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60 anos da Crise dos Mísseis de Cuba

Luiza Elena Januário*

Em outubro de 2022 completaram-se 60 anos da Crise dos Mísseis de Cuba – a Crise do Caribe para os soviéticos ou a Crise de Outubro para os cubanos. Tratou-se de um momento de grande tensão da Guerra Fria, em que o mundo estava à beira de uma guerra nuclear devido à descoberta pelos Estados Unidos de que a União Soviética estava instalando mísseis balísticos na ilha do Caribe que poderiam atingir o território da superpotência capitalista. Porém, a questão não se encerrou de fato em outubro e considerar facetas muitas vezes marginalizadas nas análises revela como o perigo de se desencadear um desastre nuclear era ainda maior do que imaginava. Apesar de bem difundida a periodização estadunidense – inclusive por Hollywood– de 13 dias de tensão, pode-se considerar que a crise corresponde, na verdade, a 59 dias, uma vez que ogivas nucleares soviéticas chegaram em Cuba no dia 4 de outubro e só foram retiradas em 1º de dezembro, sendo que não foram detectadas pelos estadunidenses.

Um caso para análise sobre tomada de decisão e gerenciamento de crises por excelência, a Crise dos Mísseis de Cuba é muitas vezes retratada como um sucesso dos líderes políticos em evitar uma escalada e garantir uma solução pacífica, especialmente do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy. Porém, um retrato desse tipo pode conduzir ao entendimento de que os tomadores de decisão centrais tinham o controle total de situação e seu desfecho se deve simplesmente a um bom manejo no mais alto nível político. Porém, reduzir a crise a tais aspectos é incorreto e pode levar a conclusões enganosas sobre como lidar com situações de tensão.

Um primeiro aspecto a ser considerado é como Cuba é apresentada quase como um palco, simplificada à sua posição estratégica. Ou seja, nega-se a sua capacidade de ação por meio de um entendimento de que o desencadear da crise, em qualquer sentido que se desse, dependia apenas das ações das duas superpotências.  Contudo, o fato de que a instalação de mísseis e ogivas ocorreu em Cuba lhe concedia algum grau de influência sobre os acontecimentos. Fidel Castro, particularmente, pode ser considerado um ator relevante ao se enquadrar a questão no nível doméstico. No caso, um ator que instigava os soviéticos a tomaram medidas mais arriscadas e provocadoras com relação aos Estados Unidos, aumentando a volatilidade do quadro.

Ademais, além dos mísseis balísticos, e de modo desconhecido pelos estadunidenses, armas nucleares táticas foram colocadas no país caribenho. De fato, na Conferência de Havana de 1992, a delegação estadunidense ficou extremamente chocada quando descobriu que os planos iniciais soviéticos para Cuba incluíam 80 armas nucleares táticas, com potencial de devastar qualquer tentativa de invasão a Cuba. De qualquer modo, a retirada das armas táticas presentes na ilha – que não estava prevista no compromisso entre Estados Unidos e União Soviética, já que a existência dessas não era conhecida – dependia da colaboração dos cubanos, sendo que Castro desejava mantê-las em seu território com o intuito de se defender de possíveis investidas dos Estados Unidos. Considerando que o líder revolucionário caribenho estava irado com a decisão da União Soviética de fazer concessões à potência americana e retirar os mísseis, pois ele se sentia humilhado e traído pelo acordo sobre o qual não fora consultado, a questão não estava sumariamente resolvida mesmo após a solução oficial ter sido acordada. Vale citar que o primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchov, enviou uma carta conciliatória a Castro no dia 30 de outubro em que demonstrava solidariedade à posição cubana e buscava justificar suas ações, assumindo um tom quase de pedido de desculpas.

Uma segunda questão que revela o engano de centrar totalmente a discussão nos tomadores de decisão é o que alguns pesquisadores denominam de Crise Submarina de Cuba. Como parte das preparações soviéticas para Cuba, quatro submarinos convencionais deixaram suas bases no dia 1º de outubro com destino ao país no Caribe. Os submarinos foram detectados pelos Estados Unidos quando se aproximavam da ilha e um incidente foi gerado em 27 de outubro, dia tradicionalmente conhecido como o mais perigoso de toda a Crise dos Mísseis, mesmo que não se considere a existência de uma crise submarina. O que os Estados Unidos não sabiam é que cada um dos quatro submarinos Foxtrot portava um torpedo nuclear e, pensando estar sob ataque, o capitão do B-59 quase disparou seu torpedo no dia 27. Tal faceta revela que o perigo associado à Crise era ainda maior do que se imaginava – e, no caso, nem Kennedy nem Khrushchov tinham controle sobre os acontecimentos.

