (2012). Segundo ele, fatores como formação de alianças e expansão do aparato militar poderiam reforçar chances de conflito, além de que rivais teriam mais chance de ir à guerra que outros Estados.

Neste texto, trabalha-se com metodologia descritiva, via banco de dados disponibilizado pelo projeto Correlates of War (COW). O banco de dados é embasado no conceito de MID e seus graus. A escolha de parte do banco (MID_A 4.0) contempla o objetivo da pesquisa, uma vez que aborda aspectos como fatalidade, grau de intensidade e modo de resolução. O diferencial para o MID_B se dá na interpretação de um dos Estados (ou os dois) apresentar aspectos de revisionismo, seja territorial ou político. Para os fins deste trabalho, filtramos as descrições ao banco MID_A. Auxiliam no entendimento da violência na América Latina (AL): Bremer (1993), Freedman (2017); Gochman e Maoz (1984); Bremer, Jones e Singer (1996); D’Orazio et al. (2020); e Mares (2001; 2012).

Importante notar que, para Freedman (2017), os Estados são self-contained units [unidades autônomas]. O sistema internacional cria suas próprias motivações para a guerra. Com isso, mesmo após o fim da Guerra Fria, o autor entende que a perspectiva realista via a continuidade dos níveis de violência observados anteriormente. Nessa linha, David Mares (2001), ao se voltar para a América Latina, define que as primeiras e principais preocupações de segurança nesses países surgem de dois fatores: autopercepção e competição política. As externalidades de segurança se desenvolvem a partir de três arenas: internacional, regional e doméstica. Na arena internacional, os interesses dos EUA produzem externalidades de segurança para toda a AL. No nível regional, o foco é no nation-building [construção da nação] depois da independência. A prevalência de disputas de fronteiras na AL significa que o método de resolução (pacífico ou militar) tem uma significância maior. Na arena doméstica, quando o status quo é ameaçado na AL, as elites e os EUA se preocupam.

A existência do país em si não é um problema (MARES, 2001). As questões referentes à defesa surgem das características internas da região: fronteiras disputadas, desenvolvimento econômico desigual e disparidades de distribuição de poder. Nessa dinâmica, desde 1816, ocorreram 17 guerras na América Latina. Essas guerras também tiveram impacto na distribuição regional de poder. Em termos de MIDs, entre 1816 e 1976, houve 21 disputas entre países não-potência, ou 1/3 dos países da América Latina (GOCHMAN; MAOZ, 1984). Em complemento, Mares (2012) advoga que o contexto de segurança da América Latina tem sido essencialmente competitivo, no qual a dissuasão e a negociação militarizada predominavam entre os países.

A arquitetura de segurança da América Latina é única entre os países em desenvolvimento, tanto em sua extensão, quanto em sua amplitude. Segundo Mares (2012), o sistema de segurança coletiva provê segurança para cada país numa comunidade. Os esforços para deslegitimar o uso da força na América Latina incluem integração política, divisão de Estados, tentativas de acordo e controle de armas. Entretanto, os maiores esforços foram direcionados à prevenção da guerra, e não à questão de pequenos conflitos. Ações militares são resultado de uma interação que, em uma dada situação, um ator faz o cálculo custo/benefício, avaliando o uso da força militar como vantajoso em suas relações com um rival (MARES, 2012). O histórico não-pacífico da região e o cálculo de custo/benefício já tornaria a América Latina bastante instável. Junta-se a isso os esforços de segurança não-preventiva da América Latina e temos com mais clareza a questão do aparente descompromisso em lidar com a paz violenta. Mares (2012) cita a lentidão das nações latino-americanas em exigir das partes conflitantes o retorno ao status quo, pois favorece a ocorrência de ganhos em comportamentos beligerantes sem prestar esclarecimentos internacionais sobre incidentes.

O período documentado pelo Correlates of War abrange todo o contexto após as guerras napoleônicas de 1816. O projeto relata situações de MID, com os mais diferentes desfechos, incluindo guerra. Nesta seção, à exceção de guerra, evidencia-se objetivamente as 19 ocorrências de violência interestatal na América Latina entre 2000 e 2010. São informados resultado; resolução; número de fatalidades; ação mais expressiva; nível de hostilidade; reciprocidade na ação e se no ano de 2010 a disputa ainda ocorria.

