BRASILIA, Brazil (Nov. 23, 2021) -- U.S. Army Gen. Laura Richardson, commander of U.S. Southern Command, meets with Brazilian Defense Minister Walter Braga Netto and Chief of the Joint Armed Forces Staff, Gen. Laerte de Souza Santos. Richardson visited Brazil Nov. 22-24 to meet with defense leaders to discuss security cooperation. (Photo courtesy U.S. Embassy Colombia)

Os Estados Unidos, as disputas por hegemonia global e a América Latina

Lívia Peres Milani* 

A invasão russa à Ucrânia insere-se em um contexto já existente e mais amplo de retomada das disputas entre grandes potências, o qual foi acelerado e intensificado pela guerra na Europa. Como pontuado por Héctor Saint-Pierre, há uma disputa por hegemonia, “um movimento nas camadas tectônicas mais profundas da segurança internacional, que é onde se expressam as estruturas estratégicas das grandes potências”. A disputa envolve Estados Unidos, China e Rússia e tem dimensões globais. Assim, ainda que seja mais intensa em áreas consideradas prioritárias por tais potências, como o Indo-Pacífico e a Eurásia, regiões periféricas, como África e América Latina, também são inseridas na mesma lógica de disputa. Este movimento pode ser constatado pela crescente percepção de ameaça russo-chinesa na América Latina por parte de diferentes atores estadunidenses, um movimento anterior à guerra, mas acelerado pela mesma.

Embora os militares estadunidenses já citassem de forma esparsa China e Rússia como desafios à hegemonia dos EUA na América Latina desde o governo Barack Obama, essa percepção se acentuou nos últimos anos. Durante o governo Trump, por exemplo, o Comando Sul – divisão das forças armadas dos Estados Unidos que autoatribui parte da América Latina como sua área de responsabilidade – destacava com preocupação a influência de atores estatais extracontinentais na região, caracterizando-os como atores malignos. Esta narrativa permaneceu na administração Biden, com a nomeação de Laura Richardson para a liderança da divisão militar. Já no contexto da guerra na Ucrânia, em documento entregue ao Congresso dos Estados Unidos para audiência pública em oito de março, Richardson afirmou que “nossa ameaça condicionante número um é a RPC [República Popular da China], nossas ameaças secundárias são a Rússia, TCO [Organizações Criminosas Transnacionais] e Irã”[1]. Essa retórica mais explícita e assertiva, que coloca a disputa entre grandes potências no centro da estratégia para a América Latina mostra uma intensificação do processo.

Importante pontuar que essa percepção de ameaça ocorre apesar de China e Rússia apresentarem mínima capacidade – ou mesmo interesse – em projeção de poder regional. Conforme a base de dados sobre transferência de armamentos mantida pelo Sipri, a transferência de sistemas de armas russos para a região foi relevante nos últimos anos, porém tem sido concentrada na Venezuela. Por outro lado, Brasil, Colômbia e México, por exemplo, seguem comprando armamentos especialmente de fornecedores estadunidenses e europeus. Já a China tem participação incipiente, ainda que crescente, na venda de armas para a região. Contudo, vale ressaltar que o país desponta como fornecedor de intercâmbios para os militares – de acordo com o Comando Sul. Os investimentos chineses em infraestrutura, especialmente na construção de portos e na região do Panamá, têm sido destacados pelos militares estadunidenses como um risco. O saldo que podemos extrair desses dados é que – militarmente – as presenças chinesa e russa na América Latina não se comparam com a influência estadunidense no entorno estratégico daquelas potências.

Não são apenas os militares, no entanto, que têm percebido China e Rússia como ameaças na América Latina. A narrativa é compartilhada por membros da administração e por congressistas estadunidenses. Em evento realizado pelo Inter-American Dialogue, ao ser perguntado sobre os efeitos da guerra e sobre a “interferência” russa na região, Brian Nichols, Secretário Assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, respondeu que a Rússia tem ameaçado aumentar a parceria com os países da região, com a possibilidade de desestabilizá-la ou ameaçar os EUA com armas estratégicas. Nichols também apontou que os desafios regionais refletem os desafios globais.

