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Terra incógnita: a identidade nacional russa pós-dissolução da URSS

Maria Eduarda Carvalho de Araujo*

O dia 26 de dezembro de 2023 marcou 32 anos desde a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Este marco teve repercussões significativas na arena internacional, especialmente na forma como influenciaram os projetos e o comportamento da Federação Russa em contextos regional e global (Dias, 2014). Este texto disserta sobre o processo de formulação da identidade nacional russa após a dissolução da URSS, destacando as diferentes tradições e escolas civilizacionais, influenciadas pela interação e relações com o Ocidente (especialmente Estados Unidos e Europa) (Tsygankov, 2019). Assim, observa-se que o processo de estabelecimento de uma identidade nacional russa esteve a par com a necessidade de redefinição da estratégia nacional de política externa.

A dissolução da URSS marcou o colapso de um sistema de valores que refletia uma crença compartilhada sobre o destino da Rússia e das demais nacionalidades presentes naquele espaço geográfico (Ferraro Junior, 2016; Tsygankov, 2007). De acordo com Malinova (2017), este acontecimento exigiu a reconstrução das identidades nacionais das antigas repúblicas soviéticas em fronteiras simbólicas, adaptando e estabelecendo narrativas sobre o passado em um novo contexto político. A Federação Russa, em particular, enfrentou o desafio de desenvolver uma identidade nacional própria, pois, conforme argumentado por Malinova (2017) e Kuzio (1997), tanto a República Socialista Federativa Soviética Russa (RSFSR), quanto o Império Czarista, possuía uma identidade nacional distinta, pois a mesma passou pela construção da nação concomitantemente com a do império. Ou seja, a identidade nacional tendia a ser associada ao país como um todo, ao invés de alguma parte em específico. Dessa forma, após a dissolução da URSS, em 1991, a Federação Russa teve de estabelecer uma nova identidade nacional, recuperando recursos simbólicos e históricos, que estavam permeados por ideologia e sujeito a debates, gerando controvérsias profundas e alimentando conflitos políticos ao invés de promover uma coesão mais ampla.

Além disso, a dissolução da URSS, marcou uma situação de crise de identidade, reavivando o pensamento civilizacional na Rússia bem como o dualismo histórico sobre se a Rússia seria considerada um país europeu ou asiático (Tsygankov, 2007; Segrillo, 2016). Ao retomar o passado e a formação do Leste e Oeste, bem como as invasões de povos de ambos os lados, Segrillo (2016) aponta que a Rússia se viu obrigada a se posicionar estrategicamente com relação às influências externas, sendo desenvolvidas três escolas de pensamento sobre a civilização russa. A seguir se encontra uma tabela onde são apresentadas as principais características dessas escolas de pensamento. Contudo, vale pontuar que algumas existem desde o Império Czarista e todas são muito complexas e dinâmicas, dialogando entre si e apresentando, em certos pontos, similaridades ou até mesmo ambiguidades internas, abarcando também mudanças de paradigmas e alterações no decorrer do tempo:

Tabela 1 – Principais características das escolas russas de pensamento em política externa e a civilização russa

Descrição Atores Relação com as RIs
Ocidentalista (Westernizers) Enfatizam a semelhança e uma afinidade natural da Rússia com o Ocidente, o considerando uma civilização progressista e a mais viável. Por meio da união com as nações do Ocidente, a Rússia seria capaz de superar seu atraso econômico e político, bem como ser capaz de responder às ameaças externas. No período pós-soviético, pode ser subdividida entre liberais e sociais democratas. Alguns atores são:

●       Boris Yeltsin, ex-presidente da Federação Russa (1991 – 1999);

●       Dmitri Trenin, especialista russo e diretor do Carnegie Moscow Center entre 1994 e 2022.

Após a dissolução da URSS, os liberais russos estavam convencidos de que o novo mundo global era definido pela difusão do Ocidente, dos valores do mercado livre e da democracia liberal.

A visão de integração e parceria estratégica com o Ocidente, de Boris Yeltsin, assumia o desenvolvimento de instituições democráticas liberais e a construção de uma economia de mercado aos moldes ocidentais.

