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Barganhas Militarizadas Interestatais na America Latina: uma região de paz violenta?

Iury França*

 

O presente trabalho objetiva evidenciar a presença de episódios de violência entre Estados latino-americanos, sob a forma de disputas interestatais militarizadas (MIDs). Conforme Gochman e Maoz (1984), MIDs são um “conjunto de incidentes envolvendo ameaça, exibição ou uso da força sancionada e dirigida pelo governo entre dois ou mais Estados”. Os eventos são separados por um intervalo temporal curto. Bremer (1993) define MIDs como situações em que Estados se ameaçam ou usam a força um contra o outro, na condição de até 1000 mortes. Uma vez que um conflito se torna militarizado, às vezes a ação inicial é seguida por contra-ações, numa “espiral ascendente de violência”. A escalada do conflito pode evoluir até ultrapassar o limiar das MIDs, tornando-se uma guerra entre Estados. Na mesma linha, Bremer, Jones, Singer (1996), afirmam que MIDs são “ações militarizadas envolvendo ameaça, emprego ou uso explícito da força por um membro do sistema internacional contra outro”.

Foi depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que pesquisas quantitativas sobre conflitos internacionais começaram a ser desenvolvidas e armazenadas em banco de dados (FREEDMAN, 2017). Métodos quantitativos poderiam gerar um novo campo de pesquisa para a paz. Segundo Freedman, para se ter acesso a fundos para pesquisa, os cientistas sociais pensaram em demonstrar que era possível prover pesquisas semelhantes à objetividade das ciências naturais, com a finalidade de desenvolver leis. Se leis pudessem ser criadas, o futuro da guerra poderia ser controlado (VASQUEZ, 2012 apud FREEDMAN, 2017) Nessa linha, policymakers [formuladores de políticas] poderiam reconhecer sintomas, fazer diagnósticos e identificar como tratar situações na iminência de desastres. Contudo, era necessário observar a importância do assunto em questão na geração da guerra, como observou John Vasquez (2012). Segundo ele, fatores como formação de alianças e expansão do aparato militar poderiam reforçar chances de conflito, além de que rivais teriam mais chance de ir à guerra que outros Estados.

Neste texto, trabalha-se com metodologia descritiva, via banco de dados disponibilizado pelo projeto Correlates of War (COW). O banco de dados é embasado no conceito de MID e seus graus. A escolha de parte do banco (MID_A 4.0) contempla o objetivo da pesquisa, uma vez que aborda aspectos como fatalidade, grau de intensidade e modo de resolução. O diferencial para o MID_B se dá na interpretação de um dos Estados (ou os dois) apresentar aspectos de revisionismo, seja territorial ou político. Para os fins deste trabalho, filtramos as descrições ao banco MID_A. Auxiliam no entendimento da violência na América Latina (AL): Bremer (1993), Freedman (2017); Gochman e Maoz (1984); Bremer, Jones e Singer (1996); D’Orazio et al. (2020); e Mares (2001; 2012).

Importante notar que, para Freedman (2017), os Estados são self-contained units [unidades autônomas]. O sistema internacional cria suas próprias motivações para a guerra. Com isso, mesmo após o fim da Guerra Fria, o autor entende que a perspectiva realista via a continuidade dos níveis de violência observados anteriormente. Nessa linha, David Mares (2001), ao se voltar para a América Latina, define que as primeiras e principais preocupações de segurança nesses países surgem de dois fatores: autopercepção e competição política. As externalidades de segurança se desenvolvem a partir de três arenas: internacional, regional e doméstica. Na arena internacional, os interesses dos EUA produzem externalidades de segurança para toda a AL. No nível regional, o foco é no nation-building [construção da nação] depois da independência. A prevalência de disputas de fronteiras na AL significa que o método de resolução (pacífico ou militar) tem uma significância maior. Na arena doméstica, quando o status quo é ameaçado na AL, as elites e os EUA se preocupam.

A existência do país em si não é um problema (MARES, 2001). As questões referentes à defesa surgem das características internas da região: fronteiras disputadas, desenvolvimento econômico desigual e disparidades de distribuição de poder. Nessa dinâmica, desde 1816, ocorreram 17 guerras na América Latina. Essas guerras também tiveram impacto na distribuição regional de poder. Em termos de MIDs, entre 1816 e 1976, houve 21 disputas entre países não-potência, ou 1/3 dos países da América Latina (GOCHMAN; MAOZ, 1984). Em complemento, Mares (2012) advoga que o contexto de segurança da América Latina tem sido essencialmente competitivo, no qual a dissuasão e a negociação militarizada predominavam entre os países.