Fonte: D’orazio et al (2020). Disponível em: https://academic.oup.com/isq/article-abstract/64/2/469/5531765.

O banco de dados pontua objetivamente a paz violenta na América Latina. Mesmo sem ocorrência de baixas, houve exibição de força e violações de fronteira em algumas disputas, e em todas constou nível de hostilidade 3 ou 4; sendo o nível 5 o correspondente à guerra. Posto isso, todas as situações verificadas apresentam grau de disputa intenso, com uso da força ou, no mínimo, exibição dela. Foi constatada maior frequência de incidentes entre Equador, Venezuela e Colômbia, envolvendo violação de fronteira com exibição de força.

A literatura argumenta que a região ainda não conheceu paz, apenas paz violenta. A ausência de constrangimento internacional facilita o cálculo de custo/benefício que os líderes latino-americanos fazem antes de recorrer a MIDs. Cada país define suas prioridades de defesa e seus entendimentos de ameaça e se sente mais livre para agir. Entende-se, dessa forma, que a América Latina ainda não é uma comunidade de segurança pacífica. Suas relações continuam frequentemente afetadas pela utilização de recursos militares em negociações entre os Estados.

 

* Iury França é mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba. É bacharel em Relações Internacionais pela mesma instituição. Desde 2017 é membro do Grupo de Estudos em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI – UFPB) e desde 2021 é membro do Programa de Cooperação Acadêmica em Defesa Nacional (ASTROS) do Ministério da Defesa do Brasil.

Imagem: América do Sul. Por: Pixabay.

Referências

CORRELATES OF WAR PROJECT. Militarized Interstate Disputes (v 5.0). Disponível em: https://correlatesofwar.org/data-sets/MIDs.

FREEDMAN, Lawrence. The future of war: a history. Public Affairs, 2017.

JONES, Daniel M.; BREMER, Stuart A.; SINGER, J. David. Militarized interstate disputes, 1816–1992: Rationale, coding rules, and empirical patterns. Conflict Management and Peace Science, v. 15, n. 2, p. 163-213, 1996.

MARES, David R. Latin America and the illusion of peace. Routledge, 2012.

_______. Violent peace. In: Violent Peace. Columbia University Press, 2001.

MITCHELL, Sara McLaughlin; VASQUEZ, John A. (Ed.). What do we know about war? Rowman & Littlefield, 2021.

PALMER, Glenn et al. Updating the militarized interstate dispute data: A response to Gibler, Miller, and Little. International Studies Quarterly, v. 64, n. 2, p. 469-475, 2020.

Os Estados Unidos, as disputas por hegemonia global e a América Latina

Lívia Peres Milani* 

A invasão russa à Ucrânia insere-se em um contexto já existente e mais amplo de retomada das disputas entre grandes potências, o qual foi acelerado e intensificado pela guerra na Europa. Como pontuado por Héctor Saint-Pierre, há uma disputa por hegemonia, “um movimento nas camadas tectônicas mais profundas da segurança internacional, que é onde se expressam as estruturas estratégicas das grandes potências”. A disputa envolve Estados Unidos, China e Rússia e tem dimensões globais. Assim, ainda que seja mais intensa em áreas consideradas prioritárias por tais potências, como o Indo-Pacífico e a Eurásia, regiões periféricas, como África e América Latina, também são inseridas na mesma lógica de disputa. Este movimento pode ser constatado pela crescente percepção de ameaça russo-chinesa na América Latina por parte de diferentes atores estadunidenses, um movimento anterior à guerra, mas acelerado pela mesma.

Embora os militares estadunidenses já citassem de forma esparsa China e Rússia como desafios à hegemonia dos EUA na América Latina desde o governo Barack Obama, essa percepção se acentuou nos últimos anos. Durante o governo Trump, por exemplo, o Comando Sul – divisão das forças armadas dos Estados Unidos que autoatribui parte da América Latina como sua área de responsabilidade – destacava com preocupação a influência de atores estatais extracontinentais na região, caracterizando-os como atores malignos. Esta narrativa permaneceu na administração Biden, com a nomeação de Laura Richardson para a liderança da divisão militar. Já no contexto da guerra na Ucrânia, em documento entregue ao Congresso dos Estados Unidos para audiência pública em oito de março, Richardson afirmou que “nossa ameaça condicionante número um é a RPC [República Popular da China], nossas ameaças secundárias são a Rússia, TCO [Organizações Criminosas Transnacionais] e Irã”[1]. Essa retórica mais explícita e assertiva, que coloca a disputa entre grandes potências no centro da estratégia para a América Latina mostra uma intensificação do processo.

