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Os EUA no conflito em Gaza 2023/2024: a preservação da relação especial com Israel

Rodrigo Augusto Duarte Amaral *

“Os Estados Unidos (EUA) estão ao lado do Estado de Israel, tal como temos feito desde o momento em que os EUA se tornaram a primeira nação a reconhecer Israel, 11 minutos após a sua fundação, há 75 anos[1].” (BIDEN, 2023a, tradução nossa). Foi com este discurso inicial que o presidente dos EUA, Joe Biden, revelou o posicionamento sólido e imutável dos EUA que marcou sua posição diante da escalada de conflitualidade entre o Hamas[2] e Israel a partir do dia 7 de outubro de 2023.

Naquele dia, na voz do presidente, os norte-americanos anunciavam: “o povo de Israel está sob ataque, orquestrado por uma organização terrorista, o Hamas” (BIDEN, 2023b, tradução nossa). Não seria a primeira vez que os EUA acusariam o Hamas de ser uma organização terrorista. A primeira vez foi em 1997[3], durante a administração Clinton, após o estabelecimento dos Acordos de Oslo de 1993, que foram explicitamente rejeitados pelo Hamas, por considerá-los restritivos para a autonomia e territorialidade palestinas. Os Acordos de Oslo consagraram o papel do Hamas como uma resistência a Israel e a posição conformista da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), inaugurando uma realidade que progressivamente amarraria as mãos do movimento islâmico palestino. De um lado o Hamas comandaria os maiores movimentos contra Oslo em Gaza, por outro lado Israel e os EUA com o endosso da Autoridade Palestina representada pela OLP iniciaram um processo de criminalização do grupo islâmico e opressão de protestos civis. Os atentados de bombardeamento suicida de fevereiro de 1996 comandados pelo Hamas foram a “gota d’água” para a designação do grupo enquanto terrorista (KRISTIANASEN, 1999).

Em 2005, com a inédita desocupação israelense (desde 1967) de Gaza, apoiada pelo presidente Bush à época crescera a expectativa de um território autônomo palestino de facto (ainda que muito reduzido se comparado com a Palestina pré-1948). No entanto, o que se assistiu em Gaza foi o predomínio do argumento contraterrorista que justificou o bloqueio israelense ao território palestino após a vitória do Hamas nas eleições legislativas. Naquele momento, EUA e União Europeia anunciaram que não apoiariam um território administrado por um “grupo terrorista”. Estabelecia-se, então, uma tendência de assimilação da identidade entre a Faixa de Gaza e o Hamas, supondo como um espaço que abriga o “terrorismo internacional” (DOS SANTOS, 2023).

Mas a quem interessa chamar o Hamas de grupo terrorista? Considerando, ou não, a perspectiva crítica de que “um terrorista para um, é um libertador nacional para outro” (ROBINSON, 2004, p.112), a posição oficial dos EUA em designar o grupo como terrorista deve ser lida como politicamente intencionada. Primeiramente, pois essa qualificação destaca os atentados comandados pelo braço paramilitar do grupo, enquanto esconde suas atividades sociais que ganha os corações e mentes de milhares, senão milhões de palestinos e simpatizantes. Em segundo lugar, pois ignora a concepção do terrorismo como tática e aponta como um atributo de determinado ator. Isso é conveniente estrategicamente para os EUA e Israel à medida que encaixa o Hamas em uma categoria de violência extrema que irracionaliza o inimigo, portanto “legitima” qualquer tipo de resposta (ROBINSON, 2004).

Historicamente, o objetivo norte-americano declarado oficialmente quanto ao Hamas consiste em “deter, transformar, marginalizar, ou neutralizar o grupo de tal forma que não represente uma ameaça para a segurança de Israel […] e outros interesses dos EUA – como um proxy do Irã, ou outros atores” (ZANOTTI, 2011, p.1)[4]. Portanto, cabe afirmar que a finalidade tática de acabar com o Hamas é elemento fundamental para solidificação do objetivo de fortalecer o maior aliado estratégico dos EUA no Oriente Médio: Israel; ao passo que enfraquece os inimigos regionais, o maior deles o Irã.

Após os ataques do Hamas a Israel, que de maneira inédita matou mais de 1.100 israelenses, os EUA não apenas se mobilizaram diplomaticamente em favor da autodefesa israelense como intensificaram seu apoio material ao contra-ataque de Israel em Gaza. Os EUA concordaram provisoriamente (por meio de um memorando de entendimento) em fornecer a Israel quase 4 bilhões de dólares por ano até 2028, considerando possíveis financiamentos suplementares para Israel em meio a sua guerra com o Hamas (MASTERS & MERROW, 2024).

