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A guerra na Ucrânia e o delicado equilíbrio nuclear

Raquel Gontijo*

 

Após três dias da campanha russa sobre a Ucrânia, e diante da reação internacional de repúdio à invasão, Putin declarou que as forças nucleares russas seriam colocadas em elevado estado de alerta. Essa afirmação sinaliza uma ameaça de que, caso haja envolvimento mais intenso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito, a crise poderá escalar para uma guerra nuclear. Mas não está claro ainda exatamente o que significa, na prática, esse estado de alerta.

As forças nucleares russas são compostas por armamentos estratégicos e táticos. Os armamentos nucleares estratégicos têm maior capacidade explosiva, variando entre 50[1] e 800 ktons[2]. Esses armamentos também são associados a veículos de entrega de maior alcance, como mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), mísseis lançados por submarinos (SLBMs) e bombardeiros estratégicos. Por outro lado, os armamentos nucleares táticos têm, em média, menor capacidade explosiva (usualmente entre 10 e 100 ktons) e são associados a veículos de entrega de menor alcance, como mísseis balísticos de médio alcance (MRBMs) e mísseis de cruzeiro.

Parte das forças nucleares, especialmente as forças estratégicas, está constantemente em estado de prontidão, podendo ser acionadas em curto intervalo de tempo, em caso de iminência de um ataque contra a Rússia. A declaração de Putin sobre o estado de alerta das forças nucleares tem como principal efeito aumentar a quantidade de ogivas em estado de prontidão, de modo que elas possam ser empregadas mais rapidamente caso haja um agravamento da escalada do conflito.

Mas sob quais circunstâncias o governo russo poderia autorizar o uso da força nuclear? Essa é uma pergunta que não tem respostas claras.

No relatório de Revisão da Postura Nuclear dos EUA de 2018, o governo estadunidense apresentava uma interpretação sobre a doutrina militar russa que seria baseada na ideia de “escalar para desescalar”. Neste sentido, a Rússia estaria disposta a realizar ataques nucleares limitados como uma forma de coagir seus oponentes a recuarem, em caso de crises. Ou seja, a Rússia teria aparentemente maior disposição para iniciar o uso de armas nucleares.

No entanto, a doutrina oficial divulgada pelo governo russo indica que o uso de armas nucleares poderá ocorrer apenas caso haja a detecção de ataques nucleares contra a Rússia ou seus aliados, ou haja uma ameaça existencial sobre a Rússia, seu território ou o território de seus aliados. Não fica claro, neste momento, se a situação na Ucrânia se configuraria como uma ameaça existencial para os interesses russos. A postura adotada abertamente por Putin nas últimas semanas indica uma leitura de que o território da Ucrânia deve estar, direta ou indiretamente, sob controle russo. Assim, diante das operações militares dos últimos dias, não é absurdo supor que a Ucrânia se configura como parte do território considerado vital pelo governo russo.

Putin tem tentado sinalizar de forma clara sua disposição para escalar o conflito com o uso de armas nucleares, caso a OTAN se envolva diretamente na guerra. Isso nos leva a mais uma pergunta: qual é o risco de escalada nuclear no atual conflito? Podemos dividir a resposta em dois cenários: escalada nuclear proposital e escalada nuclear acidental.

A escalada proposital envolveria uma decisão calculada de iniciar o uso de armas nucleares, com maior probabilidade de que esse uso seja focado nos armamentos nucleares táticos.  Este cenário, apesar de possível, é extremamente improvável. Contudo, alguns elementos poderiam contribuir para esse tipo de decisão: uma crescente deterioração da situação para as forças russas, com aumento da letalidade para suas tropas e uma projeção de guerra urbana longa e custosa; um maior envolvimento da OTAN na guerra, com envio de armamentos, munições, suprimentos em geral e, eventualmente, de tropas; um aumento do isolamento da Rússia no sistema internacional, o que levaria o governo russo a se ver cada vez mais acuado. Esses desdobramentos poderiam levar Putin a buscar uma vitória militar rápida e decisiva pelo uso de armamentos nucleares.