Importante pontuar que essa percepção de ameaça ocorre apesar de China e Rússia apresentarem mínima capacidade – ou mesmo interesse – em projeção de poder regional. Conforme a base de dados sobre transferência de armamentos mantida pelo Sipri, a transferência de sistemas de armas russos para a região foi relevante nos últimos anos, porém tem sido concentrada na Venezuela. Por outro lado, Brasil, Colômbia e México, por exemplo, seguem comprando armamentos especialmente de fornecedores estadunidenses e europeus. Já a China tem participação incipiente, ainda que crescente, na venda de armas para a região. Contudo, vale ressaltar que o país desponta como fornecedor de intercâmbios para os militares – de acordo com o Comando Sul. Os investimentos chineses em infraestrutura, especialmente na construção de portos e na região do Panamá, têm sido destacados pelos militares estadunidenses como um risco. O saldo que podemos extrair desses dados é que – militarmente – as presenças chinesa e russa na América Latina não se comparam com a influência estadunidense no entorno estratégico daquelas potências.

Não são apenas os militares, no entanto, que têm percebido China e Rússia como ameaças na América Latina. A narrativa é compartilhada por membros da administração e por congressistas estadunidenses. Em evento realizado pelo Inter-American Dialogue, ao ser perguntado sobre os efeitos da guerra e sobre a “interferência” russa na região, Brian Nichols, Secretário Assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, respondeu que a Rússia tem ameaçado aumentar a parceria com os países da região, com a possibilidade de desestabilizá-la ou ameaçar os EUA com armas estratégicas. Nichols também apontou que os desafios regionais refletem os desafios globais.

Em 2 de fevereiro de 2022, os Senadores Marco Rúbio (Republicano – Flórida) e Bob Menendez (Democrata – New Jersey) apresentaram um projeto de lei ao Congresso dos Estados Unidos que, se aprovado, demandará do governo federal a confecção de uma estratégia de segurança própria para a região. O projeto cita a influência “maligna e prejudicial” de China e Rússia como risco aos interesses nacionais dos Estados Unidos e propõe que os EUA devem aumentar as “parcerias” e promover “cooperação em segurança” com os países da região. O projeto também afirma que os EUA devem trabalhar com “agências de segurança e law enforcement [aplicação da lei]” da América Latina para fazer frente ao narcotráfico, ao crime organizado e apoiar o império da lei [rule of law], a democracia e os direitos humanos. Aponta ainda a necessidade de recursos adicionais para aumentar os investimentos e projetos dos EUA no Hemisfério Ocidental.

Alguns aspectos importam nesses movimentos, com consequências importantes para a América Latina. Em primeiro lugar, podemos citar que a tendência de securitização da presença russa e chinesa na região significa que há maiores constrangimentos sistêmicos para os países latino-americanos. Se, durante os anos 2000, no início da mudança sistêmica, a tendência à multipolaridade teve efeitos conjunturais aparentemente positivos e permitiu a diversificação de parcerias, atualmente, os Estados Unidos buscam minimizar esta possibilidade. Neste sentido, manter relações equilibradas e cordiais com as três potências mostra-se mais difícil para os países da região. 

Ademais, em sua estratégia de retomada da hegemonia regional, há dois atores que a potência hegemônica percebe como essenciais: as forças policiais e as forças armadas. Esta escolha pode conter um aumento da militarização da Política Externa dos EUA para a região, sendo que outros atores – como a diplomacia, ou a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) ficam em segundo plano. Os projetos com os militares e com policiais latino-americanos podem contribuir para o aumento do peso político interno desses atores, os quais, historicamente, tendem à intromissão na política. De forma semelhante, a conjunção de ameaças estatais e não-estatais apresentada no projeto de lei mostra que continua a não existir uma visão de separação entre as funções dos policiais e das forças armadas – o que significaria um contínuo apoio ao emprego dos militares internamente, mesmo que este seja historicamente associado à letalidade e a violações aos direitos humanos.