Se inicialmente a comunidade internacional se mobilizou em favor de Israel em repúdio ao ataque do Hamas, conforme o conflito se estendeu, a questão do limite da guerra inverteu as interpretações acerca da legitimidade do contra-ataque israelense. Ao observar, por exemplo, a postura da comunidade internacional nas sequentes propostas de cessar-fogo em Gaza nota-se uma expressiva vontade geral pelo encerramento do conflito brecado pela postura relutante dos EUA. Na sua história, os EUA vetaram resoluções críticas a Israel mais do que qualquer outro membro do Conselho de Segurança da ONU. Os EUA vetaram ao menos 89 resoluções do Conselho desde 1945, sendo 45 dos seus vetos foram utilizados em resoluções críticas a Israel, e 33 diziam respeito à ocupação israelense dos territórios palestinos ou ao tratamento dado pelo país ao povo palestino.  Desde o início do conflito, os EUA vetaram três propostas para o cessar-fogo imediato. Na última oportunidade, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora de Washington na ONU, disse que não era o momento certo para pedir um cessar-fogo imediato enquanto as negociações entre o Hamas e Israel não se encerrassem.

Mediante as respostas militares desproporcionais de Israel, novos fronts de batalha se abriram no Oriente Médio. Os principais atores que enfrentaram Israel contra os ataques em Gaza ficaram conhecidos como Eixo da Resistência. Trata-se de atores políticos e paramilitares que atacaram Israel como o Hezbolah libanês e os Houthis iemenitas, ou atacaram unidades militares norte-americanas como no caso dos mais de 150 ataques perpetrados pelas Unidades de mobilização popular iraquianas e grupos paramilitares sírios, ambos nos seus respectivos territórios. A resposta norte-americana a esses grupos revelou o envolvimento direto dos EUA no atual conflito no Oriente Médio. Tal cenário desenha linhas de alianças e inimizades claras, onde de um lado os EUA e Israel sustentam a guerra em Gaza ao passo que tentam inibir a insurgência reativa no resto do Oriente Médio. Por outro lado, revelam que o Hamas não está só, ao lado dele diversos grupos políticos islâmicos com braços paramilitares, apoiados (diretamente ou ideologicamente) pelo Irã preenchem o outro lado do campo de batalha.

A partir dos ataques contra unidades militares dos EUA no Iraque e os recorrentes ataques houthiscontra ao menos 10 navios de carga no mar vermelho, viu-se as primeiras incursões militares norte-americanas e britânicas no conflito, inaugurando a OperationProsperity Guardian destinada a responder os ataques houthis desde dezembro de 2023. Naquele instante, os EUA deixaram de ser agente passivo do conflito, atuando militarmente como aliado israelense contra os inimigos do “Eixo da Resistência”.

Seja como ator passivo ou ativo da guerra, os mais de seis meses de conflito revelam a sustentação da tradicional relação especial dos EUA com Israel. O país norte-americano se mostra como único porta-estandarte internacional de sustentação das ações militares israelenses em Gaza. Evidentemente, o papel americano é fundamental na manutenção do conflito. Faz vista grossa para os crimes de guerra israelenses que vitimam mais de 33 mil vítimas civis (13 mil crianças) palestinas que impedem não apenas um cessar-fogo da guerra, mas que se pautem novas discussões sobre autodeterminação e soberania palestina.

* Rodrigo Augusto Duarte Amaral, Doutor em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP), Professor de Relações Internacionais na PUCSP, membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUCSP (GECI).

Imagem: The Nation. Por:Brendan Smialowski /Getty

[1]Recomendamos ao leitor acessar a histórica relação entre EUA e Israel desde sua criação: BAR-SIMAN-TOV, Yaacov. The United States and Israel since 1948: a “specialrelationship”?.DiplomaticHistory, v. 22, n. 2, p. 231-262, 1998; SCHOENBAUM, David. The United States and the stateof Israel. Oxford University Press, 1993; CHOMSKY, Noam. FatefulTriangle: The United States, Israel and the Palestinians. Boston: South End Press, 1983; THIES, Cameron G. The United States, Israel, and the search for internationalorder: Socializingstates. Routledge, 2013; REICH, Bernard; POWERS, Shannon. The United States and Israel. In: The Contemporary Middle East. Routledge, 2012. p. 99-119.

[2] Organização política islâmica palestina que governa o território de Gaza e que tem um braço armado paramilitar.

[3]Para mais informações sobre os grupos considerados terroristas segundo os EUA, acessar: <www.state.gov/foreign-terrorist-organizations/> acesso em 04/03/2024.

[4] O relatório de Zanotti (2011) foi produzido como documento oficial do US Congressional Reasearch Service, uma agência do poder legislativo federal localizada na Biblioteca do Congresso, atua como equipe compartilhada exclusivamente para comitês e membros do Congresso dos EUA.

Uma tragédia anunciada: os ataques à Faixa de Gaza e o genocídio palestino

*Carolina Antunes Condé de Lima

Abordar os acontecimentos que começaram no dia 07 de outubro de 2023 na Faixa de Gaza com a apresentação de números e fatos não dá conta da dimensão da tragédia humana que os palestinos estão vivendo. Todos os dias somos assombrados com imagens de corpos sem vida e de destruição, histórias de fome e sede, de desespero e desamparo, ao mesmo tempo que chegam imagens de torturas, saques, humilhações e crimes contra a humanidade praticados pelo exército de ocupação israelense.

