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O USS Greeneville e a presença extrarregional anglo-americana no Atlântico Sul

João Vitor Tossini*

Em 10 de fevereiro de 2021, o Vice-Almirante Daryl Caudle da Marinha dos Estados Unidos, Comandante das Forças Submarinas do Atlântico, declarou que um submarino nuclear norte-americano, o USS Greeneville, esteve no Atlântico Sul e usufruiu de suporte aéreo das forças militares britânicas permanentemente baseadas nas Ilhas Malvinas (ou Falklands, para os britânicos), território reivindicado pela Argentina. Por meio de uma declaração oficial do Vice-Almirante, o Comando das Forças Submarinas do Atlântico reconheceu as ilhas como território ultramarino britânico, desviando-se da posição oficial de Washington. Apesar do apoio diplomático e militar dado ao Reino Unido durante a Guerra das Malvinas em 1982, os Estados Unidos declaram-se neutros na disputa territorial que permanece entre Londres e Buenos Aires. Assim, o episódio se insere em um histórico de presença de potências externas no Atlântico Sul que fragilizam iniciativas regionais de cooperação nas áreas de Defesa e Segurança.

Após disputas entre Espanha e Reino Unido no século XVIII, e um posterior período de administração pela Argentina, o controle britânico sobre as ilhas foi estabelecido em 3 de janeiro de 1833, permanecendo de forma ininterrupta até 2 de abril de 1982, quando a Argentina, governada por uma Junta Militar, iniciou a invasão que desencadearia a Guerra das Malvinas/Falklands. O apoio dos Estados Unidos aos britânicos durante o conflito demonstrou que as prioridades estratégias norte-americanas residiam no Reino Unido e na OTAN (MELLO, 1996), fragilizando o acordo de defesa hemisférica com os Estados da região, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que postula a assistência recíproca em caso de ataque aos seus membros.

A vitória do Reino Unido no conflito cimentou a presença territorial e iniciou a expansão da infraestrutura e da presença militar britânica no Atlântico Sul. Desde 1982, Londres mantém unidades militares dos três braços das forças armadas, incluindo uma presença naval permanentemente baseada nas Malvinas (UNITED KINGDOM, 2012). Ainda que os números totais tenham passado por uma redução após a abertura da base militar de Mount Pleasant nas ilhas (BEACH, 1986), uma das principais bases ultramarinas do país, as forças e a infraestrutura britânicas mantidas no Atlântico Sul continuaram a ser altamente avançadas, mesmo em períodos de austeridade no Reino Unido. No início dos anos 2010, período de tensões com a Argentina sobre o início da exploração de petróleo na Zona Econômica Exclusiva das Malvinas, o governo britânico realizou um dos maiores investimentos em seus territórios sul-atlânticos desde o conflito de 1982. A construção de um aeroporto de duplo propósito na ilha britânica de Santa Helena (ST HELENA, 2011), passou a fornecer ao Reino Unido o quarto aeródromo sob sua soberania na região ao passo que diminuiu o isolamento geográfico das Malvinas em relação à Londres, além de minimizar a dependência britânica da base militar na Ilha de Ascensão que abriga militares dos Estados Unidos e constitui parte do cinturão de possessões da potência europeia no Atlântico Sul.

A soberania britânica sobre as Malvinas é tradicionalmente apoiada pelos integrantes da Comunidade das Nações, organização que reúne ex-colônias e domínios do Reino Unido (COMMONWEALTH OF NATIONS, 2012). Ademais, o Reino Unido possui laços próximos com a África do Sul e, principalmente, Serra Leoa, ambos membros da iniciativa regional que visa o estabelecimento de uma Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul, a ZOPACAS. Acordos com a África do Sul permitem que as forças navais britânicas operando no Atlântico Sul, a Marinha Britânica ou Royal Navy e a Frota Real Auxiliar, utilizem a estrategicamente relevante base naval de Simon’s Town para reabastecimentos e trabalhos de reparos (UNITED KINGDOM, 2017). Navios da Royal Navy que patrulham e garantem a soberania do Reino Unido nas Malvinas utilizam dessa base, reduzindo a necessidade de retorno frequente aos portos nas Ilhas Britânicas ou em Gibraltar. No caso de Serra Leoa, o país africano foi alvo de uma intervenção militar britânica no ano 2000, objetivando colocar fim à uma guerra civil. O alcance dos objetivos políticos e militares por meio intervenção marcou o retorno da presença militar do Reino Unido na África Ocidental. Serra Leoa defende a autodeterminação dos habitantes das Malvinas, apoiando assim a continuidade da presença britânica na região (MILLER 2012).