A ideia de que um desastre foi evitado durante a Crise dos Mísseis devido à sorte não é nova, figurando em falas do ex-Secretário de Estado Dean Acheson e do então Secretário de Defesa, Robert McNamara, sendo que ambos atuaram no Comitê Executivo de Segurança Nacional (ExComm) formado nos Estados Unidos para aconselhar o presidente sobre o evento. Ressaltar tal elemento é o oposto de assumir o domínio dos principais jogadores sobre o jogo. Não se entende aqui sorte como algo relacionado a conjunções astrológicas ou superstições, mas um reconhecimento do papel do imponderável na política – um aspecto que não é ignorado ao longo da História, sendo possível encontrá-lo, para citar alguns exemplos bem conhecidos, nas formulações sobre de Maquiavel e no conceito de fricção de Clausewitz. Apesar de bem reconhecido, o imponderável, o acaso, a sorte, o que não se pode controlar ou eventualmente prever, causa desconforto na análise e na prática, uma vez que descortina justamente uma perda de controle, aumentando ainda mais a instabilidade em situações de crise. Considerar esse aspecto e suas implicações para crises envolvendo países nuclearmente armados é essencial nos dias contemporâneos, com a visível deterioração do ambiente de segurança.

Assumir que decisões políticas em situações de crise são tomadas por seres humanos falhos, que têm seus interesses e preconceitos e atuam com base em informações incompletas ou mesmo incorretas, não constitui nada extraordinário em análises sobre tomada de decisão. Ainda assim, muitas vezes a narrativa sobre a Crise dos Mísseis é guiada no sentido de ressaltar o controle da situação pelos mais altos líderes políticos. Os dois exemplos citados neste texto apontam que, na verdade, Kennedy desconhecia aspectos centrais sobre o quadro, que agravavam ainda mais uma possibilidade de escalada tanto acidental como proposital. A questão aqui não é criticar serviços de Inteligência e informações imperfeitas, mas reconhecer que qualquer análise mais aprofundada requer o reconhecimento do fato de que o destino do mundo não estava simplesmente nas mãos de Kennedy e Khrushchov e que a instabilidade e risco de escalada, especialmente acidental, eram muito altos.

Tal ponto é particularmente importante quando se pretende extrair lições das Crises dos Mísseis e utilizá-las para outras situações. O grande desafio é considerar o enorme potencial desestabilizador das armas nucleares no mundo hoje e como narrativas focadas no valor da dissuasão e da importância estratégica desse tipo de armamento escondem o fato de que nenhum país ou líder político tem total controle sobre o curso dos acontecimentos. No limite, o questionamento se refere ao ceticismo de que a posse de armas nucleares por um grupo reduzido de Estados – especialmente aqueles considerados legítimos sob o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) – seja um elemento que contribui para a estabilidade e para a segurança internacional.

 

*Doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

 

Imagem: CIA. Mapa mostrando o alcance dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cuban_crisis_map_missile_range.jpg>. Acesso em: 27 out. 2022.

 

 

10th NPT Review Conference: what to expect from Brazil?

Victoria Viana Souza Guimarães*

Lucas Peixoto Pinheiro da Silva**

The approach of the 10th Review Conference (RevCon) of the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons (NPT) increases expectations about what will be debated and the possible outcomes. The expectation in regard to this specific RevCon is even stronger due to both the rescheduling and the multiple issues to be discussed. After four successive postponements due to the covid-19 pandemic, the event originally scheduled to take place in 2020, will take place between August 1st and 26th, 2022, in New York, in a very different and more challenging international context than in 2015. The topics that will probably be addressed include the following: Treaty on the Prohibition of Nuclear Weapons (TPNW), nuclear submarines, Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), 2018-19 Korean Peace process, Russo-Ukrainian War, energy crisis, nuclear weapons modernization programs, among others. The present article reviews the main issues on the agenda of the non-proliferation regime, analyzes Brazil’s position in previous conferences, and presents the stance it is most likely to present at this conference.