De acordo com o Artigo 7 do Estatuto de Roma, são considerados crimes contra a humanidade a “difusão ou ataque sistemático contra qualquer população civil” com o intuito de assassinato, extermínio, escravização, deportação ou transferência forçada de uma população, encarceramento ou severa privação da liberdade física, tortura, violências sexuais de vários tipos, perseguição de um grupo identificável por razões políticas, raciais, nacionais, étnicas, culturais, religiosas e de gênero, desaparecimento forçado de pessoas, apartheid, e outros atos desumanos que, intencionalmente, causam sofrimento, ferimentos contra a saúde física e mental (ICC, 2018).

Com base nos crimes cometidos desde o início desta  última ofensiva, a África do Sul apresentou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) no dia 29 de dezembro de 2023, acusação formal contra o Estado de Israel pelo crime de genocídio. Este foi reconhecido pela ONU via Resolução 260 A, de dezembro de 1948, em que se  estabelece  genocídio como  todo “ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, em tempos de guerra ou  de paz (UN, 1948). Os juristas sul-africanos listaram inúmeras ações dos últimos quatro meses para justificarem sua ação.

Infelizmente, contudo, esses episódios não tiveram início em outubro de 2023. O texto que segue tem a intenção de remontar esse processo. Desse modo, o texto resume brevemente o cenário atual e, em seguida, apresenta questões históricas que precedem os acontecimentos dos últimos cinco meses e nos ajudam a colocar em perspectiva diversas análises e ações referentes a esses ataques.

Era manhã de sábado, 07 de outubro de 2023, quando começaram a chegar as notícias do ataque do Hamas a cidades israelenses perto da barreira com a Faixa de Gaza, ao sul do país. Na ocasião, 1139 pessoas foram mortas e outras 240 foram feitas reféns pelo grupo palestino. O governo israelense, desde as primeiras horas após o ataque, acusou o Hamas de cometer crimes de guerra, como tortura, estupros e mutilações, acusações negadas pelos membros do grupo. Desde então já se passaram mais de quatro meses de ataques israelenses que vêm causando a destruição de prédios residenciais, hospitais, infraestrutura básica, sítios arqueológicos e monumentos históricos. Ao norte da Faixa de Gaza foi imposta uma política de destruição total, conhecida como “aparar a grama”, que tem como consequência tanto a devastação do território como o genocídio histórico.

A Faixa de Gaza, um dos locais de maior densidade populacional do mundo, se viu ainda mais sufocada com a ida de mais de um milhão de palestinos do norte da região em direção a Rafah, cidade mais ao sul. A situação na fronteira sul teve uma piora considerável após os ataques israelenses a Rafah, declarada zona segura em outubro, que tiveram início na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2024. Esses são vistos por especialistas como parte de um plano maior do governo israelense de depopular a Faixa de Gaza por completo, o que abriria espaço para a reocupação da região pelo Estado de Israel.

Antes dessa nova fase de terror, a vida na Faixa de Gaza já era bastante difícil. A população vive sob cerco desde 2007 e era alvo constante de ações militares, racionamento de água, energia e comida, além de ser impedida de circular livremente – ambas as saídas, tanto a de Rafah como a de Erez há anos ficam fechadas por longos períodos e, quando abertas, a passagem é bastante restrita. O cerco a Gaza teve início após o Hamas vencer as eleições representativas da região em 2006, o que não foi aceito pelo governo israelense. No ano seguinte, a Faixa de Gaza foi fechada para o mundo, tornando-a uma grande prisão a céu aberto.

Para entender a situação em Gaza e em toda a Palestina ocupada é preciso voltar na história e reviver um instrumento de dominação bastante conhecido: o colonialismo. Processo histórico que teve início com a expansão europeia no século XV, a qual permitiu a invasão, conquista e exploração dos territórios não-europeus e a violência contra corpos não-brancos desde a imposição dessa organização de mundo. A mesma lógica é reproduzida hoje na Palestina ocupada: em que o Estado de Israel é o colonizador, e a população nativa palestina é a colonizada.

Parte importante da colonização é a percepção de que a colônia é um espaço no qual reina o estado de exceção, dessa forma, ali é permitido que qualquer ato seja praticado, sem que haja julgamento de valor moral sobre o mesmo (Mbembe, 2016). A isso soma-se o recurso da objetificação do colonizado (Fanon, 2021; Said, 2007), a partir do qual as populações não-brancas são relacionadas a animais, doenças ou objetos que podem ser eliminados. A consequência é a percepção de que alguns corpos são descartáveis e indignos de comoção e solidariedade internacional quando grandes crises os afetam. Isso tem impacto direto, por exemplo, na maneira como a grande mídia, nacional ou internacional, aborda questões que envolvem populações não-brancas.

