Para evitar confusões e tentando ser econômico, propedeuticamente distinguirei aqui “Segurança Internacional” (SI) como definiendum das pesquisas ou disciplinas acadêmicas da área das Relações Internacionais (RI) que têm como objeto a segurança internacional (si). A “si” é constituída fundamentalmente pela tensão provocada por imagens e percepções geradas nas unidades políticas da sociedade internacional que visam, dessa forma, manter ou quebrar a estabilidade das relações de força entre elas, podendo assim reforçar, dificultar ou colocar em risco a governabilidade nacional, regional ou mundial.
Dito isto, confesso-me positivamente surpreendido pelo notável crescimento, posterior a um breve interregno de esquecimento, da área de SI dentro dos estudos de RI nos últimos anos. O interesse despertado pelo tema entre os profissionais pode ser constatado no expressivo número de trabalhos apresentados na área de SI nos Encontros Nacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).
Embora motivo fundacional da ONU e forte incentivo para a criação dos primeiros cursos de RI no mundo, a si deixou de ser objeto prestigiado nas análises de RI, especialmente depois do desmoronamento da antiga URSS e o consequente Fim da Guerra Fria, quando alguns, seduzidos pela imagem de uma Paz mundial e a declarada vitória do capitalismo — subtraindo o motivo do conflito que dinamiza o devir da humanidade —, decretou-se precipitadamente o Fim da História. Mas a história é teimosa e não se submete aos caprichos dos pesquisadores. O conflito é inerente à sociedade e continuará a fornecer o oxigênio para a combustão que empurra a humanidade ao seu futuro ignoto, o que não é necessariamente negativo.
Durante a Guerra do Golfo (02/08/1990 — 28/02/1991), as bombas “inteligentes” desintegraram o sonho de uma paz duradoura. Essa conflagração obrigou a convocar as presas os especialistas que agora teriam a tarefa de analisar a nova configuração das relações de forças que definiria a fisionomia da si em permanente mutação. A novidade consistiu em que os que até pouco tempo rivalizavam pelo controle global bipolarmente, agora apareciam do mesmo lado, com o beneplácito da ONU e a satisfação da mídia internacional. Esse sim foi um divisor de águas na si e não o 09/11 como tantos defendem. Novamente, os inefáveis precipitados alcunharam o contradictio in terminis “monopolaridade” para se referir à inequívoca dissolução da bi para a multipolaridade reinante naquele momento, talvez intentando resignificar o velho “imperialismo”. Os internacionalistas, tão afeitos às modas e aos neologismos, não demoraram em adotar e empregar extensa e irrefletidamente esse termo absurdo em si mesmo.
Os acontecimentos do 11/09 foram de fato um fortíssimo incentivo para os estudos de SI (pela extensa cobertura da mídia e a notória falta de especialistas), mas, ao mesmo tempo, representou no cenário internacional o ingresso na década do que chamei o “sonambulismo estratégico” da hiperpotência que esqueceu da China como objetivo prioritário da sua projeção estratégica para se lançar numa intempestiva guerra contra fantasmas. O resultado previsível dessa obnubilação estratégica foi a complexa situação atual de insegurança internacional em que submergiram o mundo. Mas por sua vez, e possivelmente aproveitando o cochilo estratégico da hiperpotência, China estendeu suas pretensões estratégicas seguindo parcimoniosamente o planejamento de longo prazo que caracteriza sua política externa.
Quando o espanto ante a percepção do atoleiro estratégico no qual tinha se metido no Afeganistão e no Iraque acordou à hiperpotência do pesadelo que confunde vitória militar com o êxito político, a China tinha atravessando África e chegado ao Oceano Atlântico com investimento em infraestrutura e criando instituições. No último Forum on China-Africa Cooperation (FOCAC), a China se comprometeu a investir nesse continente 60 bilhões de dólares para desenvolver infraestrutura e industrialização e 60 milhões especificamente em assistência militar gratuita. Com esse montante, espera-se que a União Africana possa constituir e manter o seu exército regular com capacidade de pronta resposta para crises e apoio às operações de Paz da ONU na região. Por sua vez, no continente americano, além de sua incisiva e consistente inserção comercial e econômica em praticamente todos os países, conseguiu que na Constituição da Nicarágua constasse a construção do canal interoceânico para barcos Pós-Panamax e Super-Panamax. Caso se efetive, como consta nos planos, esse canal mudará radicalmente a geopolítica mundial.
O panorama da si apresenta na atualidade uma serie de níveis e contextos superpostos em camadas interconectadas extremadamente complexos como para enriquecer os estudos da SI nas RI. Numa primeira camada, mais visível e que diretamente afeta à população e à opinião pública internacional, encontram-se, entre outras, preocupações com condições de comover a si, como o clima e meio ambiente, as migrações forçadas, o crime organizado e o narcotráfico, o tráfico de pessoas e armas e o terrorismo (não necessariamente nessa ordem). Algumas teorias defendem que o aquecimento global e o consequente derretimento das calotas polares poderão acabar com países insulares; que secas prolongadas, incêndios, geadas e outras catástrofes poderão cobrar caro em vidas humanas e migrações forçadas, evidenciando a contradição entre a acumulação desenfreada do capital e a proteção do meio ambiente. Outro fenômeno internacional já visível e que chama a atenção da SI são as grandes migrações forçadas pela crise econômica e/ou as guerras, particularmente da África e do Oriente Médio em direção à Europa. Estes movimentos populacionais provocam um impacto imediato nas condições de vida urbana das grandes cidades, deixando em descoberto a falta de preparação e de políticas públicas para atender os refugiados. Tudo indica que as ondas de refugiados continuará e possivelmente aumentará, acalentada pelo agravamento das crises econômicas e o flagelo das guerras que se vislumbram no horizonte histórico.