One of the main issues that will probably be addressed in the 10th RevCon is the relationship between the NPT and the TPNW. The TPNW entered into force in January 2021 and its 1st Meeting of States Parties happened from June 21st until the 23rd, 2022, in Vienna, Austria. The states parties issued two notable documents: the “Vienna Declaration” and the “Vienna Action Plan.” In the first document, the states parties reiterated their commitment to a future without nuclear weapons and strongly condemned nuclear threats. While in the second, they presented a wide-ranging and detailed 50-point plan for the implementation of the treaty.

The discourse leading up to the 10th RevCon gave great emphasis to “reducing the risk of nuclear weapon use” as a practical way to make incremental progress toward disarmament. Nevertheless, some non-nuclear-weapon states fear that a collective focus on risk reduction is an effort to avoid taking the steps needed to achieve disarmament. Some civil society experts have recommended that the document for the final RevCon recognize the TPNW’s entry into force while simultaneously clearly reaffirming the centrality of the NPT to the disarmament and nonproliferation regime. Albeit that, action must still be taken to demonstrate that risk reduction does not deviate from the efforts toward nuclear disarmament but contributes to achieving it.

Another issue to be addressed is the AUKUS. This acronym refers to the initials of Australia, the United Kingdom, and the United States. These countries jointly announced the formation of a new trilateral security partnership in the Indo-Pacific on September 15th, 2021. This partnership establishes among other things the acquisition by Australia of nuclear-powered submarines. Thus, Australia, together with Brazil, which has pursued a nuclear-powered submarine since the late 1970s, would be the first non-nuclear-weapon state to possess it. These programs present new challenges regarding nuclear safeguards and proliferation which should be addressed at the conference. Speculations have already been made about the possibility of countries such as South Korea, Japan, Iran, and Pakistan, among others, taking advantage of this precedent.

The Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA) was signed in July 2015, closing the Iranian nuclear issue. It was originally composed by the P5+1 (China, France, Russia, UK, US + Germany) along with the European Union and Iran. The agreement’s main goal was to provide further assurances that Iran would not use nuclear technology to build nuclear weapons. However, in 2018, ex-President Donald Trump withdrew the US from the arrangement, which was followed by the reestablishment of strong banking and oil sanctions. In retaliation, the Iranians have resumed some of the nuclear activities that were dismantled by the JCPOA, such as increasing the stockpile of low-enriched uranium, enriching uranium in higher concentrations, and developing  new centrifuges. More recently, the signing of the Jerusalem Declaration, on July 16th, 2022, by Biden and the Prime Minister of Israel, Yair Lapid, obstructed even further the chances of the JCPOA’s revival. According to the document, each country would be willing to “use all elements of its national power” to prevent Iran from acquiring a nuclear device.

The 2018-19 Korean peace process was a series of negotiations among the US, South Korea, and North Korea towards the Korean peninsula denuclearization. In March 2018, ex-President Trump agreed to the first US-North Korea Summit, which was followed by a historical summit between Kim Jong-un and Moon Jae-in. The result was the pledge from both to convert the armistice into a formal peace treaty between the two Koreas and confirmed the shared goal of achieving a nuclear-free Korean Peninsula. Further efforts were made on June 12th, 2018, when Trump and Kim held a historic meeting, in Singapura; and in September 2018, when Kim and Moon signed a joint declaration outlining steps towards reducing tensions, expanding inter-Korean cooperation, and achieving denuclearization. Nonetheless, negotiations stalled after the Hanoi Summit. The efforts to revive it were unsuccessful and, on October 6th, 2019, North Korea ended negotiation talks with the US until Washington could offer substantial sanction relief. In June 2020, the inter-Korean dialogue was disrupted as well. More recently, Biden has adopted a “middle ground” approach between Obama’s “strategic patience” and Trump’s “grand bargain” policies, though North Korea has signaled no intentions to re-start the talks and ramped up missile tests at  the beginning of 2022.