O racismo é elemento central de todo processo de colonização, empregado para justificar violências cotidianas. A violência subjetiva, impulsionada pelos ideais de superioridade racial do branco frente às demais populações do mundo, abre espaço para a violência física contra corpos e territórios. Outra característica é a ocupação e transformação do espaço, com a imposição de barreiras físicas que restringem o movimento livre das populações colonizadas, o que cria espaços restritos aos colonizados. Na Palestina, os checkpoints são uma realidade constante, assim como o impedimento da livre circulação e a construção de barreiras físicas de separação.

A colonização da Palestina pode ser configurada como um colonialismo de substituição e assentamento, ou seja, o objetivo central é deslocar e/ou eliminar a população nativa para que o território seja ocupado pelos colonos, tais quais assistimos nas colonizações da América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, por exemplo. Há, contudo, um elemento central para entender a colonização dos territórios palestinos: o sionismo.

Esse movimento político surgiu no centro da comunidade judaica europeia no final do século XIX e sua vertente mais conhecida, capitaneada por Theodor Herzl, defendia a criação de um Estado nacional no território palestino como solução para a perseguição e o antissemitismo milenar dos quais judeus eram vítimas. O sionismo de Herzl partia da premissa de que a colonização deveria ser por e para os judeus, com o deslocamento da população palestina.

Essa característica é determinante para entender a dinâmica de violência que se perpetua na região desde antes da inauguração do Estado de Israel, em maio de 1948. Durante o Mandato Britânico da Palestina (1920-1948), o número de imigrantes judeus na região cresceu de 1.806 imigrantes em 1919 para 8.223 em 1920 (Basel, 2007, p. 215-217). Na década seguinte, entre 1919-1939, 364.519 judeus imigraram para os territórios da Palestina, passando a representar um terço da população na região (no começo do Mandato Britânico, representavam menos de 10% da população total) (Basel, 2007).

Soma-se a isso o processo de compra de terras por agências sionistas de incentivo a imigração, como a Jewish Colonization Association, que passaram a adquirir terras por todo o território palestino com o objetivo de criar cinturões de propriedades que seriam repassadas para o cultivo para aqueles que tivessem interesse em imigrar para o território (Lockman, 2012; Wolfe, 2012). O contexto acabou se tornando um barril de pólvora e deu início a anos de violências entre a população autóctone e aqueles que chegavam com fins de colonização. Desse modo, diferentemente do disseminado, podemos notar que o conflito entre palestinos e israelenses não começa em 1948, mas trinta anos antes, quando o Estado de Israel era apenas uma ideia.

Dentre todos os anos de conflito, dois momentos são os mais conhecidos no contexto pré-1948: a Revolta Árabe de 1936-1939 e o Plano Dalet, iniciado após a  Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em novembro de 1947, que recomendou a partilha do território do Mandato Britânico (Bose, 2017; Pappé, 2006).

A Revolta Árabe de 1936-1939 foi a primeira revolta armada organizada que os palestinos fizeram desde o início do processo de colonização sionista e, desde sua eclosão, tem sido importante referência para os movimentos e mobilizações nacionais palestinos. Em poucos meses, aproximadamente mil árabes já haviam sido mortos pelas forças britânicas. Entre 1937 e 1939, 8.958 palestinos foram presos em campos de detenção (Barat; Chomsky; Pappé, 2016; Bose, 2017). Os britânicos iniciaram um processo punitivo de destruição de casas de insurgentes palestinos, prática utilizada pelo exército israelense até hoje. Em 1939, britânicos e colonos sionistas saíram vitoriosos, além de minar as lideranças políticas palestinas, o que contribuiu para a implementação do plano de partilha em 1947.

Entre a decisão pela partilha, em novembro de 1947, e a instituição do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, uma série de ataques promovidos por ambos os lados resultou na morte de centenas de civis. No contexto do Plano Dalet um dos acontecimentos mais marcantes foi o massacre de Deir Yassin pela milícia sionista Irgun (mais tarde usada como base para formação do exército israelense), que resultou no assassinato de 254 palestinos.

A Nakba, conhecida como a tragédia palestina, representa não apenas a fundação do Estado de Israel e a expulsão de quase oitocentos mil palestinos de suas terras, mas o início de uma história de conquista de território pela violência e a ocupação ilegal de territórios palestinos pelo Estado de Israel (Pappé, 2006). Além disso, a Nakba marca a criação do território da Faixa de Gaza. Com uma extensão de 360 km², até o início das ofensivas de outubro de 2023, a região era lar de quase dois milhões de palestinos, sendo que, aproximadamente, 70% deles são descendentes de refugiados de 1948 (Finkelstein, 2018; Salamanca, 2011).