As relações do Reino Unido com Serra Leoa e, em menor medida, com a África do Sul demonstram os limites da ZOPACAS. A organização regional, criada em 1986 por meio de esforços do Brasil e Argentina, tem como um de seus objetivos centrais a redução e eventual eliminação da presença territorial e militar “extrarregional” no Atlântico Sul (UNITED NATIONS ORGANIZATION, 1986). Entretanto, a pluralidade de interesses, ausência de maior institucionalização e coordenação de agendas, além da assimetria de poder relativo dos Estados membros em relação ao Reino Unido e aos Estados Unidos, reduzem expressivamente o peso geopolítico da ZOPACAS. Em 2008, Washington restabeleceu a IV Frota, responsável pela manutenção da presença naval norte-americana nas águas caribenhas e ao redor da América do Sul (DAWOOD; HERZ; LAGE, 2017), fortalecendo a presença do país no Atlântico Sul. Neste ponto, torna-se necessário destacar que os Estados Unidos possuem um contingente terrestre e aéreo permanente na Ilha de Ascensão, operando a base militar local em conjunto com o Reino Unido. Este sistema de disponibilização ou operação conjunta de bases em território britânicos não ocorre somente no Atlântico Sul, a Ilha de Diego Garcia no Oceano Índico é amplamente utilizada pelas forças de Washington desde a década de 1960.

Assim, a presença do submarino nuclear USS Greeneville e as declarações do Comandante das Forças Submarinas do Atlântico ocorreram nesse contexto de tensões em que, apesar da pregada neutralidade em relação aos territórios britânicos, os Estados Unidos se beneficiam da presença ultramarina do Reino Unido. O apoio prestado ao USS Greeneville por componentes aéreos das forças britânicas nas Malvinas reforça a utilidade para Washington da manutenção do status quo na região. Além disso, como notado pela imprensa argentina, a presença desse submarino nuclear ocorreu poucos dias após o governo argentino cancelar atividades navais conjuntas com a Guarda Costeira dos Estados Unidos objetivando evitar desgastes com a China. Os exercícios envolviam treinamento de combate à pesca ilegal, sendo que esta prática possui na China a origem de crescente parcela das embarcações pesqueiras ilegais na costa Argentina e de outros país sul-americanos (ELGUETA, 2021).

Nota-se que o crescimento da influência econômica da China na região a partir da segunda metade dos anos 2000 foi lentamente acompanhado pelo surgimento em 2014 das primeiras incursões navais chinesas na forma de visitas a portos e treinamentos com marinhas locais, ações que rapidamente adquiram papel no aperfeiçoamento das capacidades de projeção de poder e de manutenção de operações militares em águas profundas. Em adição, questões como a pirataria no Golfo da Guiné contribuem para a justificativa da intermitente, mas crescente, presença naval chinesa na região. Dessa forma, ao longo da década de 2010, o contexto geopolítico do Atlântico Sul começou a presenciar um novo ator, ainda que este possua suas prioridades nos Oceanos Índico e Pacífico (MARTINSON, 2019).

A subsequente presença do USS Greeneville em conjunto com o apoio militar britânico a partir das Malvinas, destaca que os Estados Unidos detém um parceiro receptivo, membro da OTAN e permanentemente baseado no Atlântico Sul. O episódio do cancelamento dos treinos programados entre a Marinha Argentina e a Guarda Costeira dos Estados Unidos, possui como consequência direta o fortalecimento relativo da posição sul-atlântica de Londres perante Washington, contribuindo para a deterioração estratégica da ZOPACAS.

