Biden

Os EUA no conflito em Gaza 2023/2024: a preservação da relação especial com Israel

Rodrigo Augusto Duarte Amaral *

“Os Estados Unidos (EUA) estão ao lado do Estado de Israel, tal como temos feito desde o momento em que os EUA se tornaram a primeira nação a reconhecer Israel, 11 minutos após a sua fundação, há 75 anos[1].” (BIDEN, 2023a, tradução nossa). Foi com este discurso inicial que o presidente dos EUA, Joe Biden, revelou o posicionamento sólido e imutável dos EUA que marcou sua posição diante da escalada de conflitualidade entre o Hamas[2] e Israel a partir do dia 7 de outubro de 2023.

Naquele dia, na voz do presidente, os norte-americanos anunciavam: “o povo de Israel está sob ataque, orquestrado por uma organização terrorista, o Hamas” (BIDEN, 2023b, tradução nossa). Não seria a primeira vez que os EUA acusariam o Hamas de ser uma organização terrorista. A primeira vez foi em 1997[3], durante a administração Clinton, após o estabelecimento dos Acordos de Oslo de 1993, que foram explicitamente rejeitados pelo Hamas, por considerá-los restritivos para a autonomia e territorialidade palestinas. Os Acordos de Oslo consagraram o papel do Hamas como uma resistência a Israel e a posição conformista da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), inaugurando uma realidade que progressivamente amarraria as mãos do movimento islâmico palestino. De um lado o Hamas comandaria os maiores movimentos contra Oslo em Gaza, por outro lado Israel e os EUA com o endosso da Autoridade Palestina representada pela OLP iniciaram um processo de criminalização do grupo islâmico e opressão de protestos civis. Os atentados de bombardeamento suicida de fevereiro de 1996 comandados pelo Hamas foram a “gota d’água” para a designação do grupo enquanto terrorista (KRISTIANASEN, 1999).

Em 2005, com a inédita desocupação israelense (desde 1967) de Gaza, apoiada pelo presidente Bush à época crescera a expectativa de um território autônomo palestino de facto (ainda que muito reduzido se comparado com a Palestina pré-1948). No entanto, o que se assistiu em Gaza foi o predomínio do argumento contraterrorista que justificou o bloqueio israelense ao território palestino após a vitória do Hamas nas eleições legislativas. Naquele momento, EUA e União Europeia anunciaram que não apoiariam um território administrado por um “grupo terrorista”. Estabelecia-se, então, uma tendência de assimilação da identidade entre a Faixa de Gaza e o Hamas, supondo como um espaço que abriga o “terrorismo internacional” (DOS SANTOS, 2023).

Mas a quem interessa chamar o Hamas de grupo terrorista? Considerando, ou não, a perspectiva crítica de que “um terrorista para um, é um libertador nacional para outro” (ROBINSON, 2004, p.112), a posição oficial dos EUA em designar o grupo como terrorista deve ser lida como politicamente intencionada. Primeiramente, pois essa qualificação destaca os atentados comandados pelo braço paramilitar do grupo, enquanto esconde suas atividades sociais que ganha os corações e mentes de milhares, senão milhões de palestinos e simpatizantes. Em segundo lugar, pois ignora a concepção do terrorismo como tática e aponta como um atributo de determinado ator. Isso é conveniente estrategicamente para os EUA e Israel à medida que encaixa o Hamas em uma categoria de violência extrema que irracionaliza o inimigo, portanto “legitima” qualquer tipo de resposta (ROBINSON, 2004).

Historicamente, o objetivo norte-americano declarado oficialmente quanto ao Hamas consiste em “deter, transformar, marginalizar, ou neutralizar o grupo de tal forma que não represente uma ameaça para a segurança de Israel […] e outros interesses dos EUA – como um proxy do Irã, ou outros atores” (ZANOTTI, 2011, p.1)[4]. Portanto, cabe afirmar que a finalidade tática de acabar com o Hamas é elemento fundamental para solidificação do objetivo de fortalecer o maior aliado estratégico dos EUA no Oriente Médio: Israel; ao passo que enfraquece os inimigos regionais, o maior deles o Irã.

Após os ataques do Hamas a Israel, que de maneira inédita matou mais de 1.100 israelenses, os EUA não apenas se mobilizaram diplomaticamente em favor da autodefesa israelense como intensificaram seu apoio material ao contra-ataque de Israel em Gaza. Os EUA concordaram provisoriamente (por meio de um memorando de entendimento) em fornecer a Israel quase 4 bilhões de dólares por ano até 2028, considerando possíveis financiamentos suplementares para Israel em meio a sua guerra com o Hamas (MASTERS & MERROW, 2024).