On February 24th, 2022, Russia invaded Ukraine causing a major disturbance in the international system. Russia has put on special alert its deterrence forces, in case NATO intervened directly in the war, igniting security-focused rearrangements in the international economy, with unprecedented sanctions against Russia, which led to spiking oil and gas prices. The energy crunch caused by the war has led to the reconsideration of nuclear energy as a clean alternative to fossil-fuel based energy sources even in countries like Germany, where nuclear energy plants are predicted to be completely shut down at the end of 2022. Furthermore, during the conflict, the Kharkiv nuclear research institute was shelled and Europe’s biggest nuclear power station at Zaporizhzhia was damaged, causing further concern over the nuclear risks and its humanitarian consequences.

Nuclear weapons modernization programs continue to channel extensive resources that could be invested in other critical areas. According to the International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICAN) report, in 2020, during the covid-19 pandemic, 72.6 billion was spent on nuclear weapons. This high investment in nuclear weapons was also underscored in a 2022 report produced by Reaching Critical Will. The report states that “continued investment by certain governments in not just the maintenance but also the ‘modernisation’—the upgrading, updating, and life-extending—of nuclear weapons is absurd, dangerous, and immoral”.

Brazil acceded to the NPT in 1998 and since then has participated in all RevCons and Preparatory Committees[3], having consolidated very coherent and stable rhetoric internationally. The Brazilian position in the Global Non-proliferation Regime has been characterized by the following rhetorical issues: i) defense of the universality of the NPT; ii) the reaffirmation of its pillars (nonproliferation, disarmament, and peaceful use of nuclear technology); iii) the reiteration of the irreversibility, transparency and verifiability principles and the urging for the resolution on the Middle East agreed on the 5th Review and Extension Conference of the NPT; iv) the urging for revision of the role of nuclear weapons in nuclear-weapon states’ military doctrines, v)  the denunciation of the imminent risk of an accidental nuclear detonation; and vi) the contestation of its asymmetries due to the lack of implementation of previously agreed upon disarmament-oriented measures. In addition, the proposition of measures to improve the regime, in particular the fulfillment of the nuclear-weapon states obligations, has also been present in all administrations since 1998. More recently, since the Dilma Rousseff administration, the enunciation of the humanitarian cost of nuclear weapons has been gaining importance.

Considering this new context in which the 10th RevCon will take place, what should be expected in relation to Brazil’s position in the conference? Similar to the Brazilian positions in the previous conferences, it is believed that in this RevCon the country will probably reproduce its consolidated position on recurring issues, by keeping a demanding rhetoric toward the nuclear-weapon states , while defending the access to the technological development of the non-nuclear-weapon states . Meanwhile, on the AUKUS issue, Brazil might try to maximize the effects of the precedent for its own interests, as it is probably the most impactful issue for the country expected to be addressed at the conference. Brazil shall observe carefully how the US will stand regarding this issue since it has been against the Brazilian program. Brazil could explore this contradiction. Conversely, the AUKUS may set an unfavorable precedent for Brazil in relation to joining the IAEA Model Additional Protocol, to which Australia has already adhered and Brazil resists. In general, the trend is toward  regression in relation to nuclear disarmament and non-proliferation measures, following a  change in the priority of the great powers, with an emphasis on security issues motivated by the containment strategy of China and the Russo-Ukrainian war.

[3] Meetings that precede the Review Conferences.

* Doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e bolsista CAPES/BRASIL no projeto 88887.387832/2019-00.

** Mestre em Estudos Estratégicos (Inest-UFF). Secretário adjunto do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia (CEA/Inest-UFF).

Imagem: Assembleia Geral da ONU, 2018. Por Trump White House Archived/Flickr.

Armas nucleares e invasão da Ucrânia: novas facetas de velhas inquietudes sobre o regime de não proliferação nuclear

Luiza Elena Januário*

Uma revigorada preocupação com os perigos representados pelas armas nucleares foi despertada desde os momentos iniciais da invasão russa da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro de 2022. Em seu discurso anunciando o curso de ação tomado, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, assegurou que seu país “é hoje uma das potências nucleares mais poderosas do mundo […] não deve haver dúvidas de que um ataque direto ao nosso país levaria à derrota e a consequências terríveis para qualquer potencial agressor”. O arsenal nuclear em pauta é, de fato, amplo e a menção aos efeitos de uma agressão externa contra a Rússia pode ser entendida como um lembrete para os países ocidentais acerca do poderio russo nessa seara e dos altos custos – em todos os sentidos – implicados em uma ação direta contra a nação eurasiática. 