Por fim, em texto publicado sobre o tema, Adam Iscason alerta sobre o risco de que os Estados Unidos apoiem governos autoritários que se adequem a suas demandas de alinhamento geopolítico. Em alguma medida, isso já acontece. Cabe ressaltar o apoio concedido ao governo interino de Jeanine Añes, na Bolívia (2019-2020) – apesar da contestada forma como essa chegou ao poder – ou mesmo o convite feito ao governo brasileiro para participar da “Cúpula das Democracias” – apesar das falas nostálgicas e de apreço ao regime burocrático-autoritário emitidas pelo presidente brasileiro.

Em resumo, a guerra na Ucrânia é um desdobramento das crescentes rivalidades entre grandes potências, sendo que a abrangência deste elemento estrutural é global, atingindo todas as regiões, inclusive a América Latina. Na região, do ponto de vista da defesa, a posição de poder dos Estados Unidos ainda é muito superior, sendo que a projeção de seus competidores é mais limitada. Ainda assim, a potência hegemônica tem visto os avanços de seus competidores em outras áreas ou em situações específicas como problemas de segurança. Como consequências para a América Latina, destaca-se a maior dificuldade de colocar em prática uma posição equilibrada e de relacionamento não-excludente entre as potências, o reforço das tendências de militarização a partir de incentivos estadunidenses e um contexto internacional menos propício à manutenção da democracia.

[1] Luciana Wietchikoski e eu analisamos este documento e as formas como o Brasil poderia reagir a esse contexto de mudanças sistêmicas em texto publicado na coluna Diplomacia e Democracia do Uol.

* Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP), bolsista Capes-PrInt. Pesquisadora do Gedes e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Twitter @Livia_LPM. E-mail: livia.milani@unesp.br.

Imagem por: US Southern Command.

De Volta à Pequim: o backlash conservador contra o movimento feminista latino-americano

 

Gabriela Aparecida de Oliveira* 

No ano de 2020, a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, apresentadas durante a 4ª Conferência Mundial sobre Mulheres das Nações Unidas, completou 25 anos. Por meio deste instrumento, mais de 180 países, dentre eles o Brasil, decidiram – embora não por unanimidade – promover ações específicas para a garantia dos direitos das mulheres. A Declaração previa mudanças estruturais para a plena participação de mulheres na política e na economia dos países, autonomia feminina sobre decisões sexuais e reprodutivas e eliminação dos estereótipos de gênero na mídia (UN WOMEN, 2020). Assim, trata-se de um marco normativo no que se refere aos direitos das mulheres e, portanto, um balanço sobre seus efeitos é necessário.

Durante reunião virtual para celebrar o aniversário do documento, o secretário-geral Antonio Guterres reconheceu que nesses 25 anos nenhum país conseguiu atingir satisfatoriamente os objetivos apresentados na Declaração, identificando avanços, permanências e retrocessos. Embora existam avanços significativos em áreas como o combate à mortalidade materna, aponta-se para a persistência da sub-representação feminina na política e para as altas taxas de violência de gênero e feminicídios, dentre outras continuidades (UN WOMEN, 2020).

Por outro lado, um legado importante deixado pela Plataforma de Pequim foi a criação de um terreno normativo e político para os movimentos feministas pelo mundo. Sobre as feministas latino-americanas, o Fórum de Huairou foi o espaço dentro da Conferência onde elas elaboraram uma crítica autônoma, focada nas diferenças de raça e classe entre as mulheres. Ao não encontrarem muitas opções de oficinas em que pudessem se expressar em seu idioma e partilhar códigos culturais em comum, elas criaram a “Tenda da América Latina e Caribe” ou “Tenda da Diversidade”. Ela significou uma resistência política e cultural frente à lógica de negociação com o poder oficial internacional levado à cabo pela Conferência (VARGAS & CUEVAS, 2020). Montada na cidade de Huairou, a 60 km de Pequim, a Tenda ofereceu debates diários sobre temas como a diversidade, a pobreza, a juventude, a cidadania, a sexualidade e a violência. Participaram mulheres diversas, organizações e delegações de países: das saarauís à UNICEF, da Anistia Internacional aos grupos indígenas mixes e mapuches, do Instituto da Mulher da Espanha às espanholas que se opunham ao Instituto, etc. (GARRIDO, 2020).

