Durante o governo de Michel Temer duas questões trouxeram as Forças Armadas para o centro do debate público: o constante direcionamento dos militares a missões de segurança pública e as constantes declarações políticas de militares da ativa e da reserva. Enquanto a primeira, característica histórica da instituição, parece ter atingido novas dimensões com a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, a segunda coloca em questão o que era considerado por alguns como assunto encerrado: o controle civil sobre os militares e o afastamento dos mesmos da política.
A mobilização de tropas no interior das fronteiras nacionais para cumprir missões que envolvem o emprego da força não consisti uma exclusividade da gestão de Michel Temer, pelo contrário, pode ser observada durante toda a história do Brasil, tento ganhado considerável corpo legal nos últimos governos. De qualquer forma, a atribuição deste tipo de tarefa ao instrumento militar, fundamentada no dispositivo legal da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), foi uma constante desde o início do governo Temer, podendo ser indicada como uma característica do mesmo. Apesar de o ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann, no começo de sua gestão ter denunciado o que chamou de banalização do uso das Forças Armadas em segurança pública, logo assumiu uma posição proeminente nas declarações sobre a segurança do Rio de Janeiro nos noticiários, relegando o ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao segundo plano. A título de exemplo, pode-se citar, entre outros casos, o emprego dos militares no Espírito Santo, diante da greve da Polícia Militar; em varredura de presídios; em operações de segurança pública na região metropolitana de Natal; e em diversas ações na cidade do Rio de Janeiro desde o início de 2017, culminando na intervenção federal em segurança pública no estado. Estas medidas são constantemente questionadas em diversas dimensões como a da sua efetividade e de suas consequências em termos de direitos humanos, para aqueles que residem nas áreas que são alvo das operações de GLO [1][2][3].
A mobilização política explícita dos militares – definida na legislação como uma transgressão – foi outra marca das relações civis-militares durante o governo Temer. Destacamos aqui as figuras do general Antônio Hamilton Mourão e do Comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas. Mourão, que já havia sido centro de polêmica em governos anteriores, durante a gestão Temer sugeriu por duas vezes [1][2] que deveria haver uma intervenção militar caso as instituições brasileiras não fossem capazes de lidar com as instabilidades políticas. O general não apenas não teve sua conduta repreendida pelo Ministério da Defesa, como passou para a reserva de forma ilustre, sob elogios do Comandante do Exército. Deve-se pontuar que em seu último discurso Mourão enalteceu o coronel Carlos Brilhante Ustra, reconhecido como torturador pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014. Villas Boas, por sua vez, às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente, Luiz Inácio da Silva, fez declarações sobre corrupção e afirmou que os militares devem ficar atentos às suas funções institucionais. Ainda que não tenha deixado claro o significado exato das funções a serem observadas, o tom das declarações feitas pelo general, assim como a ressonância que teve no meio militar e o momento específico em que as fez gerou a percepção de que as Forças Armadas estariam pressionando a votação no Supremo Tribunal Federal. Como podemos então compreender o vínculo entre estas duas dimensões da questão militar?
É comum a concepção de que a atuação das forças armadas no âmbito doméstico estaria vinculada ao ímpeto militar por manter seu poder de influência política, seria então resultado da falta de controle político dos civis sobre a instituição castrense. Esta visão pressupõe que existe uma homogeneidade de interesses tanto entre os militares quanto entre os civis. Considera, desta forma, que os primeiros são necessariamente favoráveis à atuação em tarefas internas e que os segundos são automaticamente contrários à mesma. Sob está ótica negligencia-se a responsabilidade do governo civil em alocar as forças armadas neste tipo de missão, ao se pressupor que quando este tiver o total controle da escolha política, decidirá pelo afastamento das forças armadas da segurança pública, quando o que se observa no governo Temer, e não só, é o governo civil como principal propositor deste tipo de tarefa. Não se pode ignorar ainda a aceitação que este tipo de operação encontra na sociedade civil.
Com efeito, não é possível analisar o período em tela a partir desta concepção, uma vez que seria pouco plausível afirmar que o recorrente emprego das forças armadas em segurança pública durante pelo governo Temer seja resultado de pressões castrenses. Isto não significa, porém, entender a instituição militar como um ator inerte. Esta possui uma agenda própria e movimenta-se politicamente não apenas no âmbito específico das tarefas de segurança pública que lhes são atribuídas, mas também no panorama político nacional. Pode-se indicar a pressão das Forças Armadas, com destaque para o general Villas Boas, por maior segurança jurídica para os militares que atuam em missões de segurança pública, no sentido da qual, em outubro de 2017, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República a Lei 13.491, que estabelece a Justiça Militar como foro de julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis durante operações de GLO.
Há, portanto, uma relação complexa na qual à medida que o governo civil emprega seu instrumento militar em questões intensamente sensíveis para o debate público, como é a segurança pública e a violência urbana, buscando afirmar uma atuação supostamente mais rígida e definitiva contra o crime organizado, gera uma relação de dependência política com as forças armadas, vinculando a imagem e aprovação de seu governo à atuação dos militares. Este processo aumenta o poder de barganha política da corporação militar, trazendo à tona uma questão que aparenta nunca ter sido totalmente resolvida no Brasil: a insistência da instituição castrense de arrogar a si mesma a legitimidade de se posicionar acima das regras do jogo democrático, quando considerar necessário para a garantia de uma ordem, cujo significado é redefinido de acordo com a necessidade e conjuntura política.
Imagem: Coletiva sobre o decreto de intervenção federal no Rio. Por: Agência Brasil Fotografias.
David Succi Junior é doutorando pelo PPG em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisador do GEDES.