A Faixa de Gaza foi ocupada pelo Estado de Israel após a Guerra de 1967 e permaneceu com presença militar e de colonos israelenses na região até 2005 quando, após decisão unilateral do então Primeiro Ministro Ariel Sharon, foi ordenada a saída de todos os ocupantes. A retirada, contudo, não significou o fim da ocupação. As fronteiras externas da Faixa de Gaza ficaram controladas pelo exército israelense, responsável por regular a entrada e saída de pessoas e bens; além do Estado de Israel ser o responsável pelo acesso a água, energia e internet na região. Essa situação se agravou após a vitória do Hamas nas eleições de 2006, o que levou à instauração do bloqueio à Faixa de Gaza que perdura desde 2007.

Após o bloqueio, ocorreram as chamadas Operação Chumbo Grosso (2008-2009), Operação Pilar Defensivo (2012), Operação Margem Protetora (2014) e Operação Guardiões do Muro (2021). Até o início da atual escalada de conflito, a operação de 2014, também conhecida como Guerra dos 51 dias, era tida como a mais destrutiva desde a Guerra de 1967: foram mais de dois mil mortos e onze mil feridos, de acordo com dados da ONU. Em comparação com os números das operações de 2014, a perda humana nas ofensivas iniciadas em outubro de 2023 é mais de dez vezes maior.

Quando colocados em perspectiva, portanto, fica claro que os atuais acontecimentos são uma tragédia anunciada, decorrente de uma política de Estado vigente desde antes do próprio surgimento do Estado israelense em 1948. Há de se apontar as tentativas de alguns membros da sociedade internacional de responsabilizar Israel pelo que vem acontecendo nos últimos quatro meses, como a acusação de genocídio contra o país feita pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, os rompimentos de relações diplomáticas feitos por alguns países e as constantes e expressivas manifestações civis realizadas em vários países do mundo pedindo pelo cessar fogo.

Apesar de todas as manifestações de apoio aos palestinos e os pedidos pelo fim do bombardeio que já matou quase trinta mil pessoas (um terço delas, crianças) o fim das atrocidades cometidas em Gaza não parece próximo. Há poucos dias, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu afirmou que a ofensiva contra Gaza não vai cessar até que a “vitória completa” seja alcançada. O ataque ao campo de refugiados de Rafah, na madrugada do dia 12 de fevereiro (horário do Brasil) e a política de fome e morte imposta aos palestinos que ali estão é uma clara demonstração de que o plano de Netanyahu é destruir a tudo e a todos. O nome disso é genocídio.

*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação em RI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora no IARAS-GEDES.

Imagem: Destruição em Gaza após ataques israelenses em Outubro de 2023. Por: Wilimedia Commons.

 

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Sem cessar-fogo, sem negociação: a atuação do Eixo da Resistência após o 07 de Outubro

*Karime Cheaito

Em 07 de Outubro de 2023, organizações palestinas, sob a liderança do Hamas, romperam as cercas da Faixa de Gaza, invadiram e atacaram o território sul de Israel, como uma reação que refletia o esgotamento das políticas coloniais de apartheid, violência e abusos de poder perpetrados pelos sucessivos governos israelenses. Imediatamente, o governo de Israel, sob o comando de Benjamin Netanyahu, declarou guerra. No momento em que este ensaio é escrito, 26.900 palestinos foram mortos na Faixa de Gaza, a maioria mulheres e crianças, e 1.139 israelenses foram mortos pelos ataques do Hamas (dados de 31/01/2024). Após uma denúncia realizada pela África do Sul, Israel está sendo julgado pela Corte Internacional de Justiça por crime de genocídio.

Analisa-se nesta investigação a atuação do Eixo da Resistência na conjuntura médio-oriental após a reação do Hamas contra Israel em 07/10. Para isso, buscou-se compreender como o bloco tem, historicamente, se estruturado e atuado, apesar das divergências entre seus membros.

O Eixo da Resistência é, atualmente, liderado pelo Irã, que possui o governo sírio como parceiro estratégico e político (Munareto; Silva, 2023). Além disso, inclui grupos armados não-estatais da Síria; o Hamas e a Jihad Islâmica, nos territórios palestinos; o Hezbollah, no Líbano; as Unidades de Mobilização Popular do Iraque; e os Houthis (ou Ansar Allah), no Iêmen, que foram os últimos a ingressarem no Eixo (em 2015) e, em comparação com os demais membros, possuem um auxílio limitado advindo do Irã (Juneau, 2016).

Embora o 07/10 tenha explicitado a sua capacidade de atuação no Oriente Médio, o bloco não surgiu nesta data. De acordo com El Husseini (2010), sua origem data de 2003, quando o Iraque foi invadido pelos EUA, no contexto da Guerra ao Terror, e teve como fundador o comandante iraniano Qassem Soleimani, da Força Quds, unidade de elite do grupo paramilitar Guarda Revolucionária. Soleimani visava construir uma rede com aliados regionais e, desde o início, defendeu que cada parte fosse autossuficiente.

