Ligia Maria Caldeira Leite de Campos
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES Email: ligia.campos4@hotmail.com
O Sudão do Sul se originou em 2011, como resultado de um Amplo Acordo de Paz (Comprehensive Peace Agreement, CPA), assinado com o intuito de encerrar anos de conflito. Nele, estava previsto um referendo que possibilitou a independência da região Sul do Sudão, o que levou à criação de um novo país com a cidade de Juba como sua capital (GUIMARÃES, 2013; VARMA, 2011).
Nesse contexto, o partido Movimento de Libertação do Povo do Sudão (SPLM, em inglês), que havia liderado a oposição ao Sudão na luta pela independência, assumiu o governo. Salva Kiir passou a ocupar a presidência e Riek Machar a vice-presidência. Desde o seu surgimento, o país conta com a presença da Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS), que na época objetivava consolidar a segurança e a paz, além de auxiliar em seu desenvolvimento e preparar o governo que assumia o seu posto (JOHNSON, 2014; UNITED NATIONS, 2011).
No entanto, em 2013, uma nova disputa eclodiu, agora entre Kiir e Machar. Dentre as possíveis motivações, destacam-se atitudes arbitrárias do Presidente, como a retirada de Machar de seu cargo e o isolamento dos antigos participantes do movimento de libertação. O quadro que se apresentava no país era complexo, composto por baixo desenvolvimento, corrupção e falta de segurança. É relevante salientar que, desde o princípio, o Sudão do Sul já tinha que lidar com falta de infraestrutura, extrema pobreza, baixa qualidade de vida, disputas por petróleo e dificuldades na configuração do governo. A soma de todos esses fatores pode ter sido a razão para que Machar reunisse o Movimento de Libertação do Povo do Sudão em Oposição (SPLM-IO), contrário ao Presidente e seu governo (ROACH, 2016; JOHNSON, 2014; RADON; LOGAN, 2014; OLIVEIRA, 2011).
Entretanto, o real estopim do conflito de dezembro de 2013 ainda é discutido. O Presidente alegou a ocorrência de uma tentativa falha de golpe de Estado, a qual não foi comprovada. Em resposta, ele enviou tropas para diversos bairros, tendo como alvo políticos opositores e a população da etnia Nuer, sendo que Machar é Nuer e Kiir é da etnia Dinka [1]. Por conseguinte, Machar instou que o Exército derrubasse Kiir e grupos de civis Nuers armados se juntaram a ele (JOHNSON, 2014).
Em 2014, começaram a ser relatadas violações de direitos humanos perpetradas por ambas as partes. Em setembro de 2015, foi ratificado um acordo de paz, que resultaria em um período de transição até as eleições de 2018. O documento se propunha a consertar as falhas do Estado e do CPA (particularmente no que se refere à inclusão política e à falta de transparência na gestão do petróleo), assim como renovar a confiança da população em seus líderes e no sistema político. Todavia, os relatos de violações do acordo foram recorrentes. Ambos os lados mantiveram a disputa pela liderança, gerando dúvidas a respeito do seu comprometimento com a paz (OCI, 2015; ROACH, 2016).
Em fevereiro de 2016, Kiir, sob pressão, chamou Machar novamente para o posto de vice-presidente, o que não implicou que as partes fossem reintegradas. Em julho, houve um surto de violência de quatro dias em Juba, causando aproximadamente 300 mortes. A partir desse momento, ocorreram intensos embates entre tropas fiéis aos dois lados e o governo passou a agir de maneira ainda mais hostil contra seus opositores, levando Machar a se exilar na República Democrática do Congo (RDC). Grupos armados anteriormente existentes e outros que foram surgindo junto a essas hostilidades também participaram ativamente do conflito [2]. Desse modo, a União Africana (UA) autorizou o envio de tropas regionais para se juntarem à missão de paz da ONU e essas novas tropas teriam um mandato mais robusto para impor a paz (ROACH, 2016; OCI, 2016a; OCI, 2016b).
Novamente, foram realizadas inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, particularmente violência sexual, detenção forçada, tortura, assassinatos e destruição de propriedades, configurando um quadro que se aproximava a um genocídio (OCI, 2016c; OCI, 2016d; OCI, 2017).