Tal entendimento foi reforçado com a declaração de Putin do dia 27 do mesmo mês, em que o mandatário afirmou colocar as forças de dissuasão do país em “estado especial de alerta”. As armas nucleares são o elemento central em questão e, ao sinalizar uma possível disposição em recorrer a esse tipo de armamento, o ex-agente da KGB elevou ainda mais as tensões em uma tentativa de evitar um engajamento direto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito da Ucrânia.

Deve-se recordar que bombas atômicas não foram utilizadas em uma situação de conflito desde as explosões de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial, no alvorecer da era nuclear. O potencial de destruição das armas nucleares levou ao esforço de coibir sua difusão, ao mesmo tempo em que era necessário reconhecer as aplicações pacíficas da tecnologia. Sobre essa dualidade foi fundado o regime de não proliferação e a ordem nuclear que se seguiu foi estabelecida com base em dois mecanismos inter-relacionados: um sistema gerenciado de dissuasão e um sistema gerenciado de abstinência, nos termos de Walker. O primeiro diz respeito à manutenção da estabilidade internacional por meio da posse de armas nucleares por um conjunto determinado de Estados, enquanto o segundo refere-se ao compromisso dos demais Estados em não desenvolver ou adquirir esse recurso de poder.

A primeira dinâmica remete a ideia de evitar a utilização da bomba atômica por parte de um Estado mediante a ameaça de represália por outros que também dispõem de dispositivos explosivos nucleares, considerando o potencial de destruição do armamento. A lógica da dissuasão implica na necessidade de manter crível a ameaça de utilização dos arsenais nucleares, tanto no sentido da capacidade militar como da disposição política. Porém, a forma como a possibilidade de uso das armas nucleares foi abertamente colocada como uma opção é fonte, com razão, de preocupação e condenação

A doutrina militar russa atual estabelece grande importância para a dissuasão, indicando que o recurso às armas nucleares poderia ser utilizado como resposta a um ataque perpetrado com armas nucleares, outras armas de destruição em massa ou em caso de um ataque convencional massivo, restringido a última possibilidade a uma situação em que a própria existência do país estivesse ameaçada. A questão aventada então refere-se à possibilidade de que a guerra da Ucrânia seja enquadrada como tal caso. Ao se considerar o já citado discurso inicial de Putin acerca da invasão, pode-se concluir que há uma caracterização nesse sentido, em que se ressalta o ambiente mais amplo de segurança internacional com a expansão para leste da OTAN e o posicionamento dos EUA. O presidente afirmou claramente que “a Rússia não pode se sentir segura, se desenvolver ou existir com a ameaça constante proveniente do território da Ucrânia contemporânea”, exacerbando o receio que o país quebre a tradição de não uso de armas nucleares.  

É pertinente recordar também que a noção de que um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado para convencer um inimigo a desistir de uma agressão foi introduzida na doutrina russa em 2000 com o conceito de ‘de-escalação’, no sentido justamente de que se o país enfrentasse um ataque convencional que ultrapassasse sua capacidade de defesa, um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado como resposta.  Desse modo, a perspectiva seria escalar as hostilidades com a utilização de armas nucleares com o objetivo de desescalar um conflito de modo geral. O conceito foi retomado por muitos analistas diante da invasão da Ucrânia.

De todo modo, o conflito tem estimulado diversas análises sobre o perigo das armas nucleares. Assim, alguns tópicos de interesse foram o risco de escalada acidental e proposital, os cenários em que a Rússia poderia recorrer ao seu arsenal nuclear e a visão do líder russo sobre o ambiente de segurança internacional e o uso de armas nucleares. Outra faceta dessa questão é representada pela presença de reatores nucleares em zonas de guerra, havendo grande preocupação com relação às plantas nucleares de Chernobyl e  Zaporizhzhia. 

