Mariana da Gama Janot*
O intervencionismo militar no Brasil é de longa data. No entanto, é a partir da década de 1930 via Góes Monteiro e, principalmente, após a criação da Escola Superior de Guerra, que o mesmo se transforma em uma doutrina de ação política das Forças Armadas com o objetivo de garantir a Segurança Nacional. Em linhas gerais, a Doutrina de Segurança Nacional pode ser descrita como uma ideologia norteadora das elites políticas, econômicas e militares rumo à conservação e promoção da ordem e de um dado tipo de progresso, partindo de interpretações conservadoras e autoritárias sobre a formação sociológica nacional. A Doutrina, expressando o pensamento militar, dimensiona a população brasileira como uma massa desgarrada, carente de condução forte rumo à coesão política e ao patriotismo, ao amadurecimento dos valores sócio-culturais, ao crescimento econômico, industrial e tecnológico, que, em linhas gerais, se traduzem na associação de prover segurança e desenvolvimento, ou, progresso e aprimoramento da nação de maneira controlada.
Recentemente, a presença castrense maciça na administração pública e a publicização de seus projetos políticos para o futuro evidenciaram que esta ideologia permanece arraigada no estrato político-militar. O fato de as Forças Armadas terem controlado a transição, investido na sua versão sobre o Golpe de 1964 e sobre a Ditadura, e terem conservado grande parte de sua autonomia, inclusive para manter sua própria educação alheia à autoridade civil, são alguns dos motivos para esta preservação. Além desta conservação dentro da caserna e em seus círculos, é possível observar que o ímpeto militar de intervir sobre a população se manifesta, se reoxigena e reorganiza nas missões domésticas, que são a principal forma pela qual as Forças Armadas exercitam sua profissão de administrar e aplicar a violência estatal.
Na região sul-americana, muito se debate sobre a necessidade e efetividade dessas missões para lidar com as questões complexas de segurança que se apresentam para as populações, como a violência urbana, crimes ambientais, crime organizado e narcotráfico, e quais seus ônus e bônus para as organizações militares. Parte da literatura concorda que o engajamento nessas missões é uma forma de responder pragmaticamente às demandas globais e locais de segurança, restando ajustá-lo com as expectativas e normas de um regime democrático, negociando seus limites e extensões junto às Forças Armadas. Em contrapartida, pesquisadores apontam que este engajamento pode ser extremamente nocivo às democracias, pois conserva o histórico interventor, mantendo uma compreensão militar de que as ameaças estão mormente localizadas no âmbito doméstico, e reforçando o militarismo na região.
Concordando com estes últimos alertas, é preciso chamar a atenção para as muitas formas de engajamento militar doméstico no Brasil. Ancoradas no artigo 142, as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) são as mais conhecidas entradas de acionamento militar para lidar com assuntos internos, e podem abarcar as mais diversas atividades, desde a segurança de determinadas estruturas físicas até cobrir a segurança pública durante paralisação de Polícias Militares, realizar a segurança durante eleições e atuar em conflitos no campo. Ainda, algumas operações de GLO voltadas para coibir a violência urbana se transformaram em operações de Pacificação, como as Operações Arcanjo (2010-2012) e São Francisco (2014-2015), realizadas durante o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, no contexto de combate ao crime organizado e guerra às drogas, bem como em operações de estabilização sob a égide das Nações Unidas, como no Haiti, República Centro-Africana e República Democrática do Congo. As GLOs também se desdobraram na condução da segurança durante grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos (2016).
Uma diferença importante nesse escalonar das GLOs está no alcance de suas atividades: enquanto uma operação de GLO para cobrir o pleito eleitoral é pontual e bem definida temporalmente, e as Forças Armadas estão essencialmente cumprindo atividades de patrulha e policiamento das ruas, GLOs que se transformam em Pacificação e as Operações para os Grandes Eventos são mais extensas. Apesar de também envolverem os militares em ações policiais, o principal elemento nestas operações é posicionar as Forças Armadas em centros administrativos, onde ocupam espaços privilegiados no planejamento estratégico das operações, enquanto coordenam atividades com outras agências – outras forças policiais e órgãos civis, governamentais e não-governamentais, incluindo empresas e organizações privadas, e realizam mais atividades junto à população, como programas de comunicação, educação e assistência.