É evidente que a decisão de usar armas nucleares teria um custo gigantesco para a própria Rússia. Primeiramente, o uso de ogivas nucleares teria, necessariamente, um enorme impacto sobre civis, o que geraria uma reação massiva da opinião pública tanto internacional quanto doméstica. Devemos lembrar, inclusive, que o governo de Putin já vem enfrentando resistência de sua população em relação à operação militar, a despeito dos esforços para filtrar e censurar as notícias que circulam no país.

Ainda mais grave, o uso de armas nucleares geraria fortíssimos incentivos para uma resposta mais dura da OTAN: seria como cruzar uma linha vermelha, rompendo com a tradição de não uso nuclear que foi preservada no mundo desde 1945. Este é o cenário que nos levaria para a beira do abismo de guerra nuclear em grande escala. Uma vez que armas nucleares sejam usadas em conflito pela Rússia, a OTAN poderá responder com uma retaliação nuclear limitada, o que poderia, por sua vez, escalar para um engajamento nuclear generalizado.

O outro cenário possível seria o de escalada acidental, ou inadvertida. Em situações de crise, com as forças em estado de alerta elevado e as pessoas sujeitas a estresse intenso, as decisões muitas vezes ficam prejudicadas e podem ocorrer erros de cálculo. A escalada acidental pode acontecer quando uma das partes (ou ambas) calcula mal a reação do oponente.

Na atual crise da Ucrânia, a Rússia e a OTAN estão engajadas em um jogo de sinalizações. Por um lado, a Rússia tenta inibir maior envolvimento da OTAN, ameaçando o uso da força nuclear como um escudo para resguardar sua liberdade de ação na Ucrânia. Por outro lado, a OTAN quer demonstrar que Putin não terá plena liberdade para perseguir suas ambições expansionistas no leste europeus. Neste sentido, os membros da OTAN tentam fazer sinalizações limitadas, enviando armamentos e munições para os ucranianos, impondo sanções econômicas, fechando seus espaços aéreos etc. Essas sinalizações são feitas, em geral, com cautela, mas é difícil prever exatamente o que o outro lado pode interpretar como inaceitável.

Deve-se lembrar também que, em situações de crise, falhas de comunicação e interpretações erradas por parte dos serviços de inteligência podem ter consequências devastadoras. Há inúmeros relatos de momentos, durante a Guerra Fria, em que a escalada nuclear quase ocorreu por falhas humanas e técnicas. Não é, portanto, impensável que erros similares ocorram durante a guerra na Ucrânia, resultando em reações precipitadas que poderiam dar origem à escalada nuclear.

Este é um momento de extrema incerteza. Em meio a tanto sofrimento, com movimentações massivas de deslocados e refugiados, ataques a cidades com impactos sobre civis, danos econômicos ainda difíceis de dimensionar, é fundamental que o mundo mantenha sua atenção também sobre o delicado equilíbrio nuclear que está sendo ameaçado.

No fim do século XIX, analistas militares diziam que a invenção das metralhadoras tornaria as guerras impensáveis, pela escala de mortandade que passaria a ser possível; o mesmo argumento foi levantado sobre a invenção das aeronaves no começo do século XX, pelas imagens de terror de bombardeios a cidades. Hoje, metralhadoras e aeronaves são equipamentos banais em qualquer guerra. É fundamental que as armas nucleares não sigam o mesmo caminho. De todas as consequências que podem decorrer desta guerra, talvez a pior seja pensar que as armas nucleares podem passar a ser percebidas como um armamento de guerra como outro qualquer. Sobretudo, é vital que a tradição de não uso nuclear seja preservada.

[1] As ogivas nucleares, em caso de armas nucleares estratégicas, são frequentemente associadas a mísseis MIRV, ou seja, com múltiplos veículos de reentrada independentes. Assim, por exemplo, cada míssil com 6 veículos de reentrada poderia transportar 6 ogivas de 50 ktons, totalizando 300 ktons e maximizando a área de destruição atingida.

[2] 1 kton é aproximadamente equivalente a mil toneladas de explosivos convencionais. Para efeito de comparação, as bombas de Hiroshima e Nagasaki são estimadas em algo entre 10 e 20 ktons.

 

* Professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES.

Imagem: Treinamento para o desfile do dia da vitória. Por: Michał Siergiejevicz/Wikkimedia Commons.

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