Apesar das divergências entre seus membros – como se evidenciou na guerra da Síria – o Eixo se consolidou e tem mantido sua unidade, primordialmente, por conta do alinhamento de seus objetivos e bases ideológicas. Todos os membros, apesar de suas pautas locais, possuem uma agenda antissionista e anti-EUA. A ideia de um aliado comum – o Irã – e, principalmente, um inimigo comum – Israel e os EUA – tem garantido sua coesão e existência.

Nesse sentido, embora o Irã seja responsável por fornecer a maior parte dos armamentos e treinamentos aos membros do bloco, cada ator domina suas próprias técnicas, estratégias e táticas e atua a partir de seus próprios objetivos. Por esse motivo, a pesquisadora Amal Saad afirma: o Eixo da Resistência é mais do que um conjunto de milícias apoiadas pelo Irã. Nessa mesma linha, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano afirmou: “Não temos nenhum papel na tomada de decisões em nome de qualquer partido na região”. Essa percepção também foi partilhada por Brian Katz, ex-funcionário do governo dos EUA: os aliados não-estatais do Irã “não são simplesmente representantes iranianos. Pelo contrário, tornaram-se um conjunto de atores político-militares maduros, ideologicamente alinhados, militarmente interdependentes, comprometidos com a defesa mútua”.

Essa perspectiva confronta as análises que identificam esses atores como proxies iranianos (Levitt, 2015; 2022; Khan; Zhaoying, 2020). Para El Husseini (2002) e Saad-Ghorayeb (2002), as relações entre o Irã e os demais membros do Eixo não são tão unificadas e interdependentes. Cada organização está, em primeira estância, conectada aos seus objetivos políticos, majoritariamente nacionalistas e pragmáticos. Após Soleimani ter sido assassinado pelos EUA em 2020, seu sucessor, Esmail Qaani, buscou descentralizar ainda mais o bloco, delegando cada vez mais autonomia às unidades locais e aos seus comandantes no que se refere às decisões táticas e operacionais.

Apesar da autonomia, a identificação de Israel como um inimigo próximo e o apoio militar entre os seus membros têm garantido a sua unidade. Em seu interior, enquanto o Irã fornece assistência militar e financeira ao Hezbollah, Hamas, Houthis e demais grupos iraquianos, a Síria tem oferecido seu território como rota de transporte ao Hezbollah, que tem auxiliado na formação técnica e militar dos demais membros.

O Eixo da Resistência se originou com uma perspectiva a longo prazo e tem se desenvolvido numa coligação em tempos de guerra, como se evidenciou em 2013, durante a guerra da Síria (com exceção do Hamas, que se posicionou contrário ao governo de Bashar al-Assad)  e no Iraque em 2014, na luta contra o ISIS ou DAESH. Nessas ocasiões, esses grupos puderam aprofundar suas capacidades militares, principalmente no que concerne aos combates urbanos, e aperfeiçoaram a lógica estratégica de sua aliança.

O 07/10 representou um importante marco ao simbolizar a primeira vez que uma coligação composta majoritariamente por atores não-estatais se envolveu diretamente em um conflito em apoio a outro ator não-estatal: o Hamas. Nos últimos 4 meses, o Hezbollah, os Houthis e grupos iraquianos e sírios lançaram ataques contra alvos israelenses e estadunidenses em apoio aos palestinos com um objetivo comum: forçar Israel a um cessar-fogo em Gaza.

Como manifestado publicamente pelo Hezbollah e pelos Houthis, tanto na fronteira com Israel como no Mar Vermelho, nenhuma negociação ocorrerá enquanto não houver cessar-fogo nos territórios palestinos. Desde o dia 08/10, três frentes de batalhas foram travadas: 1) entre Hezbollah e Israel; 2) os ataques dos grupos iraquianos contra bases estadunidenses no Iraque e na Síria; 3) os ataques dos Houthis contra navios de carga no Mar Vermelho.

Com o assassinato de Saleh al-Arouri – funcionário do alto escalão do Hamas – em Beirute no dia 02/01/24, nota-se uma escalada em toda região. O atentado representou o ataque israelense mais significativo no Líbano desde a guerra de 2006. Em resposta, o Hezbollah atacou uma das principais bases israelenses de vigilância aérea. Nos dias seguintes, a Resistência Islâmica do Iraque enviou drones para atacar bases dos EUA na Síria e no Iraque e atacou a cidade de Haifa. No Mar Vermelho, os Houthis intensificaram suas ações contra navios suspeitos de terem ligações com Israel e o Irã capturou um navio comercial no Golfo de Omã.

A atuação dos Houthis fez com que os EUA e o Reino Unido conduzissem uma série de ataques militares no Iêmen desde 11/01, fato este que tem aumentado as preocupações de escalada do conflito para uma guerra regional, pois é pouco provável que os ataques contra membros do bloco gerem um recuo, visto a identidade, os objetivos e princípios dos atores envolvidos.

Cabe destacar que o combate não tem ocorrido apenas no terreno físico. O campo de batalha tem se estendido para as redes sociais e impactado a opinião pública mundial, que tem debatido de forma inédita – em relação à dimensão da repercussão – os crimes de guerra cometidos por Israel.