Em 2018, este posicionamento é elevado com o deflagrar da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, na qual toda a administração da segurança pública do Estado ficou sob comando do Gabinete da Intervenção e seus oficiais – dentre os quais o Interventor, General Braga Netto (PL), que posteriormente se tornou Ministro-Chefe da Casa Civil, Ministro da Defesa, e candidato à vice-presidência junto a Jair Bolsonaro (PL) – a fim de promover uma reforma interna nos órgãos de segurança do estado e deixar um legado estratégico. No mesmo período, essa ação gestora também se manifestou na Operação Acolhida, em Roraima, marcada como uma operação de logística para gerir a crise migratória na fronteira com a Venezuela. Nessas operações, vigora uma compreensão de que a gestão militar, devido à expertise logística da organização, é mais bem-preparada para lidar com situações críticas e urgentes, como a segurança pública ou de fronteira. No caso da Intervenção Federal, esse posicionamento é bem explícito, na medida em que o próprio Gabinete declara que a Intervenção foi capaz de prover um legado estratégico para a gestão do Rio de Janeiro pois, ao contrário de administrações passadas, foi conduzida por profissionais verdadeiramente compromissados. Na prática, houve um conjunto de materiais – veículos, armas, drones, uniformes, computadores e outros equipamentos tecnológicos – entregues aos órgãos de segurança pública, e cursos realizados para capacitar os agentes policiais em uma série de atividades, bem como mudanças internas nas agências. Isto não se traduziu em melhorias no serviço de segurança, nem durante e logo após a Intervenção, tampouco no longo prazo, pelo contrário: houve um aumento exponencial da violência, sobretudo das mortes por agentes policiais, além de inúmeros casos de abusos contra a população e desvio de verba.
Há, ainda, outras formas de acionar as Forças Armadas domesticamente, em contextos que não envolvem o combate ou o uso mais robusto da força que, entretanto, também podem contribuir para um intervencionismo militar. Trata-se das Ações Cívico-Sociais (ACISOs), atividades realizadas cotidianamente pelos militares no Brasil e, também, em outros países quando engajados em operações das Nações Unidas, em áreas consideradas instáveis ou, de alguma forma, não-assistidas pelo serviço público. Estas ações costumam envolver algum tipo de entrega de serviço, como assistência médica ou sanitária, campanhas sócio-educativas, entre outros que, segundo o Exército brasileiro, contribuem para melhorar as relações entre governo, Forças Armadas e população, promovendo espírito cívico e dissuadindo comportamentos considerados contrários aos interesses das autoridades civis ou militares. Fica a cargo de cada Força deflagrar ACISOs e coordená-las com outros órgãos, o que dificulta a supervisão e controle civil sobre as mesmas, seja como ações pontuais ou mesmo dentro de operações, como as GLOs e Pacificações, e também ao longo da Intervenção Federal.
Apesar de cumprirem objetivos diferentes, essas modalidades de ação militar doméstica parecem compartilhar de um denominador comum: a organização militar intervém sobre diferentes dimensões domésticas, incluindo a vida rotineira da população, na posição de administrar situações consideradas críticas e, portanto, ameaçadoras – ou potencialmente ameaçadoras – da ordem e estabilidade. É verdade que a construção de ameaças à segurança – como o crime organizado e narcotráfico, migrações, entre outros – envolve muitas dimensões e agentes, porém as Forças Armadas – e demais forças de segurança, de modo geral – ocupam uma posição central na condução desses processos porque estão diretamente envolvidas na organização e emprego da violência estatal. Afinal, faz parte do exercício da profissão militar procurar por potenciais riscos à segurança do Estado, e pensar meios para lidar com as situações elencadas.
Entretanto, em democracias, não faz parte da competência militar procurar por estes riscos em meio à população, elencar segmentos sociais como espaços de dissenso que precisam ser civilizados, tampouco definir onde, como e quando empregarão a força contra as pessoas, ou exercer autoridade sobre outras agências civis e policias dentro de um regime democrático. Hoje, é possível recapitular diversos eventos nas duas últimas décadas que contribuíram para o atual quadro de militarização no país, e é essencial que se considere as missões domésticas neste levantamento como parte de um processo complexo de acúmulo de experiências de intervenção.
* Mariana da Gama Janot é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais e Mestre em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Imagem: Forças Armadas fazem operação conjunta com as polícias Civil e Militar em comunidades na zona oeste da cidade. Os militares estão apoiando ações nas comunidades de Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia (Tânia Rêgo/Agência Brasil).