As ações terroristas se encontram na mesma camada e se é certo que seu impacto midiático e social é enorme, este fenômeno pertence ainda à camada epitelial da si. A pertença ao aspecto mais superficial da si não justifica as análises simplórias e os comentários meramente opinativos recorrentes nos meios de comunicação. Estes fenômenos exigem estudos acadêmicos aprofundados e de fato representam boa parte dos artigos científicos de SI nas RI.
As Missões de Paz (MP) que parecem ter assumido definitivamente a investidura formal do Capítulo VII da Carta da ONU, pertencem a uma camada mais profunda. Trata-se de um fenômeno que envolve vários tipos de atores internacionais, como Estados, ONU e organizações regionais, ONGs e outras instituições formais e permanentes (como forças armadas) operando em difícil e não sempre pacífica combinação. As MP constituem o emprego oficial de forças armadas sob mandato da ONU, mas esse instrumento é formado por profissionais altamente treinados em uma grande gama de missões para enfrentar os riscos que elas envolvem. A forma, intensidade, meios, táticas e estratégias que serão empregados são motivo de grande preparo e de familiaridade com outras línguas e meios de combate.
Nesta camada de análise da si também se encontram as numerosas guerras e que atualmente estão ocorrendo simultaneamente em várias partes do mundo. Algumas delas manifestam-se na forma de guerra convencional, outras na modalidade assimétrica, outras em forma de “primaveras” (outra forma das guerras atuais) em algumas os efetivos são irregulares e na maioria se empregam táticas varias, entre as quais as terroristas. Em quase todas elas, atores não estatais assumem papéis importantes que devem ser considerados na análise, como grupos irregulares, mercenários, empresas privadas de segurança e também de defesa, inefáveis mercadores da morte oferecendo seus produtos e, com uma efetividade implacável, a mídia monopolizada. O emprego de veículos não tripulados VNTs, que projetam a letalidade dos Estados em outros territórios, em ambientes juridicamente ambíguos e guerras no declaradas, acoberta com um manto de impunidade claros crimes internacionais. Longe de condenar esses crimes, a mídia internacional os comemora. Todos estes elementos introduzem componentes de dificuldade, tanto na análise, quanto na hora de negociar a paz, particularmente com atores não reconhecidos como interlocutores válidos. Com o objetivo de diminuir o custo político que resulta da morte dos soldados dos exércitos nacionais em guerras de difícil compreensão para a cidadania, alguns Estados tem empregado, de maneira cada vez mais sistemática, empresas privadas e o uso extensivo de veículos não tripulados. Estes expedientes, que procuram jogar um manto nebuloso sobre a legalidade de intervenciones militares não aprovadas pela ONU, tencionam o direito e a ética internacionais.
Algumas destas guerras poderiam ser explicadas, com suas diferentes matizes e caraterísticas visíveis, como sendo manifestações abertamente bélicas do calor provocado pela fricção das capas tectônicas mais profundas do sistema de correlação de forças do sistema internacional. Essa fricção resulta do permanente reajuste das estaturas estratégicas das hiperpotências que se apresentam como eventuais polos gravitacionais dos arranjos de força mundiais e que poderão definir a polarização nas próximas décadas. A política externa chinesa no Mar da China, na periódica reivindicação territorial e de projeção marítima, assim como a Rússia na Ucrânia e no seu surpreendente protagonismo na guerra contra o Estado Islâmico na Síria e, mais recentemente, no Iraque, são parte do jogo de emissão de imagens e percepções com que dialogam as grandes potências. Neste nível de placas tectônicas, onde as grandes potências calculam e projetam as imagens das suas estaturas estratégicas para ocupar os espaços globais, é onde se fraguam as matrizes que formatarão o sistema de forças internacionais e pautarão os temas da SI. Debaixo delas, apenas o incandescente magma onde a força, a economia, a política, a cultura, a religião e visões de mundo se misturam ainda amorfas para a ciência e que apenas se revelam para algum filósofo desvelado ou para algum deus que ainda se interesse pelo desenrolar do drama humano.
Todos os temas relatados aqui brevemente assumirão gravidade nos próximos anos e exigirão dos profissionais de RI sérias e profundas pesquisas. Resta insistir em que a topografia da profundidade das diferentes camadas que articulam a si não significa que existam apenas alguns temas profundos e outros supérfluos na SI. Na verdade, a profundidade dos trabalhos da SI não é relativa à camada escolhida da si, mas à adequação metodológica, à pertinência teórica, à consistência lógica e, sobretudo, à seriedade profissional e autonomia intelectual com que se aborde o assunto. A dignidade epistêmica de um trabalho científico não é dada pelo objeto, mas pela forma do tratamento.
Héctor Luis Saint-Pierre é diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI), professor titular de Segurança Internacional do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), professor titular do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), e pesquisador e membro fundador do GEDES.
Imagem: Guerra e Paz. By: Ministério da Cultura.