Se inicialmente a comunidade internacional se mobilizou em favor de Israel em repúdio ao ataque do Hamas, conforme o conflito se estendeu, a questão do limite da guerra inverteu as interpretações acerca da legitimidade do contra-ataque israelense. Ao observar, por exemplo, a postura da comunidade internacional nas sequentes propostas de cessar-fogo em Gaza nota-se uma expressiva vontade geral pelo encerramento do conflito brecado pela postura relutante dos EUA. Na sua história, os EUA vetaram resoluções críticas a Israel mais do que qualquer outro membro do Conselho de Segurança da ONU. Os EUA vetaram ao menos 89 resoluções do Conselho desde 1945, sendo 45 dos seus vetos foram utilizados em resoluções críticas a Israel, e 33 diziam respeito à ocupação israelense dos territórios palestinos ou ao tratamento dado pelo país ao povo palestino.  Desde o início do conflito, os EUA vetaram três propostas para o cessar-fogo imediato. Na última oportunidade, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora de Washington na ONU, disse que não era o momento certo para pedir um cessar-fogo imediato enquanto as negociações entre o Hamas e Israel não se encerrassem.

Mediante as respostas militares desproporcionais de Israel, novos fronts de batalha se abriram no Oriente Médio. Os principais atores que enfrentaram Israel contra os ataques em Gaza ficaram conhecidos como Eixo da Resistência. Trata-se de atores políticos e paramilitares que atacaram Israel como o Hezbolah libanês e os Houthis iemenitas, ou atacaram unidades militares norte-americanas como no caso dos mais de 150 ataques perpetrados pelas Unidades de mobilização popular iraquianas e grupos paramilitares sírios, ambos nos seus respectivos territórios. A resposta norte-americana a esses grupos revelou o envolvimento direto dos EUA no atual conflito no Oriente Médio. Tal cenário desenha linhas de alianças e inimizades claras, onde de um lado os EUA e Israel sustentam a guerra em Gaza ao passo que tentam inibir a insurgência reativa no resto do Oriente Médio. Por outro lado, revelam que o Hamas não está só, ao lado dele diversos grupos políticos islâmicos com braços paramilitares, apoiados (diretamente ou ideologicamente) pelo Irã preenchem o outro lado do campo de batalha.

A partir dos ataques contra unidades militares dos EUA no Iraque e os recorrentes ataques houthiscontra ao menos 10 navios de carga no mar vermelho, viu-se as primeiras incursões militares norte-americanas e britânicas no conflito, inaugurando a OperationProsperity Guardian destinada a responder os ataques houthis desde dezembro de 2023. Naquele instante, os EUA deixaram de ser agente passivo do conflito, atuando militarmente como aliado israelense contra os inimigos do “Eixo da Resistência”.

Seja como ator passivo ou ativo da guerra, os mais de seis meses de conflito revelam a sustentação da tradicional relação especial dos EUA com Israel. O país norte-americano se mostra como único porta-estandarte internacional de sustentação das ações militares israelenses em Gaza. Evidentemente, o papel americano é fundamental na manutenção do conflito. Faz vista grossa para os crimes de guerra israelenses que vitimam mais de 33 mil vítimas civis (13 mil crianças) palestinas que impedem não apenas um cessar-fogo da guerra, mas que se pautem novas discussões sobre autodeterminação e soberania palestina.

* Rodrigo Augusto Duarte Amaral, Doutor em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP), Professor de Relações Internacionais na PUCSP, membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUCSP (GECI).

Imagem: The Nation. Por:Brendan Smialowski /Getty

[1]Recomendamos ao leitor acessar a histórica relação entre EUA e Israel desde sua criação: BAR-SIMAN-TOV, Yaacov. The United States and Israel since 1948: a “specialrelationship”?.DiplomaticHistory, v. 22, n. 2, p. 231-262, 1998; SCHOENBAUM, David. The United States and the stateof Israel. Oxford University Press, 1993; CHOMSKY, Noam. FatefulTriangle: The United States, Israel and the Palestinians. Boston: South End Press, 1983; THIES, Cameron G. The United States, Israel, and the search for internationalorder: Socializingstates. Routledge, 2013; REICH, Bernard; POWERS, Shannon. The United States and Israel. In: The Contemporary Middle East. Routledge, 2012. p. 99-119.

[2] Organização política islâmica palestina que governa o território de Gaza e que tem um braço armado paramilitar.

[3]Para mais informações sobre os grupos considerados terroristas segundo os EUA, acessar: <www.state.gov/foreign-terrorist-organizations/> acesso em 04/03/2024.

[4] O relatório de Zanotti (2011) foi produzido como documento oficial do US Congressional Reasearch Service, uma agência do poder legislativo federal localizada na Biblioteca do Congresso, atua como equipe compartilhada exclusivamente para comitês e membros do Congresso dos EUA.

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