No espaço de tempo entre o acordo de 2015 e 2018, foram várias as tentativas falhas de fazer as partes retomarem a negociação. Finalmente, em setembro de 2018, foi assinado o Acordo Revitalizado sobre a Resolução do Conflito na República do Sudão do Sul (R-ARCSS, em inglês), prevendo um sistema de power sharing (compartilhamento de poder) [3] e a instituição de um Governo de Transição Revitalizado de Unidade Nacional, além de tratar de questões como segurança, economia, justiça e reconciliação, assistência humanitária, reconstrução e desmilitarização de determinados locais. Está também previsto que as eleições devam ser realizadas em um período de transição de três anos. Entretanto, diversos grupos armados não o assinaram e outros assinaram-no com ressalvas. Mais ainda, houve dificuldades em estabelecer o governo de transição, problema que só foi solucionado em fevereiro de 2020 (AFRIYIE; JISONG; APPIAH, 2020; CAMPOS, 2019; ONAPA, 2019; UNMISS, 2020).
Ademais, ainda há um outro contratempo: desde a assinatura do R-ARCSS, a violência intercomunitária está em ascensão mais uma vez. Em maio de 2020, uma nova onda de conflitos intercomunitários assolou o país e autoridades locais demonstraram preocupação com essa nova empreitada. Esses confrontos não-estatais envolvem grupos bem organizados que estão vinculados a determinada identidade, seja ela religiosa, étnica, linguística ou cultural. Eles podem atuar de forma paralela ou se relacionar ao conflito central, em que tomam partido de um dos lados. Os embates que realizam variam em grau, podendo causar a morte de dezenas, centenas ou até milhares de pessoas, sendo capazes de ultrapassar o índice de mortes de uma guerra civil, visto que as milícias também atacam os civis. Costumeiramente, essas ações acontecem em áreas rurais e remotas, mas podem se dar em zonas urbanas. As motivações para que ocorram podem ser: a polarização em relação à guerra civil, baixa representação política, desconfiança em relação ao governo, proteção à comunidade, vinganças e tensões sobre recursos locais (particularmente gado e terra). Além disso, muitos grupos podem ser instrumentalizados e cooptados pelas partes em guerra ou mesmo recebem armas e financiamento da elite política, que busca por meio deles os seus próprios interesses. Dessa maneira, eles estão cada vez mais militarizados, havendo uma ampla disponibilidade de armas leves. Perante esse quadro, é possível observar que um tipo de conflito interfere no outro e que, para atingir uma paz sustentável, a violência comunitária deve ser abordada nos processos de paz, interligando o âmbito local e nacional (KRAUSE, 2019; OCI 2020b; OCHA, 2019).
Deve-se ressaltar que os países vizinhos acabam interferindo no conflito. Por um lado, Uganda possui um histórico de apoio a Kiir, porém, com o tempo, foi deixando de auxiliá-lo e passou a atuar mais em busca do acordo entre as partes em disputa. Por outro, o Sudão, quando governado por Omar al-Bashir, era entendido como apoiador de Machar. A respeito da razão para o envolvimento desses países nas hostilidades, muito se fala no interesse relacionado ao petróleo. Etiópia e Quênia, por sua vez, atuam nos processos de mediação, assim como a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) [4], a qual patrocina as tentativas de paz. O grupo armado ugandês Lord’s Resistance Army (LRA), realiza ataques na região, inclusive no Sudão do Sul. Portanto, é relevante considerar o escopo regional quando se interpreta o cenário sul sudanês. Ainda outros países dispensam atenção especial a esse contexto e ao processo de paz, como a China, os Estados Unidos (EUA), a Europa e a Troika (grupo composto por EUA, Noruega e Reino Unido que visa estabelecer a paz no Sudão do Sul) [5]. Há também uma importante participação da UNMISS, cujas funções são auxiliar o processo de paz e a implementação do R-ARCSS, proteger civis, investigar violações de direitos humanos e apoiar a entrega de ajuda humanitária (CAMPOS, 2017; AFRIYIE; JISONG; APPIAH, 2020; UNMISS, 2020).
Segundo dados do Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, 2019), a situação humanitária do país é muito delicada, uma vez que 7,5 milhões de pessoas necessitam de assistência em um país de quase de 12 milhões de habitantes. No total, contabilizam-se 2,3 milhões de refugiados sul sudaneses ao longo de país como Sudão, Uganda, Etiópia, Quênia, RDC e República Centro-Africana, e 1,5 milhão de deslocados internos. Estima-se que, entre 2013 e 2018, 400 mil pessoas morreram devido ao conflito, sendo metade das mortes causadas por violência. É importante frisar que há uma significativa discrepância entre os dados obtidos sobre essas mortes, devido ao difícil acesso a informações. Ademais, nesta contabilização, não é possível distinguir entre os mortos em razão da guerra civil e as vítimas dos conflitos entre comunidades (KRAUSE, 2019).