Como enunciado por Nasrallah em 11/11/2023: “O mais importante neste momento é a mudança na opinião mundial em relação a Israel (…). Este desenvolvimento é do interesse da Resistência, do seu projeto e da população de Gaza (…) Com o tempo, a pressão aumenta sobre o inimigo” Desse modo, a maneira como a causa palestina reascendeu internacionalmente a partir do 07/10 pode ser identificada como uma vitória para os objetivos do Eixo da Resistência, principalmente por causa das críticas e acusações que têm sido desenvolvidas contra Israel.

Embora ainda não possamos dimensionar o impacto da opinião pública nos desdobramentos de uma solução para o conflito, o Eixo tem se evidenciado com elevado nível de coordenação e tem feito com que os EUA e seus aliados enfrentem desafios na dinâmica desses combates. Sua evolução para uma aliança, apesar da autonomia de atuação dos seus membros, está coordenada e centrada nas concepções de segurança coletiva e dissuasão alargada. A sua evolução e atual popularidade regional – manifestada publicamente – exige uma mudança fundamental na maneira como o Ocidente tem analisado as dinâmicas médio-orientais e, principalmente, suas possíveis alterações de poderes.

 

* Karime Cheaito é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre em Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e membra do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUCSP) e do Laboratório Nexus (INEST/UFF).

Imagem: cartazes retratando o fundador do Hamas, Sheikh Ahmed Yassin, o ex-comandante da Força Quds do Irã, Qassem Suleimani, e o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Sana’a, Iêmen, 4 de janeiro de 2024. Por: Mohammed Hamoud/Getty Images

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKBARZADEH, Shahram. Why does Iran need Hizbullah?: Iran and Hizbullah. The Muslim World, v. 106, n. 1, p. 127–140, 2016.

EL HUSSEINI, Rola. Hezbollah and the Axis of Refusal: Hamas, Iran and Syria. Third World Quarterly, v.31, n. 5, p. 803-815, 2010

JUNEAU, Thomas. Iran’s policy towards the Houthis in Yemen: a limited return on a modest investment. International Affairs, v. 92, n. 3, p. 647–663, 2016.

KHAN, Akbar; ZHAOYING, Han. Iran-Hezbollah Alliance Reconsidered: What Contributes to the Survival of State-Proxy Alliance? Journal of Asian Security and International Affairs, v. 7, n. 1, p. 101–123, 2020.

LEVITT, Matthew. Hezbollah: Party of Fraud – How Hezbollah Uses Crime to Finance Its Operations. Foreign Affairs, July 27, 2022.

LEVITT, Matthew. Iranian and Hezbollah Operations in South America: Then and Now. Prism: A Journal of the Center for Complex Operations, p. 119-133, 2015.

MUNARETO, Camila Hirt; SILVA, Gabriela Santos da. Casamento por convergência: identidades estatais e a aliança entre Síria e Irã. Malala, Revista Internacional de Estudos sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, v. 14, pág. 78–98, 2023.

SAAD-GHORAYEB, Amal. Hizbul̉lah: politics and religion. London: Pluto Press, 2002.

 

 

A crise política israelense e a agenda internacional

Karina Stange Calandrin*

Desde o final de 2018 o governo israelense entrou em crise. Esta instabilidade estava anunciada há algum tempo, visto as investigações de corrupção dirigidas ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu desde 2016. Os chamados casos 1000, 2000, 3000 e 4000 pela procuradoria geral israelense, envolvem desde favores e presentes dirigidos a Netanyahu e sua família trocados com empresários estrangeiros por benefícios fiscais, suborno em troca de cobertura favorável do governo pela mídia, até superfaturamento na compra de submarinos e outros itens militares. No dia 19 de dezembro de 2018, o procurador geral Shai Nitzan recomendou oficialmente o indiciamento de Benjamin Netanyahu por corrupção.

A partir disso uma crise política se instaurou em Israel. Desde novembro de 2018 o governo de Netanyahu e seu partido, Likud, já vinham sofrendo com as alianças com os partidos da direita, pois estavam perdendo apoio desses partidos. Primeiro, o ministro da defesa, Avigdor Lieberman, renunciou ao cargo e seu partido, Israel Beiteinu, se retirou oficialmente da coalizão, deixando o Likud com apenas 61 (de um total de 120) cadeiras no parlamento (Knesset), o mínimo necessário para governar. Importante lembrar que Israel é uma república parlamentar multipartidária e nunca na história do país um partido sozinho conseguiu maioria no parlamento, sendo necessárias coalizões para a formação do governo. Mas a crise apenas se instaurou definitivamente no dia 24 de dezembro de 2018, quando o partido Habait Hayehudi também se retirou da coalizão, impulsionado por questões internas, mas também pelo processo judicial contra Netanyahu. Sem maioria, o governo foi dissolvido e as eleições, que já estavam previstas para novembro de 2019, foram antecipadas para 09 de abril do mesmo ano.

