A Estratégia Nacional de Defesa, a Política Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional estão em processo de atualização. De acordo com o que foi estabelecido pela chamada Lei da Nova Defesa – que prevê a atualização dos documentos a cada quatro anos, contados a partir de 2012 –, a versão final deveria ter sido entregue e disponibilizada à população em 2016. Entretanto, o que foi divulgado – em setembro do referido ano – foram as minutas desses documentos, que ainda se encontram sob apreciação do Congresso Nacional.
Os três documentos são um marco importante para a Defesa no país, no sentido de tentar estabelecer maior clareza e direcionamento efetivamente político para as ações e iniciativas nesse setor. Vale lembrar que os documentos foram criados em um contexto bastante específico, quando considerada a posição internacional do Brasil no período entre 2005 e 2012, e a preponderância de um pensamento mais autonomista e nacionalista na formulação da Política Externa do país.
Não é necessária uma leitura muito aprofundada para notar que a atual versão, ainda que preliminar, busca se diferenciar das anteriores. Nota-se isso pela exclusão de conceitos antes marcantes, como entorno estratégico; o reposicionamento em relação à escolha dos parceiros e áreas de interesse do país, que agora passa a dar maior peso à regiões como a América do Norte e Europa; e pela linguagem menos ambiciosa no sentido da busca por maior protagonismo no cenário internacional.
De fato, modificações eram necessárias e também esperadas. Eram necessárias, uma vez que mudanças importantes ocorreram no cenário nacional – destacamos nesse sentido, o papel da crise política e econômica, que se desenrola desde 2013 – e internacional – dadas as transformações na esfera da política como, por exemplo, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, a eleição de Donald Trump, a posição mais assertiva da Rússia nesse cenário, entre outros fatores. Frente a isso, os documentos precisavam ser adaptados, a fim de situar o Brasil frente a essa nova situação interna e externa. Em mesma medida, essas modificações eram também esperadas, dada a troca de governo e a abrupta substituição da agenda política estabelecida a partir de então, consideravelmente distinta da anterior no que diz respeito às intenções internacionais do país.
Essas mudanças são curiosas, pois nos permitem levantar algumas – antigas – questões sobre o pensamento e a condução da política de Defesa no Brasil. É preciso ter em mente que, como parte da Política Externa, a política de Defesa corresponde a um “horizonte temporal dilatado”, como colocado por Proença Júnior e Eugênio Diniz. Isso significa que algum grau de continuidade da política de Defesa entre um governo e outro é necessário, não apenas porque qualquer mudança em relação à preparação e treinamento das Forças Armadas pode ser financeiramente custosa, mas também porque é importante para garantir a consolidação de uma imagem e de credibilidade perante outros atores da comunidade internacional.
O diplomata Alsina Júnior afirma que um dos fatores que contribuem para a baixa prioridade da Defesa no país é justamente o elevado grau de turnover quando da troca de governos. Nesse sentido, as agendas políticas para a área costumam ser substancialmente distintas, dificultando a manutenção de algum nível de continuidade entre um e outro governo. É certo que a condução da Defesa dependerá do direcionamento e das intenções no âmbito da Política Externa do país e as agendas políticas entre os partidos podem ser consideravelmente divergentes nesse quesito. Entretanto, a perenidade – ou ao menos coerência – entre as políticas de um e outro governo depende do maior interesse e envolvimento dos representantes políticos em assistir e acompanhar as iniciativas nesse setor.
No Brasil, porém, Defesa Nacional não é eleitoralmente interessante e são poucos os incentivos dos parlamentares para acompanhar mais de perto as políticas nessa área. É nesse sentido que Alsina Júnior reconhece que existe uma capacidade limitada, por parte do Poder Legislativo, em propor e fiscalizar políticas públicas mais complexas, como é o caso da Defesa. Essa reduzida participação e interesse por parte do Legislativo colabora para que o pensamento e a condução da política de Defesa se tornem mais suscetíveis às oscilações entre as agendas dos partidos e grupos políticos que assumem o Executivo. Ademais, a inexistência de uma carreira para civis na área da Defesa resulta na ausência de um corpo profissional que possa supervisionar o processo de atualização e manutenção dessa política, algo que criasse algum tipo de tradição ou institucionalização de práticas que garantissem certo grau de coerência entre as políticas de governos distintos.
Isso não implica dizer, no entanto, que a política de Defesa esteja – ou deva estar – acima da disputa político-partidária. A política de Defesa é uma política pública. Portanto, deve ser definida pelo governo vigente e está sujeita às demandas da população e às movimentações dos interesses e agendas dos partidos políticos, assim como ocorre na área da saúde e da educação. É, inclusive, nesse sentido que – em um regime democrático – as revisões e adaptações dos documentos de Defesa são importantes, altamente desejáveis e encorajadas. É esperado, então, que as iniciativas nessa área reflitam, em alguma medida, o pensamento e as visões de mundo do grupo ou partido político que estiver no poder, principalmente quando consideramos que existe um relativo sobrepeso do Poder Executivo na formulação e condução dessa política. Esse aspecto, inclusive, é igualmente importante no debate sobre a relação entre democracia e política de defesa. Sem uma participação mais ativa do Legislativo nessa área, o Executivo acaba por não desempenhar completamente o controle civil sobre os assuntos militares que, por sua vez, acabam garantindo alguma autonomia na condução da Defesa Nacional.
Atualmente, a questão crucial é saber até que ponto a agenda e a visão de mundo dos representantes políticos correspondem às demandas e expectativas da população brasileira, como deve ocorrer em uma democracia. Com isso, mais uma vez, é colocada a importância de se ter uma participação e fiscalização mais ativa por parte do Legislativo, além de um corpo civil profissional, interessado e especializado em acompanhar a manutenção e coerência – além da própria condução política – da Defesa entre um governo e outro.
Voltamos, então, a pergunta inicial: o que a atualização dos documentos nos diz sobre a condução da política de defesa do Brasil? É difícil ignorar que tem havido maior esforço político no sentido de conduzir a política de Defesa Nacional. Esse aspecto é bastante relevante, uma vez que há pouco tempo atrás os próprios militares ocupavam a cadeira da Presidência da República. Sendo assim, é necessário reconhecer o esforço de produzir e atualizar os documentos de Defesa que indicam maior direção política, ao tentarem estabelecer os objetivos para a área e suas motivações.
No entanto, ainda há muito que avançar, principalmente no sentido de estabelecer uma condução política de fato da Defesa Nacional e, a partir daí, a consolidação de uma relação civil-militar mais democrática. Isso porque os documentos de Defesa ainda são elaborados e atualizados intramuros – quando não dentro das instituições militares, pelos próprios militares –, com pouca ou nenhuma consulta popular durante esse processo. Além disso, observa-se que as análises e críticas aos documentos formulados pelos acadêmicos especializados na área tampouco são consultadas ou levadas em consideração. É necessário reconhecer que uma consulta pública foi aberta à população após a divulgação das minutas. Essa é uma medida importante, mas não suficiente para garantir a participação popular – e democrática – de fato na condução dessa política pública. Por esse caminho, o pensamento e a condução da política de Defesa permanecem, portanto, restrito ao pensamento e aos interesses militares, e sujeito às mudanças no Poder Executivo.
Patricia Capelini Borelli é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Política Nacional de Defesa. Por: Ministério da Defesa.