Atualmente, após a assinatura do acordo R-ARCSS, houve alguns avanços, como o cessar-fogo em grande parte do território, alguns retornos voluntários de refugiados, progressos na relação entre Kiir e Machar e o estabelecimento de um governo de transição. Contudo, ainda há alguns entraves, tais quais: incidentes violentos, ligados diretamente ou não ao conflito em termos amplos; violações ao acordo; impunidade; diversos casos de violência sexual; violações da liberdade de imprensa; ataques a trabalhadores humanitários; alegações de uso indevido das verbas; postergações dos prazos; e, especialmente, um receio perante o histórico de tentativas falhas de alcançar a paz. Ademais, existem minas remanescentes e um quadro de criminalidade, o que torna a situação mais desafiadora aos civis que, de maneira geral, não se sentem seguros. Observando o contexto como um todo, o conflito foi reduzido, porém a adesão ao acordo de paz é insuficiente. O próprio Conselho de Segurança da ONU compreende que a violência diminuiu desde a assinatura do acordo, mas permanece preocupado com questões políticas e de segurança (OCI, 2019a; OCI, 2019b; CAMPOS, 2019; OCHA, 2019; OCI, 2019c; OCI, 2019d; OCI, 2020c).
Em 2020, perante a pandemia de COVID-19, autoridades afirmam que as restrições por ela geradas são empecilhos para lidar com a segurança (OCI, 2020b). O Enviado Especial da ONU para a região dos Grandes Lagos, onde está localizado o Sudão do Sul, estima que as medidas preventivas juntas à realocação de recursos para gerenciar a crise sanitária irão, a longo prazo, debilitar as economias já frágeis, impactando os processos de paz e o desenvolvimento nessa área (OCI, 2020a).
À guisa de uma conclusão, diante dessa multiplicidade de atores e esse cenário complexo, são entendidos como os principais desafios para o país alcançar a paz: a frustração com a política e a governança, reduzida participação da população, baixa qualidade de vida, corrupção, ambição pessoal de seus líderes, rivalidades étnicas, dependência econômica em relação ao petróleo, disputa por recursos (petróleo, gado, terras), problemas de segurança e fragilidade das instituições. Para que se consiga finalmente conquistar uma paz sustentável, é necessário abordar todas essas raízes que geram não só o conflito mais amplo, mas todos os conflitos presentes no país.
NOTAS
[1] Essas são as duas maiores etnias do país (GUIMARÃES, 2013).
[2] Mais informações sobre esses outros grupos estão disponíveis em International Crisis Group, 2016.
[3] Power Sharing se refere à participação de todos os representantes dos grupos relevantes para a tomada de decisão política. Esse “compartilhamento de poder” é empregado especialmente em governos democráticos em sociedades divididas (LIJPHART, 2004).
[4] A IGAD é uma organização regional constituída por oito Estados do leste africano e tem como objetivo trazer e preservar a paz, segurança e estabilidade na região, atuando por meio da gestão, prevenção e solução de conflitos dentro e entre os países (MAWADZA; CARCIOTTO, 2017).
[5] Dados adicionais sobre a participação externa no conflito podem ser encontradas em CAMPOS, 2017.
REFERÊNCIAS
AFRIYIE, Frederick Appiah; JISONG, Jian; APPIAH, Kenneth Yaw. Comprehensive analysis of South Sudan Conflict: determinants and repercussions. Journal Of Liberty And International Affairs, Bitola, v. 6, n. 1, p. 33-47, maio 2020.
CAMPOS, Ligia Maria Caldeira Leite de. O Atual Conflito no Sudão do Sul. Série Conflitos Internacionais, Marília, v. 4, n. 2, p. 1-9, abr. 2017.
CAMPOS, Ligia Maria Caldeira Leite de. O Conflito no Sudão do Sul e o Papel da Missão de Paz da ONU no País. 2019. Texto publicado no site da Rede Brasileira de Pesquisa sobre Operações de Paz. Disponível em: https://rebrapazblog.files.wordpress.com/2019/10/campos-conflito-no-sudc3a3o-do-sul-e-unmiss.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020.
GUIMARÃES, Samara Dantas Palmeira. O Papel do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) na Construção do Governo da República do Sudão do Sul: A Atuação do PNUD do Período Pré-Secessão ao Pós-Eleição (2009-2012). 2013. 125 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.
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JOHNSON, Douglas H.. The Political Crisis in South Sudan. African Studies Review, Cambridge, v. 57, n. 3, p.167-174, dez. 2014.
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