Estatista (Statists) Enfatizam a soberania, o status de grande potência nos assuntos globais; a defesa e fortalecimento do Estado Russo; nas capacidades econômicas e militares. Entre os principais atores pós-soviéticos, estão:

●       Yevgeny Primakov, primeiro-ministro da Rússia (1998 – 1999);

●       Sergei Karaganov, cientista político russo que dirige o Council for Foreign and Defense Policy.

Acreditam que a Rússia estaria exposta a ameaças externas e deveria permanecer uma grande potência capaz de responder a elas. Consideram a grandeza e a força da Rússia como objetivos de política externa.
Civilizacionista (Civilizationists) Enxergam a Rússia como uma civilização de valores culturais autênticos e distintos do Ocidente. Alguns pensadores defendem um compromisso com os valores do Cristianismo Ortodoxo, enquanto outros veem a Rússia como uma síntese de várias religiões e uma unidade eurasianista orgânica e distinta da cultura europeia e asiática. Composto por eurasianistas e nacionais comunistas. Algumas figuras contemporâneas são:

●       Patriarca Kirill, bispo ortodoxo russo;

●       Vladimir Putin, presidente da Federação Russa entre 2000 a 2008 e 2012 a 2024; e primeiro-ministro entre 1999 a 2000 e 2008 a 2012.

Mais orientados ao status quo, com respostas mais agressivas aos dilemas de segurança da Rússia. No contexto pós-soviético, alguns pensadores defendem a expansão externa como o melhor meio de garantir a segurança da Rússia, sendo também visto como legítimo e permitido no contexto internacional.

Fonte: tabela organizada com base em Tsygankov (2019); Tsygankov (2021) e Segrillo (2016).

As três escolas de pensamento procuram apresentar opções internacionais para a Rússia, de maneira a ter uma coerência com a história nacional e o mundo (Tsygankov, 2007; Segrillo, 2016). Como Tsygankov (2019) argumenta, a identidade da Rússia é um continuum, influenciado pela interação com o Ocidente em um processo histórico, retomando os tempos de Pedro, o Grande. Embora, em um contexto mais recente, as reformas de Gorbachev e a desintegração da URSS tenha aberto espaço para novos políticos russos que viam o país como uma parte da civilização ocidental, Tsygankov (2007) afirma que a tradição ocidentalista, quando aplicada no campo político pós-soviético, possuía fraquezas em estabelecer um paralelo histórico do país com o seu passado para justificar a adesão ao Ocidente. A perspectiva de integração fez necessário desenvolver instituições liberais democráticas e implementar reformas econômicas radicais, que aprofundaram a polarização sobre os caminhos que o país deveria seguir. O objetivo era inserir a Rússia e ganhar um status integral nas instituições econômicas e de segurança europeias, como a União Europeia (UE) e Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), seguindo o conceito de Casa Comum Europeia (Ferraro Junior, 2016, Tsygankov, 2007; Silva; Ilikova, 2022).

Porém, a conclusão foi que as reformas ocidentalistas e liberalizantes minavam a soberania russa e enfraqueciam a capacidade de modernização do Estado. Isso levou ao fortalecimento da oposição, que defendia uma identidade eurasianista e a Rússia como uma grande potência centrada em valores de ordem e segurança. À medida que o cenário se desenvolvia, apesar do processo de expansão da OTAN, os laços comerciais entre a Rússia e a Europa começaram a se fortalecer, consolidando o pensamento liberal no discurso nacional. O consenso sobre o eurasianismo, inspirado em Primakov, foi considerado ultrapassado e potencialmente conflituoso, exigindo uma revisão do dilema civilizacional da Rússia (Tsygankov, 2007).

Com a chegada de Putin ao poder nos anos 2000, a visão da Rússia como uma potência europeia marcou uma alteração na ideia civilizacional e uma nova visão dos interesses nacionais da Rússia (Tsygankov, 2019). Essa mudança de percepção baseou-se na exploração do passado russo, na história da identidade nacional e concentrou-se na segurança, na sobrevivência e na reconstrução econômica. Na segunda metade de 1999, os movimentos rebeldes chechenos e as explosões em prédios residenciais em Moscou, seguidos pela queda dos preços do petróleo, chamaram a atenção do Ocidente para a Rússia. Isso se deveu ao seu apoio na luta contra o terrorismo e à crescente importância do fornecimento de energia para as economias europeias (Tsygankov, 2007).