A arquitetura de segurança da América Latina é única entre os países em desenvolvimento, tanto em sua extensão, quanto em sua amplitude. Segundo Mares (2012), o sistema de segurança coletiva provê segurança para cada país numa comunidade. Os esforços para deslegitimar o uso da força na América Latina incluem integração política, divisão de Estados, tentativas de acordo e controle de armas. Entretanto, os maiores esforços foram direcionados à prevenção da guerra, e não à questão de pequenos conflitos. Ações militares são resultado de uma interação que, em uma dada situação, um ator faz o cálculo custo/benefício, avaliando o uso da força militar como vantajoso em suas relações com um rival (MARES, 2012). O histórico não-pacífico da região e o cálculo de custo/benefício já tornaria a América Latina bastante instável. Junta-se a isso os esforços de segurança não-preventiva da América Latina e temos com mais clareza a questão do aparente descompromisso em lidar com a paz violenta. Mares (2012) cita a lentidão das nações latino-americanas em exigir das partes conflitantes o retorno ao status quo, pois favorece a ocorrência de ganhos em comportamentos beligerantes sem prestar esclarecimentos internacionais sobre incidentes.

O período documentado pelo Correlates of War abrange todo o contexto após as guerras napoleônicas de 1816. O projeto relata situações de MID, com os mais diferentes desfechos, incluindo guerra. Nesta seção, à exceção de guerra, evidencia-se objetivamente as 19 ocorrências de violência interestatal na América Latina entre 2000 e 2010. São informados resultado; resolução; número de fatalidades; ação mais expressiva; nível de hostilidade; reciprocidade na ação e se no ano de 2010 a disputa ainda ocorria.

Fonte: D’orazio et al (2020). Disponível em: https://academic.oup.com/isq/article-abstract/64/2/469/5531765.

O banco de dados pontua objetivamente a paz violenta na América Latina. Mesmo sem ocorrência de baixas, houve exibição de força e violações de fronteira em algumas disputas, e em todas constou nível de hostilidade 3 ou 4; sendo o nível 5 o correspondente à guerra. Posto isso, todas as situações verificadas apresentam grau de disputa intenso, com uso da força ou, no mínimo, exibição dela. Foi constatada maior frequência de incidentes entre Equador, Venezuela e Colômbia, envolvendo violação de fronteira com exibição de força.

A literatura argumenta que a região ainda não conheceu paz, apenas paz violenta. A ausência de constrangimento internacional facilita o cálculo de custo/benefício que os líderes latino-americanos fazem antes de recorrer a MIDs. Cada país define suas prioridades de defesa e seus entendimentos de ameaça e se sente mais livre para agir. Entende-se, dessa forma, que a América Latina ainda não é uma comunidade de segurança pacífica. Suas relações continuam frequentemente afetadas pela utilização de recursos militares em negociações entre os Estados.

 

* Iury França é mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba. É bacharel em Relações Internacionais pela mesma instituição. Desde 2017 é membro do Grupo de Estudos em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI – UFPB) e desde 2021 é membro do Programa de Cooperação Acadêmica em Defesa Nacional (ASTROS) do Ministério da Defesa do Brasil.

Imagem: América do Sul. Por: Pixabay.

Referências

CORRELATES OF WAR PROJECT. Militarized Interstate Disputes (v 5.0). Disponível em: https://correlatesofwar.org/data-sets/MIDs.

FREEDMAN, Lawrence. The future of war: a history. Public Affairs, 2017.

JONES, Daniel M.; BREMER, Stuart A.; SINGER, J. David. Militarized interstate disputes, 1816–1992: Rationale, coding rules, and empirical patterns. Conflict Management and Peace Science, v. 15, n. 2, p. 163-213, 1996.

MARES, David R. Latin America and the illusion of peace. Routledge, 2012.

_______. Violent peace. In: Violent Peace. Columbia University Press, 2001.

MITCHELL, Sara McLaughlin; VASQUEZ, John A. (Ed.). What do we know about war? Rowman & Littlefield, 2021.

PALMER, Glenn et al. Updating the militarized interstate dispute data: A response to Gibler, Miller, and Little. International Studies Quarterly, v. 64, n. 2, p. 469-475, 2020.

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