Netanyahu, que estava com viagem marcada para o Brasil para a posse do presidente Jair Bolsonaro no dia 01 de janeiro de 2019, passou a sofrer muita pressão política e cogitou cancelar a visita ao Brasil, voltando atrás logo em seguida.

Muitos críticos de Netanyahu o acusam de usar as eleições como forma de postergar seu processo judicial, isso porque ele pode alegar que as investigações prejudicariam uma campanha eleitoral neutra e justa.

A sensação que permanece é que o governo de Netanyahu está utilizando a agenda internacional para distrair da crise política e pessoal que está enfrentando. Primeiramente com a própria ida ao Brasil. Sua estadia no Rio de Janeiro foi altamente noticiada em Israel, com muitos detalhes de sua agenda no país, lembrando que foi na mesma semana da dissolução do governo e do seu indiciamento.

Na mesma toada, Israel, juntamente dos Estados Unidos, oficialmente saíram da UNESCO no dia 02 de janeiro de 2019. O processo de saída remete à outubro de 2017, quando os países alegaram  que a organização seria anti-Israel. A decisão  advém de uma  votação da UNESCO de maio do mesmo ano, relacionada à natureza cultural, histórica e legal da cidade de Jerusalém. A resolução votada em 2017 negava a existência de ligações históricas entre o povo judeu e a cidade igualmente sagrada para as três maiores religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo).

Para além dessa decisão, a UNESCO tem sido muito crítica a Israel, como todas as agências internacionais. Mas, na maioria dos casos, suas críticas eram relevantes e adequadas, como em relação à ocupação na Cisjordânia. Jerusalém oriental é de fato um território ocupado, como é a Cisjordânia, não importa o quanto Israel tente negar. Entretanto, no caso mencionado, a UNESCO falhou seriamente quando ignorou a conexão judaica com o Muro das Lamentações, localizado em Jerusalém. A organização deveria ter sido repreendida por isso. Por outro lado, em outras ocasiões, a UNESCO agiu de forma favorável à Israel. Ao longo dos anos reconheceu seis locais israelenses como Patrimônios da Humanidade: Massada, Cidade Branca de Tel Aviv, Acre, Cidades no Deserto do Negev, Centro Mundial Baha’i em Haifa e as cavernas de Maressa. O título atribuído pelo organismo da ONU trouxe honra e turistas.

Apesar de parecer que a atitude dos Estados Unidos de se retirar da UNESCO é positiva para Israel – e até mesmo interpretada como tal pelo governo israelense – na verdade, está prejudicando o país e o isolando no Sistema Internacional, já que não possui muitos aliados além dos Estados Unidos, não obstante a esperança de conseguir apoio de outros países como o Brasil. Ademais, Israel é cada dia mais criticado nos organismos internacionais por suas políticas em relação aos palestinos.

A percepção de que o Primeiro-ministro israelense estaria usando a agenda de política externa para distrair de seu processo judicial é fortalecida com o depoimento dado por Netanyahu em rede nacional no dia 07 de janeiro de 2019, que muitos acharam que seria uma declaração de guerra ao Líbano (por conta dos túneis do Hezbollah descobertos em dezembro na fronteira entre os dois países e que tem recebido muita atenção na campanha eleitoral por representar uma “ameaça iminente” ao Estado de Israel) ou mais uma incursão em Gaza devido à dramaticidade com que o discurso foi anunciado na mídia. Porém, na prática, o discurso foi  um monólogo sobre sua inocência nos processos de corrupção em que é réu.

Ainda faltam três meses para as eleições, e o partido de Netanyahu, Likud, já se encontra em primeiro nas pesquisas. Para a manutenção de sua posição privilegiada no poder e o adiamento de seu julgamento, provavelmente veremos muito mais de Israel nos noticiários internacionais, uma vez que muitos eleitores dedicam a segurança do país ao partido Likud e mais especificamente a Netanyahu.

Nas últimas eleições, em 2015, as pesquisas indicavam que uma junção de partidos de esquerda, chamada União Sionista, composta pelos partidos trabalhista e Hatnuah, estava em primeiro lugar, mas em poucos dias Netanyahu conseguiu reverter e colocar o Likud em primeiro utilizando aspectos de segurança na campanha. O principal foco foi “impedir que o Irã obtenha uma capacidade nuclear, tornando a opinião pública mundial a favor da manutenção e expansão das sanções econômicas e diplomáticas contra Teerã”. Netanyahu reiterou suas posições sobre o Irã para uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. No processo de paz no Oriente Médio, Netanyahu se pronunciou contra novas retiradas de terra, novas libertações de terroristas das prisões ou a divisão de Jerusalém de qualquer forma. Provavelmente não será diferente em 2019.

 

* Doutoranda em Relações Internacionais – PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), pesquisadora visitante na Universidade de Haifa – Israel e colaboradora do Instituto Brasil-Israel.

Imagem por: Amos Meron