Apesar da relevância de todos esses temas, propõe-se aqui discutir o significado da postura russa face ao regime de não proliferação nuclear e à ordem nuclear global. Um aspecto relevante nesse sentido diz respeito ao fato de que a Ucrânia possuía armas nucleares soviéticas em seu território quando se tornou independente em 1991 e abriu mão desse arsenal em 1994, em troca de garantias de segurança em termos de sua soberania e integridade territorial. Diante desse quadro, já foram realizadas considerações sobre os efeitos nocivos da postura russa para o regime de não proliferação, pois a confiança nas iniciativas diminuiria ao passo que se desenha uma imagem de que o objetivo do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) é oferecer cobertura para que os países nuclearmente armados reconhecidos como legítimos tomem as ações necessárias para atender seus interesses sem repercussões. Assim, difunde-se um entendimento de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que a Rússia pode realizar ações agressivas impunemente justamente por possuir a bomba atômica, parecendo indicar que a proliferação compensa.

O ponto defendido aqui é que o momento atual evidencia com dramaticidade as contradições intrínsecas do regime de não proliferação e da ordem nuclear derivada. Não se trata de uma perversão do espírito das iniciativas, mas de uma demonstração crua de sua desigualdade estrutural. A ordem nuclear construída ainda durante a Guerra Fria apresenta um paradoxo, já que, por um lado, seus valores e suas normas são difundidos com pesado financiamento por todo o mundo não só por meio de organizações internacionais, mas também por uma série de outras dinâmicas, incluindo a produção do conhecimento em universidade e think thanks – algo que foi denominado de complexo de não proliferação. Por outro lado, é muito presente uma sensação de crise iminente do ordenamento. 

Tal sensação se deve, em grande medida, à existência de uma série de injustiças relacionadas a um caráter discriminatório e desigual da ordem nuclear que assume forma clara por meio do TNP, a espinha dorsal do regime. O tratado, finalizado em 1968 e em vigor desde 1970, estabeleceu duas categorias de países, com direitos e obrigações distintas. De um lado, estavam as potência nucleares legítimas, os países que desenvolveram a bomba atômica até 1967, e de outro, todo o resto. Com essa configuração, o TNP foi acusado desde sua fundação de ser um sustentáculo do status quo, inquietação presente ao se refletir sobre as implicações da postura russa hodierna. Além do mais, o mal-estar provocado pela perspectiva de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que as garantias de segurança se mostraram inúteis está relacionado a um dos problemas de justiça que remete justamente à situação dos países que não possuem armas nucleares e não estão sob guarda-chuvas nucleares. Nesse contexto, só podem contar com a proteção do Direito Internacional, das normas e da moralidade – o que representa um acesso desigual à segurança global.

Propõe-se que uma noção de confiabilidade, visivelmente abalada atualmente, também é chave para essa construção. A divisão do mundo em duas categorias de países implica no entendimento de que alguns são responsáveis e confiáveis para deter armamento nuclear, e os outros não. Assim, o regime é sustentado por meio de double standarts, sendo muitas vezes difundido um discurso que estabelece que os países nuclearmente desarmados seriam irresponsáveis e não confiáveis devido à falta de maturidade política dos países, à falta de competência técnica para lidar com armas nucleares e à própria condição de subdesenvolvimento em muitos casos. Assim, está em pauta uma perspectiva que coloca em relevo as relações de poder na política internacional e um passado de colonialismo e imperialismo, constituindo outro problema da justiça na ordem nuclear. Talvez o ponto nevrálgico da situação atual seja a evidência de que as potências nucleares legítimas podem não ser tão confiáveis e responsáveis assim – como toda a discussão sobre a racionalidade de Putin indica.

Não se pretende aqui defender a proliferação de armas nucleares. Pelo contrário, postula-se a necessidade de se repensar os fundamentos das iniciativas destinadas a lidar com a questão nuclear, escapando do labirinto que impede a reflexão sobre futuros alternativos no tocante à não proliferação. Assim, a reflexão aqui proposta diz respeito ao entendimento de como o significado nocivo da postura russa com respeito à possível utilização de armas nucleares na Guerra da Ucrânia para o próprio regime de não proliferação e para a ordem nuclear global têm raízes mais profundas. A situação atual evidencia inquietudes presentes desde os momentos fundacionais das iniciativas e aponta a necessidade de repensar os parâmetros para lidar com a questão nuclear.

*Doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). 

Imagem: Tsar Bomba Revised. RDS202 (similar à AN602 “Tsar Bomba”) no Museu da Bomba Atômica de Sarov. Por: Croquant/Wikimedia Commons.

