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Dez Anos De Resistência Das Unidades De Defesa Das Mulheres (YPJ): um balanço da primeira década da guerrilha curda exclusivamente feminina em Rojava

Letícia Gimenez*

Criadas em 4 de abril de 2013 em Rojava, território autônomo no norte e leste da Síria instituído em 2012 após a Primavera Árabe, as Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ – sigla que advém de Yekîneyên Parastina Jin do Kurmanji, dialeto curdo) compõem uma guerrilha exclusivamente feminina de maioria étnica curda. As YPJ são um dos elementos internacionalmente mais famosos e reconhecidos da Revolução de Rojava, principalmente pela sua atuação no enfrentamento e consequente expulsão do Estado Islâmico na Guerra da Síria, libertando milhares de mulheres escravizadas em uma imensurável façanha da humanidade contra o extremismo. O presente texto busca refletir a trajetória e relevância das Unidades de Defesa das Mulheres – que completam sua primeira década de existência e resistência em 2023 – juntamente ao contexto atual enfrentado por Rojava, que se encontra diretamente ameaçada pela Turquia – país que realiza constantes ataques de drones, tendo invadido e ocupado militarmente partes do território autônomo desde 2016.

Em outubro de 2017, a cidade de Raqqa – localizada na Síria e considerada a capital do Estado Islâmico, onde milhares de mulheres yazidis foram escravizadas e sexualmente traficadas – foi liberada do grupo jihadista. A liberação ocorreu a partir de um anúncio histórico dedicado a todas as mulheres no mundo, sendo que a comandante da operação liderada pelas Forças Democráticas Sírias (SDF) era Rojda Felat, uma mulher curda e combatente das YPJ. As Unidades de Defesa das Mulheres são constituídas a partir dos objetivos de autodefesa e de libertação das mulheres, o que reflete suas dimensões ideologicamente revolucionárias. As YPJ podem ser entendidas como um Ator Não-Estatal Violento [1] paramilitar, insurgente, étnico-nacionalista, totalmente feminino e também feminista, tendo como lema Jin, Jiyan, Azadi! (“Mulher, Vida, Liberdade!”).

Nesse sentido, a guerra contra o Estado Islâmico é também uma guerra contra o sistema patriarcal, pois, ao derrotar o inimigo, destroem-se as imposições violentas às quais são submetidas as mulheres no projeto de sociedade e de Estado imposto pelo grupo. Em 2016, um banner em al-Qamishli, considerada capital de Rojava, declarava: “vamos derrotar os ataques do Estado Islâmico garantindo a liberdade das mulheres no Oriente Médio”. Portanto, ao enfrentá-lo militarmente, as guerrilheiras das YPJ buscaram e seguem buscando reconstruir a sociedade e as relações de gênero locais. Assim, é possível compreender os motivos que levaram ao “hype” ocidental em torno das guerrilheiras curdas, tendo em vista o caráter inovador do surgimento da guerrilha exclusivamente feminina no Oriente Médio, região amplamente vista como uma das mais violentas do mundo para mulheres. No entanto, é importante ressaltar que parte da fascinação midiática ocidental em relação às combatentes curdas se deu de forma distorcida, sexualizada e orientalista – debate presente neste artigo e monografia –, sendo elas posteriormente esquecidas e silenciadas pela mídia após a expulsão do Estado Islâmico.

No que concerne ao aspecto étnico-nacionalista das Unidades de Defesa das Mulheres, suas combatentes são voluntárias e majoritariamente curdas, embora não seja obrigatório pertencer ao grupo étnico, havendo também a presença de mulheres árabes, assírias, armênias, entre outras etnias da região, além de internacionalistas de diversos países. As YPJ não representam a primeira vez que as mulheres curdas se organizam na luta armada; pelo contrário, são apenas a continuidade histórica da resistência já praticada: em 1984 elas já integravam as Forças de Defesa Popular – a guerrilha mista do Partido dos Trabalhadores do Curdistão –, sendo em 1993 criadas as primeiras unidades de guerrilha exclusivamente femininas, conhecidas como YJA-Star.

A chamada “questão curda” permeia, então, o surgimento das YPJ e sua atuação, assim como a Revolução de Rojava como um todo. Em linhas gerais, os curdos, o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio, tiveram seu território violenta e colonialmente fragmentado em quatro partes com a criação de novos Estados no pós-Primeira Guerra Mundial, a partir da dissolução do Império Otomano. Assim, o Curdistão é um Estado-nação que não existe formalmente, pois suas fronteiras estão ocupadas pela Turquia, Síria, Irã e Iraque, em territórios cuja população é multiétnica, mas de maioria curda e que são respectivamente denominados como: Bakur (Curdistão Norte/turco), Rojava (Curdistão Oeste/sírio), Başûr (Curdistão Sul/iraquiano) e Rojhilat (Curdistão Leste/iraniano).