Em 2 de fevereiro de 2022, os Senadores Marco Rúbio (Republicano – Flórida) e Bob Menendez (Democrata – New Jersey) apresentaram um projeto de lei ao Congresso dos Estados Unidos que, se aprovado, demandará do governo federal a confecção de uma estratégia de segurança própria para a região. O projeto cita a influência “maligna e prejudicial” de China e Rússia como risco aos interesses nacionais dos Estados Unidos e propõe que os EUA devem aumentar as “parcerias” e promover “cooperação em segurança” com os países da região. O projeto também afirma que os EUA devem trabalhar com “agências de segurança e law enforcement [aplicação da lei]” da América Latina para fazer frente ao narcotráfico, ao crime organizado e apoiar o império da lei [rule of law], a democracia e os direitos humanos. Aponta ainda a necessidade de recursos adicionais para aumentar os investimentos e projetos dos EUA no Hemisfério Ocidental.

Alguns aspectos importam nesses movimentos, com consequências importantes para a América Latina. Em primeiro lugar, podemos citar que a tendência de securitização da presença russa e chinesa na região significa que há maiores constrangimentos sistêmicos para os países latino-americanos. Se, durante os anos 2000, no início da mudança sistêmica, a tendência à multipolaridade teve efeitos conjunturais aparentemente positivos e permitiu a diversificação de parcerias, atualmente, os Estados Unidos buscam minimizar esta possibilidade. Neste sentido, manter relações equilibradas e cordiais com as três potências mostra-se mais difícil para os países da região. 

Ademais, em sua estratégia de retomada da hegemonia regional, há dois atores que a potência hegemônica percebe como essenciais: as forças policiais e as forças armadas. Esta escolha pode conter um aumento da militarização da Política Externa dos EUA para a região, sendo que outros atores – como a diplomacia, ou a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) ficam em segundo plano. Os projetos com os militares e com policiais latino-americanos podem contribuir para o aumento do peso político interno desses atores, os quais, historicamente, tendem à intromissão na política. De forma semelhante, a conjunção de ameaças estatais e não-estatais apresentada no projeto de lei mostra que continua a não existir uma visão de separação entre as funções dos policiais e das forças armadas – o que significaria um contínuo apoio ao emprego dos militares internamente, mesmo que este seja historicamente associado à letalidade e a violações aos direitos humanos.

Por fim, em texto publicado sobre o tema, Adam Iscason alerta sobre o risco de que os Estados Unidos apoiem governos autoritários que se adequem a suas demandas de alinhamento geopolítico. Em alguma medida, isso já acontece. Cabe ressaltar o apoio concedido ao governo interino de Jeanine Añes, na Bolívia (2019-2020) – apesar da contestada forma como essa chegou ao poder – ou mesmo o convite feito ao governo brasileiro para participar da “Cúpula das Democracias” – apesar das falas nostálgicas e de apreço ao regime burocrático-autoritário emitidas pelo presidente brasileiro.

Em resumo, a guerra na Ucrânia é um desdobramento das crescentes rivalidades entre grandes potências, sendo que a abrangência deste elemento estrutural é global, atingindo todas as regiões, inclusive a América Latina. Na região, do ponto de vista da defesa, a posição de poder dos Estados Unidos ainda é muito superior, sendo que a projeção de seus competidores é mais limitada. Ainda assim, a potência hegemônica tem visto os avanços de seus competidores em outras áreas ou em situações específicas como problemas de segurança. Como consequências para a América Latina, destaca-se a maior dificuldade de colocar em prática uma posição equilibrada e de relacionamento não-excludente entre as potências, o reforço das tendências de militarização a partir de incentivos estadunidenses e um contexto internacional menos propício à manutenção da democracia.

[1] Luciana Wietchikoski e eu analisamos este documento e as formas como o Brasil poderia reagir a esse contexto de mudanças sistêmicas em texto publicado na coluna Diplomacia e Democracia do Uol.

* Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP), bolsista Capes-PrInt. Pesquisadora do Gedes e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Twitter @Livia_LPM. E-mail: livia.milani@unesp.br.

Imagem por: US Southern Command.

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