A guerra na Ucrânia e o delicado equilíbrio nuclear

Raquel Gontijo*

 

Após três dias da campanha russa sobre a Ucrânia, e diante da reação internacional de repúdio à invasão, Putin declarou que as forças nucleares russas seriam colocadas em elevado estado de alerta. Essa afirmação sinaliza uma ameaça de que, caso haja envolvimento mais intenso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito, a crise poderá escalar para uma guerra nuclear. Mas não está claro ainda exatamente o que significa, na prática, esse estado de alerta.

As forças nucleares russas são compostas por armamentos estratégicos e táticos. Os armamentos nucleares estratégicos têm maior capacidade explosiva, variando entre 50[1] e 800 ktons[2]. Esses armamentos também são associados a veículos de entrega de maior alcance, como mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), mísseis lançados por submarinos (SLBMs) e bombardeiros estratégicos. Por outro lado, os armamentos nucleares táticos têm, em média, menor capacidade explosiva (usualmente entre 10 e 100 ktons) e são associados a veículos de entrega de menor alcance, como mísseis balísticos de médio alcance (MRBMs) e mísseis de cruzeiro.

Parte das forças nucleares, especialmente as forças estratégicas, está constantemente em estado de prontidão, podendo ser acionadas em curto intervalo de tempo, em caso de iminência de um ataque contra a Rússia. A declaração de Putin sobre o estado de alerta das forças nucleares tem como principal efeito aumentar a quantidade de ogivas em estado de prontidão, de modo que elas possam ser empregadas mais rapidamente caso haja um agravamento da escalada do conflito.

Mas sob quais circunstâncias o governo russo poderia autorizar o uso da força nuclear? Essa é uma pergunta que não tem respostas claras.

No relatório de Revisão da Postura Nuclear dos EUA de 2018, o governo estadunidense apresentava uma interpretação sobre a doutrina militar russa que seria baseada na ideia de “escalar para desescalar”. Neste sentido, a Rússia estaria disposta a realizar ataques nucleares limitados como uma forma de coagir seus oponentes a recuarem, em caso de crises. Ou seja, a Rússia teria aparentemente maior disposição para iniciar o uso de armas nucleares.

No entanto, a doutrina oficial divulgada pelo governo russo indica que o uso de armas nucleares poderá ocorrer apenas caso haja a detecção de ataques nucleares contra a Rússia ou seus aliados, ou haja uma ameaça existencial sobre a Rússia, seu território ou o território de seus aliados. Não fica claro, neste momento, se a situação na Ucrânia se configuraria como uma ameaça existencial para os interesses russos. A postura adotada abertamente por Putin nas últimas semanas indica uma leitura de que o território da Ucrânia deve estar, direta ou indiretamente, sob controle russo. Assim, diante das operações militares dos últimos dias, não é absurdo supor que a Ucrânia se configura como parte do território considerado vital pelo governo russo.

Putin tem tentado sinalizar de forma clara sua disposição para escalar o conflito com o uso de armas nucleares, caso a OTAN se envolva diretamente na guerra. Isso nos leva a mais uma pergunta: qual é o risco de escalada nuclear no atual conflito? Podemos dividir a resposta em dois cenários: escalada nuclear proposital e escalada nuclear acidental.

A escalada proposital envolveria uma decisão calculada de iniciar o uso de armas nucleares, com maior probabilidade de que esse uso seja focado nos armamentos nucleares táticos.  Este cenário, apesar de possível, é extremamente improvável. Contudo, alguns elementos poderiam contribuir para esse tipo de decisão: uma crescente deterioração da situação para as forças russas, com aumento da letalidade para suas tropas e uma projeção de guerra urbana longa e custosa; um maior envolvimento da OTAN na guerra, com envio de armamentos, munições, suprimentos em geral e, eventualmente, de tropas; um aumento do isolamento da Rússia no sistema internacional, o que levaria o governo russo a se ver cada vez mais acuado. Esses desdobramentos poderiam levar Putin a buscar uma vitória militar rápida e decisiva pelo uso de armamentos nucleares.