Os avanços do movimento nos anos 2000

Para além de uma conjuntura internacional favorável, a Onda Rosa – período caracterizado pela maior participação do Estado na elaboração de políticas públicas e redução de desigualdades por parte de governos de esquerda e de centro-esquerda – também contribuiu para uma crítica feminista latino-americana própria. Entre o final da década de 1990 e a metade da década de 2010, houve um considerável avanço normativo para a igualdade de gênero na região. Embora leis para a legalização do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o reconhecimento do direito à identidade de gênero fossem raras, países como o Uruguai e a Argentina conseguiram operar mudanças legislativas; enquanto outros, como o Brasil, Chile, Colômbia e México, alcançaram mudanças através de decisões judiciais (BALLESTRIN, 2020; BIROLI & CAMINOTTI, 2020).

O feminismo autônomo da América Latina de diversos espaços e grupos de mulheres. Dentre eles estão os coletivos de arte com agendas feministas, as mulheres LGBTQ+, os feminismos populares, os feminismos comunitários boliviano e guatemalteco, o feminismo autônomo, o feminismo negro e/ou antirracista, o feminismo de(s)colonial, a teologia da libertação feminista, o ecofeminismo e os movimentos sociais em defesa do território e da Mãe Terra liderados por mulheres negras, indígenas e camponesas (LERMA, 2019). Essas expressões do feminismo têm sido identificados como a principal fonte de renovação teórica, intervenção social, atuação política e resistência democrática tanto na América Latina quanto no mundo (BALLESTRIN, 2020).

De uma maneira geral, o feminismo latino-americano caracteriza-se por uma crítica à modernidade e por uma quebra epistêmica com o conhecimento ocidental. O seu enfoque é questionar a complexa hierarquia de dominação que está entrelaçada à “matriz colonial de poder” e a existência de uma “mulher universal”, tal como postulado pelo feminismo moderno liberal (ocidental, hegemônico, capitalista, burguês e branco), que atuou ativamente para a criação da Plataforma de Pequim. O conceito de “mulher universal” não daria conta de refletir sobre a complexidade das vivências de mulheres sob um sistema colonial, não atendendo as suas demandas específicas (GOETZ, 2020).

Retrocessos e desafios contemporâneos

Atualmente, o movimento feminista, tanto em sua expressão regional quanto global, tem sido ameaçado por uma onda de retrocessos denominada “backlash” ou “backsliding”, que estaria diretamente relacionada ao fenômeno da desdemocratização (UN WOMEN, 2020). Sobre isso, a ONU lançou em junho de 2020 um documento de reflexão em que denunciava o estarrecedor aumento de movimentos contrários ao ativismo pelos direitos das mulheres e o subsequente retrocesso nesses direitos. Grupos religiosos e atores conservadores, populistas de direita e nacionalistas, grupos pelos direitos dos homens e movimentos “anti-ideologia de gênero” têm identificado a pauta feminista como uma ameaça à família tradicional e heterossexual, às crianças, à ordem natural e aos valores nacionais. Tais atores teriam ganhado espaço a partir da crise econômica de 2008 e a chegada de governos e/ou partidos populistas ao poder nos mais diversos países. Explicitamente hostis à agenda de gênero, esses governos têm agido ativamente para o backlash nas políticas de igualdade de gênero, previamente firmadas. Segundo levantamento da Organização, quase um terço da população mundial encontra-se em países com reversões democráticas, particularmente em regiões com altos níveis de democratização: Europa Ocidental, América do Norte, América Latina, Leste Europeu e Ásia Central (ROGGEBAND & KRIZSÁN, 2020).