No entanto, após as revoluções coloridas na Geórgia, Ucrânia e Quirguistão, entre 2003  e 2005, juntamente com o forte apoio do Ocidente nestes movimentos, a Rússia os interpretou como desestabilizadores e direcionados contra o poder e a segurança do Kremlin. Além disso, a vontade da Ucrânia e da Geórgia em juntar-se à OTAN adicionou uma percepção russa de insegurança estratégica (Tsygankov, 2019). Este processo fez com que a Rússia emergisse como crítica ao Ocidente, buscando estabelecer seu próprio nicho econômico e político nos mercados globais e instituições políticas, bem como no reforço de sua influência no espaço pós-soviético (Dias, 2014; Tsygankov, 2021). Exemplos desses comportamentos são, como Dias (2014) aponta: as iniciativas regionais para preservar sua influência na região, por meio da Comunidade de Estados Independentes e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, também estão, assim como Tsygankov (2021) argumenta, as políticas de construção de uma União Econômica Euroasiática, a busca por melhorar a posição da Rússia dentro da Organização de Cooperação de Xangai e na movimentação para a Ásia, nas dimensões econômicas e políticas.

Como Tsygankov (2021) observa, as tensões entre Rússia e Ocidente, que vão, em um período mais recente, desde às revoluções coloridas, à guerra na Geórgia, em 2008, até a anexação da Crimeia, em 2014 e que atinge seu ápice com a crise ucraniana, por exemplo, auxiliaram no fortalecimento de vozes nacionalistas, que pressionaram o Kremlin a enquadrar seu discurso em termos civilizacionais, alterando sua trajetória para uma postura vista como antiocidental. Estes aspectos, ao lado da desintegração da URSS e o confrontamento com a necessidade de redefinir a estratégia de política externa, seguida pela dificuldade da Rússia em ser reconhecida e se projetar como um membro à altura do Ocidente nos fóruns internacionais contribuiu para um crescente orgulho nacional e fortalecimento dos valores distintos da Rússia e de seu caráter de grande potência (Dias, 2014; Tsygankov, 2021).

Concomitantemente, como Makio e Fuccille (2023) argumentam, as políticas de memória se tornaram uma questão de interesse do Estado desde 2005 e, a partir de 2012, passou a haver uma reformulação da identidade russa, se baseando em um apelo às memórias de eventos que marcaram a história russa. Malinova (2017) aponta que a Grande Guerra Patriótica (Segunda Guerra Mundial) se mostrou a mais utilizável em termos de pensar o passado da Rússia. Isso exigiu uma adaptação dos discursos soviéticos e das práticas de comemoração. Assim, a dissolução da URSS e seu passado previamente consolidado são usados para garantir a continuação da identidade ao longo do tempo por meio da memória e de suas políticas.

O que se observa são tentativas para a inserção da Rússia no sistema internacional, influenciadas pelo desenvolvimento e comportamento em relação ao Ocidente. Este processo parece entrar, conforme Dias (2022) aponta, em um novo momento de competição sobre uma área de influência contestada tanto pela União Europeia quanto pela Rússia. A autora argumenta que o comportamento russo na invasão da Ucrânia mostra que os esforços de controle do espaço pós-soviético é um elemento central para a Rússia. Ademais, como Tsygankov (2019) argumenta, esta movimentação vem se enquadrando em discursos que seguem linhas civilizacionais, retomando memórias de um passado sagrado e que destaca a Rússia como uma potência independente da civilização europeia, algo visto com clareza tanto no discurso de anexação da Crimeia, em março de 2014, quanto no discurso de início da operação militar especial na Ucrânia, em fevereiro de 2022.

Assim, o que se observa, por meio das escolas de pensamento russas e neste amplo processo político pós-soviético, especialmente mais recentemente, com a invasão na Ucrânia, é que o que determina as escolhas de política externa por parte de Moscou se baseia em como o Ocidente assimila a Rússia enquanto um membro igual e legítimo no sistema internacional. Neste processo, a legitimação da política externa russa baseia-se na articulação entre as tradições civilizacionais, que definem as imagens do país, sua identidade perante o mundo e na definição do futuro que se espera para a Rússia.

*Maria Eduarda Carvalho de Araujo é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bacharela em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). É bolsista CAPES, membro-fundadora do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético) e pesquisadora no Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: mec.araujo@unesp.br

Imagem: Foto de Roman Verton – Moscow, Rússia. Por: Pexels/Roman Verton.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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