É evidente que a decisão de usar armas nucleares teria um custo gigantesco para a própria Rússia. Primeiramente, o uso de ogivas nucleares teria, necessariamente, um enorme impacto sobre civis, o que geraria uma reação massiva da opinião pública tanto internacional quanto doméstica. Devemos lembrar, inclusive, que o governo de Putin já vem enfrentando resistência de sua população em relação à operação militar, a despeito dos esforços para filtrar e censurar as notícias que circulam no país.

Ainda mais grave, o uso de armas nucleares geraria fortíssimos incentivos para uma resposta mais dura da OTAN: seria como cruzar uma linha vermelha, rompendo com a tradição de não uso nuclear que foi preservada no mundo desde 1945. Este é o cenário que nos levaria para a beira do abismo de guerra nuclear em grande escala. Uma vez que armas nucleares sejam usadas em conflito pela Rússia, a OTAN poderá responder com uma retaliação nuclear limitada, o que poderia, por sua vez, escalar para um engajamento nuclear generalizado.

O outro cenário possível seria o de escalada acidental, ou inadvertida. Em situações de crise, com as forças em estado de alerta elevado e as pessoas sujeitas a estresse intenso, as decisões muitas vezes ficam prejudicadas e podem ocorrer erros de cálculo. A escalada acidental pode acontecer quando uma das partes (ou ambas) calcula mal a reação do oponente.

Na atual crise da Ucrânia, a Rússia e a OTAN estão engajadas em um jogo de sinalizações. Por um lado, a Rússia tenta inibir maior envolvimento da OTAN, ameaçando o uso da força nuclear como um escudo para resguardar sua liberdade de ação na Ucrânia. Por outro lado, a OTAN quer demonstrar que Putin não terá plena liberdade para perseguir suas ambições expansionistas no leste europeus. Neste sentido, os membros da OTAN tentam fazer sinalizações limitadas, enviando armamentos e munições para os ucranianos, impondo sanções econômicas, fechando seus espaços aéreos etc. Essas sinalizações são feitas, em geral, com cautela, mas é difícil prever exatamente o que o outro lado pode interpretar como inaceitável.

Deve-se lembrar também que, em situações de crise, falhas de comunicação e interpretações erradas por parte dos serviços de inteligência podem ter consequências devastadoras. Há inúmeros relatos de momentos, durante a Guerra Fria, em que a escalada nuclear quase ocorreu por falhas humanas e técnicas. Não é, portanto, impensável que erros similares ocorram durante a guerra na Ucrânia, resultando em reações precipitadas que poderiam dar origem à escalada nuclear.

Este é um momento de extrema incerteza. Em meio a tanto sofrimento, com movimentações massivas de deslocados e refugiados, ataques a cidades com impactos sobre civis, danos econômicos ainda difíceis de dimensionar, é fundamental que o mundo mantenha sua atenção também sobre o delicado equilíbrio nuclear que está sendo ameaçado.

No fim do século XIX, analistas militares diziam que a invenção das metralhadoras tornaria as guerras impensáveis, pela escala de mortandade que passaria a ser possível; o mesmo argumento foi levantado sobre a invenção das aeronaves no começo do século XX, pelas imagens de terror de bombardeios a cidades. Hoje, metralhadoras e aeronaves são equipamentos banais em qualquer guerra. É fundamental que as armas nucleares não sigam o mesmo caminho. De todas as consequências que podem decorrer desta guerra, talvez a pior seja pensar que as armas nucleares podem passar a ser percebidas como um armamento de guerra como outro qualquer. Sobretudo, é vital que a tradição de não uso nuclear seja preservada.

[1] As ogivas nucleares, em caso de armas nucleares estratégicas, são frequentemente associadas a mísseis MIRV, ou seja, com múltiplos veículos de reentrada independentes. Assim, por exemplo, cada míssil com 6 veículos de reentrada poderia transportar 6 ogivas de 50 ktons, totalizando 300 ktons e maximizando a área de destruição atingida.

[2] 1 kton é aproximadamente equivalente a mil toneladas de explosivos convencionais. Para efeito de comparação, as bombas de Hiroshima e Nagasaki são estimadas em algo entre 10 e 20 ktons.

 

* Professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES.

Imagem: Treinamento para o desfile do dia da vitória. Por: Michał Siergiejevicz/Wikkimedia Commons.