Na América Latina, protestos na Colômbia, no México e no Peru, ocorridos em 2016, sinalizavam uma dinâmica reacionária na região: organizações conservadoras mobilizaram milhares de pessoas e tomaram as ruas contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e uma educação sexual nas escolas. Eram atores seculares e, em sua maioria, religiosos, que invocavam o perigo da “ideologia de gênero” para a família em sua concepção tradicional e heteronormativa. Mais recentemente, o gênero tem sido central nas disputas políticas. Podemos dizer que a defesa dos direitos de mulheres e de pessoas LGBTQ+ têm representado um ponto de divergência entre partidos e seus candidatos, sendo que a oposição ao gênero é particularmente aflorada em movimentos de extrema-direita. Em 2018, as eleições do Brasil e da Costa Rica mostraram que divergências acerca de pautas de gênero e sexualidade podem acirrar disputas e dividir o eleitorado (BIROLI & CAMINOTTI, 2020).

Embora o feminismo tenha conseguido avançar em suas pautas nas últimas décadas, o backlash não deve ser interpretado como uma resposta à essa dinâmica. Para Diniz e Carino (2019), o termo “backlash” é com frequência usado equivocadamente, enfatizando que a ofensiva contra as mulheres e as feministas no campo da política é uma consequência do que elas fizeram. Portanto, não há backlash provocado pelo feminismo, mas a persistência do uso do poder masculino para sustentar o status quo.

Perante uma expressiva articulação global misógina e antifeminista, nos parece inevitável “retornar” à Pequim. A Conferência foi uma das responsáveis pela popularização do movimento feminista e pela adesão das novas gerações. Para as latino-americanas, Pequim significou a primeira demonstração de força de um movimento feminista regional perante as Nações Unidas. Embora o cumprimento da Plataforma de Ação tenha sido limitado, o processo de sua elaboração fez com que as pessoas envolvidas se sensibilizassem com a realidade de exclusão de mulheres, à nível local, regional e global (VARGAS & CUEVAS, 2020). Frente à diversidade de mulheres e feminismos, simbolizada pelo Fórum de Huairou, um dos desafios do movimento feminista tem sido a questão do pluralismo, decorrente do alargamento de sua luta: como elaborar estratégias feministas coerentes tanto ao contexto global quanto ao regional e, assim, enfrentar a ofensiva antifeminista?

 

Referências bibliográficas

BALLESTRIN, Luciana. El Feminismo De (s) colonial como Feminismo Subalterno Latinoamericano. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 3, 2020.

BIROLI, Flávia; CAMINOTTI, Mariana. The conservative backlash against gender in Latin America. Politics & Gender, v. 16, n. 1, 2020.

DINIZ, Debora; CARINO, Giselle. Não há ‘backlash’ provocado pelo feminismo. El País, 09 de março de 2019. Opinião. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/07/opinion/1551994753_797742.html>. Acesso em: 03 de março de 2021.

GARRIDO, Lucy. A 25 años de Beijing. El hexagrama de la continuidad. Revista Bravas, n. 11, 2020. Disponível em: < https://www.revistabravas.org/beijing-lucy-garrido>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2021.

GOETZ, Anne Marie. The new competition in multilateral norm-setting: Transnational feminists & the illiberal backlash. Daedalus, v. 149, n. 1, p. 160-179, 2020.

LERMA, Betty Ruth Lozano. Latin American and Caribbean Feminisms. In: ACOSTA, Alberto et. al. Pluriverse: A Post-Development Dictionary. Nova Déli, Índia: Tulika Books, 2019. P. 228-231.

ROGGEBAND, Conny; KRIZSÁN, Andrea. Democratic backsliding and the Backlash against women’s rights: Understanding the current challenges for feminist politics. UN Women, 2020.

UN WOMEN. On the 25th anniversary of landmark Beijing Declaration on women’s rights, UN Women calls for accelerating its unfinished business. Disponível em: < https://www.unwomen.org/en/news/stories/2020/9/press-release-25th-anniversary-of-the-beijing-declaration-on-womens-rights>. Acesso em: 26 de janeiro de 2021.

VARGAS, Virginia; CUEVAS, Daptnhe. A veinticinco años de la IV Conferencia Mundial sobre la Mujer en Beijing. Montevidéu, Uruguai: Cotidiano Mujer, 2020.

 

*Gabriela Aparecida de Oliveira é mestranda no PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.

Imagem: ONU Mujeres – América Latina y el Caribe.