Posteriores protestos do governo argentino derivados da incursão do Greeneville foram marcados por dois aspectos. O primeiro deles concernente ao controle e presença militar britânica nas Malvinas, reafirmando o desacordo de Buenos Aires com o status quo. Outro aspecto levantado foi a possível violação que a presença do submarino nuclear USS Greeneville representaria para a ZOPACAS. O governo em Buenos Aires destacou que embarcações capazes de portar ou empregar armas nucleares violam a resolução da Organização das Nações Unidas que deu origem a Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (ELGUETA, 2021).

Todavia, o USS Greeneville, assim como seus irmãos da classe Los Angeles, é designado como “submarino de ataque” (attack-submarine), amplamente identificado pela sigla SSN, significando que este é movido por propulsão nuclear e detém como papel a guerra submarina e anti-navios (BETTOLLI, 2021) e indicando que classe Los Angeles não possui capacidade de armazenar ogivas e realizar ataques nucleares. Submarinos nucleares com essa habilidade são identificados pela Marinha dos Estados Unidos pela adição do termo “balísticos” (SSBN) em referências aos mísseis balísticos intercontinentais empregados por essa força. Desde o início dos anos 2000, a classe Ohio representa a capacidade de ataque nuclear dos Estados Unidos a partir de submarinos, sendo a base naval da tríade nuclear do país e significativamente maiores que a classe Los Angeles (CHINWORTH, 2006). Em suma, as dimensões e especificações técnicas do Greeneville impossibilitam o transporte ou a utilização de armas nucleares.

Apesar disso, o anúncio da presença do USS Greeneville e o auxílio militar britânico seguido pela indicação de reconhecimento da soberania de Londres sobre as Malvinas, reforçam o alcance global da superpotência norte-americana e da potência europeia e a continuidade da “relação especial” compartilhada pelos dois países desde os anos 1940. Ademais, considerando que os deslocamentos das forças submarinas dos Estados Unidos são raramente divulgadas, o caso do Greeneville se apresenta como uma demonstração de força em uma região que aparenta receber outras potências extrarregionais. A inserção militar da China no Atlântico Sul, uma área marcada pelo protagonismo exercido pela parceria anglo-americana, possui potencial de expandir a presença militar de Londres e Washington em detrimento das ambições regionais de estabelecimento de uma Zona de Paz e, apesar de protestos regionais, reforçar a posição dos britânicos nas Malvinas. Como demonstrado pelo Reino Unido desde 1982, essa presença não depende da cooperação militar com países lindeiros, ainda que este ator extrarregional cultive relações próximas com Estados africanos banhados pelo Atlântico Sul, estimulando indiretamente a fragmentação das iniciativas regionais de Defesa e Segurança ao alinhar ou aproximar atores, como Serra Leoa, ao posicionamento britânico.

* João Vitor Tossini é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: Ilhas Malvinas por Governo Argentino/CONAE.

 

REFERÊNCIAS

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CHINWORTH, William C. The Future of the Ohio Class Submarine. (Master of Strategic Studies thesis). Carlisle Barracks, Pennsylvania: U.S. Army War College. 15 March 2006.

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DAWOOD, Layla; HERZ, Mônica; LAGE, Victor Coutinho. A Nuclear Submarine in the South Atlantic: The Framing of Threats and Deterrence. Contexto int., Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 329-350, Aug.  2017.  Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-85292017000200329&lng=en&nrm=iso. Acesso em:  18 fev.  2021.

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ELGUETA, Mario Estay. EE.UU. le devuelve desaire a Argentina: submarino nuclear operó en el Atlántico Sur con apoyo británico desde las Falklands. Infogate, 12 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.infogate.cl/2021/02/12/ee-uu-le-devuelve-desaire-a-argentina-submarino-nuclear-opero-en-el-atlantico-sur-con-apoyo-britanico-desde-las-falklands/. Acesso em: 18 fev. 2021.

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