A partir da vivência de um século frente às consequências da limpeza étnica, assimilação cultural, genocídio e divisão de seu território, parte do movimento curdo, representado pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e em uma virada pós-nacionalista na década de 1990, teorizou o Confederalismo Democrático. A proposta do Confederalismo Democrático abandona o ideal de criação de um Estado curdo, baseando-se em um sistema de organização social de democracia radical, caracterizado como decolonial e alternativo ao Estado, tendo sido implementado em 2012 no Curdistão sírio (Rojava) em meio à Guerra da Síria e oficializado através da Carta de Contrato Social, análoga à uma constituição. Por se tratar de uma revolução multiétnica, ecológica e feminista no século XXI, Rojava traz renovadas possibilidades para construção de novos mundos, em especial que não reproduzam a violência colonial constitutiva do Estado-nação – lição importantíssima aprendida pelos curdos através de sua própria história.

No entanto, o território autônomo no norte e leste da Síria encontra-se seriamente ameaçado por constantes ataques de drone turcos, além da invasão e ocupação militar de algumas de suas cidades, como Afrin e Serekaniye. Atualmente, a população curda resiste a violações diárias. Em sua grande maioria, a ocupação dessas regiões culminou em processos migratórios, com boa parte da população abandonando sua terra natal e se deslocando forçadamente para cidades próximas. No dia 22 de julho de 2022, um drone turco atingiu seu alvo numa estrada entre Al-Qamishli e Al-Malkiyah: um carro que transportava três mulheres combatentes das YPJ. Elas estavam saindo de um evento chamado “Fórum da Revolução das Mulheres” em decorrência do aniversário da revolução, que é reconhecidamente antipatriarcal e tem como um dos seus pilares ideológicos a igualdade de gênero. Apenas no primeiro semestre de 2022, a Turquia realizou 38 ataques de drone à Rojava, contabilizando 27 mortos e 74 feridos.

Também são comuns casos como o de Barin Kobani, integrante das YPJ assassinada em Afrin no início da invasão turca denominada “Operação Ramo de Oliveira”, em janeiro de 2018, por rebeldes apoiados e financiados pela Turquia que “brincaram com seu cadáver e o retalharam” enquanto câmeras filmavam. Assim como o caso de Amara Renas, também combatente das YPJ, executada por rebeldes que gritavam “Allahu Akbar!” em cima de seu corpo mutilado em um vídeo que foi posteriormente divulgado em redes sociais. A Operação Ramo de Oliveira foi iniciada em 20 de janeiro de 2018 pela Turquia em Afrin e, desde então, as mulheres curdas – incluindo as combatentes das YPJ – têm sido alvos de sequestros, estupros, torturas, execuções e mutilações, muitas vezes com divulgação de imagens e vídeos nas redes sociais.

Além dos ataques de drone, a Turquia utiliza-se de mercenários, incluindo ex-combatentes do Estado Islâmico, e atua sob a justificativa de combate ao terrorismo – mesmo que a suposta ameaça representada pelo território autônomo não esteja no território nacional turco, sendo externa e apenas fronteiriça. Afrin, que tem como patrimônio cultural suas oliveiras, é uma região de grande relevância econômica pela produção de azeite a partir destas árvores. No entanto, desde o início da ocupação, o bioma local tem sido extensivamente devastado, com o corte de milhares de oliveiras. Ou seja, a Operação Ramo de Oliveira traz em seu próprio nome, de maneira bastante irônica, a violência contra a terra, elemento tão importante para povos originários como os curdos. Desse modo, a ocupação atua de forma sistemática a dizimar os três pilares do Confederalismo Democrático: democracia radical, libertação das mulheres e ecologia.

Sendo assim, as guerrilheiras curdas, como as combatentes das YPJ ficaram conhecidas, não são um mero tabloide geopolítico orientalista e sexualizado, são mulheres que ativamente se armaram ideológica e militarmente contra o patriarcado e o Estado. Ao completarem sua primeira década em 2023, as Unidades de Defesa das Mulheres reafirmam que sua luta persiste, agora atuando frente à ocupação turca e aos resquícios do Estado Islâmico, que além dos ex-combatentes contratados pela Turquia, possui células secretas ainda ativas em campos de refugiados. Portanto, é preciso manter firme oposição ao silenciamento internacional e ao ditado popular que afirma que “os curdos não têm amigos, só as montanhas” e, como um verdadeiro internacionalista, colocar-se à disposição de aprender em conjunto a eles, defendendo sua revolução, sua terra e suas mulheres.

[1] Conceito traduzido de Violent Non-State Actors, os Atores Não-Estatais Violentos são muito diversos e variam em sua motivação, objetivos e estrutura. No geral, consideram-se Atores Não-Estatais Violentos: chefes militares, milícias, grupos étnicos e tribais, insurgências, grupos paramilitares, organizações terroristas, organizações de tráfico de drogas e grupos criminosos/gangues (Williams, 2008).

* Letícia Gimenez é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar em Estudos Curdos (NUPIEC), do Núcleo de Estudos de Gênero (Iaras-GEDES) e do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI).

Imagem: Btaalhão de mulheres do YPJ. Por Jakob Reimann/Wikimedia Commons.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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